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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24041: Notas de leitura (1550): Uma safra de leituras, sábado na Feira da Ladra, em tempos de pandemia (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Maio de 2020:

Queridos amigos,
Tony Tcheka é nome proeminente da poesia guineense e aqui se deixa referência à sua comunicação num encontro de escritores de língua portuguesa, realizado em Luanda em 2015 sobre o tema da relação de escritores com as cidades, Tony Tcheka privilegiou discretear sobre a evolução das temáticas poéticas pós-independência, onde a criança e a mulher sobressaem, a primeira por constituir a dor constante da infância humilhada, a fase patente do subdesenvolvimento e da humilhação; a segunda, decorre do facto de a mulher se ocupar de todos os misteres, deita mão a tudo, produz, curva-se na bolanha, prepara o arroz para a família, na cidade deita mão a tudo, e a literatura guineense espelha muito bem a sua dor física e psicológica. Bem gostei de voltar à Feira da Ladra depois do intenso jejum pandémico, trouxe outras leituras de que vos vou dar conta, um antigo combatente de Olhão que veio matar saudades à Guiné, e o relatório produzido por um think tank, o Bow Group, muito próximo do Partido Conservador britânico, elaborado em 1961, em que se diz claramente que não há qualquer solução militar para o império colonial português.

Um abraço do
Mário



Uma safra de leituras, sábado na Feira da Ladra, em tempos de pandemia (1)

Mário Beja Santos

Foi sábado de sol, o polícia a vigiar o cumprimento das normas, quem queria folhear e comprar alfarrábios usava obrigatoriamente máscara e luvas. Confesso que tinha saudades, eram meses sem visitas, compreensivelmente, ali me senti bem e entusiasmado, na fase de desconfinamento. A primeira surpresa foi o livrinho Literatura e Lusofonia 2015, desse encontro de escritores de Língua Portuguesa havia nomes sonantes como Pepetela, Manuel Rui e Tony Tcheka, poeta guineense que muito admiro. A UCCLA – União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa tem privilegiado estes encontros, o de 2015 foi em Luanda, a temática era a relação dos escritores com as cidades, a forma como as encaram e em que medida elas os inspiram. Como o nosso blogue, por definição está orientado para tudo quanto é Guiné, vamos dar a palavra a Tony Tcheka que discreteou sobre a criança, a mulher e a cidade na literatura guineense – Meninos da Terra Vermelha, alusão à cor da laterite.

Começou a sua intervenção com o poema Chamo-me Menino!, assim:
“Sou a criança pobre/ de uma rua sem nome/ num bairro escuro/ de covas fundas/ em gargantas/ fatalmente magras, carentes de pão/ e sem muita ambição/ Sou filho da miséria/ escancarada/ enteado da vida/ entreaberta/ Vivo na periferia/ passo no tempo/ com trejeitos d’homem/ Chamo-me Menino!/ Dou passas desde os cinco/ tenho doze chuvas/ uma cara operária/ sobre um corpo fininho/ cinco anos/ Sofro de raquitismo/ por comer com os olhos/ enquanto na garganta/ destilam bolas de saliva/ Meu peito nicotizado/ é mortalha e tantam/ arde e inflama/ como a chama! – Chamo-me Menino!”.

Tony Tcheka alude a jovens da geração que nos anos 1960, vivendo na cidade de Bissau, ia registando episódios diversos, apontamentos que inevitavelmente se prendiam com o sistema social e político. Iniciado o chamado processo de reconstrução nacional, Mário Pinto de Andrade deu acalento à publicação de muitos desses textos com o nome de Mantenhas para Quem Luta, antologia poética com 48 textos escritos em português, 1977. No ano seguinte seria editada uma segunda coletânea, a diversidade temática extravasava o colonialismo, a escravatura, a exaltação da liberdade e a esperança num futuro melhor. A investigador Filomena Embaló escreveu a propósito: “A questão de identidade não é apresentada como um fator de oposição entre o indivíduo e a sociedade na qual este evolui. Ela é analisada como um conflito pessoal do indivíduo, que consciente do seu desfasamento cultural em relação à sociedade de origem procura identificar-se com as suas raízes, da qual foi afastado pela assimilação colonial”.

É neste contexto que aparecem a criança e a mulher, a par da terra libertada. Como Tony Tcheka escreve: “Criança trabalhadora, menino de rua, portador de deficiência, enfim, a realidade vigente que mais não é que o reflexo do seu próprio atraso de desenvolvimento, o que também coloca a infância à margem da saúde e da própria escola”. E cita vários poemas onde realçam os “meninus de kriason”, crianças entregues a supostos cuidados de famílias urbanas remediadas, com o fito de aprenderem a ser gente e a ter uma vida melhor. "São levadas para a cidade com o fito de aprenderem a vida. Entre o enunciado e a verdade ressalta a dimensão verdadeira da criança maltratada, a criança escravizada. Chegados à cidade ou noutros centros urbanos, na casa dos senhores, são confinados a um trabalho árduo e sem limites. São os primeiros a erguer-se, ainda antes dos raios de sol vencerem a madrugada, seguindo os caminhos das fontes para encher baldes e baldes de água e apanhar lenha para fazer crepitar o fogareiro e preparar o ‘matabicho’ dos senhores da casa e familiares. Nunca vão à escola e se falham nalguma labuta são severamente punidos. Há muitos deles, quando tudo se torna insuportável, só lhes resta a fuga para a rua, onde alimentam o batalhão dos Meninos da Rua".

Refere o autor que trinta anos depois, em 2010, foi lançada em Lisboa uma nova antologia juvenil da Guiné-Bissau, assinada por 23 jovens com poemas em português e kiriol. E o que se verifica? Que persistem os meninos de ontem e de hoje na poesia guineense, povoam espaços criativos, de igual modo também se regista a presença feminina. E Tony Tcheka questiona o que é a cidade dos meninos. “Sacudida ciclicamente por crises políticas e militares violentas, ela resiste e disponibiliza-se como palco das lides literárias que acontecem nos centros culturais nas embaixadas de países amigos”.
E o poeta continua:
“Quando os tempos são duros, trazendo lascas e bagos de dor, outras penas perscrutam a cidade dos meninos, atingido pelo macaréu da maldade, e os canhões orquestram valsas fúnebres que sentenciam a desertificação compulsiva da cidade (…) Durante mais de uma década, esta cidade de meninos não parou de ser fustigada e castigada por lâminas desembainhadas, amputando mentes, lascando corpos, suprimindo vidas”.

Falando de 2014, ano de eleição de José Maria Vaz, com todas as expetativas de reconciliação nacional, o poeta Tony Tcheka destaca o alívio que as promessas de paz trouxeram ao país, relembra que as garças e pelicanos fizeram a viagem de regresso ao seu habitat, que muitos pássaros voltaram a cantar o fim da madrugada, como se estivessem a anunciar um novo tempo de uma esperança resgatada. O mesmo poeta que exalta o sofrimento da criança também não esquece que a mulher surge como a fiel depositária dos valores e referências da idiossincrasia guineense. É camponesa, é pescadora, é mestre, professora. E deste modo termina a comunicação de Tony Tcheka:
“Nem sempre ser mulher é sinónimo de satisfação, ante adversidades de vária ordem instala-se a revolta que desagua na escrita de uma poeta: obrigado por esta dor/ por este desespero/ essa voz gigante/ ecoando em mim/ … / obrigada por este momento de angústia/ por esta raiva de ser mulher/ esta luz/ obrigado por este silêncio/ meu refúgio…/. Mas é também pelo verso de Odete Semedo que se percebe uma abordagem inovadora sintonizada com o género: … sou o rio que corre/ tropeçando em pedras e velas/ para chegar ao seu destino/ não sou mulher nem homem/ … apenas um pedaço deste chão.
Tanto tratadas, no entanto, são poucas as vozes femininas no universo literário guineense. Destacam-se: Odete Semedo; Saliatu Costa; Domingas Samy; Filomena Embaló; Teresa Montenegro; Eunice Borges; Mariana Ribeiro; Auzenda Nogueira; Filomena Correia; Gina Có; Irina Ramos e Rira Ié. Contudo, no segundo volume da antologia poética guineense, Traços no Tempo, participam já nove poetisas”
.

É este o registo que Tony Tcheka faz de crianças e mulheres na lírica guineense pós-independência. O outro documento que encontrei na Feira da Ladra intitula-se Retrato(s), o seu autor João Peres, edição do Núcleo de Olhão da Liga dos Combatentes, é uma lindíssima romagem de saudade que iremos ver a seguir.

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24034: Notas de leitura (1549): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (15) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16699: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (21): Mário Moutinho Pádua, o primeiro oficial português a desertar, em Angola, em outubro de 1961... Será, mais tarde, médico do PAIGC, no hospital de Ziguinchor, entre fevereiro de 1967 e setembro de 1969... Regressou a Portugal em novembro de 1974, e cumpriu o resto do serviço militar... Aposentou-se em 2003 como médico do Hospital Pulido Valente (Juvenal Amado)


Guiné > s/l > c. 1964/66 > Coluna em movimento 

Foto do álbum de Belmiro Tavares, ex-alf mil, CCAÇ 675 (Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), Prémio Governador da Guiné (1966).

Foto: © Belmiro Tavares (2010). Todos os direitos reservados. [Edição; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


Imagem à esquerda: capa do livro No percurso de guerras coloniais, 1961-1969 , de Mário Moutinho de Pádua. 1ª ed. Lisboa: Avante, 2011, 246 p. : il. ; 21 cm. (Coleção Resistência).

1. Texto enviado pelo Juvenal Amado, com data de ontem, e que pretende enriquecer o nosso debate sobre o tema "desertores".


Luís eu tenho em meu poder este  livro do Mário Pádua sobre o qual o Mário Beja Santos já ez recensão para o blogue (*). Comprei-o para oferecer ao Carlos Filipe e depois tive que lho pedir emprestado para o Mário. Também já viajou até Luanda, mas isso são outras histórias...



[Foto à direita: capa do livro do Juvenal Amado
"A Tropa Vai Fazer De Ti Um Homem - Guiné, 1971 - 1974" (Lisboa: Chiado Editora, 2015, 308 pp.;  o nosso camarada foi 1.º Cabo Condutor Auto Rodas, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74]

Mário Moutinho de Pádua (, que eu pensava ter nascido em Angola, mas não, nasceu em Lisboa, ) é um homem politicamente comprometido, julgo porém que essa faceta não deve pesar na análise que se poderá fazer da sua obra, bem do que ele nos conta sobre a sua deserção do BCAÇ  88 estacionado em Maquela do Zombo e as dificuldades que enfrentou,  muito mais difíceis do que ele alguma vez esperava.

Neste livro narra a sua impressionante experiência a seguir à deserção, nomeadamente as prisões e torturas de que foi alvo no Congo, a sua passagem pela Checoslováquia e o seu desencanto com vários aspectos do "socialismo real", a sua participação na construção de uma Argélia recém-libertada do colonialismo, e por fim a sua contribuição como médico na luta travada pelo PAIGC na Guiné

A edição tem um prefácio de Pepetela ( praticamente quatro páginas) que começa assim;

Mário de Pádua foi o primeiro oficial português a desertar em Angola em Outubro de 1961, acompanhado pelo o 1º  cabo Alberto Pinto.

Este seu livro é uma espécie de crónica de vida, onde conhecemos a sua fuga do Norte do país, acompanhado pelo Alberto Pinto, as prisões que conheceram no Congo, então Leopldeville, hoje R P. do Congo onde era inconcebível que soldados portugueses se recusassem a combater contra angolanos.

No livro também são descritas condições e traições entre e dentro dos movimentos de libertação, bem como as alterações das condições nos países de acolhimento, que se alteravam em relação aos militantes do MPLA , após os derrube e morte de líder independentistas como Ben Bella e Pratice Lumumba como exemplo.

Em relação a deserções que tive conhecimento transcrevo aqui parte de um meu comentário a esse respeito.

Desde cedo se falou nas deserções e dos refractários. Eu próprio, estive numa situação delicada sem culpa nenhuma quando destacado numa diligência em Santta Margarida, os responsáveis pelo meu depois batalhão de caçadores 3872 que se estava a formar em Abrantes, andaram mais de 8 dias à minha procura. Quando me apresentei,  vindo directamente de Sta Margarida, ainda levei um raspanete do capitão e tive de explicar onde tinha estado.

Mas em Alcobaça,  logo no início da guerra em 1961, desertou na noite do embarque um individuo filho de um dos mais prestigiados médicos ligados à oposição [, o dr. Lameiras]. Segundo creio, foi apanhado por suspeitas de atitudes conspiratórias clandestinas na universidade e foi incorporado e mobilizado para Angola. Naquela noite desertou e mais tarde se lhe juntou a irmã, também perseguida pelas mesmas razões. Depois do 25 de Abril a irmã regressou e foi dirigente do MDP-CDE mas ele só regressou alguns anos depois. Vim a saber que a sua fuga não foi aceite pela organização no exílio e durante muito tempo esteve entregue à sua sorte, gravemente doente,  a correr perigo de vida. As infiltrações pela PIDE eram temidas e,  assim, quem desertava por sua conta e risco, acabava por passar muito mal sem a solidariedade militante.

Dos casos de Cancolim [, CCAÇ 3489,] já aqui foram mais que falados. Mas Cancolim também veio a receber alguns soldados que,  tendo sido refractários, acabaram por beneficiar de amnistia de Marcelo Caetano e resolveram assim regressar. Também alguns saíram das prisões por delitos vários para serem embarcados e assim serem indultados dos castigos que tinham sido impostos.

Bem,  se ir para a Guiné se poderá chamar de indulto, é discutível .

Também alguns comentários fazem-me pensar nas palavras da “Maria Turra",  que dizia que era o medo que tínhamos dos nossos superiores, que nos levava a combater.

É que algumas deserções são aqui descritas dessa forma. (**)

Um abraço
Juvenal Amado


2. Mário Moutinho de Pádua - Notas biográficas

(i) nasceu em Lisboa a 3/10/1935;

(ii) aos 8 anos emigrou com os pais e o irmão para Angola, tendo a família fixado residência em Benguela;

(iii) aos 10 anos matriculou-se no liceu do Lubango onde se manteve até aos 13;

(iv) transferiu-se então para Portugal; voltou a Angola dois anos depois, desta vez para o liceu de Luanda onde os pais se encontravam;

(v) aos 17 anos iniciou o curso de Medicina em Lisboa que terminou em 1960;
(vi) convocado em janeiro de 1961 para o serviço militar foi enviado para Angola em abril de 1961 com o posto de alferes médico;

(vii) desertou do exército colonial em Outubro de 1961 pedindo asilo político no Congo-Kinshasa, asilo que só lhe foi concedido em fevereiro de 1962, tendo ficado preso até esta data;

(viii) pouco depois tornou-se assistente de especialidade no Hospital de Lovanium;

(ix) do Congo viajou para a Checoslováquia em setembro de 1963;

(x) seis meses depois seguiu para a Argélia onde trabalhou no Hospital de Mustapha até fevereiro de 1967;

(xi) na Argélia fez parte da Frente Patriótica de Libertação de Portugal (FPLN) que operava a rádio "Voz da Liberdade";.

(xii) em fevereiro de 1967 começa a prestar a sua colaboração profissional ao PAIGC; a  maior parte deste serviço ocorreu no "Lar" (Hospital) do Partido,  em Ziguinchor, no Senegal, perto da fronteira
com a então Guiné portuguesa;

(xiii) em setembro de 1969 parte para França, onde durante 5 anos efectua os estudos de especialidade e trabalha num hospital dos arredores de Paris;

(xiv) em novembro de 1974 regressa a Portugal; aqui termina o serviço militar e exerce actividade médica em Centros de Saúde e no Hospital de Pulido Valente em Lisboa de onde se aposenta em 2003.

Fonte: Angola-eBooks.com (com a devida vénia...)
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(**) 7 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16695: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (20): Mais um caso "atípico" ? A deserção do soldado escriturário nº mec 2055276, Carlos Alberto Sousa Emídio, da CCAÇ 3476 (Canjambari e Dugal, 1971/73), em 17/8/1972, e cujo rasto se perdeu desde então...