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CART 2339 (1968/69) > Interrogatório a um prisioneiro, o guerrilheiro Malan Mané. Quem preside ao interrogatório é o slf mil at art Torcato Mendonça. A foto é do alf mil Cardoso, e chegou-nos à mão através do ex-fur mil Carlos Marques dos Santos, de Coimbra. "Pela disposição dos presentes é fácil imaginar a brutalidade do interrogatório. O militar das patilhas sou eu, na escrita, Torcato Mendonça".
Foto: © Carlos Marques dos Santos (2006) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados
O 'prisioneiro'
Malan Mané
por Luís Graça (*)
Guiné.
Bambadinca.
3 de
Setembro de 1969.
Malan Mané (**):
terás
vinte anos, vinte luas ?
Menos
de vinte ?
Talvez
sejas da idade dos nossos soldados mais novos,
temos
alguns com dezasseis ou dezassete.
Não
tenho qualquer jeito para adivinhar idades,
muito
menos dos africanos.
Mas
tu próprio não saberias responder-me:
aqui
ninguém tem
certidão
de nascimento,
cédula
pessoal,
bilhete
de identidade
Os
nossos, esses, sim,
têm (ou
vão ter) caderneta militar...
Para
a tropa, do recrutamento local,
é-se
escolhido a olhómetro:
etnia,
altura,
peso,
massa
muscular…
A
idade não conta,
é o
régulo de Badora, quem põe e dispõe,
o
poderoso Mamadu Bonco Sanhá,
tenente
de 2ª linha...
Experiência
de combate,
quase
todos a têm,
os
fulas desta região,
de
Badora e de Cossé…
Malan Mané:
mandinga
do regulado do Cuor,
a
norte de Bambadinca, para lá do Rio Geba,
podias
ter sido nosso soldado,
temos
dois mandingas
na
nossa companhia, a CCAÇ 12,
Malan
Nanqui e Ussumane Sissé…
Mas
há mais outros dois Malan,
de
etnia fula:
Malan
Baldé e Malan Jau…
Malan Mané:
com
que então
eras
o roqueteiro do bigrupo de Mamadu Indjai,
o
terrível,
o
famigerado comandante de guerrilha,
também
ele de etnia mandinga
(ou
talvez biafada ?)...
Não
me sabes ou não me queres responder,
não
importa,
à
pergunta sobre o teu chefe.
Olhando,
para ti de alto a baixo,
sem
sobranceria, com empatia,
vejo
que vestes um dolmen, velho,
de
cor já irreconhecível,
calças
rotas no joelho…
Estás
descalço…,
perdeste
as chanatas ?
Por
outro lado, estás com ar deprimido,
talvez
mesmo aterrorizado,
não
consigo ler as emoções do teu rosto impassível.
Tal
como os nossos fulas, usas um amuleto,
contra
a bala do tuga
e os
demónios da floresta.
Tens
razão, djubi,
cair,
vivo, nas mãos dos tugas
pode
ser pior desgraça
do
que morrer em combate,
aos
vinte anos, vinte luas
–
deves ter pensado tu muitas vezes no mato.
Ou
se calhar nunca pensaste nisso.
Na
guerra quem pensa na morte,
morre
mesmo,
dizem
que dá azar.
Aliás,
na guerra, não convém pensar muito.
É
uma pergunta que tu não entendes
ou a
que não queres responder.
Pelo
menos, em público,
neste
cenário de circo,
enjaulado
como um animal selvagem,
rodeado
de homens, brancos e pretos...
Os
páras do BCP 12 / COP 7, esses,
não
tiveram grande dificuldade em desatar-te a língua:
bastou-lhes
encostar a faca de mato à tua barriga.
Foste
apanhado com o teu RPG-2,
boquiaberto,
aparvalhado,
com
o helicanhão por cima da tua cabeça,
numa
clareira da mata do Rio Biesse,
na
região de Camará,
lá
para os lados de Candamã,
quando
o céu desabou em cima de ti.
Estás agora às ordens do comando do sector L1,
de
mãos algemadas,
metido
numa espécie de gaiola de jardim zoológico.
Espetáculo
degradante,
para
mim, para alguns de nós
que
nos consideramos uns gajos decentes…
A
Convenção de Genebra
sobre
os prisioneiros de guerra
não
se aplica aqui:
oficialmente
o meu país não está em guerra,
com
ninguém do planeta,
com
nenhum outro estado soberano.
Oficialmente
não há,
nem
pode haver,
prisioneiros
de guerra
no
meu país,
do
Minho a Timor, passando pela Guiné.
Oficialmente
tu, Malan Mané, não és
nem
podes ser prisioneiro de guerra
nem
tratado como tal.
Malan Mané, és bandido,
homem
do mato,
fora da lei e da ordem,
turra.
Fazes-me
lembrar o moçambicano Gungunhana,
passeado
em gaiola por Lisboa,
em
1896,
como
troféu de caça do Mouzinho de Albuquerque.
Estás
aqui mesmo ao lado
das
instalações do rancho,
o
refeitório dos praças,
entre
a escola e o posto administrativo.
Há um correpio de gente que vem ver o turra (sic),
capturado
pelos páras,
na
Op Nada Consta, em 18 de agosto de 1969,
no
subsector de Mansambo.
Participámos
na operação,
mas
a nós,
mais
ao Pelotão de Caçadores Nativos 53
e
aos camaradas de Mansambo
os velhinhos
da CART 2339,
coube-nos
fazer o papel da tropa-macaca.
montando
o cerco à alcateia de lobos
que
aterroriza o chão fula,
desde
o início da estação das chuvas.
O
lobo alfa é o teu comandante, Mamadu Indjai:
conseguiu
escapar-nos,
embora
gravemente ferido.
Repara na plateia de mirones:
básicos,
cozinheiros,
padeiros,
pintores,
carpinteiros,
fiéis
de depósito de géneros,
faxinas
de bar,
maqueiros,
corneteiros,
mecânicos,
desempanadores,
condutores
auto,
malta
das daimlers,
escriturários,
amanuenses,
contabilistas,
quarteleiros,
sapadores,
ajudantes
de capelania,
sacristães,
operadores
de transmissões,
radiolegrafistas,
cabos
cripto,
municiadores
e apontadores de metralhadora Browning,
cipaios,
crianças
e bajudas,
caçadores
e suas presas,
todo
o mundo tem hoje espetáculo de borla.
Até
os jagudis.
Até
o chefe de posto.
Até
a senhora professora.
Também
ela é alvo
de
curiosidade mórbida,
a
única mulher branca que ainda reside,
com
a sua mãe,
dentro
do perímetro do aquartelamento.
Espreita
à janela da escola,
deve
estar a olhar para ti
como
o bicho do mato
que
lhe apareceu nos pesadelos noturnos.
Ou
talvez não.
Nunca
lhe soube a idade nem o nome.
Vejo-a
agora de relance
e
pergunto-me como terá reagido ela
ao
ataque ao aquartelamento em 28 de maio de 1969.
Se
calhar portou-se com mais dignidade
do
que alguns dos militares
que
deveriam saber defender a sua unidade
e
este pedaço de terra verde e rubra
onde
flutua a bandeira portuguesa.
Malan Mané,
desculpa-me
este devaneio,
este
aparte:
não
deves ter visto muitos brancos
na
tua vida,
talvez
o médico cubano do Fiofioli
e
poucos mais...
Intriga-me
a situação desta estranha personagem,
uma
mulher branca,
mestre
escola,
de
meia idade,
ainda
longe da reforma,
que
insiste em viver aqui,
no
cú do mundo,
numa
terra inóspita,
em
Bambadinca,
a
"cova do lagarto",
como
se diz na língua mandinga.
Não
sei donde veio nem por que veio,
a
senhora professora,
em
tempo de guerra,
dizem-me
que é caboverdiana,
o chefe de posto é de Cabo Verde,
como
manda a tradição.
Desde,
pelo menos, os tempos de Honório Pereira Barreto,
dono
de escravos,
tenente-coronel
de Artilharia de segunda linha,
governador
de Bissau,
de
Cacheu
e da
província da Guiné,
herói
nacional,
comendador da Ordem de Cristo,
cavaleiro
da ordem da Torre e Espada.
Na realidade, a Guiné é (ou foi)
uma
subcolónia,
uma
colónia de Cabo Verde,
um
arquipélago, como os Bijagós,
que
tu não conheces
nem
aonde irás algum dia.
Missionários
e missionárias,
oriundos
da Europa,
nem
sequer os há aqui.
Já
os houve, italianos,
mas
foram expulsos,
também
eram turras...
Samba
Silate, deves ter ouvido falar,
tabanca
balanta
em
que o pessoal foi para o mato,
a
tropa cercou Samba Silate,
missionário
turra foi preso…
Comerciantes
tugas, só dois,
que
eu conheça,
perfeitamente
cafrealizados,
como
se dizia no vocabulário colonial e racista
dos
europeus do séc. XIX
que
demandavam estas paragens inóspitas.
Os dois comerciantes tugas
vivem fora do perímetro do quartel.
Um
deles tem um bando de filhos,
de
mãe negra, mandinga como tu,
de
sangue azul,
filha
e neta de régulo...
Já
me convidou, a mim e outros camaradas,
para
lá ir comer
o
seu famoso chabéu de galinha
e
beber uns bons uísques.
Fala
dos filhos com ternura,
uma
das raparigas está a estudar na Metrópole.
Contou-nos
a sua história:
veio
da Murtosa, salvo erro,
muito
jovem ainda,
aos
dezassete anos.
Compra
mancarra, vende arroz.
Procura
cultivar boas relações com a tropa,
mas
eu acho-o demasiado afável.
Malan Mané:
uns
mandam-te uns piropos,
outros
dão-te um cigarro,
e
outros ainda oferecem-te garrafas de cerveja,
que
tu recusas, delicadamente,
como
bom muçulmano que deves ser.
Não
entendes as provocações que te dirigem:
– Então, pá, quantos tugas
já
mataste com o teu RPG 2 ?
Há ordens, do comando do batalhão,
os
"homens grandes" dos tugas,
para
te tratar bem.
Afinal
tens-te mostrado colaborante
E,
depois de uns meses na ilha das Galinhas,
irás
tornar-te um bom guinéu
e um
melhor português.
E,
para começar,
nada
como um bom prato de bianda,
arroz
com mafé,
filetes
de cavala,
comida
gourmet.
Comes
com dignidade,
a
mão servindo de faca e garfo.
No
mato a vida é dura:
uma
refeição por dia,
um
maço de cigarros russos por mês,
farda
e botas novas só para os chefes,
bajudas,
manga di sabe,
também
só para os chefes,
o
Mamadu Indjai, o Mário Mendes...
Todos
iguais, diz o camarada Cabral,
mas
uns mais iguais do que outros,
Malan
Mané...
Tinhas começado a aprender o português
há
pouco tempo,
na
escola do mato,
lá
no Fiofioli,
foi
isso que eu percebi.
Sabes
algumas letras do alfabeto latino,
o
suficiente para alinhar as cinco letrinhas do teu nome:
M-A-L-A-N.
Não
sei se chegaste a aprender o Alcorão,
nas
tabuinhas de algum cherno,
à
noite, à volta da fogueira...
Com
a guerra,
a
tua gente, a tua tabanca, desintegrou-se.
Muitos
mandingas foram no mato,
com
os balantas e os biafadas.
Só
falas o crioulo e o teu dialeto mandinga
O crioulo é
a língua tanto do colonizador
como
dos inimigos que o combatem.
Ninguém
se entende nesta Babel, Malan,
sem
o crioulo,
que
é uma genial criação dos homens,
de
diferentes grupos étnicos,
que
querem comunicar entre si,
brancos
e pretos.
O
exército dos tugas não faz, porém, qualquer esforço
para
nos ensinar o crioulo.
Mas
o teu Amílcar Cabral
quer
que tu aprendas o português.
Malan, falas pouco, a custo.
As
tuas respostas às minhas perguntas são lacónicas,
arrancadas
a ferro
e
misturadas com um leve sorriso resignado.
Eu
bem procuro, em vão,
transmitir-te
sinais de simpatia e de compaixão.
Afinal,
Malan, tu és um homem, não és um bicho.
Se bem percebi,
foste
no mato ainda djubi,
talvez
em 1962...
Se
sim, não podes ter vinte anos, vinte luas...
Não
deves ter conhecido outra vida.
Chefe
da tabanca levara menino e mulher
para
o Morès
com
medo de avião dos tugas...
Foi
a história que te contaram…
Mas
no Morés ganhaste ainda mais medo dos aviões.
Mal
cresceste,
deram-te
uma semi-automática Simonov,
uma
arma bem melhor que a nossa velha Mauser
que
está distribuída ao pessoal das tabancas, fulas,
em
autodefesa.
Começaste
como milícia, traduz o Abibo:
fazias
segurança à tabanca
e ao
pessoal que ia lavrar a bolanha.
Mais
tarde, és promovido a combatente
como
municiador do RPG-2.
Passarias
depois a apontador,
substituindo
o teu camarada que morreu.
Há
um ano atrás
foste
ferido por estilhaço de obus,
no
Xime,
quando
atacavas barco em Ponta Varela.
Não sabias quem era o novo homem grande de Bissau.
– E home grandi di bó ? – perguntei-te eu.
– Amílcar Cabral! – respondeste-me, de pronto,
não
sem uma certa expressão de orgulho
(ou
foi impressão minha,
se
calhar foi impressão minha).
Não,
nunca o tinhas visto no mato,
só o
conhecias de nome e de retrato,
no
livro de leitura da 2ª classe.
Comissário
político falava dele
e da
"luta di partido africano".
O intérprete é o Abibo Jau,
o
bom gigante, epilético, da CCAÇ 12,
com
o seu metro e noventa e tal de altura
e os
seus mais de 100 quilos de peso.
Não
sei quem lhe descobriu o seu talento
para
intérprete e... torcionário.
É
visível o medo que o Abibo te inspira,
pobre
Malan Mané.
Um
fula e um mandinga, frente a frente,
velhos
ajustes de contas
com
a memória coletiva e a história de cada grupo
a
virem provavelmente ao de cima.
Malan,
fulas
e mandingas já foram os donos destas terras,
cada
um no seu tempo.
Foram
os vencedores,
orgulhosos,
de lutas contra os animistas,
os povos
ribeirinhos.
Teixeira
Pinto vingou os aristocráticos mandingas,
ao
subjugar os nómadas, místicos e guerreiros fulas.
Em
contrapartida, deixou a estes
os
papéis subalternos,
mais
sujos,
da
pacificação
e do
aparelho de repressão... administrativo-militar.
Os
pobres dos fulas tornam-se os maus da fita,
aos
olhos dos outros povos da Guiné.
Amílcar
Cabral, dizem, odeia-os.
Os
mandingas e os balantas odeiam-os.
Aqui,
pelo menos na zona leste,
os
mandingas e os balantas têm um ódio de estimação
aos
fulas.
Um
ódio que é recíproco.
Não
sei se concordas
mas sabes,
Malan,
o poder sempre soube dividir
(e
aterrorizar) para reinar.
Malan, olhando para ti,
vejo
que és um bocado franzino e frágil,
embora
de estatura normal.
És
uma criança crescida na guerra...
Não
adianta,
procuro
tranquilizar-te,
mas
vejo que já vêm buscar-te
para
mais interrogatórios.
O
interrogador da CCS
é um
famigerado sargento, chico
conhecido
pelo seu cavalo marinho...
Alguém
tem de fazer o trabalho sujo,
diz-me
, a meu lado,
um
homem das informações e operações,
E
daqui vais para a PIDE de Bafatá, Malan.
Explorando o teu cansaço físico e psicológico,
e talvez sob tortura ou ameaças
(que eu, a essa parte, não assisti...),
acabarás
por dar com a língua nos dentes,
pobre Malan:
arrancam-te
mais algumas informações preciosas,
comprometendo
a segurança dos teus companheiros.
Para
nós, CCAÇ 12,
e
para as unidades de quadrícula,
vão
ser mais dias infernais,
de
operações no mato.
Confesso que foi minha primeira grande deceção
em
relação aos guerrilheiros do PAIGC.
Ingenuamente,
julgava-os
da
estatura humanal, moral e até intelectual
de
um 'Che' Guevara ou de um Amílcar Cabral.
Que
pateta, que ingénuo, sou eu!,
apanhado
como um cão nesta maldita guerra!
Acreditava,
romanticamente,
antes
de embarcar,
que
a escola de guerrilha do PAIGC
tenha
formado já grandes combatentes e comandantes.
Mas
tu, Malan Mané, não és muito diferente
dos
meus soldados e de mim próprio:
fomos
todos apanhados na rede como cães vadios,
somos
todos vítimas da História,
nascemos
no sítio e na data errados…
Se
eu fosse guinéu,
muito
provavelmente estaria a combater,
com
ou sem convicção,
num
dos dois lados da barricada.
Como
tu, como os meus soldados,
sem
convição,
e
muito menos sem grande hipóteses
de
escolha.
Malan Mané:
se
hoje ainda fores vivo,
o
que me parece de todo improvável,
terás
60 e tal anos.
Há
muito que ultrapassaste a esperança média de vida,
à
nascença,
estimada
para os homens
da
tua terra e da tua geração.
Se
alguém te descobrir,
lá
para os lados do Enxalé,
na
tua enxerga de moribundo,
ou
nalguma outra tabanca do antigo regulado do Cuor,
peço
que te mandem um abraço meu,
de tuga para turra,
de
soldado para soldado,
de
homem para homem.
A última vez que te vi,
ias
preso por uma corda,
à
guarda do Iero Jaló.
Foste
gravemente ferido por um dilagrama nosso,
um
estúpido dilagrama nosso,
no
assalto a um das tuas 'barracas',
como
vocês chamavam aos vossos acampamentos,
perto da antiga estrada Xime-Ponta do Inglês.
Lembro-me
muito bem,
foi
na madrugada do dia 7 de setembro de 1969,
foi o
meu batismo de fogo.
O Iero Jaló morreu,
morreu
a meu lado.
Tu, também
a meu lado, ficaste gravemente ferido
e
foste evacuado para Bissau.
Mesmo
que tenhas sobrevivido
(e o
Torcato Mendonça disse-me que sim,
que te
viu dois meses depois,
em
Bissau, no hospital militar)...
mesmo
que tenhas chegado a ver a independência
da
tua terra, por que tanto lutaste,
não
sei o que te terá acontecido depois.
Não
sei como é que o teu partido,
organizado
à boa maneira marxista-leninista,
terá
lidado com o teu caso e outros casos
de
colaboracionismo...
de
antigos militantes e combatentes,
feitos
prisioneiros dos tugas,
e
que, na prisão, deram à língua.
Fraqueza
humana ?
Colaboracionismo
?
Delação
?
Traição
?
Crime
de lesa-pátria ?
Malan Mané, um homem não nasce herói,
um homem não feito para matar e morrer,
um homem
não foi feito para ser
aprisionado e torturado,
mas
pode ter dignidade,
e eu
posso testemunhar que tu
tentaste
resistir,
tentaste
ludibriar-nos.
Não
demos com o acampamento à primeira,
em
25 de agosto de 1969.
Tu
alegaste que o capim estava muito alto
e
que te perderas.
O
tanas!
Tu
conhecias aquilo de cor e salteado,
de
olhos vendados,
tinhas
lá estado há três meses atrás.
Enfim,
resististe enquanto pudeste,
meu
pobre diabo,
par
dares tempo aos teus camaradas
para
se porem na alheta.
Arriscaste a vida, brincaste com o fogo...
Só
lá voltaríamos, à toca do lobo,
para
um golpe de mão,
no
dia 7 de setembro,
o primeiro
dia do resto da tua vida:
chamámos-lhe
a Operação Pato Rufia.
Os espíritos da floresta
(bons
ou maus, quem saberá distingui-los ?)
não
te perdoaram.
Se
tu morreste,
de
morte natural,
em
consequência dos teus ferimentos de guerra,
ou
de morte matada,
mais
tarde,
sob
as balas das Kalash raivosas dos vencedores,
dentro
da lógica infernal dos movimentos revolucionários
que
acabam sempre por devorar os seus filhos,
espero
ao menos
que o teu fantasma continue a vaguear,
agora
mais tranquilo,
e
definitivamente livre,
pela
orla da bolanha do Poindon,
com
o teu RPG-2 ao ombro,
ou a
tua velha Simonov a tiracolo,
transformadas
em peças de museu,
ou
brinquedos de madeira,
que
nunca tiveste quando criança,
guardando
desta vez os bons espíritos da terra,
da
bolanha,
da
floresta-galeria do Fiofioli,
e do
selvagem e majestoso rio Corubal,
o
único verdadeiro rio da Guiné,
como
nos dizia o teu homem grande,
Amílcar
Cabral.
Para que eles, os bons irãs,
iluminem o presente e o futuro
daquela
terra
onde
um dia nasceste,
e
foste djubi
e
puseram-te o nome de Malan Mané,
e a
quem cedo,
talvez
demasiado cedo,
deram
uma arma e uma bandeira e um hino.
PS –
Olha, ao Abibo Jau, da CCAÇ 12,
não lhe perdoaram,
os teus antigos camaradas do PAIGC:
crivaram-no
de balas
contra
o poilão de Madina Colhido, em 1975.
E o
teu antigo comandante, Mamadu Indjai,
já
antes havia sido executado sumariamente,
no
Boé, em 1973, por alta traição,
por ter as mãos sujas de sangue
do pai da Pátria...
Tu
terás tido melhor sorte, Malan Mané ?
Oxalá / Inshallah / Enxalé!
Versão original: 3/9/1969 | Última versão: 21/9/2016
______________
Notas do editor:
(*) Último poste da série > 15 de setembro de 2016 >
Guiné 63/74 - P16491: Manuscrito(s) (Luís Graça) (96): Em Bambadinca, à noite, íamos ao nimas e sonhávamos com gajas boas...
(**) Sobre o
Malan Mané, vd, os postes:
28 de setembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7048: A minha CCAÇ 12 (7): Op Pato Rufia, 7 de Setembro de 1969: golpe de mão a um acampamento IN, perto da antiga estrada Xime-Ponta do Inglês, morte do Sold Iero Jaló, e ferimentos graves no prisioneiro-guia Malan Mané e no 1º Cabo António Braga Rodrigues Mateus (Luís Graça)
14 de setembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P6984: (Ex)citações (97): Tinha 22 anos e ainda sonhava... quando levei o prisioneiro Malan Mané a jantar comigo no café do Sr. Regala, em Galomaro (Jorge Félix, ex-Alf Mil Pil Heli AL III, BA 12, Bissalanca, 1968/70)
8 de Setembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P6953: Estórias avulsas (94): A captura do incaracterístico guerrilheiro Malan Mané, no decurso da Op Nada Consta (Salvador Nogueira)
7 de Setembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P6948: A minha CCAÇ 12 (6): Agosto de 1969: As desventuras de Malan Mané e de Mamadu Indjai... (Luís Graça).
26 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2683: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (9): O Jorge Félix e o Prisioneiro
15 de maio de 2006 >
Guiné 63/74 - P753: O Nosso Livro de Visitas: Torcato Mendonça, ex-Alf Mil da CART 2339 - O Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e eu abracei-o
(...) O [Carlos] Marques dos Santos deu-me a conhecer este blogue. Há muito que a guerra acabou para mim, só que quase diariamente ela aparece…! Não resisti, fui à Net e tenho navegado pelo blogue.
Fui alferes miliciano na CART 2339 [Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69](1). Li certos eventos que os vivi: por exemplo, o Malan Mané (...) estava vivo em Novembro de 1969 e recebia tratamento no Hospital Militar de Bissau. Abracei-o, causando espanto ao fuzo que o guardava. Só que eu estive na mata com o Malan Mané, soube que foi ferido (... Eu usava como arma, quando se justificava, o dilagrama)... (...)