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quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27412: Armamento do PAIGC (10): Pistola-metralhadora Samopal vz25, de origem checa, ou a M-25, ("Merengue", na gíria do IN, por influência cubana)




Pistola-metralhadora  M-25 ("Merengue"), de origem checa ("Samopal")


Guiné > Região de Tombali >  Ilha do Como > c. 1964 > Guerrilheiros do PAIGC, empunhando pistolas-metralhadoras M-25", cal 9 mm ("Merengue")  e PPSh", cal 7,62mm ("Pachanga", ou "costureirinha", na gíria das NT); do lado direito, distingue-se, em tronco nu,  João Bernardo  'Nino' Vieira, na ilha de Como, Frente Sul. Náo se sabe se a foto foi tirada antes, durante ou depois da Op Tridente. É mais provável  que seja do ano de 1963, pelo ar "desportivo" do grupo,  a fazer um crosse matinal, ou a posar para a fotografia, para o álbum do Amílcar Cabral ( será que o tratavam por senhor engenheiro ?)
 


1.  Através do Formulário de Contacto do Blogger, um nosso leitor pediu-nos que confirmassemos  se esta arma, cuja foto se publica acima, era usada na Guiné pelo PAIGC, no nosso tempo:

Data - sexta, 3/10/2025, 18:20

Segundo pesquisa na Net, que me deu "uma trabalheira",  a arma parece não constar das listagens habituais, trata-se de uma pistola metrelhadora Samopal, vz25.

Deixo o link da arma:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Sa_vz._23

 Sobre a arma:
  • o que me surpreendeu ao pesquisar a identificação dela foi a sua ausência das listagens consultadas na Net;
  •  no mesmo site encontra-se uma foto de 'Nino' Vieira com o seu grupo, curiosamente todos com a mesma arma, ou suas variantes

2. Comentário do editor LG:

2.1. Também sou de opinião que se trata de ums pistola-metralhadora checa, Sa vz25, "Samopal". Dispunha de  uma coronha de metal dobrável, disparava a munição 9×19mm Parabellum. Era em tudo é idêntica à Sa 23 (exceto da coronha, que era de madeira). e usando os mesmos carregadores de 24 e 40 tiros.

Gostava de ouvir a opinião do nosso especialista em armamento, o Luís Dias. Para já, recorri à minha assistente de IA / ChaGPT. Face às duas fotos que lhe mandei, não teve dúvidas em dar a sua opinião ponderada:

(..) Pela forma geral — receptor tubular curto, carregador recto montado à frente da empunhadura, coronha metálica dobrável para o lado e empunhadura/pega frontal dobrável — trata-se muito provavelmente de uma Samopal checoslovaca da família Sa vz.23 / Sa vz.25 (às vezes referido como CZ-23 / CZ-25, exportado como “Sa” ou “Samopal” nos catálogos da época).

Por que acho isto provável:

  • a posição do carregador (à frente da pega) e o aspecto geral lembram os desenhos da família vz.23/25, que foram amplamente exportados pela Checoslováquia na década de 1950–60;

  • a coronha metálica que dobra para o lado e a pega vertical rebatível são soluções técnicas presentes nesses modelos;

  • o PAIGC recebeu armamento do bloco de leste (inclu9indo a então  Checoslováquia) durante a guerra colonial, pelo que a captutra de um Sa vz.23/25 em 1964 é compatível com a proveniência e a cronologia.

Grau de certeza: provável, mas não definitivo. Existem variantes e cópias regionais/industriais e a família vz.23/25 teve pequenas diferenças entre versões de fábrica e exportação. Para confirmação absoluta, o ideal é verificar:

  • marcas e punções no receptor (normalmente código do fabricante e modelo);

  • formato exacto do carregador (capacidade e encaixe);

  • calibre estampado no cano/receptor (7,62×25 Tokarev foi comum em alguns modelos, mas havia variantes noutros calibres). (...)

(Pesquisa: LG / Assistente de IAS / ChatGPT)

(Condensação, revisão / fixaçãod e texto: LG)


2.2. Tudo indica que esta Sa vz25 seja a M-25 ("Merengue", na gíria do PAIGC, por influência cubana) que consta da relação a seguir:


Relação de material capturado  ao PAIGC  até 1964 >  (...) Pistolas-Metralhadoras: Modelo | País de oirgem

  • "M-23", cal 9 mm ("Rico") | Checoslováquia
  • "M-25", cal 9 mm ("Merengue") |  Checoslováquia
  • "PPSh", cal 7,62mm ("Pachanga", "Metra") | URSS
  •  "PPS SUDAYEF", cal 7,62mm | URSS, China
  • "THOMPSON", cal 1l,4mm ("Rico Thompson") | USA - China
  • "MP-40", cal 9mm | Alemanha Oriental
  • "SCHMEISSER" | Alemanha Oriental
  • "BERETA" | Itália
  • "UZI" | Israel 
  • "FBP" | Portugal

Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro I; 1.ª Edição; Lisboa (2014), pp. 290/291 (Com a devida vénia...).

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27360: (Ex)citações (439): Ainda a propósito dos bravos de Contabane... "O maluco do Carlos Azeredo está a bombardear a Guiné-Conacry", dizia, em pânico, o QG... (Carlos Nery, ex-cap mil, CCAÇ 2382, 1968/70)





Carlos Nery, hoje um homem do teatro,
uma paixão antiga, como ator; a sua primeira
experiència como encenador foi na Guiné
É um dos fundadores da Companhia
Maior. E um exemplo maior, para todos nós, antigos combatentes, de como se pode e deve envelhecer de maneira ativa, proativa, com saúde, com autonomia e com qualidade de vida.


1. No passado dia 15 de outubro, pedi ao Carlos Nery, ex-cap mil, cmdt da CCA2382 (Buba, 1968/70), que nos respondesse a algumas questões relacionadas com o ataque a Contabane, de 22 de junho de 1968:

Carlos: acho que podes esclarecer aqui algumas dúvidas...

(i) os militares da tua CCAÇ 2382 que foram galardoados com a cruz de guerra, por louvor teu, foram-no na sequência da sua atuação na noite de 22 de junho de 1968, essencialmente: confirmas ?

(ii) por que razão não é mencionado explicitamente o topónimo Contabane no teor do louvor ?

(iii) não houve mortos, apenas feridos (alguns graves), no ataque, civis e militares;

(iv) onde estava instalada exatamente a força atacante: a norte/nordeste da tabanca ?

(v) tens mais fotos de Contabane ?

(vi) o reordenamento de Sinchã Sambel, na margem esquerda do rio Corubal, frente ao quartel do Saltinho (que ficava na margem direita), já não é do teu tempo mas do tempo do Paulo Santiago e da CCAÇ 2701 (1970/72).

Para já é tudo. Dou conhecimento das fotos da Ivone Reis à suas e nossas camaradas Arminda, Rosa, Aura e Giselda, nossas tabanqueiras.

Um alfabravo. Luis
Carlos Azeredo 
______________


Capa do livro de Carlos de Azeredo - Trabalhos e Dias de Um Soldado do Império. Porto, Livraria Civilização Editora, 2004,
496 pp.



No CTIG, Carlos de Azeredo (Marco de Canaveses, 1930- Porto, 2021) foi comandante de:

  •  CCav 1616 / BCAV 1897 (Mansoa e Olossato, 1966 / 1968);
  • Comando Operacional do Sector de Aldeia Formosa / COP 1 (1968/69);
  • Centro de Instrução Militar de Bolama (1969).

2. Resposta do Carlos Nery com data de 20/10/2025, 20:03:


Caro Luís,
 
Durante a minha estada em Bissau, vindo de Buba, ocupei o meu tempo a redigir a história da minha companhia socorrendo-me dos relatórios das diversas situações vividas. 

Vim a saber, mais tarde, pelo então major Carlos Azeredo, que cópias desse relatório tinham sido distribuídas por algumas unidades como material de estudo.

Pedi também aos alferes da minha companhia a sua opinião acerca dos militares por eles comandados para louvá-los apontando para eventuais condecorações. 

Desloquei-me várias vezes à Secção de Justiça do QG para me informar como deveria redigir os louvores. 

Conheci, então, o alferes Barbot (hoje escritor Mário Cláudio). Lembro-me de ter pedido desculpa por andar lá a incomodá-los mas ouvi a seguinte resposta, "sabe, capitão, aqui o nosso trabalho tem que ver sobre infrações, desvios de dinheiro, problemas de indisciplina, etc. É com gosto que vemos aparecer alguém que pretende premiar os homens que comandou."

Sobre as questões que me pões e no que respeita a Contabane, direi que a decisão de retirar a população e abandonar a tabanca estava tomada antes do ataque do PAIGC comandado por 'Nino' Vieira. 

Spínola não concordava com unidades instaladas perto da fronteira e a decisão de abandonar Contabane fora-me comunicada por Carlos Azeredo nas vésperas do ataque. 

O PAIGC perdera a paciência com os Fulas. Contabane e Mampatá, por exemplo, tinham aceitado receber armas das nossas tropas e o régulo de Contabane, recebidas essas armas, decidiu atravessar a fronteira para meter na ordem tabancas que pertenciam ao seu regulado. 

Não sei o que se passou nessa incursão mas ponho a hipótese que o ataque tentasse punir esse atrevimento. Azeredo decidiu deslocar o comando da companhia e um dos dois grupos de combate que estavam em Mampatá, para Contabane, por forma a poder executar com segurança a saída de toda a população e o posterior abandono da tabanca. 

Lembro-me de que,  na véspera do ataque, houve alguns civis que durante a noite tentaram sair e atravessar a fronteira. Atento a tudo o que se passava, o régulo, perseguiu-os e capturou-os apresentando-mos debaixo de prisão. 

Confesso que, com a minha pouca experiência na altura, não liguei muito ao que acontecera. Hoje estou convicto de que se tratavam de informadores da guerrilha, sabedores do ataque que se preparava e que pretendiam avisar de que Contabane estava agora defendida por um efectivo considerável e simultaneamente saírem para uma zona mais segura.

A pressão do PAIGC sobre toda a zona iria continuar depois do ataque a Contabane. Aldeia Formosa foi flagelada por diversas vezes com a consequente destruição de casas da população e perdas de vidas. 

Perante a dificuldade em defender uma população que ocupava uma área considerável, Azeredo não hesitou. Apontou os obuzes 14 ali existentes a povoações da República da Guiné. Por cada granada que atingisse a tabanca imediatamente era enviada uma de obus 14 para lá da fronteira. 

Foi remédio santo, nunca mais Aldeia foi flagelada. Para Bissau, Azeredo comunicou somente: "enviadas três granadas 14 para o objectivo ..." e dava as coordenadas de um objectivo no território de Guiné-Conacri. 

No quartel general foi o pânico:  "o maluco do Azeredo está a bombardear a Giné-Conacri!"

Spínola mete-se num avião e desce em Aldeia, furioso com Azeredo. Este imita-se a pedir que viesse com ele à tabanca. Perante a destruição de casas e vidas, Spínola despede-se e diz a Azeredo: "continue".

Meu amigo, acabei por falar em tudo, menos a responder às tuas perguntas.

Terás que esperar... Estou assoberbado com ensaios, tenho que arranjar uma aberta. (**)

Abração,  CNery

3. De imediato, respondi-lhe e agradeci-lhe. Perguntei-lhe se podia publicar. Como é um homem assoberbado, que continua apaixonado aos noventas pelo teatro e a sua Companhia Maior, não me respondei mas eu entendi o seu silèncio como luz verde. 

Data - 20/10/2025, 20:32  

Brilhante, meu capitão. Posso publicar estes esclarecimentos adicionais ? São pequenos afluentes do rio da Grande História. 

Bom ensaio, e sempre em frente até aos c(s)em. Diz-me qual a próxima peça. Para a gente ir ver. Um alfabravo. Luís

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27121: O segredo de... (51): Virgínio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAQÇ 1933 (Nova Lamego e Sáo Domingos, 1967/69), economista, consultor, gestorempresário: como perdi dois mil contos, em 1985 (c. de 46,5 mil euros, a preços de hoje), com o projeto




Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Dmingos, 1967 /69); economista, empresário, gestor, consultor de projetos; natural do Porto, vive em Vila do Conde; voltou à Guiné-Bissau, em viagem de negócios, em 1984/85 (*). 





Guiné-Bissau > Bissau > Cumeré > 5 de janeiro de 1985 > O Virgílio Teixeira (Vt)  junto a um complexo agroindustrial, inacabado e abandonado: tratava-se de uma fábrica de descasque de arroz... 

Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1.  O Virgílio Teixeira já aqui nos contou como foi o seu regresso à Guiné-Bissau, no tempo de 'Nino' Vieira, em 1984 e 1985 (*)

 Guiné 1967/69 - Álbum de Temas:

T999 – O regresso à Guiné em 20out84;
- 10 anos após a independência em 74set24
- 15 anos depois da minha saída em 4ago69;
- 17 anos depois da minha primeira chegada, em 21set67.

Do seu texto de 13 ou 14 páginas ficou por publicar a última parte. Mas o assunto volta agora à baila.

Em 1984/85 o Vt regressou à Guiné-Bissau, em duas viagens de negócios,  como consultor de um projeto de investimento, com financiamento estrangeiro, que acabou mal, devido à conjuntura interna. (Julgamos que o Vt se refere ao chamado "caso 17 de outubro de 1985", que acabou com o fuzilamento, entre outros, do destacado e brilhante dirigente, de origem balanta, Paulo Correia, membro do Governo, que geria a pasta da justica, e era vice-presidente do Conselho de Estado).

Como o Vt  nos disse em 2019: 

(...) "O final do projecto não foi muito feliz, e contém tanta coisa pessoal e que tenho de preservar. Acho que, no final de tudo, quase desgracei a minha vida, e já se passaram 35 longos anos, desde que iniciei esta loucura. 

Em todo o caso, é parte da vida de um camarada da Guiné, e julgo que tem interesse para quem quer perceber o curso que seguiu aquele novo país de língua portuguesa. "  (...) (***)


2. Comentário do Virgílio Teixeira ao poste P27098 (**):

A foto nº 2  onde está um Bar Baiano, colado a um prédio colonial cor tijolo, na porta 12, é o edifício onde tínhamos (a minha equipa de projectos),  em 1984 e 1985, a sede das nossas sociedades.

Era a casa de um homem branco, ou nem tanto, residente que depois também fazia parte do nosso eventual negócio.

Já a partir de 1985, começámos a utilizar as suas instalações, para albergar a malta, era eu, o técnico I...,  depois veio a mulher, o filho e a filha, naturais de Coimbra ou arredores.

Vivemos lá por duas vezes, parte em janeiro de 85 e no fim de tudo em junho 1985.

Nunca mais vi ninguém porque viemos embora (os sócios principais, o V.L.  incluído), todos deram os frosques, pois a resposta ao alegado golpe de Estado foi a matar a torto e a direito a mando de 'Nino' que  também era nosso sócio.

O I..., a mulher, o filho e a filha ficaram lá, pois já tinham avançado com a desmatação na zona de Bafatá, e havia uma sociedade com o meu nome, e outros, que não sei hoje o que se passou.

Como confidência, o I...,  que não tinha já nada aqui em Portugal, com a familia toda lá, ficou...

Nunca nos disse nada, e já éramos muitos, ele terá se aproveitado da sociedade, para levar por diante o seu projecto de vida.

Há aqui uma grande confusão , pois acho que ele teria algumas cartas na manga que nunca soubemos, eu pelo menos e o V. L.  com quem falei durante muitos anos.  A sociedade foi legalmente constituída, eu próprio fiz a minuta e tratei de toda a burocracia - e não era pouca - para para pôr aquilo a andar.

Ainda assinei com os outros um tipo de empréstimo de adiantamento, e cedência de máquinas e pessoal, e às tantas ainda sou devedor de alguma coisa ...

Vim a saber por outros capitalistas mais adiantados, que o sócio I... terá,  depois de nos virmos embora, feito uso  da própria filha 
como moeda de troca,  com alguns comandantes. (Não posso comprovar a veracidade deste facto, no mínimo insólito; o que um homem pode fazer por dinheiro!)

É verdade que todos nós nunca mais contactámos com ele, e a morada era Rua Eduardo Mondlane, nº 12 Bissau, à saída para o aeroporto. 

Não confirmo nada disto, sei é que perdi do meu dinheiro,  2 mil contos, sem nada receber. Era um risco calculado, devido aos diferenciais de ofertas e orçamentos, tratados maioritariamente pelo I..., porque ele é que sabia da matéria de plantação de arroz em sequeiro. (LG: 2 mil contos em 1985 equivalem, a preços de hoje, a 46,5 mil euros)

A parte industrial do projecto era uma empresa alemã de reputação, que iria dar seguimento ao descasque, branqueamento, embalagem e exportação do arroz, tudo com o aval do nosso Banco de Portugal e da Guiné-Bissau.

Mas toda esta história, que era comandada pela Guiné, com o aval dos cooperantes dos paises de Leste, que sempre colocaram reservas e pareceres desfavoráveis, para benefício de outros.

Foi uma grande experiência, onde se via já o poder a funcionar, a corrupção, os interesses, a política e a polícia.

Tive a preciosa ajuda, com pareceres, do Ministro das Finanças da Guiné, convivi na sua casa, ele que foi meu conterrâneo no Curso de Economia na Faculdade de Economia do Porto, e unha com carne com o V.L.  que era o tutor dos filhos no Porto.

Falo nisto com uma certa nostalgia, pois as coisas não correram bem, não por minha culpa (afinal, o cérebro do projecto económico e financeiro, que recebeu um louvor escrito do Banco de Portugal, e outro verbal do Ministro do Desenvolvimento Rural da República do Senegal, onde fomos lá para vender o projecto).

Tudo se projectou no abismo após o alegado atentado ao 'Nino' que, em resposta, mandou fuzilar uma série de malta da alta politica do Estado, onde se incluía um nome importante que era o ajudante de campo do 'Nino'. (***)

Luis, se puderes publica neste poste , com fotos de coisas que já não conheço, e outras que, como é obvio,  ainda reconheço.

 
Grande Abraço, Virgilio Teixeira


2. Comentário do editor LG:

(i) Em mail de segunda feira, 11/08/2025, 21:27, disse ao Vt:

Virgílio, a publicar, como me pedes, vou fazê-lo na série "O Segredo de..." (...)

Como envolve nomes de terceiros, e ainda vivos, temos de ser cautelosos... Tenho também que te proteger: tens o coração demasiado ao pé da boca... Já falaste em tempos desta história que pode parecer algo "mafiosa" para os leitores do blogue... mas que ficou incompleta. 

Talvez possas ser mais claro, conciso e preciso...Não tens que mencionar nomes, a não ser o teu e o do 'Nino' e pouco mais (dos outros que estão vivos, não tens a devida e competente autorização; como sabes, há a figura, jurídica, do "direito ao esquecimento", que é reconhecido na UE e na Internet)...

Quanto ao golpe de Estado do 'Nino' não estás a referir-te ao de 14 de novembro de 1980... (E depois houve a guerra civil de 1998/99;  pelas minhas contas, deve tratar-se do chamado caso "17 de outubro de 1985"; Paulo Correia acabou por ser a vítima inocente... )

Revê essa história e depois manda-me uma segunda versão... Pode vir a ser partilhada como um "segredo teu" (*), ligado à Guiné-Bissau...



(ii)  O Vt achou por bem não rever nada...Com a sua autorização, omitimos os nomes dos intervenientes. Aparecem aqui apenas em iniciais. Disse-nos ele:
  • sobre o V. L., direi apenas que era um amigo do meu pai; tinha faro para os negócios e ótimas relações com o poder em Bissau;
  • o resto do grupo incluía empresários e técnicos agrícolas de cultivo de arroz, fugitivos em 1975 de Angola, onde tinham grande peso;
  • o nosso projeto deu voltas por Portugal, Espanha, Alemanha, Guiné-Bissau e Senegal;
  • o resto vem no meu livro de memórias de 6 mil páginas, que nunca hei de publicar...
  • longa história, esta, a culminar com a minha assistência no Raly Dakar, quando lá estava em 15 e 16 de janeiro de 1985.

(Revisão / fixação de texto: LG)



(***) Vd. postes de;




(...) O nosso projecto transitou pelos serviços governamentais, sob a designação inventada por mim, de “AGRINÉ – Agricultura da Guiné, Lda.,“ e ocupava uma zona previsional de 7000 hectares de terreno [mais do que 7 mil campos de futebol...], já inscritos a nosso favor, e com mapa registado, na zona de Cabuca, nas margens do Rio Corubal, que eu tão bem já conhecia.

Bem, como um elevado montante de investimento nacional e internacional, eram 20 milhões de USD que ao câmbio daquela época, já tinha baixado de 200 para 180, dava em dinheiro português cerca de 3,5 milhões de contos.

Aquele valor a preços atuais com a inflação de mais de 30 anos, e com as mudanças de Escudos para Euros, significava algo como 70 milhões de euros!... [Em rigor, 3,5 milhões de contos, em 1985, dava qualquer coisa como 69,6 milhões de euros, a precos de hoje, usando o conversor de moeda da Pordata. ] E fosse o que fosse era sempre muito dinheiro, e da parte do Estado da Guiné significava pouco mais do que a cedência do terreno.

Andei um ano às voltas com este projecto, e para elaborar o estudo tive de me deslocar 2 vezes àquele país. A burocracia era tanta que quase dava para desistir, formámos a empresa local, arranjámos sócios locais – o próprio 'Nino' Vieira, presidente da república, também entrava através do sogro, e mais um brigadeiro local, ajudante de campo do 'Nino'... E cada viagem custava uma pequena fortuna, era arriscar muito. (...)


quarta-feira, 12 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26576: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (37): O silêncio do rio Xaianga




Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > O Rio Geba, o estreito (do Xime para montante) e o largo (do Xime para jusante)... c. 1970, no tempo seco... O rio era navegável de Bissau até Bafatá!... Os cartógrafos portugueses chamava-lhe Xaianga, ao Geba Estreito. Normalmente, as embarcações civis, os "barcos turras", iam até Bambadinca... As LDG ficavam pelo Xime, mas também chegaram a Bambadinca, pelo menos até a 1968... Dois pontos vulneráveis do percurso eram a Ponta Varela (na margem esquerda do Rio, entre a Foz do Corubal/Ponta do Inglês e o Xime), e o Mato Cão (entre o Xime e Bambadinca, no troço serpenteante do Geba Estreito ou Xaianga)... Era o maior rio da Guiné-Bissau: rio de planície, com cerca de 550 km de comprimento, caudaloso na época das chuvas (de abril a outubro), nasce a cerca de 40 km a nororeste da cidade de Koundara, região de Boqué, na Guiné-Conacri, corre para Norte, penetra no Senegal, para logo fazer uma longa curva para o Sul, receber as águas do rio Bidigor e desaguar em Bissau; o  seu principal afluente é o Rio Corubal

Foto do álbum do Humberto Reis, ex-fur mil op esp (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)


Foto (e legepnda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O silêncio do rio Xaianga

por Luís Graça


− Ah!, se pudéssemos identificar, selecionar, decompor e voltar a juntar o melhor de cada povo, teríamos o melhor da humanidade!... Teríamos a humanidade perfeita!...

− Não sou assim tão otimista e utópico como o vosso Amílcar Cabral... Aliás gostava de reconhecer esse "homem novo" guineense, que foi prometido nas Colinas do Boé − respondeste tu, com afabilidade e sem ironia, ao teu interlocutor, um antigo comissário político do PAIGC, da última geração dos "combatentes da liberdade da pátria".

O comissário político era, explicou-te ele, o padre ou o pastor, conduzindo um rebanho de crentes sobre o qual tinha o poder de punir e perdoar. Retiveste essa metáfora sem, todavia, lhe pedir para exemplificar. Mas tencionavas mais tarde perguntar-lhe o que é que o comissário político fazia nas FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo). 

Achaste piada ele ter-te dito, com candura, que agora era um "ex-tudo"...

− Ex-tudo ?...

− Sim, ex-combatente da liberdade da pátria, ex-comissário político, ex-militante do PAIGC, ex-católico, ex-marido...

Só não era ex-pai, porque continuava a amar muito os seus filhos, e não eram poucos, de várias relações...  Como um bom "cabra-macho"  africano, tinha uma generosa prole que propagava, pelos quatro cantos do mundo, os seus genes.

E estavas tu ali, na terra dele, agora "libertada" (uma metáfora: livre das "velhas algemas do colonialismo", rapidamente substituídas por outras, de outros "ismos"...).

Estavas tu ali, não como um "antigo inimigo" nem como um "simples turista" ( o tal "estúpido em férias" que sabe pouco ou nada do "paraíso" que lhe caiu na rifa....) mas como um "amigo" do "povo guineense"...Mesmo que amigo e povo fossem conceitos nem sempre fáceis de definir ou entender em África.

Aproveitavas também a ocasião para "fazer as pazes" com o passado. Antes de mais, contigo próprio, que foras "obrigado a comprar a guerra que te quiseram vender"... Como não eras livre, nem mercenário, não pudeste negociar nada, muito menos o preço.

Eras "amigo da Guiné, agora Guiné-Bissau", mas não confundias o "povo" com a sua "elite dirigente", que começou por ser, em 1974, os "novos senhores da guerra". 

Tinhas relutância, por exemplo, em apertar a mão de alguns daqueles homens, novos e antigos senhores da guerra, como o 'Nino' Vieira, que regressava ao poder depois de uma sangrenta guerra civil (a de 1998/99) e de um exílio mais ou menos dourado. E de outros ainda tão ou mais sinistros como o Quemo Mané, o Mamadu Injai, o Inocêncio Cani e outros, de "segunda linha", que, felizmente para ti,  já tinham ido parar aos quintos  do "inferno dos combatentes"...

Acabarias por o conhecer pessoalmente, ao 'Nino' Vieira, uns dias depois, numa receção no "palácio presidencial"... Para todos os efeitos, era uma figura institucional, o presidente da república, eleito, pensavas tu em voz alta na embaraçosa iminência de o teres de cumprimentar, para mais n sua terra, na sua casa... Um ano depois, em 2009, era miseravelmente morto. E rapidamente esquecido. 

Estranho país aquele onde facilmente se passava de herói a vilão. Nada, de resto, que tu não soubesses já, a começar pelo teu país, e a sua história recente.

Ainda tinhas dificuldade em definir o teu estatuto naquela terra a que chamavas "verde-rubra", não obstante a ambivalência das cores que eram também as cores da bandeira dos "tugas", lembrava-te o Tó Brandão, com quem começaste a simpatizar por ser um tipo "porreiro, bonacheirão, ingénuo". Ou talvez nem isso: afinal,  um pobre diabo como tu, apanhado pelas rodas dentadas da geografia e da história . Falava-te do passado, sem azedume, embora às vezes com uma pontinha de ironia. ( Ou seria uma mistura de tristeza e de culpa ?!)

Não achaste a terra assim tão "verde-rubra" como há quarenta anos atrás. Nessa altura, quando desembarcaste de um velho cargueiro colonial, já era a época das chuvas. E o capim começava a crescer como os velhos campos de trigo da tua terra.

Nunca gostaste da Guiné no tempo seco, tempo das queimadas e das grandes operações militares, tempo da sede e da insolação, tempo da desidratação e da exaustão, física e emocional...

Voltavas lá, quarenta anos depois, em março de 2008. Havia no ar uma aridez de deserto. O Saara ali tão longe e tão perto. 
 
Há terras que ficavam na memória das nossas geografias emocionais, pelos cheiros, os sabores, os sons,  as cores... A Guiné era uma delas...

− A guerra já acabou para ti há muito − comentou o teu convidado, com ar sério.

Ele falava corretamente o português, com aquela doçura acrioulada que te encantava. E gabava-se de ter andado no liceu Honório Barreto, "ainda seu antepassado remoto pelo lado materno".

− E para ti, não ?!...Ainda não acabou, a guerra  ?! − interpelaste-o, mas respeitaste o silêncio,
que se  seguiu. Um silêncio algo embaraçoso e magoado,  mas que falava só por si.

Por entre dentes, terá dito qualquer coisa em crioulo que não entendeste bem mas que poderia traduzir -se por um velho provérbio universal, o tempo é o cruel coveiro das nossas ilusões de juventude.

Quem era, afinal,  esse teu cicerone, que se oferecera para mostrar as velhas ruas e casas de estilo colonial, poeirentas e esburacadas, de "Bissau Bedju", cujo traçado em linhas paralelas e perpendiculares, ainda retinhas, se bem que vagamente, na memória ?

O António Brandão tinha-te sido apresentado por um amigo comum, português,  ligado à cooperação, conhecido ativista contra a guerra colonial, e incondicional admirador do Amílcar Cabral, embora agora mais crítico em relação aos seus "fracos herdeiros"... Afinal, os filhos de Cabral, ironizavas tu.

A sua obsessão, em Bissau, era encontrar um "mãos-limpas", isto é, um dirigente, um antigo "comandante"   ( dos poucos que já restavam vivos)  que não estivesse direta ou indiretamente ligado ao "narcotráfico". A sua deceção ia aumentando por aqueles dias, à medida que as suas "fontes secretas" iam confirmando as 
"suspeitas" dele:

− Eh!, pá, até o fulano tal..., imagina!... 

Referia-se a um dos últimos comandantes do PAIGG que ainda gozava de um algum prestígio e  crédito entre os "amigos estrangeiros"... 

Tu e ele eram participantes do Simpósio Internacional de Guileje, que se realizava em Bissau, com uma visita de fim de semana ao "mítico Cantanhez". Estava-se em março de 2008. A iniciativa não era partidária, nascera da sociedade civil e propunha-se também juntar os antigos combatentes de um lado e do outro. 

O António Brandão  não era a um "típico guineense". Para já, provinha da uma família cristã, mestiça, de Bafatá. 

− Grumete do Geba!− esclareceu ele, sem perceberes se era um autoelogio ou uma resposta sarcástica.

Tal como o Amílcar, que também não era um "típico guineense".

− Mais branco do que muito branco.

Era um "mundo crioulo" que te intrigava e fascinava ao mesmo tempo, aquela mistura de cores, sabores, línguas, saberes, fenótipos, florestas, tarrafes, bolanhas,  rios, braços de mar....mas também aliancas,  amores, ódios, desamores, etc. Em 2008 ainda havia velhas contas por liquidar.

Tinhas dificuldade em perceber (e penetrar em) aquele sistema de relações de parentesco e de poder, em que os machos e os "mais velhos" dominavam, e as próprias religiões monoteístas e proselitistas,  o cristianismo e o islamismo, não se davam mal de todo com a idiossincrasia animista... 

Não sem surpresa, deste conta que  o Brandão era profundamente supersticioso e ainda usava alguns dos amuletos do tempo da guerrilha, no peito e nos pulsos 

Por delicadeza (ou receio de melindre) não lhe quiseste fazer perguntas sobre as origens da família, embora a tua curiosidade fosse alguma.

Acabou por ser ele a falar-te dos seus antepassados. Tinha um bisavô algarvio, de Portimão ou Faro, não sabia ao certo... Contar-te-ia ele, já para o final da refeição.

Depois de um física e emocionalmente penoso, para ti, "passeio turístico" até à marginal e à zona portuária, descendo a antiga e 
tua conhecida avenida da República (avenida Amílcar Cabral,  a partir de 1975), nada como um almoço de pitche-patche (caldo de ostras) e de frango de chabéu, bem regado com umas "superbocks"...

O "tasco" era de um antigo soldado da manutenção militar. A esposa, cabo-verdiana, era uma cozinheira de mão cheia. O seu pitche-patche era talvez o melhor da cidade, garantia-te o Brandão que era um bom garfo e um melhor copo. 

À segunda "super", o Tó Brandão já estava a tratar-te por ermon. Sem constrangimento da tua parte. O tratamento por tu, da tua parte,  não o vias como um velho tique do paternalismo colonial, mas como uma forma de facilitar a comunicação entre dois antigos combatentes, para mais lusófonos. E sem qualquer veleidade "luso-tropicalista", do teu lado, mesmo sendo tu mais velho que ele uma boa meia dúzia de anos!

Percebeste (pelo que ele deu a entender durante o almoço) que gostava de poder mandar estudar um dos seus filhos em Portugal.

− Em medicina!

Nunca tinha conseguido sequer uma bolsa de estudo para o estrangeiro, o que achaste estranho, pertencendo ele (ou tendo pertencido até 1980) á 
nomenclatura do PAIGC.

Disseste-lhe que na altura não estava fácil entrar nas faculdades de medicina, cujas notas eram escandalosamente altas,  altíssimas... E que havia poucas vagas para os PALOP...

E, a título de consolo, alertaste-o para o risco de "perder o filho": os médicos não voltavam â Guiné, ou seja, à procedência, para vir trabalhar em "condições heróicas", isto é,  miseráveis... Conhecias muitos casos. E, se regressavam, eram mal aproveitados. Lembravas-te de um que fizera o curso na China. De regresso ao país,  não acharam melhor colocação para ele do que o de tradutor-intérprete ... 

O Brandão era crítico do regime do 'Nino' Vieira, então no poder.

− Matou o Cabral pela segunda vez!

Segundo apuraste da longa conversa desse dia, que se prolongou pela tarde dentro, o Brandão já era guerrilheiro no início dos anos 70.

− Na frente do Xitole. Em 1972, ia fazer 19 anos. 

− Por um triz (ou melhor,  talvez por um ano de diferença), não nos cruzámos nos matos do Xime e do Xitole! Tu de Kalash, eu de G3 em punho.

Andara pela "barraca" da Mina / Fiofioli, já em 1972... Depois da morte de Mário Mendes, em meados desse ano, o PAIGC concentrou a maior parte das suas forças na Zona Oeste, no Norte, para atacar Guidaje, como manobra de diversão. E no Sul, para cercar e "aniquilar" Guileje...

− Havia a crença de que se Guileje caísse, a guerra estava ganha... Disse-o Cabral, antes de morrer...

As "áreas libertadas" da bacia hidrográfica do Corubal ficaram vulneráveis, à mercê dos "raides punitivos" da tropa portuguesa...O PAIGC ficou desfalcado e os "tugas" voltam a entrar na mata do Fiofioli, três anos depois da Op Lança Afiada. O Brandão fora entretanto  para a barraca de Hermancono, no Senegal. Nunca mais voltaria ao Leste.

Turra, foi o que eu fui... Turra, como vocês diziam...

−  Turra dum cabrão!... E insultávamo-nos uns aos outros, na mata, quando nos encontrávamo-nos, aos tiros.

−  E falávamos a mesma língua!

− Estranho, diria um observador estrangeiro, que nos estivesse a espreitar por detrás de um bissilão!

−  E, afinal, éramos todos do mesmo clube, uns do Benfica, o maior da época, mas também do Sporting,  um ou outro do Belenenses, e até do Porto .

−  Do Belenenses ?!

−  Sim, por causa do Matateu!

−  Ah!, o Matateu, mas esse já não era do nosso tempo... Não estarás a confundir com o Eusébio ?!... 

Afinal, tu é que não estavas a dar conta da importância  do futebol na génese e desenvolvimento da luta pela independência...

−  Tivemos vários futebolistas na luta, do Lino Correia ao Bobo Queita.. E o próprio Amílcar Cabral, dizem que chegou a prestar provas no Benfica. Sabias ?

 −  A sério ?!...Não se pode ignorar a bola... Ainda vi hoje uns quantos  djubis, á saída do hotel, com a camisola do Ronaldo!...

−  E então diz-me lá por que razão andámos a guerrear este tempo todo ?

−  Tó, o homem grande de Lisboa, primeiro o Salazar, e depois o Caetano, nunca se entenderam com o Cabral... Foi pena.

−  Talvez o Spínola tivesse conseguido, se o Cabral não tivesse sido morto.

Contrariamente à maioria dos combatentes, militantes e simpatizantes do PAIGc , o Brandão não atribuía a morte de Cabral ao Spínola nem aos "tugas".

Julgavas que ele não disse isso só para te agradar ... Veladamente,  deu-te a entender que o 'Nino' Vieira, o primo Osvaldo Vieira e o Sékou Touré teriam as "mãos sujas de sangue". Mas o 'Nino'  ainda estava vivo e não longe do restaurante, pelo que o Tó não queria aprofundar o assunto que o incomodava...

 Deduziste o que ele te queria dizer:  sabiam do complô,  nada fizeram para o neutralizar e provavelmente também eram cúmplices...

Não resististe a querer saber algo mais sobre a infância e a adolescência do Brandão, depois de, conversa puxa conversa, terem chegado à conclusão de que tinham andado ambos pelos mesmos sítios, embora em anos diferentes. 

 Mandaste vir mais cerveja para destaramelar a  língua...

−  Como é que chegaste afinal a comissário político, um cargo mais importante do que comandante de bigrupo ?  −  quiseste tu saber...

Ele desviou a conversa, preferia falar da origem da família... Sobre o bisavô, desterrado para Cabo Verde, ele disse-te que sabia pouco, ou o que a mãe lhe contara,  ainda em pequeno, quando sonhou que ele "ainda viria um dia a  ser  padre e talvez até bispo"...

Era cabo-verdiana e muito devota a Nossa Senhora de Fátima.

 −  Uma santa,  pelo que aturou ao meu pai... E, claro, como boa africana,  também consultava os búzios...

O Brandão nunca tinha estado em Portugal mas sabia algumas coisas da história e da geografia, do tempo da escola, sobre a terra do bisavô,  "o Algarve, que fora dos mouros", isto é, "dos africanos"...

A senhora, Nha Luana,  tinha medo de morrer ainda nova e de levar para o  outro mundo os segredos da história da família do lado paterno. Achava que tinha obrigação de transmitir essas memórias aos filhos mais letrados, que eram também os mais novos... Ela e o filho eram muito chegados, para não dizer cúmplices...                                                                                                       
Assim,  o nosso homem sabia que o bisavô (de que já não se lembrava o nome, nem nunca vira nenhuma foto)  fora deportado para a ilha do Fogo. Alegadamente por se ter amotinado no navio de guerra a cuja guarnição pertencia. Teria chegado a Cabo Verde por volta de 1895, "no tempo dos reis" (pelas tuas contas).

O Brandão não sabia explicar o que se passara a bordo, a memória da família não chegava a tanto pormenor, mas parece que o marinheiro-fogueiro já tinha nessa época "ideias republicanas". 

À melhor oportunidade teria fugido da ilha onde lhe fora fixada residência. Numa leva de contratados para São Tomé, para as roças de cacau, acabou por seguir a bordo num vapor que fazia escala em Bolama (capital da Guiné a partir de 1879, acrescentaste tu).

Não ia de todo clandestino, terá beneficiado da cumplicidade  de um conterrâneo (ou antigo camarada da marinha de guerra) que o escondeu num beliche. A viagem, de resto, não era longe. 

Com a falta de "colonos brancos", não foi difícil arranjar trabalho na loja de um antigo deportado, ali estabelecido como comerciante e que  também tinha uma ponta na extremidade sul da ilha.

Nos primeiros tempos ficou afastado da vila de Bolama (só cidade a partir de 1913),  à frente de  destilaria de aguardente de cana. Os seus conhecimentos de fogueiro da marinha foram-lhe úteis.

Acabou por casar com uma bijagó de Bubaque  educada nas missões católicas. A mulher grande deu-lhe um bando de filhos, fora os que arranjou noutras moranças e camas. Parece que mais tarde dedicou-se à marinhagem num barco a vapor que fazia a cabotagem entre Bissau, Bolama e Bubaque. Acabou por trazer a família para Bissau e depois para o presídio do Geba.

O avô do Brandão vamos  encontrá-lo  a combater ao lado do capitão  Teixeira Pinto, do tenente Sousa Guerra e do Abdul Injai, comandante das tropas irregulares, na campanha contra os papéis e os grumetes da ilha de Bissau, em meados de 1915.

− Esse avô terá salvo a vida do capitão-diabo, quando este foi ferido. Contou-me a minha mãe, que ainda não era nascida. 

Louvado por feitos em combate, acabou por seguir a carreira militar e chegar ao posto de sargento, no final da I Grande Guerra.  

O pai do Brandão, por sua vez, foi soldado em Bolama, numa companhia de caçadores indígenas no início dos anos 40.  Terá estado em Angola (ou Macau, já não podes precisar de memória), durante a II Guerra Mundial, como expedicionário.  Esteve tentado a lá ficar mas as saudades da família (já era casado, e com filhos)  eram muitas.

Quando voltou, foi trabalhar para a Casa Gouveia, em Bafatá, vilória que, graças ao florescente comércio da mancarra, já há muito havia suplantado a decadente Geba e todas as demais terra do Leste.

−  Nasci em Bafatá, onde é hoje o bairro da Rocha...

E é aqui, por volta de 1953, que começar a história de vida do António Brandão...

− Brandão ?!...

−  Sim, apelido do meu padrinho de batismo: era ponteiro em Bambadinca e parente da minha mãe, cabo-verdiana. 

Era um colono respeitado, nacionalista, cuja casa o Amílcar Cabral frequentava  nos escassos anos em que trabalhara na Guiné como engenheiro agrónomo.

− E a esposa do Cabral, que era branca, chegou a pegar-me ao colo, contou-me a minha mãe.

Toda a gente se conhecia na Guiné nos anos 50. E a mãe do António tinha sido  empregada da família Brandão. Também ela educada nas missões católicas, em Bambadinca. 

Foi graças aos missionários católicos, italianos, de Bafatá,  que o Tó conseguiu fazer mais do que a 4ª classe.

−  Mandaram-me para o liceu de Bissau. Não havia mais nenhum.

Era um rapaz inteligente, vivaço mas humilde. Devem ter pensado que daria um bom padre. Feito o quinto  ano (e ainda antes do sétimo) , tencionavam mandá-lo para Roma, para aprender latim e grego aprofundar a  filosofia e iniciar a teologia.

−  Estava entusiasmado... Ia conhecer o Papa! E, claro, as belas romanas...

Os pais (e sobretudo a mãe)  viram com bons olhos esta benção do céu.  Tinha os irmãos mais velhos em Bissau, não seria difícil a adaptação.

Mas Deus põe e o homem dispõe...

***

− E isso da JAAC, a Juventude Africana Amílcar Cabral, foi a sério ? − perguntaste tu.

Explicou-te que inicialmente fora uma "brincadeira de putos" mas depois levada longe demais até ao ponto de não-retorno.  

Andar na Mocidade Portuguesa era uma "seca", o que ele queria eram as farras, as "mininas", os bailaricos com os gira-discos (uma novidade e um luxo nessa época), na casa uns dos outros, os mais abastados, e sobretudo longe do olhar dos professores e dos "nossos mais velhos"...

Em 1968, tinha o Brandão quinze anos e completava, com sucesso, o quinto ano. O Amílcar Cabral gozava de muito prestígio, "a nível internacional e até nacional".

−  Tinha derrotado o Schulz!

Ele pronunciava "Schultz". E a resposta, como já ouviras a outros guineenses, é que este governador e comandante dos "tugas" nem sequer era português mas "alemão" (sic).

−  A prova é que o Spínola veio tomar conta do lugar dele. O Salazar tinha pressa em acabar a guerra...

−  Pressa ? −  comentaste tu. −  Ele achava que ainda iria a tempo de ver a História e os Aliados do Ocidente dar-lhe razão! 

A libertação dos "tarrafalistas", entre eles o histórico Rafael Barbosa, muito popular em Bissau, gerou um clima de euforia (mas também de desconforto e desconfiança) entre militantes e simpatizantes do PAIGC. Começou a correr o boato de que se passara para o lado dos "tugas"... Afinal, o dinheiro comprava tudo!

Continuou a haver infiltrações da PIDE nas células estudantis e nos bairros populares de Bissau.  Alguns venderam-se por um "prato de bianda", garantiu-te o Brandão. 

 Claro que às tantas o Tó começou a faltar às aulas e a comprometer-se com alguns rapazes e raparigas que, viria mais tarde a saber, pertenciam à célula clandestina da JAAC no liceu.

Por influência do grupo, nas horas vagas já estava a distribuir papéis e a participar em reuniões , mais ou menos clandestinas, em se que falava dos problemas estudantis e dos progressos da luta do PAIGC... 

Começaram a catalogá-lo como "simpatizante" e às tantas já tinha, sem saber como nem porquê, a "chapa do Partido"... Mas, no dia seguinte, deu-se conta de que não estava nada interessado em pegar numa Kalash e ir para o mato combater a tropa dos "tugas" onde,  de resto, tinha amigos, sobretudo guineenses e cabo-verdianos (!).

É verdade que, naquele tempo, não tinha inimigos, só não gostava dos fulas que eram cipaios da administração do Guerra Ribeiro, e que serviam para dar porrada ao pessoal que entrava em Bafatá descalço!... Mas isso não era razão bastante para andarem a matar-se uns aos outros...  Tinha, de resto, amigos de várias etnias na escola primária.

Alguns colegas do liceu começaram, entretanto,  a ser chamados para a tropa. O medo instalou-se.  Um ou outro  mais afoito acabou por ir parar a Dacar e a Conacri e juntar-se ao PAIGC.

Em 1969 as coisas começaram a dar para o torto. Uma das "mininas" do grupo, aluna do liceu, foi detida pela PIDE... E deu à língua. Houve prisões. O Brandão teve que "passar à clandestinidade".

A mãe e os irmãos mais velhos e os missionários católicos do PIME tinham em Bissau os seus "espiões" de modo a não deixar o Tó "pôr o  pé em ramo verde". 

Não chegou a fazer o 7º ano. Começou a fazer "trabalho político" com uma miúda que depois viria, mais tarde, a ser a mãe dos seus dois primeiros filhos. Viviam no Cupelon de Baixo, paredes meias com o quartel-geral, em Santa Luzia.

O controleiro da célula do bairro cedo se apercebeu de quão valioso e promissor era o "miúdo". Foi o próprio Amílcar Cabral quem fez questão, depois de saber da sua história, em recebê-lo em Conacri.  E foi ele quem o entrevistou para pôr a prova as qualidades do novo membro do Partido, antes de o mandar para Cuba, mesmo sem o "batismo de fogo"...

− Tinha lá os balantas, os homens do mato,  para matar e morrer − comentaste tu com indisfarçável ironia. 

 Instintivamente o Amílcar Cabral − disseste tu para os teus botões − procurava poupar os melhores dos seus futuros quadros. Que eram cabo-verdianos ou de origem cabo-verdiana, como ele, que nasceram na Guiné.

Foi para Cuba sem deixar rasto, sem se despedir da mãe e dos irmãos. E muito menos dos padres. Por razões  de segurança, obviamente. Mas a mãe nunca lho perdoou, até quase à hora da morte.  Apesar de conhecer o Amílcar, que tinha ascendência cabo-verdiana, do lado paterno, e era mais novo quatro anos, ela não gostava nada  dele.  Estava convencida, mesmo sem fundamento,  de que tinham sido "eles", os tipos do PAIGC,  que haviam raptado e morto o marido na fronteira do Senegal, ainda antes do início da guerra.

***
−  E Cuba ?

−  Bem, na altura, eu ia de olhos tapados, comprei tudo o que me quiseram vender. E também acreditei piamente na sinceridade dos internacionalistas cubanos... Para nós , eram todos heróis. Como o 'Che' Guevara.Vim depois a saber que, muitos deles, coitados, faziam pela vida, tal como eu... A guerra era um modo de vida. 

Não quis falar muito mais,  do tempo da "luta".  Participou na Op Amilcar Cabral. Só não quis dizer onde, no Norte ou no Sul. Estás mais inclinado para Guidaje. 

Também já era tarde e "amanhã é dia de trabalho"...Pediu-te para levares uma pequena "encomenda" para Lisboa... E até lá ainda se encontrariam no hotel onde decorria o simpósio.

Cruzando esta com conversas ulteriores, ficaste a saber que o António Brandão não tinha estudado mais. Ia-se inscrever no 7º ano, quando teve de fugir.

Agora com 55 anos já "não tinha cabeça". A vida política não o interessava mais. Estava "triste" com o rumo que as coisas seguiram no seu país. "Ingénuo" (o termo era dele), pensava que, depois da independência, por um simples toque de magia, iriam abrir-se, de par em par, as portas do progresso, da liberdade e da justiça. 

Não estava arrependido pelos anos que andou no mato, na luta pela independência da sua terra. Mas tinha agora algum pudor e muita reserva em falar desse tempo. Os mais novos não mostravam gratidão pelo sacrifício de seus pais. Por outro lado, recebia uma miserável  pensão (que chegava ao seu bolso, tarde e a más horas). O Governo tratava mal os antigos combatentes. 

Temia a velhice, apesar da sua família extensa e solidária,  onde, apesar de tudo, não havia memória  de se passar fome. Mesmo quando o pai desaparecera... Temia, sim,  as doenças da velhice.

Trabalhava numa ONGD, estrangeira, uma "grande empresa", de um pais europeu. (Por razões obvias, não vais aqui identificá-la.)

Mas nunca se sabia até quando "eles" continuavam a apostar  na Guiné-Bissau. Os golpes de Estado, a droga, a instabilidade política, o peso dos militares, a corrupção, etc., não ajudavam a promover a imagem do país que continuava no fundo da tabela...

Era já tarde quando voltaste ao Hotel 24 de Setembro. Os dias ali eram curtos. E à noite não havia iluminação pública. Bissau parecia uma cidade sitiada, em quase total "black out".  Recorria-se ao gerador, os particulares, os hotéis, os restaurantes.

Foste a pensar na história do Tó Brandão. Nem sequer sabias o nome de guerra dele. Não acreditavas em tudo o que ele te contara. Davas o devido desconto. Mas, no essencial, parecia ser uma história verosímil, incluindo a perseguição aos "colaboracionistas", aos "cães dos colonialistas",  ainda antes da partida do último soldado português.  

Era uma "grumete", dividido por duas culturas, dois amores, dois mundos (mesmo que nunca tivesse  chegado a conhecer Portugal, tinha um secreto amor às raízes do bisavô , bem como a Cabo Verde, terra da mãe, que ele, apesar de tudo, não conhecia...)

Ao menos estava vivo, tinha sobrevivido a alguns momentos dramáticos da história recente do seu país ... Se tivesse ido para os comandos africanos, por exemplo,  hoje estaria morto como dezenas e dezenas de graduados do célebre batalhão que o Spínola criara... Teve lá amigos seus. Disse-te os nomes (que não fixaste). Teve amigos de um lado e do outro, o que ainda era mais dilacerante.

Triste episódio, esse, que manchara o regime de Luís Cabral...

−  Triste episódio ? 

Talvez um dia arranjasse alguém que lhe escrevesse as suas memória. Não era dado a escrever. Preferia falar. Mas não ali, na terra dele.

−  Um dia, Tó... Talvez em Lisboa, não  ?!

Sorriu. 

***

Tu e ele ficaram amigos. Houve ali, pelo menos, empatia entre os dois. Cumplicidade.  Mantiveram contacto mais ou menos regular por email e pelo WhatsApp.  Nos últimos anos mais esporadicamente. Foste sabendo dele,  até à pandemia. Deixaste de ter notícias dele por essa altura, que foi fatídica para todo o mundo. E a ONGD onde ele trabalhava também passou por muitas dificuldades.

Entretanto a mãe já tinha morrido  em Cabo Verde, com 90 e tal anos (ela seria de 1920). O Brandão tivera um filho a estudar em Bragança, na Escola Superior Agrária. Terá viajado para o Brasil e acabaste por  perder o seu contacto.  

Tal como o pai, o Tó Brandão terá desaparecido por volta de 2020/21. Sem deixar rasto. Acontecimentos estranhos naquela terra. Podem as pessoas desaparecer sem deixar rasto ? 

Nunca mais lá voltaste, à Guiné-Bissau. Os rios da Guiné não falam, mas são caudalosos e lamacentos no tempo das chuvas. Aliás, não são rios, são braços de mar. Tentaculares, como os do polvo. Lembravas-te, no Mato Cão, o estranho silêncio do rio Xaianga, seguido do poderoso macaréu,  na maré-cheia, que assustava homens e bichos.

Perguntaras-lhe um dia  se ele tinha inimigos...

− Mas quem os não tem hoje na Guiné-Bissau ?

Sabias que a mãe tinha regressado a Cabo Verde, depois do golpe de Estado de 'Nino' Vieira. A família dispersara-se: houve irmãos que emigraram para Cabo Verde, Portugal e Holanda; outros dois ficaram em Bissau, um trabalhava nos Armazéns do Povo (no mesmo edifício da antiga Casa Gouveia); outro teria montado um negócio por conta própria.

Enquanto o Brandão  estava "bem relacionado"  (chegara a diretor-geral de qualquer coisa...), a vida não piorara... Mas terá caído em desgraça nos anos 80. Nunca te contou pormenores. Valeu-lhe a ONGD para quem foi trabalhar na área da educação ambiental e como intérprete: era poliglota, falava português, francês, espanhol e, claro, crioulo. Era fluente em fula, entendia o papel, o balanta e o mandinga. 

O estranho desaparecimento do pai (no rio Xaianga, ele dizia Caianga) foi outra história intrigante que ele só te contaria no último dia da tua estadia em Bissau, em março de 2008, umas horas antes de apanhares o avião para Lisboa.

Procurara-te para se despedir e concretizar o pedido algo insólito que te fizera uns dias antes: se levavas, na bagagem de porão,  um saco de cola para o irmão que vivia perto de Lisboa, na margem sul. 

Esse irmão tinha um filho que ia pedir a mão de uma "minina" a um patrício. Era da tradição oferecer noz de cola para o futuro sogro.

Não tiveste lata de dizer que não.  Por precaução, pediste-lhe  que te mostrasses as nozes de cola que iam no saco, que fingiste nunca ter visto no teu tempo... (Era coisa que os teus soldados andavam sempre a mascar: no mato, eliminavam ou mitigavam a sensação de fome e de fadiga, garantiam-te eles; provaste mas não te habituaste ao seu sabor acridoce e sobretudo adstringente, que te aumentava a sede.)

Em relação ao pai, empregado da Casa Gouveia...

− Nunca quis morder a mão a quem lhe dava a bianda.

Queria o Tó dizer: era fiel à Casa e aos portugueses que lhe davam o pão. Tinha uma boa posição, sabia ler e escrever, tinha carta de condução, uma camioneta distribuída. Não ganhava mal. Fazia a campanha da mancarra, percorrendo todo o leste. 

Ainda não havia guerra,  apenas umas "escaramuças" junto à fronteira do Senegal,  na região do Cacheu,  "coisa da gente manjaca". Ele só lidava com fulas e mandingas do leste, e uma ou outra tabanca balanta. Batia o leste de Sare Bacar a Gabu, do Xime ao Saltinho, de Galomaro a Pirada. Os fulas eram seus amigos. Dos mandingas não tinha a mesma opinião. Alguns começavam a ser aliciados pelo PAIGC (aliás, ainda era o PAI, Partido Africano para a Independência).

Não se sabia o que acontecera em pormenor. Desta vez ia sozinho, sem ajudante habitual que terá ficado doente de paludismo em Bafatá. A camioneta apareceu abandonada, numa curva do rio  Xaianga (ou Caianga, como se dizia então, em 2008), quando ia caminho de Paunca e Sare Bacar na zona fronteiriça. Não havia sinais de violência. Teria sido raptado ou morto sem deixar rasto ? 

A Casa Gouveia, se mandou investigar o caso, nunca comunicou à família as conclusões. O corpo nunca apareceu, não se fez o choro. Houve quem dissesse que ele tinha fugido para o Senegal com um saco de patacão, outros, seus inimigos dentro da Gouveia, insinuavam  que, à semelhança do Luís Cabral, tinha "ido no mato" (passado à clandestinidade)... O que era tudo mentira. Para mais ele tinha ainda alguns filhos pequenos a quem era preciso ajudar a criar.

A mãe do Tó nunca se conformou com o silêncio da Casa Gouveia, tão pesado como o do rio Xaianga (o maior da Guiné, que percorria três territórios),  mas não pôde fazer nada. Eles eram poderosos, donos da Guiné. O filho mais velho também trabalhava lá. 

A história que se contava na família (teria o Tó 8 ou 9 anos) é que o pai ter-se-ia  sentido mal quando ia a conduzir, tinha saído para apanhar ar e acabara por cair ao rio. A verdade é que o corpo nunca apareceu. 

A Gouveia terá abafado o caso. Não se sabe se a PIDE investigou. O irmão mais velho teve de substituir o pai no sustento da família.  A mãe e os irmãos mais velhos passaram a ser ainda mais hostis ao partido do Amílcar Cabral, que nessa altura andava já a fazer trabalho de sapa nas tabancas e a sabotar algumas infraestruturas (postes telefónicos, etc.),

Passados uns anos a mãe do Tó vai passar por outro grande desgosto: o filho, o António,  decide "entrar na luta" (sic),   quando estava destinado a ser padre...

Quando o PAIGC se sentou à mesa do Estado, em Bissau, em 1974,  já só havia sobras... Quem as apanhou foram os primeiros a chegar a Bissau. Ele fora dos últimos... Ficaria na tropa por mais uns anos até ao golpe de Estado do 'Nino' Vieira, que lançou uma onda de veneno e  ódio contra os cabo-verdianos e os mestiços... 

Aos 36 anos arrumou as botas, a farda e a kalash. E entrou numa nova vida. Foi professor, foi agente comercial, andou na campanha do caju, etc. Até finalmente conhecer a ONGD que lhe deu a mão.  

Era uma daquelas ONGD com generoso financiamento estrangeiro (e, mais tarde, da CEE), que preenchia, em muitos setores (saúde, educação, cultura, agricultura, ambiente, etc.) as funções que o frágil (e quase inexistente) aparelho de Estado guineense não conseguia cumprir. 

Viajava bastante, pela Guiné (regiões de Cacheu,Bafatá e Tombali, onde a ONGD tinham projetos).

***


− E agora, António ?

Bebeu mais uma golada de cerveja, pigarreou, deixou passar mais uns tantos segundos e disse-te mais ou menos isto, num longo monólogo, à laia de confissão:

−  Só tenho que me queixar das decisões que não fui eu a tomar. As que os outros tomaram por mim. 

Não quis particularizar, mas estava, se calhar, a referir-se a família, à mãe (que era uma mulher "poderosa, dominadora"), aos irmãos mais velhos, aos missionários , aos colegas de liceu que já eram paigêcistas e que o empurraram para a luta armada. E, claro, ao próprio Amílcar Cabral que foi para ele o pai que "ele nunca tivera", o seu herói, o seu ídolo... Nunca mais o voltaria a ver desde   que, em 1969,  o mandou para formação em Cuba. Terá chorado como ninguém a sua morte, em 1973.

Confessou-te (ou deu a entender) que, no seio do Partido (como ele ainda dizia), chegou a sentir-se, por  vezes, discriminado por ser "mais branco do que preto".  Quem disse que na cúpula do PAIGC não havia racismo ?

Não quis entrar en grandes detalhes sobre a sua vida no mato, nas "áreas libertadas". Como comissário político", depois de vir de Cuba, teve que mostrar que era tão ou mais "cabra-matchu" do que os "mais velhos". Teve que dar o exemplo aos outros: ser frugal, casto, disciplinado e disciplinador, respeitar as bajudas, defender a população...Tinha que garantir a "pureza ideológica", os valores do Partido... Sobretudo tinha que se impor pelo exemplo. Havia conflitos com os "mais velhos", e sobretudo com os mandingas.

− Conflitos ?... Entre camaradas ?...

Sem concretizar, o Brandão referia-se aos "pequenos abusos", os privilégios dos comandantes: vinho de palma, "água de Lisboa", bajudas para dormir, "bianda com mafé", relógio de pulso,caneta e papel,  amuletos, saco-cama, medicamentos, cigarros, guarda-costas.... 

Percebeste o ele que queria dizer, por meias palavras. 

Havia quem andasse na luta há muitos anos. Desde o princípio e, com sorte, estava vivo. Um jovem, de 19/20/21 anos,  só por ter estudos e ser comissário político, não ia mudar aquelas "cabeças duras"...

 Havia o culto do "cabra-matchu", denunciado aliás nos discursos do Amílcar Cabral. Mas o líder histórico não andava com eles no mato. Muitos nunca o tinham visto em carne e osso, só em fotografia. Conacri ficava longe. Tal como as Colinas do Boé.

Sobre os ajustes de contas com os "cães dos colonialistas", a seguir à independência, não quis falar. A expressão era usada pelo Cabral para se referir aos fulas e outros "colaboracionistas"...  O assunto incomodava-o visivelmente, e tu não insististe. Era delicado demais para uma conversa entre antigos inimigos, logo nos primeiros tempos em que se conheciam.

Ainda houve tempo de ir ao cais do Pijiguiti para dar um último adeus e ouvir o silêncio do Geba, que ali já era estuário,  barrento, misturando-se com as águas azuis do Atlântico. O Xaianga, o Geba Estreito, era a montante, a partir do Xime... Um enorme braço de água que serpenteava pela Guiné e os seus dois países vizinhos... 

Tiveste pena de não poder parar no Mato Cão, no regresso da viagem ao Cantanhez, e aguardar a chegada do macaréu, quando aquela gigantesca serpente de água irrompe pelas margens lodosas, na maré-alta, com o seu rugido de meter medo... 

Que diriam aquelas margens se pudessem falar dos silêncios e dos macaréus dos últimos 500 anos de História ?

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