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quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26259: Operação Grande Empresa, a reocupação do Cantanhez e a criação do COP 4, a partir de 12 de dezembro de 1972 - Parte IV: Um dos santuários do PAIGC (1966-1972)



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Parque Nacional do Cantanhez > Madina do Cantanhez, perto da "barraca" (acampamento) Osvaldo Vieira (que eu visitei em 2 de março de 2008) > 10 de Dezembro de 2009 > 7h32 >  A silhueta de um "dari" (chimpanzé) descendo uma árvore ... 

Este grande símio (o mais aparentado, do ponto de vista genético, ao ser humano) é muito difícil de observar e fotografar... Contrariamente a outros primatas que existem no Parque, ainda com relativa abundância como o macaco fidalgo ("fatango", em crioulo). O Cantanhez ainda era, em 2009, uma das últimas florestas primárias do planeta. É imperioso que os guineenses e todos nós as saibamos proteger e salvar. O João Graça que esteve cinco dias como médico, voluntário,  em Iemberém (a nossa antiga "Jemberém"), teve o privilégio de observar "in loco"  um chimpanzé do Cantanhez (depois de se levantar muito cedo e caminhar um bom par de horas, com um guia). Outro habitat do "dari é o Boé (agora ameaçado com a prospeção e eventual exploração da bauxite, entregue a uma empresa chinesa).

Foto (e legenda): © João Graça (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Guiné-Bissau > Região de Tombali > Parque Nacional do Cantanhez > Farim do Cantanhez > 9 de Dezembro de 2009 > 17h06 >  Resto de mangas de um ou mais "daris"...

Com mais de 100 mil hectares (mil quilómetros quadrados), este parque é muito importante, segundo o IBAP - Instituto da Biodiversidade e das Areas Protegidas, com sede em Bissau:

"Grande diversidade da fauna e da flora com a existência de várias florestas húmidas onde se destacam sobretudo as essências raras e únicas, tais como: copaifera, salicaunda, 'pau' miseria, mampataz, 'pau' de veludo, tagarra, faroba de 'lala' e outras. Ainda alberga diferentes espécies de fauna (elefante, búfalo, baca branco, sim-sim, chimpanzé, macaco fidalgo, porco de mato), entre outros: é reconhecido por WCMC como um dos 9 sitios importantes do ponto do vista da bioiversidade. Cantanhez é igualmente uma das 200 eco-regiões mais importantes do mundo identificadas pela WWF."

Fotos (e legendas): © João Graça (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Tombali > Península de Cubucaré / Cantanhez > Carta de Cacine (1960) (Escala 1/50 mil)  > Durante 6 anos, de 1966 a finais de 1972, o Cantanhez foi um "santuário" do PAIGC. O único destacamento das NT era Cabedu (parte do setor S3, Catió) (e Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine). Depois da Op Grande Empresa (dez 72 / jun 73), vão ser instalados aquartelamentos das NT em Jemberém, Cafine, Cafal, Cadique, e outros (que este excerto do mapa não mostra, como Caboxanque, Chugué e Combumba)  (*)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


1. Antes da Op Grande Empresa (*), houve outras operações de envergadura, com tropas terrestres, marinha e força aérea... Mas a verdade é que o PAIGC encontrou na península de Cubucaré condições ideais para construir um dos seus santuários, no interior da Guiné... 

Sabemos que a reivindiação de 2/3 de áreas libertadas foi sempre "show-off" do Amílcar Cabral para impressionar os seus financiadores externos e fornecedores de armas, bem como reforçar a "moral" da sua tropa, militantes e simpatizantes... Nunca correspondeu à verdade... Não havia recanto da Guiné onde a tropa portuguesa não pudesse chegar, com maior ou menor dificuldade... 

Isso não nos impede de reconhecer, também por mor da verdade, que  o Cantanhez , o Oio e o Boé foram três santuários do PAIGC: o primeiro , de 1966 a 1972, o segundo, durante toda a guerra, o terceiro. depois do abandono de Béli,  Madina do Boé e Cheche, em 6 de fevereiro de 1969... 

Mas a população que lá podia viver no Cantanhez era, afinal,relativamente  escassa: no final da Op Grande Empresa, as NT  conseguiram recuperar não mais do que 3,5 mil habitantes, sobretudo  mulheres, velhos e crianças, que foram "reordenadas"...

No ReI Ac Psic n° 4/72 (citado, pela CECA, 2015, pág. 186), e no que diz respeioto à "População", escreve-se:

(...) "O aspeto mais significativo no período foi a recuperação de cerca de 3.500 elementos da população balanta em Caboxanque e Cadique que após a implantação das NT naqueles locais, franca e abertamente, se acolheram à nossa proteção, colaborando na construção dos aldeamentos locais imediatamente iniciados.

"Esta atitude, manifestada por uma população há anos sob controlo IN, para além de revelar um fraco índice de contaminação subversiva, confirma o quadro de desequilíbrio psicológico a nosso favor vindo há muito manifestar-se pela generalidade da população controlada pelo inimigo em consequência dum cansaço de guerra, pesadas exigências do Partido e precárias condições da vida no 'mato'. " (...)

Onde estavam, afinal,  os  trezentos e tal mil habitantes  da Guiné, que o PAIGC controlaria nos tais 2/3 do "território libertado" ? 

Na altura,em 1970,  a Guiné tinha c. de 595 mil   habitantes; na melhor das hipóteses, o PAIGC controlava, direta ou indiretamente,  dentro e fora do território, 15% a 20% da população, incluindo a população refugiada dos dois países vizinhos, o Senegal e a Guiné-Conacri.

Recorde-se aqui os números apurados pelo jornalista do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues,  em meados de 1972, aquando da sua visita à Guiné em missão de reportagem, a convite pessoal de Spinola:

(i) "Bissau afirma controlar 487 448 habitantes (foram os que se deixaram recensear em 1970)",

(ii)  "mantendo-se outros 27 174 em 'zonas de duplo controle' ".

(iii) "no Senegal vivem 60 000 refugiados, e na Guiné (Conacri) 20 000, segundo informa o Comando-Chefe, apoiando-se em  dados da Comissão de Refugiados da ONU";

(iv) "a ser assim, 89,5 por cento dos guinéus viveriam no interior do TO (teatro de operações) e 82 por cento do total estariam sob controle português."

(v) "numa população que em 1970 era de 594 622 habitantes";

(vi) "os dois mil combatentes que (...) actuam dentro das fronteiras, manobram a partir das 'zonas sob duplo controle' (...), situadas ao longo do corredor florestal e particularmente nas proximidades de Bissorã / Mansabá / Canjambari, confluência do Geba/Corubal, e sobretudo na zona ao sul do rio Buba, à volta de Catió".

(vii) "outra zona 'quente' situa-se perto do Cacheu, junto ao rio do mesmo nome, alastrando pelas florestas ao norte do Bachile e do Pelundo";

(viii) "calculam-.se em 7 000 os combatentes do PAIGC atuando a partir de 25 bases da fronteira senegalesa e de 8 da República da Guiné, incluindo aqueles que se encontram dentro do TO" (**)


2.Reveja-se, aqui, em síntese, o que foi, no sector Sul 3 (S3), a Op Safari, em 3 e 4 de janeiro de 1966:
 
(...) "Teve como finalidade, aniquilar e destruir os grupos inimigos e as suas instalações localizadas nas regiões do Cantanhez, entre os rios Ualche e Macobum, particularmente as de Calaque, Cafine e Cafal. 

"Executaram a operação forças da CCaç 728, 763(-), 1423, 1424 e 1427(-), CPara, 4 DFE, 5° e 6° Pel / BAC (4 obuses), com apoio aéreo e apoio naval.

"As NT atacaram a 'Base Central', a sul do cruzamento de Cafal, tendo-a destruído.

Em Missida Jauiá foi assaltado um acampamento; o lN sofreu 1 morto e 1 prisioneiro, tendo-lhe sido apreendidas I metralhadora pesada e outra ligeira, 1 espingarda, 1 carabina e 1 pistola metralhadora, além de outras baixas não confirmadas. Foi apreendida documentação diversa. Foram destruídas grandes quantidades de arroz e de gado.

"As NT sofreram 4 mortos e 14 feridos."

 Comentário à Op Safira (Fonte: Relatório de Comando do CTIG n'º 1/66, pp. 109-110):.

(...) "Ressalta no período, pela sua importância, quanto a efetivos empenhados, meios de apoio de fogos, apoio aéreo e naval, pela duração e pelo prazo e, especialmente, pelo valor atribuído ao lN na zona de ação escolhida, a operação 'Safari'.

O Cantanhez é uma área de densa arborização e difícil acesso às NT, onde o lN mantém uma liberdade de ação quase absoluta, sofrendo apenas esporádicas ações de flagelações da FA, Artilharia e de curtas incursões por elementos combatentes.

"A Op Safari teve o condão de levar a essa área importantes efectivos das NT, que percorreram distâncias apreciáveis, causando ao lN baixas e danos materiais que não estão, ainda hoje, avaliados. As NT permaneceram na zona de ação durante a noite de 4/5 de janeiro, período que era considerado crítico, sem que o lN tivesse comprometido a sua segurança. 

"Desta operação colheram-se bons ensinamentos para futuras ações na mesma área e verificou-se a viabilidade de ali se levarem a efeito ações de desgaste do lN. "(...)

Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro I; 1.ª Edição; Lisboa (2014), pp.  387/388 (Negritos nossos) (Com a devida vénia...).


3. Da leitura do livro da CECA,  6.º Volume (Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro II; 1.ª Edição; Lisboa, 2015), abrangendo o período de 1967 a 1970, vai-se percebendo que para o então Com-Chefe, gen Schulz, o Cantanhez é um osso duro de roer e não há condições para uma grande contra-ofensiva das NT... Vem o Spínola, em meados de 1968, e só quatro anos e meio depois (!), é que é possível planear e executar a Op Grande Empresa.

Temos de recuar no tempo, ao princípio da luta armada  (ou início da subversão, como diziam as autoridades portuguesas) para perceber por que razão só muito tardiamente as NT conseguiram pôr algumas bandeirinhas no mapa do Cantanhez: Jemberém, Cafine,Cafal,Cadique, Caboxanque, Chugué e Cobumba...


Vídeo nº 1  (4' 52 ''): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. 

Alojado em: You Tube >Nhabijoes



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira, nas proximidades de Madina do Cantanhez, na picada entre Iemberém e Cabedu > Simpósio Internacional de Guiledje > Domingo, de manhã, 2 de março de 2008 > Visita guiada e animada por antigos guerrilheiros e população local, ao Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira (*) > 


Neste vídeo (nº 1), um dos homens grandes da região conta como foram "os primórdios da luta"...  Era de etnia nalu, a  "dona  do chão". Chamava-se 
Mussá Camará  (e irá morrer uns meses mais tarde).

Entrou no mato, como ele diz, logo em 1962. Ou seja: passou à clandestinidade, depois de aderir ao PAIGC. 

Estava convencido que a designação deste acampamento ("Osvaldo Vieira") não tinha nada a ver com a verdade fática, histórica, que seria apenas uma homenagem, póstuma, a um dos heróis (não de todo consensual...) do PAIGC, cujos restos mortais repousam na Amura, a antiga fortaleza colonial de Bissau transformada em panteão nacional.. Mas não, o  Osvaldo Vieira atuou no Oio (Frente norte), mas também ao que parece no Cantanhez (Frente sul). 

Abramos aqui um parênteses, para dizer que já em 2008 eu tinha dúvidas (eu e outros participantes portugueses no Simpósio) sobre o seu papel no complô contra Amílcar Cabral de que resultara o seu miserável assassinato em 20 de janeiro de 1973.  Osvaldo Vieira e o executante do crime, o Inocência Cani,  eram próximos e críticos do líder histórico e da tese da unidade Guiné-Cabo Verde. Mesmo assim foi dado o seu nome ao Aeroporto Internacional de Bissau. Também tinha relações de parentesco com 'Nino' Vieira. De qualquer modo, repousam lado a lado no panteão nacional, ele e o Cabral, o " pai da Pátria".

Mas voltando ao vídeo (nº 1): o antigo guerrilheiro  fala num crioulo difícil. O Pepito vai traduzindo. Vê-se que nem sempre percebe o antigo guerrilheiro...

"Éramos só sete nessa altura. O comandante do grupo era o José Condição. Ficámos no mato de Caboxanque, aqui perto. Numa barraca, parecida com esta"... 

E a narrativa continua: Até que chegou à região de Tombali o Capitão Curto.  Esse Cap Curto ficou com a fama de mandar cortar cabeças. .. No filme-documentário "As Duas Faces da Guerra", de Flora Gomes e Diana Andringa, um dos entrevistados, antigo combatente do PAIGC, também evoca esse  Cap Curto... A crer no depoimento do antigo guerrilheiro, o Cap Curto cortava as cabeça dos seus prisioneiros e, depois ia apresentá-las às mães das vítimas, nas suas tabancas... (o que nos parece macabro e fantasioso demais).

Enfim, não tive, no Cantanhez, oportunidade de confirmar esta história nem saber mais pormenores sobre eventuais métodos de trabalho sujo, resultantes da colaboração entre Exército, PIDE, polícia administrativa, etc., nos "anos de chumbo" que antecederam a guerra... 

Também não achei apropriado o momento, que era de festa e de reconciliação, para falar deste e de doutros homens que, a ser verdade o que deles se contava,  não podem ser tomados como representativos do exército português, e muito menos dos militares portugueses que fizeram a guerra, entre 1963 e 1974... Mas é importante ouvir as diferentes narrativas da guerra, que ajudam a compor o "puzzle" das histórias de um lado e do outro...

Na mesma altura apareceu o 'Nino' Vieira. O tal Cap Curto cercou Darsalame, entrou aos tiros na tabanca, mandou toda a gente pôr as mãos na cabeça… (Esta história já parece bater certo com outras que temos ouvido da atução do cap José Curto, cmdt da  CCAÇ 153, e carrasco do comandante do PAIGC, Vitorino Costa, formada na academia chinesa de Nanquim.) 

Das cinco da tarde às cinco da manhã, a aldeia esteve cercada e as pessoas foram interrogadas… O 'Nino' ficou muito preocupado e quis saber o que se passava. Reuniu os camaradas, entre eles o "Mão de Ferro", com a missão de ir a Darsalame saber o que se estava a passar e tentar ajudar o povo. Não deixou ir o José Condição. Foi também nessa altura que o grupo, que tinha aumentado, já não cabia em Caboxanque. 

“Este mato é pequeno. Não vamos ficar aqui, disse eu… E foi então que fomos para o mato de Cantomboi” (um dos catorze atuais matos do Canhanez)…


 

Vídeo nº 2 (0' 55''): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. Alojado em: You Tube >Nhabijões


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira, nas proximidades de Madina do Cantanhez, na picada entre Iemberém e Cabedu > Simpósio Internacional de Guiledje > Domingo, de manhã, 2 de março de 2008 > Visita guiada e animada por antigos guerrilheiros e população local, ao Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira (*) 


"Cabral fala sábi"...A memória de Cabral (que, dizem, conheceu bem a região de Tombali, como engenheiro agrónomo, antes de se ter tornado o fundador e o líder histórico do PAIGC) bem como as marcas da luta de guerrilha estão ainda bem vivas entre as mulheres e os homens do Cantanhez... Uma das mulheres, presentes nesta visita, canta uma das canções revolucionárias da época, dando vivas à Guiné e ao... Partido (vídeo nº 2).

 Mas será que alguma vez  elas o viram ao vivo  a a cores por estas paragens  durante a "guerra de libertação" ?  Duvido.  

Contrariamente ao ' Nino', o Cabral nunca foi um comandante no terreno, não era um "cabra-matcho"  como os guineenses gostavam. Era um bom teórico, estratega, político, diplomata ( e poderia ter sido um grande estadista, ou não ?)... Mas nunca foi um com-chefe, um general,  como o Spinola,  próximo dos seus homens no mato, na guerra.  


Foto nº 1 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira, nas proximidades de Madina do Cantanhez, na picada entre Iemberém e Cabedu > Simpósio Internacional de Guileje > Domingo, de manhã, 2 de março de 2008 > Visita guiada e animada por antigos guerrilheiros e população local, ao Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira (***) 

"A unidade foi a melhor arma nos momentos difíceis dos camaradas" - pode ler-se num pequeno monumento, tosco, de cimento, encimado pela estrela negra, erguido na antiga barraca da guerrilha, o acampamento "Osvaldo Vieira" (agora reconstituído)... 

Testemunho do passado, recado para o presente, pensa a Alice que, como muitos portugueses e portuguesas, não fazia a mínima ideia das reais condições do terreno (e do clima) onde se operava a guerrilha e a contra-guerrilha na Guiné.... São florestas-galeria onde mal entra o sol...

Foto nº 2 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

O que pensarão estes miúdos ? Quais são os seus sonhos ? Para onde estão a olhar ? O que serão daqui a 15/20 anos ? O que sabem da luta pela independência, levada a cabo pelos seus avós ? Quem serão hoje os seus ídolos, os seus heróis ? E estas mulheres grandes ? Que recordações têm da luta armada ? E da dor, do sofrimento e da tragédia que foi toda aquela guerra estúpida e inútil ? Qual é a sua situação hoje, do ponto de vista social, económico e sanitário ? O que poderão ainda esperar do futuro ?

Foto nº 3 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje> Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Sabotagem ? Provocação ?... Não, é apenas uma camisola do craque do Manchester United e da Selecção Nacional de Futebol de Portugal, Cristiano Ronaldo, um "herói' do mundo global e mediatizado de hoje... 


Foto nº 4 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

À esquerda, o prof  Luís Moita  (1939-2023) e o Paulo Santiago seguem com atenção, desvelo e carinho, o inédito espectáculo de representação teatral que nos ofereceram, a todos, os antigos guerrilheiros e a população local do Cantanhez...

Foto nº 5 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)


Um dos antigos "combatentes da liberdade da pátria", um antigo comandante,  explica, em crioulo (com tradução para português, feita pelo Pepito) como é que os guerrilheiros do PAIGC se apoiavam em (e articulavam com) a população local...

Com um brilhozinho nos olhos, fala das 3 fases da organização político-militar do PAIGG...  (Á esquerda, sentados, e de máquina fotográfica em punho, o Paulo Santiago e o Silvério Lobo.)


Foto nº 6 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

... Tem um papel, sabe ler...  Insiste em afirmar, perante os convidados estrangeiros, que aqui nunca se lutou com o povo português, mas sim contra o colonialismo de Salazar e de Caetano de acordo com a retórica do Partido.

Fotos nº 7 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Um verdadeira lição, ao vivo, de história, de antropologia, de ciência política, de arte da guerra, de gestão, de humor, de humanidade, de sobrevivência, de dignidade, de amizade, de esperança no futuro... 

Fotos nº 8 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Osvaldo Vieira, de origem cabo-verdiana,  foi dos que morreu justamente na reta final, a um mês do fim das hostilidades...   Os antigos guerrilheiros do Cantanhez também quiseram dar a esta 'barraca'  (acampamento temporário) o seu nome... 

Segundo me dirá o Manecas Santos outro lendário combatente do PAIGC, o homem dos Strela,  o Osvaldo nunca terá andado muito pelo sul... Fico na dúvida se o nosso homem esteve realmente aqui, neste sítio... Mas, para o caso, também não interessa. Os seus antigos camaradas tentaram, de maneira didática, simples, autêntica, reconstruir as condições em que se vivia e lutava durante os difíceis tempos da luta de libertação... (E tiveram que limpar aquele mato!)

Não sei se alguma vez foi identificado, atacado e destruído pelas NT este acampamento... Sabe-se que, desde 1966 até finais de 1972  as NT não ousaram penetrar, a pé, no coração do Cantanhez, com o claro objetivo da sua reocupação. No final do consulado de Spínola, aí sim, vai haver uma grande contra-ofensiva contra este santuário do PAIGC, a Op Grande Empresa.

O Pepito garantiu-me,  uns meses mais tarde, desfazendo as minhas dúvidas,, que  "o Osvaldo foi um combatente que viveu naquela 'barraca' (acampamento) e fez dela ponto de partida para numerosas acções de guerrilha".

Além disso, "as estórias dele naquele local são mais do que muitas, algumas até divertidas: quando lhe dava a sede, mandava um dos seus guerrilheiros comprar vinho no Quartel de Cacine. Uma vez o mesmo saboreado e estalada a língua de satisfação, recostava-se e dizia: ' 
Um dia ainda vamos chorar a partida dos portugueses, nunca mais beberemos bom vinho'  "… (Se calhar dizia "água de Lisboa", como os meus soldados, que não bebiam...)

Foto nº 9 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Um grupo de antigos guerrilheiros encenaram a sua atuação no tempo da guerra... Ei-los aqui vestidos de caqui e gorro, e empenhando imitações de madeira da famigerada Kalashnikov... Pertenciam ao Exército, já na 3ª fase da luta...

Foto nº 10 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Nalguns casos recorreu-se mesmo a restos de armas que ficaram por ali, como por exemplo o cano do temível LGFog RGP-7....


Foto nº 11 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

O grande terror dos guerrilheiros e da população do Cantanhez não eram os paraquedistas, ou o helicanhão, mas sim os Fiat, os aviões a jacto da Força Aérea Portuguesa... O aparecimento dos mísseis terra-ar Strela vieram dar outra confiança e ânimo aos homens do PAIGC...

Foto nº  12 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

 O papel das mulheres na guerrilha foi aqui ilustrado, exemplificado, exaltado...

Foto nº  13 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

As mulheres do Cantanhez exemplificaram como cozinhavam no mato, sem fazer fumo, iludindo a observação aérea das NT... Os combatentes tinham apenas direito a uma refeição por dia... Ainda hoje será difícil comparar a sua à nossa fome... Nas unidades de quadrícula ou nas operações no mato, o tuga sonhava com comida e sobretudo com bebida... Muita, fresca.

Foto nº  14 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Um grupo de mulheres, camufladas com folhas de arbustos, mostrando como se deviam agachar e esconder quando no céu se ouvia o baralho de aeronaves...

Foto nº 15 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Atores, figurantes, assistência... Nos bastidores ou no palco.... As mulheres são parte fundamental da luta do povo da Guiné, ontem como hoje: pela paz, pela liberdade, pela democracia, pelo desenvolvimento, pelo direito à história....

Os tempos hoje são outros... As populações do Cantanhez, e nomeadamente as que apoiaram abertamente a luta de libertação (os nalus e os balantas), parecem assumir o seu passado, com orgulho, com dignidade, sem arrogância, sem ódio....

Claro que a narrativa é heróica... Em dia de festa, e para mais à frente de estrangeiros (e alguns antigos inimigos) não houve ocasião para se lembrar a violência que também se abateu do lado dos " libertadores", sobre a população mais vulneráveis, as crianças, as bajudas, os adolescentes, as mulheres, os idosos...que tinham de alimentar a guerrilha, garantir grande parte da logística, cultivar as bolanhas, sofrer as prepotências dos comandantes e comissários políticos, etc. 

Foto nº 16 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Uma guerra de libertação (ou subversiva, como diziam as nossas chefias militares...) não se faz sem as mulheres, como a antiga enfermeira do PAIGC, Francisca Quessangue, que participou na batalha de Guileje....

Francisca, uma mulher doce e tranquila... E no entanto  tinha todas as razões para ter ódio no seu coração: o pai foi morto, com três tiros, friamente, por tropas africanas, por se recusar a denunciar os camaradas da guerrilha do PAIGC... Uma tia dela que estava grávida e que assistiu, aterrorizada, a esta cena, escondida por detrás de uma árvore, teve um aborto espontâneo. 

O pai da Francisca era papel, da região de Bissau. Viveu no mato, onde ela cresceu. Tinha responsabilidades políticas, não era combatente. A Francisca estudou enfermagem na ex-União Soviética. Estava num hospital de retaguarda, na fronteira, aquando do ataque a Guileje. Hoje é enfermeira no Hospital Regional do Gabu. 

Foi uma das oradoras do Simpósio. Fez uma comunicação sobre os aspectos sanitário-logísticos do PAIGC no assalto ao quartel de Guileje, no dia 6 de março. (...)

Foto nº 17 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Um antigo comandante da guerrilha conduziu-nos, a mim, ao cor art ref Nuno Rubim, o "capitão-fula",  e a esposa, ao longo de uma das linhas de fuga que partiam do centro do acampamento, em plena floresta do Cantanhez, até ao tarrafo... Fortemente apoiados pelos nalus e pelos balantas, o PAIGC movia-se como peixe dentro de água nesta floresta-galeria, um emaralhado de lianas e vegetação perene, com árvores de alto porte, centenárias, uma amostra ainda riquíssima do que resta das florestas primárias do planeta...

Foto nº 18 >  Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Paisagem de tarrafo...na maré vazia.


Foto nº 19 > 
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

De acordo com as coordenadas do GPS do N  caor art ref Nuno Rubim (1938-2023), tiradas no centro da clareira onde decorreu a cerimónia, este sítio fica a 11º 12' 46" N - 15º 03' 10" W, ou seja, à esquerda da picada que vai de Iemberém (antiga Jemberém) para Cadique (a oeste) e Cabedu (a sudoeste), nas proximidades de Madina do Cantanhez, entre Iemberém e Cachamba Sosso (vd. infografia, ao alto do poste)... 

Uma das linhas de fuga do acampamento, que ficava numa pequena elevação, ia dar diretamente ao Rio Bomane, afluente do Rio Chaquebante, este por sua vez afluente do Rio Cacine, desaguando justamente frente a Cacine, perto de Cananime (onde iríamos almoçar nesse domingo).

Foto nº 20 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...) 

À entrada para o acampamento Osvaldo Vieira, junto a poucos quilómetros de Imberém, a sul... Na foto, a Alice Carneiro com o antigo guerrilheiro Dauda Cassamá, sob o olhar do catalão Josep Sánchez Cervelló, professor universitário em Tarragona, especialista em história sobre o 25 de Abril e a descolonização portuguesa...


Foto nº 21 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

Um grupo de jovens, rapazes e raparigas, que cantaram o Hino da Guiné-Bissau no início da cerimónia ... O que será feito deles, hoje (2024) ?

Foto nº 22 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez > Acampamento ("Barraca") Osvaldo Vieira > Simpósio Internacional de Guileje > Visita guiada > 2 de março de 2008 (...)

O Pepito, nosso anfitrião (infelizmente iria desaparecer 4 anos depois, deixando órfão a sua ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, e fazendo falta a este povo e que ele tanto adorava) ,  aqui servindo de tradutor (do crioulo para o português)... Foi o génio organizativo e a alma deste Simpósio Internacional, que juntou os "inimigos de ontem" (faltaram apenas os cabo-verdianos, que ainda tinham um ódio de estimação ao 'Nino' Vieira e vice-versa)...

Concentraram-se, neste antigo acampamento do exército do PAIGC, naquela manhã de domingo, dia 2 de março, algumas centenas de pessoas, entre comitiva (participantes do Simpósio Internacional de Guileje, nacionais e estrangeiros) e população local...


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > d7 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26242: Operação Grande Empresa, a reocupação do Cantanhez e a criação do COP 4, a partir de 12 de dezembro de 1972 - Parte III: Dois amargos Natais, em Caboxanque (1972) e Cadique (1973) (Rui Pedro Silva, ex-cap mil, CCAV 8352, Caboxanque, 1972/74), 14 de março de 2024

(**) Vd. poste de 3 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23224: A nossa guerra em números (16): A "força africana" em 1972: mais de 20 mil homens em armas, segundo o enviado especial do "Diário de Lisboa" ao CTIG
 
(***) Vd. postes de:

segunda-feira, 22 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25770: Notas de leitura (1711): Aqueles anos horríveis do ajustamento estrutural, fim do sonho coletivista: Dois ensaios de cientistas sociais suecos, um documento importante de Lars Rudebeck, amigo da Guiné (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Procura e acharás, sempre desejei chegar a este documento, bati a várias portas, nada. Entro numa loja de comércio justo, aqui está ele, entre outras publicações, o leitor paga o que quiser e mete na caixinha. Não coube em mim de contente, sou confesso admirador destes cientistas sociais suecos, de um rigor intocável. Dir-me-ão, desta síntese do olhar de Kenneth Hermele que esta sua visão sobre a quebra de alianças era algo de óbvio, fatal como o destino, não só houve falta de entendimento sobre o que devia ser uma política de reconciliação e perdão como se cavalgou nas nuvens, agravaram-se as dívidas externas, isto quando os patronos de Leste caminhavam paulatinamente para o definhamento, aquilo que Mikhail Gorbachev chamou de estagnação. Kenneth Hermele faz no seu ensaio um apelo a uma reformulação de políticas internas, como sabemos, era demasiado tarde. Vamos seguidamente dar a palavra a Lars Rudebeck, iremos cair em cheio na Guiné.

Um abraço do
Mário



Aqueles anos horríveis do ajustamento estrutural, fim do sonho coletivista:
Dois ensaios de cientistas sociais suecos, um documento importante de Lars Rudebeck, amigo da Guiné (1)


Mário Beja Santos

Entro numa loja de comércio justo ligada ao CIDAC, à procura de uma publicação sobre Cabo Verde e encontro a tradução portuguesa de um documento de que há muito ando no encalço: o que representou o ajustamento estrutural em três países africanos de língua portuguesa que foram insurgentes (esclarecedor documento de Kenneth Hermele) e a profunda análise que Lars Rudebeck faz do que significou o ajustamento estrutural numa aldeia a cerca de 100 quilómetros de Bissau, foi matéria de um seminário que decorreu na Universidade de Uppsala em maio de 1989, organizado por AKUT.

Cabe a Kenneth Hermele a grande angular: ajustamento estrutural e alianças políticas em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. Este último assinou em 1984 o Acordo de Nkomati, um pacto de não agressão com a África do Sul, abriu assim caminho para ser membro do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, era o fim da destabilização internacional e da mudança de um processo de transformação socialista numa economia de mercado. Logo nos primeiros anos da década de 1980, Moçambique estava confrontado com o serviço da dívida e, entretanto, o COMECOM não aceitou apoiar Moçambique, o país viu-se obrigado a alterar as suas alianças internacionais. Em Angola o processo foi diferente, o regime do MPLA quis evitar a imposição de condições estabelecidas pelo FMI e pelo Banco Mundial, mas a comunidade internacional dos doadores obrigou o país a apresentar o país de adesão ao FMI. O caso da Guiné-Bissau revelava-se dramático, o país tinha-se tornado quase completamente dependente da ajuda estrangeira para sustentar, não só a sua dívida externa, mas praticamente todo o aparelho de Estado. O trabalho de Kenneth Hermele põe uma questão basilar: em que aspetos é que o processo de ajustamento estrutural que Moçambique e a Guiné-Bissau estavam a viver, e que a Angola estava à beira de iniciar, tem relação com as fases anteriores à constituição da nação nestes três países, mais concretamente lança o seu olhar sobre as alianças políticas na luta da libertação.

Observa que durante estas lutas estabelecera-se uma aliança entre o campesinato e os nacionalistas. Os dirigentes vinham de um estrato social a que se pode chamar pequena burguesia, com sentimentos nacionalistas muito fortes. Era um estrato que tinha laços de família com a classe camponesa média, francamente apoiada pelos nacionalistas portugueses. Nas três colónias, os respetivos líderes procuraram criar frentes amplas para poder unir a ação política e militar, sob a consigna de que tinham direito a ser independentes. Juntaram grupos sociais com notórias diferenças: camponeses sujeitos a trabalho forçado, nacionalistas burgueses, agricultores e pequenos capitalistas, grupos religiosos e culturais que se consideravam excluídos, bem como alguns representantes do poder tradicional.

Após a independência, os vencedores reivindicaram que a luta de libertação conduzira a uma nova ordem social em que os camponeses tinham dado os primeiros passos no sentido da propriedade coletiva das terras e distribuição equitativa de bens e rendimentos. Só que as alianças do passado foram quebradas pelas estratégias de desenvolvimento adotadas pelos movimentos de libertação.

A coletivização da terra não era apreciada pela maioria dos camponeses, havia mesmo um estrato camponês que aderira à luta de libertação para readquirir as terras de onde os portugueses os tinham expulsado. Muitos chefes tradicionais também se sentiram traídos, eram permanentemente acusados de tribalistas e obscurantistas. Também nas áreas urbanas, a estratégia de desenvolvimento colocou as antigas alianças sobre grande pressão. Pretendia-se, no caso de Angola e Moçambique, uma estratégia industrial que visava o restabelecimento rápido dos níveis de produção do último ano colonial (1973). As necessidades do setor rural ficaram secundarizadas. Veja-se o exemplo de Moçambique onde a produção local de enxadas baixou a níveis muito inferiores do tempo colonial.

Em Angola e Moçambique, as frentes nacionais de libertação não estiveram para meias medidas, apresentaram-se como partidos marxistas-leninistas, promovendo a partir do topo a transformação socialista. Vinha muita inspiração da Europa de Leste, mas a implementação práticas das políticas foi basicamente da responsabilidade do que restava da burocracia portuguesa e de poucos africanos. Tudo somado, as políticas pós-independência vieram a significar uma nova aliança, uma partilha do poder entre o partido dirigente e a burocracia do Estado. Na Guiné-Bissau, deu-se claramente uma dissolução da aliança camponesa, pretendia-se um desenvolvimento numa dependência total em relação à ajuda externa, assim cresceu um aparelho de Estado que se tornou cada vez mais irrelevante para a maioria dos camponeses. Em Moçambique, a tentativa de modernizar a agricultura em cooperativas e machambas estatais foi um verdadeiro golpe para a antiga aliança. E a interferência externa (Rodésia e África do Sul) e a destabilização de RENAMO enfraqueceu ainda mais a aliança. Em Angola passou-se algo de idêntico, o MPLA acabou por se isolar pela falta de atenção à importância do setor camponês.

No início dos anos de 1980, o falhanço nos três países era evidente. Não chega pôr em cima da mesa as pressões externas e as mudanças na situação internacional, quebrada a aliança ampla, foi crescendo o apoio a uma economia de mercado. E Kenneth Hermele põe nova questão: qual o tipo de desenvolvimento capitalista que estava a ser promovido. Havia defensores do ajustamento estrutural que afirmavam que os programas de reforma não pretendiam ir mais longe do que lanças as bases do crescimento económico. Da observação deste cientista social, o capitalismo que se estava a promover não apresentava nenhum dos aspetos relevantes do chamados capitalismo milagre do Sudeste Asiático. Aí, a direção do Estado, reforma económica e social, incluindo reforma agrária, políticas de longo alcance promovendo a educação, por exemplo, constituíam uma condição prévia necessária para as fases posteriores do crescimento de exportação. Ora nada de semelhante estava a ser implementado na Guiné ou em Moçambique. Parece razoável concluir que aquilo que estava a ser criado através do ajustamento estrutural na Guiné-Bissau e em Moçambique era um capitalismo fraco e subserviente. Observa igualmente Hermele que no que dizia respeito à Angola e Moçambique, o objetivo final das políticas impostas era preparar a África austral para uma situação pós-Apartheid.

Em termos de conclusão, o autor refere que as alianças nestes três países passaram por três fases: luta de libertação apoiada por uma frente ampla; tentativa de modernização que falhou em parte devido a uma alteração de aliança entre os camponeses e as burocracias estatais e o partido líder; na terceira fase, com a imposição do pacote de política de ajustamento estrutural estava a ser criada uma nova aliança entre capitalistas e instituições internacionais de finanças e cooperação, estando as burocracias de Estado a desempenhar uma papel complementar independente.

E o autor dizia que não se estava a verificar qualquer desenvolvimento, nem capitalista nem socialista, na ausência de um aparelho de Estado que se baseasse numa aliança interna, havia uma tendência das agências doadoras para enfraquecer ainda mais as funções do Estado. A erosão da base política interna entre o campesinato guineense, por exemplo, destituiu o regime do apoio interno que teria sido necessário para poder resistir às condições impostas pelo sistema financeiro internacional. Concluiu o autor que as organizações não-governamentais, grupos de solidariedade e as agências de desenvolvimento deviam pôr em prática ações adequadas no sentido de fortalecer o poder de resistência interna. Mas que não houvesse ilusões, era a capacidade de Angola, da Guiné-Bissau e de Moçambique em estabelecer internamente alianças políticas novas que permitiria lançar em simultâneo as bases do desenvolvimento socioeconómico. E termina de forma taxativa: pessoas do exterior só poderão desempenhar um papel secundário; mas nós poderemos contribuir para certificar que os poderes ocidentais e as suas instituições não imponham a continuação do subdesenvolvimento e da dependência e que – pelo menos – se encontrasse resistência dentro do país.

Vamos seguidamente dar a palavra a Lars Rudebeck, vamos até uma tabanca guineense.

Kenneth Hermele
Lars Rudebeck
O antigo hospital militar nº241, imagem do Triplov, com a devida vénia
A casa comercial Taufick-Saad, imagem do Triplov, com a devida vénia
Fevereiro de 1965, o governador Arnaldo Schulz passa revista a uma unidade da Mocidade Portuguesa, no ato inaugural de uma escola, Arquivos da RTP, com a devida vénia
Nino Vieira e Luís Cabral na Suécia, 1973, imagem retirada do blogue Herdeiro de Aécio, com a devida vénia
Nota de 100 Pesos da Guiné-Bissau, emissão de 1975, reverso da nota na face está a efígie de Domingos Ramos

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 19 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25761: Notas de leitura (1710): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1868 e 1869) (12) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25705: Notas de leitura (1705): Recordações da guerra civil de Bissau, pelo então Vigário-Geral da Diocese, Padre João Dias Vicente (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Trata-se do testemunho de um responsável franciscano que viveu do princípio ao fim a guerra civil, acompanhou as conversações onde esteve envolvido Dom Settimio, assistiu às pilhagens e destruições, viveu debaixo de fogo, colaborou na ajuda humanitária, invoca com propriedade o acolhimento que as missões deram aos fugitivos de Bissau enquanto troavam os canhões, de um lado e do outro. Dir-se-á que não há neste apontamento de memória absolutamente nada de novo quanto aos factos militares, mas compreende-se que este religioso queria expor à nossa lembrança o esforço em prol da paz e da mitigação do sofrimento humano nesse período trágico, ainda não se sabe exatamente o número de mortos que provocou, só se conhece o balanço da perda de património que empobreceu ainda mais um país que continua à espera de ver a palavra desenvolvimento com expressão real no quotidiano.

Um abraço do
Mário



Recordações da guerra civil de Bissau, pelo então Vigário-Geral da Diocese

Mário Beja Santos

O Padre João Dias Vicente, que foi Vigário-Geral da Diocese de Bissau durante a guerra civil publicou as suas recordações na revista Itinerarium, publicação semestral de cultura publicada pelos franciscanos de Portugal, n.º 228, julho/dezembro de 2022, referentes à guerra civil.

Começa por nos dizer: “Marcou-me profundamente por vários motivos: nunca ter experimentado ao vivo a sensação inquietante de estar debaixo de fogo real, contudo o que isso significa de ansiedade, de revolta interior e de habituação ao máximo risco.”

Nem todos os dias houve guerra durante aquele período que foi de junho de 1998 a maio de 1999, quando Nino assinou a sua capitulação. Havia uma clara alternância de fogo violento e paragens promissoras de cessar-fogo, de acordo com os diferentes protocolos assinados por ambas as partes, e nunca respeitados. O palco central da guerra foi Bissau, troavam os canhões e a população habituou-se a fugir para fora da cidade e a regressar logo que as armas se calavam, temiam, justificadamente, ver as suas casas e pilhadas. Não esconde que reserva no seu testemunho o papel revelante da Igreja Católica (sobretudo do seu bispo, Dom Settimio Ferrazzetta) no esforço de fazer calar as armas e procurar uma solução dialogada para o conflito. Lembra-nos que houve três acordos de paz, mal eram assinados, pouco tempo depois desrespeitados: o da cidade da Praia, em 26 de agosto de 1998; o de Abuja, Nigéria, em 1 de novembro do mesmo ano; e o de Lomé, no Togo, em 17 de fevereiro do ano seguinte.

As hostilidades foram desencadeadas pela chamada Junta Militar em 7 de junho, nesse dia morreram em Brá o guarda-costas e o chefe do protocolo do Presidente Nino. A causa direta e próxima fora a destituição de Ansumane Mané do cargo de Chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas com o pretexto de estar implicado num negócio escuro de venda de armas aos separatistas do Casamansa. A Junta Militar revelou-se imediatamente eficaz, desencadeadas as hostilidades, Ansumane e as suas tropas garantiram o domínio dos postos militares mais decisivos: o quartel militar de Brá com os seus paióis de armamento; o aeroporto internacional de Bissau; e a estrada do aeroporto para Safim, única estrada para sair da capital até ao interior do país. Apercebendo-se da debilidade em que se encontrava, Nino apela à ajuda militar dos países limítrofes, virão tropas do Senegal e Guiné Conacri, aquele que foi a maior lenda da guerrilha não entendeu que estava a cometer o maior erro diplomático-militar de sempre.

O autor vai-nos dando conta de que se foi encontrar com Dom Settimio em Pirada e como se irão encaminhando até Bissau, o bispo começou logo diligências para a paz, conversando com os dois grupos em contenda, resultado nulo. Constituiu-se a Comissão de Cidadãos de Boa Vontade, era uma tentativa de ponte para o diálogo. O bispo conversa com a Junta Militar, esta exige a saída imediata das tropas estrangeiras. Regista-se fogo intenso das forças leais a Nino, alguns pontos de Bissau são bombardeados, a população foge, espavorida.

O bispo desdobra-se em reuniões, mas nesta fase o Governo manifestava-se ainda muito seguro de que tudo ia ser resolvido pelas armas. Nino é presidente numa capital semideserta, grande parte da população abandonou precipitadamente a cidade, uns foram para as missões próximas, os estrangeiros partiram para os seus países, iniciaram-se as pilhagens, parecia que se ia instalar o caos. Em 2 de agosto, o bispo manda abrir a Catedral ao público, outras igrejas seguiram-lhe o exemplo, queriam dar ânimo a quem sofria. Os ladrões não pouparam as instituições diocesanas, assaltaram os contentores com produtos variados de alimentação, materiais de construção destinados às missões, foi um saque quase total.

O autor conta detalhadamente como a Igreja procurou instituir uma ajuda humanitária eficaz. E dá-nos conta da evolução da guerra desde o cessar-fogo assinado em Cabo Verde até ao acordo de paz assinado em Abuja. No decurso das conversações, era argumento dominante da Junta Militar exigir a saída das tropas estrangeiras como condição para um acordo de paz definitivo, a parte fundamental recusava. E a guerra recomeçou em 9 de outubro, novas fugas da população com os sacos às costas. A 10, houve uma marcha pacífica de jovens e adultos desde Bissau até ao aeroporto. A 19, voltaram a vomitar fogo as armas pesadas. A 31, Nino decretou o cessar-fogo unilateral. Por essa altura, já quase todas as forças guineenses do Governo e uma parte significativa dos antigos combatentes se tinha passado para o lado da Junta Militar. Ansumane Mané concordou em respeitar uma trégua de 48 horas para que Nino verificasse a sua proposta de paz. As conversações prosseguiram em Banjul (Gâmbia), onde se deu o primeiro frente-a-frente entre Nino e Ansumane. Segue-se o acordo de paz de Abuja que estipulava a retirada total das tropas estrangeiras da Guiné-Bissau com o envio simultâneo de uma brigada de supervisão de cessar-fogo, a ECOMOG, o braço-armado da CEDEAO. A população começou timidamente a regressar às suas casas.

Segue-se a exposição sobre a evolução da guerra entre o acordo de Abuja até ao acordo de Lomé. Formou-se um Governo de Unidade Nacional e Francisco Fadul foi nomeado Primeiro-Ministro desse Governo. A guerra voltou a 31 de janeiro, pelas 19h30 caiu uma bomba sobre a varanda do refeitório da Cúria Diocesana, por milagre ninguém morreu ou se feriu. Seguem-se meses turbulentos, inesperadamente morre Dom Settimio. E assim se chegou aos acordos de Lomé, em 17 de fevereiro. Ansumane e Nino abraçam-se, há acordo sobre a saída das tropas estrangeiras. E temos agora a evolução da guerra desde este acordo em Lomé até à derrota final do Presidente Nino (período que vai de 17 de fevereiro a 10 de maio).

Com atraso significativo, tomou posse o Governo de Unidade Nacional, saíram as tropas estrangeiras, é publicado o relatório sobre a venda de armas que ilibou Ansumane e responsabilizou, sem margem para equívoco, a clique do Presidente Nino. Em março, começaram a ser desarmadas as tropas dos dois lados. O Conselho de Segurança da ONU aprovou a criação da Missão das Nações Unidas para o Apoio à Reconstrução da Paz na Guiné-Bissau (UNIOGBIS).

Inopinadamente, considerando a Junta Militar que o depósito de armas encontrado no aeroporto era a prova material de que Nino se recusava a aceitar que a sua Guarda Presidencial fosse desarmada recomeçou os bombardeamentos, à tarde as tropas da Junta Militar atacaram e venceram rapidamente os jovens militares (chamados os Aguentas) que defendiam o Palácio Presidencial. Depois de algumas peripécias, Nino pediu asilo político a Portugal, apresentou-se na embaixada portuguesa e assinou a sua rendição incondicional. Terminava a guerra civil e foi escolhido para Presidente da República interino o Presidente da Assembleia Nacional Popular Malam Bacai Sanhá. Tempos depois entrava-se numa nova onda delirante, era eleito como presidente um populista Kumba Yalá. A Guiné voltava a recuar.

Um relatório idóneo, foram acontecimentos que merecessem ser lembrados, compreende-se que um direto protagonista nas conversações, alguém que viveu ao lado de um bispo profundamente estimado pelos diferentes credos religiosos, quisesse deixar o testemunho do que viveu e sentiu.

Imagem icónica, mil vezes repetida, mostra o desaire das forças estrangeiras que vieram apoiar o Presidente Nino
Malam Bacai Sanhá, Presidente da Assembleia Nacional Popular, nomeado Presidente da República interino
Ansumane Mané e João Bernardo Vieira (Nino)
Cena da guerra civil, soldado leva um ferido às costas
Funeral durante a guerra civil
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Nota do editor

Último post da série de 28 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25696: Notas de leitura (1704): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1864 e 1865) (9) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 28 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25573: O Cancioneiro da Nossa Guerra (24): Os Gandembéis - Canto III, Estrofes de I a VIII (CCAÇ 2317, Gandembel, Ponte Balana e Nova Lamego, 1968/69)


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 8

Foto nº 9


Foto nº 10

Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (8 de abril de 1968 a 28 de janeiro de 1969) > Aspetos da brutal vida quotidianoa dos homens-toupeira, que tiveram de construir de raiz e defender, com unhas e dentes num curto espaço de tempo (inferior a nove meses), dois aquartelamentos, Gandembel e Ponte Balana, a escassos 3 km da fronteira com a Guiné-Conacri.  Total de ataques e flagelações sofridos: 372 (Fotos nºs 2 e 3).  

Não há, em todos os teatros de operações da guerra do ultramar / guerra colonial, nenhuma epopeia como esta.  Estes homens foram condenados pelo "deus da guerra" (Schulz) ao "suplício de Sísifo": uma missão completamente estúpida, suicida, absurda, inútil, reveladora do absoluto desprezo em relação à vida, ao valor e à dignidade do soldado português... 

Outro "deus da guerra" (Spínola), mais inteligente, e com visão estratégica, no mínimo sensato e  realista, e que dava valor à coragem, ao sofrimento e à lealdade dos seus homens,  percebeu que construir uma montanha na "autoestrada do Nino" (o "corredor de Guileje", o "corredor da morte", o "carrreiro do povo"...), a espinha dorsal de toda a cadeia logística do PAIGC, era provocar um braço de ferro, à partida sem vencedor à vista... Era uma questão de vida ou de morte para Nino e para os seus homens, razão por que infernalizaram a vida aos "gandembéis"...

A construção e defesa de Gandembel (e seu destacamento, em Ponte Balana) foi um sorvedouro de recursos (homens e material) e fez correr muito sangue, suor e lágrimas em 1968 ... Para quê ? Para nada!... A 28 de janeiro de 1969 as NT abandonam esta cruz da estação do calvário da Guiné. A Força Aérea irá arrasar tudo... Spínola, contrariamente ao seu antecessor, visitou pelo menos duas vezes os "gandembéis"...  Isto diz muito sobre a qualidade da liderança dos dois generais.

Embora a engenharia militar tenha fornecido algumas estruturas para a construção dos abrigos (Fotos nºs 5, 6 e 7), estes não era à prova de morteiro 120 mm (usado pela primeira vez aqui, em agosto de 1968), nem de canhão sem recuo: eram cobertos com troncos de cibe, chapa de bidão  e terra, como na maior parte das outras duzentas e tal guarnições espalhadas pelo território (Fotos nºs 8, 9 e 10) ... E as paredes laterais não eram de "cimento armado", como em Guileje (construído pelo BENG 447)... 

Felizmente, para os "gandembéis", o PAIGC tinha  maus artilheiros, analfabetos, incapazes de usar um aparelho de pontaria ou de fazer simples cálculos... Faziam fogo a "olhómetro", de preferência tiro direto com o canhão sem recuo... Melhoraram já  em 1973 e 1974 (contra Guidaje, Guileje, Gadamael, Copá, Canquelifá...), com os cubanos e os cabo-verdianos vindos das "academias militares" da União Soviética... 

Por outro lado, o abastecimento de água era feito no rio Balana, com bidões. Tomava-se banho no rio ou em bidões (Foto nº 1). Mas a messe de oficiais era de "cinco estrelas" (Foto nº 4).

Fotos do notável álbum de Idálio Reis e seus camaradas, editadas por L.G.


Fotos (e legenda): © Idálio Reis (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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1. Continuação da publicação de "Os Gandembéis", poema épico-burlesco, parodiando "Os Lusíadas", de autoria coletiva (mas com forte contributo do poeta João Barge, 1944-2010), escrito em 1969, que retrata a epopeia da CCAÇ 2317 em Gandembel e Ponte Balana (*), recolhido e reproduzido pelo nosso camarada e amigo Idálio Reis, engenheiro agrónomo reformado, ex-alf mil at inf da CCAÇ 2317, no seu livro "A CCAÇ 2317 na guerra da Guiné: Gandembel / Ponte Balana", edição de autor, s/l, 2012 (il, 250 pp.). (O livro é ilustrado por mais de meia centena de fotos dos arquivos do Idálio Reis e dos seus camaradas.)

O lançamento do livro, uma peça fundamental para a historiografia da guerra colonial na Guiné, foi feita feito no Palace Hotel, em Monte Real, em 21 de abril de 2012 , no âmbito do VII Encontro Nacional da Tabanca Grande.




Os Gandembéis > Canto III, Estrofes de 1 a VIII


I
Estas sentenças tais o velho honrado
Dizendo estava, quando abrimos
As malas e as fizemos ao sossegado
Vento, e do quartel temido nos partimos. (15)
E, como é já na guerra costume usado
A bandeira desfraldando, o céu ferimos
Dizendo: “Boa viagem”. E logo as viaturas
Fizeram as usadas roncaduras.

II
Passámos à Formosa Aldeia
Que das muitas bajudas assim se chama;
Das que nós passamos a primeira
Mais célebre por nome que por fama,
Mas nem por ser a derradeira
Se lhe avantajam quantas o Moura ama (16).
Ali tomámos todos um bom assento
Por tomarmos das terra mantimento.

III
Por Nhala passámos, povoada
De gente amiga, que ali vivia;
E de luz total sendo privada
Mesmo assim do turra se defendia.
Novamente nos lançámos à estrada
P’ra chegar a Buba, ainda de dia,
Onde ainda a Companhia não sabe
Se irá haver descanso ou a guerra acabe.

IV
Contar-vos longamente as perigosas
Cousas da estrada, que os homens não entendem.
Súbitas emboscadas temerosas,
Morteiradas que o capim em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de canhões, que o mundo fendem,
Não menos é trabalho que grande erro
Ainda que tivesse a voz de ferro.

V
Casos vi em que os rudes fuzileiros
Que têm por mestra a longa experiência
Não acreditarem casos certos e verdadeiros,
Mas julgando as cousas só pela aparência.
E os Comandos, com fama de guerrilheiros,
Só por puro engenho e por ciência
Se distinguiam quando formavam,
Porque nas armas aos demais se igualavam.

VI
Daqui fomos cortando muitos dias
Entre tormentas tristes e bonanças,
Na larga mata fazendo novas vias, (17)
Só conduzidos de árduas esperanças.
Com o turra tempo andamos em porfias
Que, como tudo nele são mudanças,
Poder nele achamos tão possante
Que passar não deixava por diante.

VII
Era maior a força em demasia
Segundo para trás nos obrigava,
Da estrada que contra nós ali se abria
Pelo poder da máquina que trabalhava.
Ó malvado Nino da porfia,
Que sempre estás onde a gente estava!
Em vão os tiros esforças iradamente
Pois nós não tememos a tua gente.

VIII
Desta parte descanso algum tomamos
E do rio fresca água, mas contudo
Nenhum sinal aqui da paz achamos
No povo, com nós outros quase mudo.
Ora vejam em que tamanha guerra andamos
Sem sair nunca deste viver rudo,
Sem vermos nunca nova nem sinal
Da nossa tão desejada terra natal.

(Revisão / fixação de texto: IR/LG)

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Notas de IR/LG:

(15) Abandono do aquartelamento de Gandembel (e do destacamento de Ponte Balana)  em 28/1/1969 e partida para Aldeia Formosa.

(16) Referência irónica ao capitão da companhia, que terá metido "baixa"

(17) Transferência para Buba, em 8/2/1969 onde a CCAÇ 2317  ficou, até 14/5/1969, a fazer segurança aos trabalhos de renovação da velha estrada Buba-Aldeia Formosa.

Lembra aqui o Zé TeixeiraZé Teixeira, da CCAÇ  2381 (Buba, Quebo. Mampatá e Empada, 1968/70, em comentário ao poste P25552 (*)

(... ) Quando fui a Gandembel pela primeira vez em meados de julho de 68, os abrigos já estavam construídos. Numa noite escura apontaram creio que onze canhões sem recuo em tiro direto a um ponto do muro em betão de um dos abrigos e conseguiram furar a parede. Em janeiro do ano seguinte fui com a minha Companhia Proteger a sua retirada. A CCaç 2317 saiu de Gandembel e foi fazer umas “férias” a Buba,  alinhando na dura missão de proteger a construção da nova estrada para Aldeia Formosa. A minha companhia alinhava na mesma tarefa. Foi duro. Uns meses que rebentaram com muita gente. A minha Companhia  chegou a estar reduzida a trinta e seis operacionais. Um Grupo de Combate." (...)