Mostrar mensagens com a etiqueta 1975. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta 1975. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25048: O segredo de...(40): Patrício Ribeiro, 76 anos: Angola, Quifangondo, 1975: uma das "minhas guerras" a que assisti ao vivo


Patrício Ribeiro, ex-grumete fuzileiro, Angola, 1969/72


1. Afinal, todos temos pequenos/grande segredos da tropa, da guerra e da Guiné (e de outros lugares do planeta) que em vida ainda não partilhámos, ou só contámos a alguma ou outra pessoa das nossas relações mais íntimas: o pai, a esposa, o filho mais velho, o amigo do peito, o camarada de armas que ficou nosso amigo para sempre... Ou às vezes nem isso... 

Há coisas que decidimos não contar à família nem aos amigos do peito... Há coisas que nem às paredes se confessa, como diz a cohecida letra de fado. São coisas "muito nossas" que até preferimos, nalguns casos, levar connosco para o caixão... Todos temos esse direito. 

Outras há que, com o passar dos anos, achamos que podem entrar "no domínio público", sem consrangimento, sem mágoa, sem ferir ninguém... Pode até ser um forma de fazer o luto (em caso de perda de alguém ou de alguma coisa muito preciosa para nós)..

Já aqui publicámos, no blogue, cerca de quatro de dezenas de postes na série "O segredo de...". Em 20 anos, dá uma média de 2 por ano. Mas o "confessionário" continua de portas abertas... 

Já aqui o dissemos, a propósito de segredos partilhados por (e segundo a ordem cronológica, com alguns a partilharme mas do que um segredo):

  • Mário Dias, 
  • Santos Oliveira, 
  • Luís Faria (1948-2103),
  • Virgínio Briote, 
  • Amílcar Ventura, 
  • Joaquim Luís Mendes Gomes, 
  • António Medina,
  • Ovídio Moreira,
  • António Carvalho,
  • Sílvio Fagundes Abrantes,
  • Amadu Djaló (1940-2015),
  • Antóno Graça de Abreu,
  • Augusto Silva Santos,
  • Ricardo Almeida,
  • Fernando Gouveia,
  • Vasco Pires (1948-2016),
  • Cláudio Brito,
  • Ribeiro Agostinho,
  • Mário Gaspar,
  • Domingos Gonçalves,
  • João Crisóstomo,
  • Victor Garcia,
  • António Ramalho
  • Manuel Oliveira Pereira,
  • Alcídio Marinho (1940-1921),
  • João (Candeias da) Silva (1950-2022)
  • Dionísio Cunha, 
  • José Ferraz de Carvalho, 
  • Jorge Araújo,
  • Demburri Seidi/Cherno Baldé, 
  • António Branquinho (1947-2023)

Seria uma pena que estes e outros camaradas levassem  para a cova os pequenos/grandes segredos contaram no nosso "cofessionário"... São histórias fabulosas que humanizam a guerra, que engrandecem os seres humanos que as protagonizam, e que nos tocam, fundo... 

Claro que algunas são como abrur a caixinha de Pandora... (Foi o caso, por exemplo, do Amílcar Ventura que teve  comentários... agrestes).

Este, que hoje trazemos a público, já foi dito em comentário ao poste P25035 (*). Mas merece ser recuperado e publicado, na montra grande do nosso blogue, nesta série...

Sobre o Patrício Ribeiro, convém lembrar:  nascido em Águeda, em 1947, cresceu em Angola, em Nova Lisboa (hoje Huambo), onde casou, viveu e trabalhou; ali fez a tropa como fuzileiro (1969/72). 

Ficámos a saber que veio para Portugal na véspera da independência; mas deu-se mal com a sua condição de "retornado": "africanista", decidiu ir viver e trabalhar, em 1984, na Guiné-Bissau; empresário, fundou uma empresa ligada à energia; agora, aos  76 anos está cá e lá, dedicando-se ao neto e à sua agricultura em Águeda mas também dando uma mãozinha ao filho que lhe sucedeu nos negócios... Aqui, em Águeda, sente-me mais confortável para falar do seu passado, como foi o caso há dias (*).

É autor da série "Bom dia desde Bissau", é um histórico do nosso blogue, para onde entrou formalmente em 2/1/2006: é nosso correspondente em Bissau, colaborador permanente da Tabanca Grande para as questões do ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau; mais de 130 referências no blogue..

 
O segredo de...(39): Patrício Ribeiro, 76 anos: Angola, Quifangondo, 1975: uma das "minhas guerras" a que assisti ao vivo (**)

Assisti e ouvi perto a artilharia durante muitos dias, da batalha do Quifangondo.

Ia trabalhar todos os dias a poucos quilómetros do Cacuaco.

Todos os dias a caminho do trabalho, passava junto de diversos guerrilheiros mortos, que durante a noite ali eram abatidos e recolhidos, durante o dia, pela tropa Portuguesa para a morgue, que eu visitava quase diariamente, a fim de ver quem chegava, pois poderia ser um amigo.

Havia ex-tropa portuguesa de ambos os lados da batalha, alguns vieram mais tarde para Portugal, onde constituíram família.

Nos últimos dias do fim do mês de outubro de 1975, passavam por mim os carros blindados com cubanos para a linha da frente, que saíam dos navios às escondidas, ou não, da tropa portuguesa. A saída era pela linha do comboio, do porto de Luanda.

Até que no dia 30 de outubro de 1975, resolvi não morrer naquela estrada e naquela guerra, já que por vezes disparavam para todos os lados, até para o meu carro, quando diariamente lá passava e tinha que mostrar um cartão de filiado em qualquer movimento, o que eu não queria.

Esta foi uma das "minhas guerras" a que assisti ao vivo.




Angola > Luanda > Cacuaco > Quifangondo  (o Kifangondo) 

"Esta obra é de autoria do museu nacional de história Marco Histórico do Quifangondo, fotografada por Abraão Fernando Figueira, 01:02, 5 September 2015, numa exposição escolar realizada pela escola Flor viva. Mostra os heróis que lutaram para libertação nacional de Angola." Fonte (e legenda): Wikimedia Commons (imagem editada, com a devida vénia, pelo Blogue Luís Greaça & Camaradas da Guiné...)

(...) No local da batalha, uma colina com vista para o rio Bengo, foi construído o Memorial da Batalha de Quifangondo, como um tributo a todos aqueles que participaram na luta de libertação nacional. O memorial foi projectado pelo escultor Rui de Matos e inaugurado em 2004 pelo presidente de Angola, José Eduardo dos Santos" (...) (Fonte: Wikipedia > Quifangondo)

 _____________

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24074: (De) Caras (195): Em 1975, cinco anos depois, saí do Hospital Militar Principal com as marcas da mina A/P, armadilhada, que me mudou completamente a vida: estava destroçado, cego, sem a mão direita e com dois dedos na mão esquerda (Manuel Seleiro, 1º cabo, Pel Caç Nat 60, DFA, São Domingos, Ingoré e Susana, 1968/70)


Foto nº 1A > Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Çaç Nat 60 > 1968/70 > Março de 1970 > 1º cabo Seleiro à porta da sua morança. Faltavam-lhe dois meses para acabar a sua comissão de serviço... Mas só sairá da tropa em 1975... Uma mina vai-lhe mudar alterar completamente a sua vida e os seus sonhos...


Foto nº 1 > Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Çaç Nat 60 > 1968/70 > 1970 1º cabo Seleiro à porta da sua morança, "cinco dias antes do acidente" (sic), com a mina que lhe roubou a vista e as mãos. (Claro que não foi em "acidente", foi "em combate"...)


Foto nº 2 > Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Çaç Nat 60 > 1968/70 > s/d >  Esta foto foi tirada junto à porta da arrecadação do velho quartel de S. Domingos. A foto mostra três minas A/P em situações diferentes. A primeira está fechada e pronta a ser acionada. A segunda está aberta, vê-se a dinamite e o mecanismo. A terceira está aberta,  vê-se todo o mecanismo desmontado."


Foto nº 3 > Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Çaç Nat 60 > 1968/70 > s/d >  A DO-27 na pista de São Domingos. Foi numa avioneta destas que veio a  enfermeira paraquedista (Maria) Ivone Reis (1929-2022):  foi ela quem assistiu os dois feridos da mina, em 11 de março de 1970, o Seleiro e o Guerra, na evacuação Ypsilon.

Escreveu o Hugo Guerra, hoje cor ref DFA: 

(...) "Comecei a levantar-me e senti o estrondo infernal, o sopro que me projectou de costas, o sangue quente a escorrer na cara e os gritos dele a dizer que estava morto… Mas não estava. Os nossos homens trataram-nos o melhor possível, pediram as evacuações e fizeram uma macas com bambus e camisas. Tinha medo de perder a consciência e passar para o outro lado.

Aguentei, em choque, até chegarmos ao HM 241 em Bissau e o que mais me agradava naquele desespero todo era continuar a ouvir o Seleiro a dizer que estava morto. Se ele se calasse, sabia que podia ter perdido um amigo. (...) (*)


Fotos (e legendas): © Manuel Seleiro (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. O Manuel Seleiro passou a ser nosso grã-tabanqueiro desde ontem. Já o devia ter sido há muitos mais anos... Mas só agora calhou falar com ele, ao telemóvel.  Senta-se  à sombra do nosso poilão, sob o nº 870 (**). E, como é da praxe, vamos publicar a seguir um texto dele, justamente aquele em que  relata as circunstâncias dramáticas da explosão da mina A/P que lhe roubou aos de vida e  os seus melhores sonhos. É um texto que um dia tem de figurar na antologia dos nossos melhores postes. Aqui reproduzido, com a devida vénia...

Quarta-feira, 10 de março de  2010 > Pel Caç Nat 60 Guiné 68/74 -P61: Aquele dia (Dez de Março de 70!)...

Quartel de S. Domingos. Sector Militar, de São Domingos: Algures nas matas da Guiné, junto a fronteira do Senegal. Decorria então o ano de 1970 na Guiné.

Destacamento de São Domingos, sete e trinta da manhã, o Pel Caç Nat 60 sai com destino à fronteira do Senegal, com o objectivo de pintar os marcos que faziam a divisão da fronteira Guiné/Senegal...

Às dez e meia da manhã, volvidos os primeiros vinte quilómetros, já em plena mata, há uma chamada de atenção, alguma coisa se passa. Os homens passam a palavra até chegarem à minha secção. Sou informado que, na frente, foi detectada uma mina anti-pessoal. Os homens ficam nervosos.

Quando cheguei ao local da mina, o alf mil Hugo Guerra 
[foto à esquerda ] nforma que vai tentar levantar a mina, Decorridos alguns minutos pergunto ao alf mil Hugo Guerra como iam as coisas, ao que ele me responde que estava nervoso.

O alf mil Hugo Guerra dá a ordem para que a mina seja desactivada. Tomei o lugar dele junto da mina.
Procede-se à segurança do local para que as coisas decorram sem incidentes. Mando afastar os homens a uma distância razoável, processo que requer muita atenção.

Procede-se à desminagem do local, o momento de muita tensão... O passo seguinte é desmontar o sistema da mina, que é constituido por dinamite e o detonador, este o mais perigoso, que requer particular cuidado...

O inevitável aconteceu, a mina estava armadilhada e explode. Gritos, confusão, leva algum tempo até os homens se recomporem.

No momento tudo ficou em silêncio depois as vozes de algums soldados Que se aproximavam. Senti umas mãos que me seguravam, era o enfermeiro José Augusto, que me prestava os primeiros socorros, colocava os garrotes para parar as hemorragias, o soro e uma injecção para as dores.

Alguns homens preparavam uma maca, com as camisas e uns paus para me transportar, fizeram cinco quilómetros comigo através da mata serrada. O alf mil Hugo Guerra sai ferido com alguma gravidade…
Como estava relativamente perto de mim foi atingido por estilhaços.

Pelo Rádio foi pedido ao quartel de São Domingos para mandarem viaturas ao nosso encontro para chegar mais rápido à pista onde deveria estar uma avioneta à espera. 

Assim foi, quando chegámos à pista já lá estava avioneta, fui entregue à enfermeira paraquedista (quero aqui prestar a minha homenagem a estas Mulheres, em particular à enfermeira Ivone Reis; estas Mulheres muitas vezes corriam riscos quando tinham de socorrer os feridos em pleno combate)...

Meia hora depois chegam à Base Aérea e fui levado para o Hospital Militar de Bissau. Já no hospital, foram feitas as primeiras intervenções cirúrgicas, provavelmente devido às anestesias perdi a noção do tempo, e do local onde me encontrava.

Num momento de lucidez ouvi passos, que se aproximavam perguntei onde me encontrava. Foi me dito que estava no hospital de Bissau, perguntei quando ia para Lisboa. A resposta foi... "amanhã".

No dia seguinte 
 [quinta-feira, 12 de março de 1970 ]pela manhã, tive a visita do Governador da Guiné, o general António de Spínola. Que deixou palávras de consolo e rápidas melhoras, e um elogio pelo dever de servir a Pátria...

Nesse mesmo dia à noite saí da Guiné no avião militar. Cheguei a Lisboa no dia treze de Março por volta das cinco da manhã, caía uma chuva miudinha.

As macas eram muitas pois este avião militar fazia o transporte de Angola, Moçambique, e Guiné, Em Lisboa as ambulâncias faziam o percurso de noite para não chamar a atenção dos lisboetas.

Nesta altura já estava internado no hospital Militar, na Estrela. Serviço de cirurgia plástica. Quero aqui informar que logo que dei entrada neste serviço, entrei em coma... Só decorridos quinze dias recuperei a consciência.

A partir daqui foi um desencadear de acontecimentos, uns bons e outros maus. Descobri que não tinha uma das mãos, o braço esquerdo estava com gesso, e tinha os olhos com pensos, este foi o primeiro choque que sofri.

Os dias iam passando lentamente, até descobrir que estava cego... Mas o mais grave desta situação, a minha família não sabia que eu estava gravemente ferido no Hospital Militar, os serviços do Exército não comunicaram o facto à minha família. Os meus pais tiveram a informação por um amigo meu que por essa altura prestava serviço no Hospital Militar.

O tempo decorrido da minha chegada a Lisboa, até os meus pais terem conhecimento foi de 23 dias
... Nesse  ano de setenta completei vinte e quatro anos, estava na flor da idade, andei de serviço em serviço durante mais quatro anos [no total, 5 anos, mais 20 meses no TO da Guiné, de julho de 1968 a março de 1970 ]. 

Em 1975 sai do hospital Militar com a bonita recordação: cego, sem a mão direita e com dois dedos na mão esquerda. Moral baixa, estado psicológico baixo. O Hospital Militar não dispunha de Psicólogos... (***)

PS - A data que consta no texto acima é a minha versão do acidente. A versão do alf mil Hugo Guerra aponta para o dia 13 de março de 1970. (*) 
[foto à esquerda: O Seleiro e o Guerra ].

Entrada para o Serviço Militar: 18 de abril de 67. Partida de Lisboa: 12 julho 1968 para a Guiné. Acidente na Guiné 10 de março de 1970. (****)

Manuel Seleiro, 1º cabo, DFA,

[Revisão / Fixação de texto / Negritos / Notas entre parênteses retos: LG ]
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3518: História de vida (18): Evacuado duas vezes e meia...(Hugo Guerra, ex-alf mil, cmdt Pel Caç Nat 50, 55 e 60 (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70); hoje cor ref, DFA

(**)  Vd. poste de 
16 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24072: Tabanca Grande (543): Manuel Seleiro, ex-1º cabo, Pel Caç Nat 60 (São Domingos, Ingoré e Susana, 1968/70), natural de Serpa, DFA, sofreu cegueira total e amputação das mãos, ao levantar e desativar um engenho explosivo, durante uma operação, em 13/3/1970... Senta-se à sombra do nosso poilão, sob o nº 870.

(***) Último poste da série > 3 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24033: (De)Caras (194): O mecânico-desempanador Mota, da CCAÇ 3535 (Zemba, Angola, 1972/74), mais conhecido por "Matraquilho" (Fernando de Sousa Ribeiro)

(****) Também pelas minhas contas, e de acordo com a própria narrativa do Seleiro, o "acidente" foi a 11 de março de 1970, uma quarta-feira... Evacuados para o HM 241, em Bissau, os nossos camaradas partem em avião militar, para Lisboa,no dia seguinte, dia 12, à noite. Chegam a Figo Maduro, na sexta-feira, 13, às 5 horas da manhã.

sábado, 31 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23935: Antologia (88): Cabo Verde: história das suas forças armadas, constituídas a partir de um núcleo de antigos combatentes do PAIGC (excertos de artigo de Pedro dos Reis Brito, "Revista Militar", n.º 2461/2462, de fev / mar 2007)

1 Apesar de tudo, Cabo Verde está também no coração de muitos de nós; os pais de alguns de nós foram lá expedicionários durante a II Grande Guerra; temos camaradas naturais de lá, que estão inscritos na Tabanca Grande; um ou outro dos membros da Tabanca Grande fez lá também a sua comissão de serviço militar,  nalguns casos estiveram lá alguns meses, ou em trânsito para o CTIG, sobretudo no início dos anos 60...  

Cabo Verde é um país da CPLP sobre o qual temos falado pouco... Ou sobre o qual tem havido pouco que falar, aqui no nosso blogue, apesar da presença histórica de Portugal na região e nas ilhas desde meados do séc. XV. E pode vir a ser, num futuro próximo, um parceiro da NATO.

Bem, na realidade temos 470 referências sobre Cabo Verde, o que não é nada mal.  Temos falado pouco de Cabo Verde dos anos 60 para cá, como antiga colónia portuguesa e depois como país lusófono independente.  

Temos falado muito pouco sobretudo da sua discretíssima independência (mas nem por isso "pacífica", dados os interesseses geoestratégicos em jogo, com o PAIGC , pós-Amílcar Cabral, na altura claramente pró-soviético).  

Como temos falado pouco do golpe de estado de 'Nino' Vieira em 14 de novembro de 1980 que deu a machada final no "mito" da unidade Guiné-Bissau / Cabo Verde, tão acarinhado por Amílcar Cabral e um punhado de cabo-verdianos do seu partido e aceite, a contra-gosto, por muitos guineenses (alguns dos quais saudaram efusivamente o golpe, que teve consequências irreversíveis).

Não sou dos saudosistas que pensam que Cabo Verde hoje bem poderia ser uma região autómoma de Portugal  e estar plenamente integrada na União Europeia, tal como as Canárias, os Açores ou a Madeira. A escolha (política) do povo cabo-verdiano é/foi soberana.   

A memória é curta, pelo que é bom recordar  que "a 19 de Dezembro de 1974 foi assinado um acordo entre o PAIGC e Portugal, instaurando-se um governo de transição em Cabo Verde. Este mesmo Governo preparou as eleições para uma Assembleia Nacional Popular que em 5 de julho de 1975 proclamou a independência." (Sítio oficial do Governo de Cabo Verde > O arquipélago > História )

Mas nós aqui temos a natural curiosidade, como antigos combatentes,  em saber o que se passou até à independência, e mesmo depois sob o regime único do PAIGC / PAICV.  E vamos continuar a fazê-lo dentro do respeito do princípio da não-ingerência, dos antigos combatentes da guerra colonial,  na vida interna de Cabo Verde e da Guiné-Bissau (dois países que nos são queridos, além das demais antigas colónias portugueses, hoje países independentes). Além disso, a "morabeza" impõe...


2. Excertos de um artigo publicado na Revista Militar, n.º 2461/2462, fevereiro/março de 2007, "Os Quarenta Anos das Forças Armadas de Cabo Verde", do então tenente-coronel Pedro dos Reis Brito, na reserva, entretanto falecido (1953-2014).

Segundo o semanário Expresso das Ilhas, de 23 de agosto de 2015, este oficial das Forças Armadas de Cabo Verde que atingiria o posto de posto de coronel "entrou para a corporação após ter concluído o estágio de Comissário Político de Companhia, em junho de 1975 em Cuba"... Trata-se, pois, de um dos primeiros elementos a integrar as Forças Armadas da República de Cabo Verde.

Voltando à nossa fonte, "de julho a agosto de 1975, desempenhou as funções de comissário político da Companhia Manuel Monteiro do Comando da Primeira Região Militar, de agosto de 1975 a maio de 1976, desempenhou as funções de comissário político no Centro de Instrução Político Militar do Tarrafal; em 15 de maio de 1976 foi promovido ao posto de segundo-oficial, para a 4 de Janeiro de 1978, ser promovido ao posto de tenente" (...) e em 1995 foi promovido ao posto de capitão, tendo entretanto concluído, em novembro de 1995, "a licenciatura em Economia, por correspondência, na Universidade de Havana, em Cuba".

Era então tenente-coronel quando escreveu este artigo para a "Revista Militar", portuguesa. Desse artigo vamos selecionar com a devida vénia, alguns excertos com factos relevantes para a história das Forças Armadas de Cabo Verde. Vão em itálico e separados por parênteses curvos, os subtítulos são nossos.


As Forças Armadas, uma instituição que orgulha os cabo-verdianos

(...) Celebrar os quarenta anos de existência das Forças Armadas é, de facto, revisitar marcos históricos da Nação Cabo-Verdiana, alguns perdidos no tempo ou nos recônditos da memória, outros mais presentes. Para além da comemoração ser um dever da instituição é, simultaneamente, um tempo de festa - pelas realizações e êxitos conseguidos - e de análise e reflexão com vista a corrigir os erros, projectar melhor o futuro e agir com maior coerência no presente.
 
Trinta e um anos depois da conquista da sua independência, Cabo Verde - este país ilhéu e saheliano do Atlântico médio - deixa o grupo dos PMA (Países Menos Avançados) e ascende à condição de país de desenvolvimento médio. Mérito é, facto, do povo caboverdiano, mérito dos sucessivos governos e mérito das instituições, pequenas e grandes, que enformam o estado e a sociedade. O nível de desenvolvimento atingido nestas dez ilhas é fruto de trabalho árduo e de muitos sacrifícios, (...)


Nesses anos de construção sobressai uma instituição que orgulha os cabo-verdianos e que acaba de completar 40 anos: as Forças Armadas de Cabo Verde. A história das Forças Armadas, assim como a formação da Nação, precede a independência e confunde-se nas trilhas da luta emancipadora com o doloroso, sacrificante e honroso caminhar para a nova aurora.

O Núcleo Fundador das Forças Armadas de Cabo Verde - ver listagem completa no final do artigo - por circunstâncias e vicissitudes diversas - diria, quase, por imponderáveis do tempo histórico - é constituído em meados dos anos sessenta do Século XX e lá do outro lado do oceano.

Realmente, a necessidade de dar inicio à luta armada em Cabo Verde levou a direcção do PAIGC - movimento libertador das Ilhas e da Guiné - no fragor da luta a mobilizar um punhado de jovens de que faziam parte estudantes, camponeses e trabalhadores emigrantes, juntamente com outros militantes anteriormente mobilizados, e enviá-lo a Cuba, onde, em plena clandestinidade e nas montanhas dessa ilha, permanece cerca de dois anos, recebendo preparação militar que seria, posteriormente, continuada na União Soviética.

É a 15 de janeiro de 1967, ainda em Cuba, finda a preparação e em vésperas de partir que, perante Amílcar Cabral, a quase totalidade dos membros do Grupo, individualmente, prestou um juramento solene: “de fidelidade à luta pela independência de Cabo Verde 
[sic 
 ]  fosse em que circunstâncias fosse. Esses jovens, então, afirmaram-se, dispostos para o sacrifício supremo se necessário para se poder alcançar a liberdade da Pátria, mas também pelo seu desenvolvimento e engrandecimento”. (...)

Hoje, é com orgulho que se constata que se cumpriu o Juramento. Por isso, em 1988, o Governo de Cabo Verde no primeiro gesto de reconhecimento da importância deste facto, escolheu e fixou o dia 15 de Janeiro como “Dia das Forças de Cabo Verde” (...)

Em 1975 é nomeado Ministro o Primeiro-Comandante Silvino da Luz e o Primeiro-Comandante Agnelo Dantas nomeado Comandante-Geral das então Forças Armadas Revolucionarias do Povo (FARP).


 Núcleo Fundador das Forças Armadas de Cabo Verde 

Por conseguinte, retomando, a trajectória iniciada nos anos sessenta, feita com perseverança e determinação, pode-se afirmar que, com certeza, se cumpriu, também, o destino. De facto, o Núcleo Fundador das Forças Armadas, após ter-se empenhado duramente em todos os sectores e frentes da luta pela independência, onde alguns dos seus integrantes tombaram no campo da honra, nas vésperas da independência nacional e nos anos que se seguiram, assume activamente a organização das Forças Armadas nacionais, integrando, preparando e dirigindo os jovens voluntários que massivamente se prontificaram em defender o país e prosseguiram edificando as Forças Armadas caboverdianas.

E não se limitaram à esfera militar, tendo-se registado uma vasta e qualitativa participação aos mais altos níveis de actividade do Estado de membros desse Núcleo. Assim, depois da proclamação da Independência Nacional, a Lei de Organização Politica do Estado atribui ao Ministério da Defesa e Segurança - criado pelo Decreto-Lei n.º 4/75 de 23 Julho - a responsabilidade pela defesa da independência, da soberania e integridade territorial, sendo nomeado Ministro o Primeiro-Comandante Silvino da Luz 3 e o Primeiro-Comandante Agnelo Dantas4 nomeado Comandante-Geral das então Forças Armadas Revolucionarias do Povo (FARP).

É o Decreto n.º 26/75 de 20 de Setembro, que cria o Comando-Geral das FARP e Milícias e o Comissariado Político Nacional das FARP, tendo este último à frente o Comandante João José Lopes da Silva. É esta, pois, a liderança - apoiada por vários oficiais, ainda sem postos definidos e sem patentes - que no dia-a-dia vai erigindo o novo “edifício militar” cabo-verdiano, em paralelo com a construção do novo Estado.

(...) Ao longo desses quarenta anos várias foram as gerações de cabo-verdianos que de uma forma ou de outra, viriam a dar o seu indispensável contributo para a formação das Forças Armadas, seguindo as peugadas do Núcleo fundador.  
 
(...) A sua estrutura orgânica sofreu adaptações aos momentos e contextos históricos vividos no país, mas como reestruturação de fundo registam-se: na década de oitenta, a aprovação de legislação estruturante, designadamente a Lei Orgânica, o Estatuto do Oficial e do Sargento, as Normas de Promoção e o Regulamento de Disciplina Militar (RDM); na década de noventa, que começa com introdução de novas missões para as Forças Armadas no quadro da Nova Constituição, a aprovação de leis decisivas destacando-se a Lei das Forças Armadas, a lei que define o estatuto da condição militar, a lei que define a organização global e efectivo das FA, o Estatuto dos Militares, o Estatuto Remuneratório, o Código de Justiça Militar e a revisão de várias outras normas jurídicas, onde sobressai o RDM; no período actual, convencionalmente enquadrado na reforma das Forças Armadas, a elaboração de importantes estudos conceptuais: o Projecto da Reforma das Forças Armadas e o Projecto de Conceito Estratégico da Defesa Nacional; e a adopção de dispositivos conceptuais e legais: as Grandes Opções do Conceito Estratégico da Defesa e Segurança Nacional, a Lei que estabelece o Regime Geral das FA e outros documentos importantes para organização sistémica e integrada da defesa nacional.

Se nos anos noventa se assistiu à criação da Guarda Costeira, composta por Unidades Navais e Unidades Aéreas e à formação da primeira Companhia de Fuzileiros Navais, depois de uma experiência que não vingou em finais dos anos setenta, este período que a instituição vive ressalta a sua reestruturação por forma a poder dar melhor resposta no que respeita, também, à segurança interna.

É assim que surge a Guarda Nacional, que será integrada essencialmente por Unidades de Policia Militar, de Fuzileiros Navais e de Artilharia e a Guarda Costeira, reorientada para os objectivos essenciais da sua constituição que são: a vigilância e fiscalização dos espaços marítimo e aéreo, bem como a sua preparação para acções de busca e salvamento, ao mesmo tempo que se forma a primeira unidade especial de reacção rápida para o enfrentamento das ameaças, sobretudo à segurança interna, de carácter mais violento.

Antes de abordar as realizações de vulto no seio das Forças Armadas, no transcurso de tempo decorrido, importa dizer que a perenidade da instituição deve muito ao seu papel que tem desempenhado e à sua utilidade na sociedade. Realmente, não obstante estar vocacionada e lhe seja cometida pela Constituição a “… defesa militar da república contra qualquer ameaça ou agressão externa.”, e ainda para missões com maior afinidade com a responsabilidade referida, aliás assumida em demais leis que enformam o corpo normativo da instituição, elas têm sabido dar uma contribuição de valor em várias outra frentes do desenvolvimento.

O testemunho da sua presença começa nas campanhas de arborização e protecção do meio ambiente e vai até ao apoio às populações em tempos de crise. No concernente a realizações, propriamente ditas, deve-se registar que o crescimento da instituição castrense cabo-verdiana foi acompanhado de um grande esforço no sector da formação de quadros. Desde o início as Forças Armadas preocuparam-se com a formação dos seus efectivos no domínio técnico-militar e no cultural, independentemente da sua condição de prestação de serviço, visto que a formação do homem é sempre um investimento no desenvolvimento.

É gratificante encontrar pelo país fora, nos mais diversos ramos de actividade, profissionais de níveis e especialidades mais díspares formados pelas Forças Armadas ou graças à sua acção e apoio. Eles são professores e músicos, médicos e enfermeiros, engenheiros e marinheiros, técnicos de construção civil, etc. Dificilmente, o nível de desenvolvimento e o estádio de organização seria atingido se não tivéssemos contado durante esses 40 anos com a colaboração internacional.

Com efeito, o crescimento das Forças Armadas, desde do primeiro instante teve na cooperação técnico-militar um elemento fundamental e o leque de apoiantes é extenso: países como a antiga União Soviética, os Estados Unidos da América, Portugal, a França, a Angola, a Alemanha, China, Cuba e Senegal têm sido excelentes parceiros nas várias etapas da vida das FA, tendo o Governo, através do Ministro da Defesa, na década de noventa do século passado, em sinal de reconhecimentos e agradecimento, agraciado algumas das suas representações aqui no país, com a Medalha Militar de Serviços Relevantes.

Mas a presença internacional das Forças Armadas não se tem limitado à cooperação, no plano operacional as tropas cabo-verdianas, nos últimos anos têm tido uma participação em vários exercícios internacionais, o que evidencia o bom nível de preparação das nossas tropas no total de treze exercícios militares multinacionais, no quadro da CPLP (...).

As Forças Armadas cabo-verdianas completaram, no passado dia 15 de Janeiro 40 anos de existência. A efeméride vem sendo comemorada desde o mês de Novembro, tendo o Programa iniciado com a cerimónia de condecoração de militares e civis que participaram com brilho no Exercício da NATO “STEADFAST JAGUAR 2006”, pela Ministra da Defesa Nacional.

O ponto alto da celebração aconteceu na Cidade da Praia no dia 14 em que foram homenageados os Membros do Núcleo Fundador da instituição. O Acto Central do 40.º aniversário das Forças Armadas de Cabo Verde foi assinalado no passado dia 14 de Janeiro - Domingo, presidido por Sua Excelência o Presidente da República, Pedro Verona Rodrigues Pires. O acto contou, também, com a presença do Primeiro-Ministro, Dr José Maria Pereira Neves.

Durante a cerimónia, carregada de simbolismo e emoção, foi homenageado o Núcleo Fundador das Forças Armadas, que recebeu do Chefe do Estado-Maior das FA a Medalha Estrela de Honra das Forças Armadas. A medalha colectiva foi recebida, em representação do Núcleo, pelo 1.º Comandante Agnelo Dantas, membro do núcleo, em seguida ela foi oferecida às Forças Armadas, sendo colocada no Estandarte das FA pelo Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas, Pedro Pires, então Líder do Núcleo Fundador.

Os membros do Núcleo presentes (14) receberam as correspondentes insígnias representativas da condecoração colectiva. Usaram da palavra no acto o 1.º Comandante Agnelo Dantas - ex-Chefe do Estado-Maior das FA, em nome do Núcleo para agradecer a homenagem recebida, a Ministra da Defesa Nacional, Dra Cristina Fontes Lima, o Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Coronel Antero Matos e o Presidente da República, Pedro Pires.

A cerimónia terminou com um desfile das Forças em parada, que integrou a Infantaria da Guarnição do Estado-Maior das FA, a Polícia Militar, a Artilharia de Campanha, a Defesa Aérea e a Banda Militar da terceira Região Militar e os Fuzileiros Navais da Guarda Costeira, num total de 300 militares. 

De ressaltar que enquadrado no Programa de comemorações que se prolongará até 18 de Março - Dia da Unidade “Justino Lopes”, do Comando da 3.ª Região Militar - foram realizados: o Exercício Militar “Zézé Aguiar”, levado a cabo nos Concelhos de Santa Catarina e São Miguel, na ilha de Santiago; os Jogos Militares Nacionais, em que a equipa da 3.ª Região Militar se sagrou vencedora; palestras alusivas à data em vários estabelecimentos de ensino do país; paradas militares nas sedes das 1.ª e 2.ª Regiões Militares; e encontros entre militares no activo e Combatentes da Liberdade da Pátria, na sua maioria militares e/ou Membros do Núcleo Fundador. (...)


MEMBROS DO NÚCLEO FUNDADOR DAS FORÇAS ARMADAS DE CABO VERDE

Primeira Unidade Combatente de Cabo-verdianos

1. Alcides Évora (Batcha)
2. Afonso Gomes*
3. Agnelo Dantas
4. Amâncio Lopes
5. António Leite
6. Armando Fortes
7. Armindo Ferreira
8. Estanislau João Ramos
9. Fernando dos Santos Rosa
10. Honório Chantre
11. Jaime Mota*
12. Joaquim Pedro Silva (Barô)
13. José Anselmo Corsino
14. Júlio César de Carvalho
15. Manuel Jesus Gomes
16. Manuel João Piedade
17. Manuel Maria dos Santos
18. Manuel Monteiro
19. Manuel Pedro dos Santos
20. Maria Ilídia C. Évora
21. Nicolau Pio*
22. Olívio Melício Pires
23. Osvaldo Azevedo
24. Pedro 
[Verona Rodrigues ] Pires**
25. Silvino Manuel da Luz
26. Sotero Nicolau Fortes
27. Wlademiro Carvalho*.

* Já faleceram (até à data da publicação do artigo)

** Líder do Grupo

*** (LG) Falecidos depois da data do artigo (2007): (i) Joaquim Pedro Silva (Baró) (2019)

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Linsk / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG. ] 

[ Não nos compete contestar ou apoiar a tese do autor, que já é de resto institucional, sobre a data de 15 de janeiro de 1967, em que um punhado de jovens cabo-verdianos jurou lutar pela libertação de Cabo-Verde, na presença de Amílcar Cabral, em Cuba,  no final do seu treimo e formação político-militares. O assunto já é do domínio da história e do seu contraditório, não devendo, por isso,  servir para degradar ainda mais  as relações entre antigos militantes do PAIGC e,  nomeadamente, entre guineenses e cabo-verdianos. ]
___________

Nota do editor:

Último poste da série > 22 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23905: Antologia (87): Apresentação do livro de Daniel dos Santos, "Amílcar Cabral: um outro olhar", pelo eng.º Armindo Ferreira, na Praia, em 5/9/2014

Vd. também poste de 20 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23899: Antologia (86): Excertos da entrevista de Daniel Santos, ao "Expresso das Ilhas" (15/9/2018): Amílcar Cabral e a "falsificação da história"

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22983: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé): Parte IV: A morte da ave-real mensageira, que já não canta, no triângulo de vida de Canhánima, Kru-ghaak! Kru-ghaak! Banenguél wilti! (... "A árvore da vida floriu!")



Guiné > Guoleghal, a ave peralta do conto de Canhánima ... Grou-Coroado (Balearica Pavonina),  
conhecido na Guiné como ganga...Em inglês, "Black Crowned-Crane".

Ganga (crioulo)
Balearica pavonina
Grou-coroado (português), N’ghanghu (balanta), Eghatai (fula)
Comp 100 cm | Env 190 cm

Ao contrário das aves apresentadas neste guia, a ganga é rara e localizada. Ocorre nos vales dos principais rios do país, de forma isolada ou em pequenos bandos, frequentando zonas de água doce pouco profunda, incluindo bolanhas. Devido à sua beleza e comportamento é frequentemente capturada e mantida em cativeiro. Está ameaçada de extinção.

Fonte: Guia das aves comuns da Guiné Bissau / Miguel Lecoq... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Monte - Desenvolvimento Alentejo Central, ACE ; Guiné-Bissau : Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau, 2017, p. 19).


Foto (e legenda): © Armando Pires (2010).Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 



Cherno Baldé > Com cerca de 19/20 anos, em 1989, em Kiev,  na Ucrânia, que então integrava a antiga URSS. Recorde-se que, ainda criança, a família deslocou-se de Canhámina para Fajonquito, em 1968, onde o pai era empregado da Casa Ultramarina.  Até à independênxia, passava os dias enfiado no quartel de Fajonquito. Aqui  aprendeu as primeiras letras.  Sairá depois para Bafatá, onde fez o ensino secundário. Entre 1986 e 1989, foi estudante universitário, na antiga União Soviética, primeiro na Moldávia e depois na Ucrânia (1986-1989). Na sequência da guerra civil que estlou na Guiné, em 7 de junho de 1998, opondo Ansumane Mané e 'Nino' Vieira (e seus aliados senegaleses), o Cherno Balde e a família refugiarm-se em Fajinquito. Uma parte dos textos que temos vindo a republicar foram escritos "durante o periodo que passei em Fajonquito a quando do conflito politico militar de Junho 98. O regresso forçado a minha terra fez revivar a memória do passado."


Comentário do editor LG: 

Cherno, à medida que vou lendo e relendo as tuas memórias deste período de 1974/75,  elaboradas numa escrita tão elegante quanto, ao mesmo tempo,   dramático (pelas sombras negras que evocas e que atravessam a história da tua Pátria, durante muito tempo - para ti, menino e moço - Sancorlã e o seu coração vital, Fajonquito / Canhámina), vou-me dando conta que o deserto do Sahará, física e simbolicamente,  vai progressivamente tomando conta da África negra outrora subsahariana (e, a norte, claro, o sul do mediterrâneo, Espanha, Portugal)... E a tua Canhámina,  r0deada de sagrados poilões, e embora protegida durante a guerra colonial por "forças" que tu chamas misteriosas, acaba por sucumbir, em 1974/75 pela maléfica conjugação da acção dos homens e da natureza... É o luto da tua infância perdida, que fizeste, ou que ainda estás a fazer ou, se calhar, que nunca chegarás a fazer...

Há algo de profundamente pungente (, e que nos amarfanha o coração),  nestes teus textos quando falas desse mundo perdido da tua infância, e que bem pode ser sintetizado  pela expressão "Adeus, Fajonquito"...



1. Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte IV (*)


(ix) Gueloghal ou a ave real mas também mensageira

Ainda hoje, a primeira coisa que nos chama a atenção quando visitamos a localidade de Canhámina é a sua mata de poilões bem no centro da aldeia. Ė impressionante.

Contam que, em tempos idos, quando a relação dos homens com a natureza ainda era muito próxima e viva, aqui habitava uma miríade de aves de diferentes espécies e a sua vozearia era audível a quilómetros de distância. A mais importante, dentro do imaginário colectivo era, sem dúvida, a Gueloghal ou ave real, cuja presença testemunhava a sacralidade e proeminência do lugar no contexto do mundo espiritual dos homens da época, onde tudo era importante e tudo fazia sentido.

- Kru-ghaak! Kru-ghaak! Banenguél wilti ! Maudhô yannô to dourôh, banenguél wilti ! Si bhô uri men ganda, banenguél wilti ! Si bo may men ganda, banenguél wilti … (1)

A Gueloghal, para além de se distinguir pela sua beleza e graciosidade que lhe valeram o epíteto de ave real, também, era conhecida como ave mensageira, dotada de capacidades de transportar mensagens de partes incertas e/ou de revelar aos homens, acontecimentos vindouros. A sua presença nesse lugar misterioso se revestia de uma auréola simbólica e ancestral de confiança na probabilidade de uma vida de paz e tranquilidade. Não se deve admirar muito pois, todos os povos que chegaram até aqui, vindos do interior do continente, sem excepção, vieram na vã esperança de encontrar a paz e a tranquilidade a que ansiavam.


(x) Canhánima. capital do regulado de Sancorlã, parte do reino de Firdu, fundado por Alfa Moló


Quem terá sido o primeiro habitante de Canhámina? Uma pergunta difícil de responder porquanto, os actuais habitantes de Sancorlã seriam capazes de jurar, a pés juntos, que foram os seus antepassados e com provas provadas dentro do esquema mitológico habitual do tipo: “Era uma vez, a família de caçadores do grupo dos nossos antepassados que, após um longo percurso, em perseguição de um animal de caça, acabaram por desembocar neste local milagroso…”

O que, porém, não deverá suscitar muita controvérsia, é o facto de que estas paragens já eram habitadas quando os Fulbhé (fulas) chegaram com as suas manadas de gado, vindos de Macina (Mali), de Tekrur (Senegal) ou Futa-Djalon (Guiné-Conacri).

Conta-se que, no seu périplo pela região na primeira metade do século XIX, El-Adj Omar, imperador do Sudão, teria passado por aqui a caminho de Futa-Djalon acompanhado do seu djatigui (2) e futuro rei de Firdu, Alfa Moló a quem ele teria dado todas as terras situadas entre as bacias dos rios Gâmbia e Geba, mais concretamente até ao local designado Dandum (Dandum Cossará?), à condição que as pudesse retirar aos “infiéis” reis Soninquês, claro. Despediram-se após ter recebido das mãos do grande homem de letras a promessa de que a sua aventura seria coroada de êxito.

De regresso a casa, Alfa Moló convocou os grandes de entre os Fulbhé [, fulas,] e disse-lhes:

- Como todos sabem, desde que vivemos entre os Soninquês [ou Saracolés], não somos mais os donos das nossas vacas, das nossas ovelhas nem das nossas próprias mulheres, por isso, vamos combatê-los e acabar com os seus abusos de poder.

Os grandes de entre os Fulbhé após terem escutado e, cheios de medo, responderam:

- Nós não vamos combater os Soninquês e tão pouco iremos ajudar aquele que o irá fazer.

Então o Alfa Moló levantou-se em toda a sua altura e, sacudindo o fundilho das calças, disse a frase que ficaria para sempre gravada nos anais da história épica do reino de Firdu:

- Se não me ajudarem a combatê-los, então ajudar-me-ão a fugir.

E foi assim que tudo começou, Alfa Moló e os seus apoiantes atacaram os Soninquês e, com o apoio decisivo dos Almamis de Futa-Djalon, acabariam por conquistar a região e instalar o reino de Firdu (Fuladu), repartido em pequenos regulados entre os quais o de Sancorlã que ele confiou aos seus aliados locais (Samba Shábu?) e que escolheram para capital a localidade de Canhámina. (3).


(xi) O sagrado triângulo da vida de Sancorlã / Canhánima


Na lógica e submundo do homem e da consciência tradicional africana, nada acontece por acaso, tudo se justifica e se fundamenta em fórmulas simples e ao mesmo tempo complexas, e neste caso concreto de Canhámina / Sancorlã, conta-se que a origem da força e do poder local se devia à conjunção de determinados factores de ordem mística e que, por conseguinte, a perda daquela força e do poder, verificada mais tarde (1974), se deveu a violação do princípio regulador do equilíbrio ou pacto inicial estabelecido, que começou com a penetração de elementos estranhos ao meio, entrando nesse leque tudo o que veio a ligar-se com o processo da dominação colonial, da submissão e da penetração do sistema mercantilista da produção e comercialização (borracha, coconote, amendoim etc.); de elementos novos de sujeição, de opressão e alienação cultural e espiritual que se lhe seguiram os passos, onde os impostos de capitação e a balança dos comerciantes eram os elementos mais nocivos dentro do sistema de exploração e empobrecimento das populações, terminando com a entrada silenciosa e criminosa dos guerrilheiros do PAIGC que transformaram o recinto dos poilões num campo de tortura e de exterminação dos próprios filhos de Sancorlã.

Conta-se que, antigamente, da mata de poilões situada no centro de Canhámina, descia uma linha de força para sul até a floresta de palmeiras (surumael), situada nos limites do regulado e no meio da qual se encontrava uma nascente cujas águas abasteciam a população da aldeia, estando ligada, por sua vez, à bolanha, (prolongamento da bacia hidrográfica do rio Farim-Canjambari).

Surumael (matagal) representava o ângulo feminino do triângulo de Canhámina onde se praticavam não só a produção do arroz nas terras baixas mas também todos os rituais femininos ligados a educação e/ou reprodução social (cerimónias de casamento, fanados etc.).

De Surumael, seguindo sempre o percurso da bolanha para poente até à distância de três km, estava situado o terceiro ângulo ou o complexo masculino, Djunkoré, formado, por uma extensa área alagada durante a estação das chuvas e no meio da qual se encontrava um grande lago bem no centro da bolanha.

As populações das aldeias mais próximas e as aves pescadoras vinham aqui encontrar os peixes que subiam com as águas do rio Farim. Também aqui davam de beber as grandes manadas de gado (vacas, ovelhas, cavalos) que faziam a fama da região, acompanhadas de crianças nuas e barulhentas, com a flauta numa mão e a varra noutra.

Na margem esquerda do lago Djunkoré encontrava-se um poilão bem alto e que, durante o período nocturno, irradiava uma luz florescente provocando o efeito bômina (claridade), que era visível a uma grande distância. Djunkoré funcionava como o refúgio dos homens e das aves, onde se praticavam as cerimónias e rituais masculinos. Todas as gerações passadas fizeram-se homens neste espaço mítico e verdejante.

Deste ângulo subia outra linha de retorno à aldeia, formando assim uma espécie de triângulo, o triângulo de vida de Canhámina. O conjunto formava um ambiente natural propício para a vida animal, em particular das aves selvagens. Mas, também constituía o centro da vida económica, social e cultural da aldeia e seus arredores.



Guiné > Região de Bafatá > Sector de Contuboel> Carta de Colina do Norte (1956) > Posição relativa do regulado de Sancorlã, e povoações de Fajonquito (com Canhámima, a leste, na carta de Tendinto, não disponível "on line") e, junto à fronteira com o Senegal, Cambaju e Lenquemembé.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)

E, numa escala maior, reproduzindo fielmente o triângulo de Canhámina, a organização social e política do regulado, também, se apoiava em três pilares ou áreas geográficas (diwal): 

  • a área de Canhámina (ângulo sudoeste) (carta de Tendinto, não disponível "on line");
  • a área de Lenquebembé / Cambaju (ângulo noroeste)  (carta de Colina do Norte);
  • e a área de Panambo / Kerwane (ângulo nordeste) [ já no Senegal ou fronteira (?), carta de Tendinto, não disponível "on line" ];

e, cada uma das quais gozando de uma certa autonomia.

Esta divisão administrativa fomentava muitas rivalidades, algumas das quais ainda hoje subsistentes, mas também era factor de concorrência e de dinâmica criativa que permitia manter a necessária coesão social e política assim como a chama guerreira do regulado.

Todavia, a sucessão de Alfa Moló na segunda metade do Séc. XIX, não viria a ser nem bem sucedida e muito menos pacífica, obrigando ao seu sucessor, o intrépido Mussá Moló, a disputar não somente o trono com outros pretendentes dentro da família, como fazer face a pretensões autonomistas dos pequenos regulados em que estava dividido o reino de Fuladu, (com particular incidência naqueles cuja liderança era chefiada por Fulas-Forros, antigos suseranos e pouco inclinados a aceitar a vassalagem vis-a-vis dos Fulas-pretos cujo poder representava Mussá Molo), sob o olhar atento dos Almamis de Futa e ainda a presença cautelosa mas insidiosa das potências europeias (os Portugueses a partir de Farim e Geba, e os Franceses a partir do Senegal) que cobiçavam a região meridional do Firdu. (4).


(xii) Os portugueses e os seus aliados fulas

Nestas circunstâncias, os pequenos regulados Fulbhé do nordeste e leste Guineense tinham que escolher entre submeter-se à tirania de Mussá Molo, apoiado subrepticiamente pelos Franceses, ou aliar-se aos Portugueses. Assim nasceu a aliança de interesses entre os Fulas e Portugueses que, tudo somado, pareciam distantes e sem quaisquer interesses em comum.

Porém, esta aliança fortuita não estava isenta de algumas contradições. Os Fulas, de um lado, precisavam dos Portugueses para se proteger das ameaças e razias constantes dos homens de Mussá Molo mas, sendo muçulmanos, eram portadores de um inevitável “proselitismo religioso” que estava na base da sua libertação e do seu poder conquistado perante os Soninquês.

Os portugueses, por seu turno, precisavam de aliados no interior onde não conseguiam chegar para fazer valer as suas pretensões para lá do Geba mas, também, tinham na bagagem a Bíblia e o compromisso da salvação de almas perdidas para justificar as suas conquistas de além-mar.

Mas tarde e, sempre que se sentiriam aflitos, os portugueses não hesitariam em recorrer aos seus aliados muçulmanos do interior (Fulas e Mandingas) para reprimir os povos guerreiros “animistas” do litoral Guineense mas, logo que se sentiam minimamente aliviados da pressão, se apressavam a afastá-los destas zonas para não espalhar a sua indesejada influência religiosa.

Com Teixeira Pinto e seus auxiliares muçulmanos, os portugueses fecharam o capítulo da conquista e pacificação (?) do território da Guiné no início do século XX, impondo de seguida, a todos os habitantes da Guiné, a obrigação do pagamento de impostos. Com estes, veio a necessidade de produzir excedentes comerciais abrindo, desta forma, uma porta de entrada a produção do amendoim que, juntando-se a colecta da borracha, se transformariam, durante muito tempo, nas actividades obrigatórias de toda a região do interior.

Com o florescimento do comércio nos anos 40 e 50, houve a necessidade de abrir vias de acesso e de ligação com as zonas portuárias de Farim e Bafatá. As medições feitas determinaram que a estrada tinha que passar no meio da mata de poilões de Canhámina, que seria o ponto de convergência das três estradas (Cambaju ao norte, Bafata ao sul e Farim a Oeste,). 

Esta foi a primeira abertura (ferida) no triângulo de Canhámina, o primeiro sinal inquietante da mudança dos tempos, que abriu as portas para a penetração de elementos estranhos no círculo de vida de Sancorlã.


(xiii) Fajonquito, "guarda-costas" de Canhánima


Com o intuito de preservar Canhámina da invasão do novo mundo e das suas consequências inevitáveis, Fajonquito serviu de escoadouro e aldeia satélite para canalizar todos os elementos que não se enquadravam no pacto de equilíbrio do mundo antigo. Foi assim que as casas comerciais que queriam instalar-se em Canhámina, foram empurradas para lá, a três quilómetros a oeste a fim de preservar o triângulo.

Foi assim que, pelas mesmas razões, tanto a escola portuguesa (1964) assim como a primeira companhia de tropas metropolitanas (1965) enviada para reforçar o regulado com o início da luta para a independência, ficaram pouco tempo na aldeia, tendo sido, de seguida, transferidas para Fajonquito. 

Era preciso manter o equilíbrio do pacto, tanto assim que, pese a vontade de o fazer, os guerrilheiros do PAIGC nunca conseguiriam penetrar no triângulo e atacar Canhámina, o coração de Sancorlã, mesmo desguarnecida de tropas. Eram desviados para longe por uma força misteriosa.


Mas, nem tudo correu tão bem como se pensava, e o mal já estava feito e pouco a pouco assistir-se-ia ao desmoronar da vitalidade do sistema que vigorara até ali. 

O primeiro sinal de alarme foi a diminuição drástica do barulho das aves e das chuvas, também. As espécies mais inteligentes simplesmente tinham desaparecido dos poilões de Canhámina, entre as quais a famosa Gueloghal. 

Em seguida, veio um outro alarme do sudoeste com a extinção da luz de Djunkoré e do seu lago que parecia inesgotável. O velho poilão florescente, completado o seu ciclo de vida, tinha cessado as suas actividades de faroleiro para as aves viajantes.

Por fim, as mulheres, alarmadas, vieram informar que os olhos da fonte de Surumael tinham secado e já não corria água da nascente. Também, os macacos (babuínos, pára-quedistas, etc.) que espantavam as crianças no seu interior, já não viviam no matagal. 

Era o fim do pacto de equilíbrio? Parecia incrível, e os olhos virados para Canhámina não encontravam nenhuma resposta. Decididamente, os ventos da história tinham mudado de direcção e com esta viragem, acontecia o fim de um ciclo histórico e, por coincidência, também climático.

(xiv) O fim da aliança dos portugueses com os fulas


Tudo parecia combinar para acelerar as mudanças. Em 1974, aconteceria o improvável. Os portugueses, cansados de ver seus filhos morrer longe da sua terra natal, por uma causa cada vez mais difícil de defender, tinham descoberto uma nova pátria, mais pequena desta vez mas, assim mesmo, a pátria mãe, abandonando a guerra nos territórios do ultramar com o seu calor infernal e seus insuportáveis mosquitos. E numa coluna como nunca dantes visto, levaram consigo todo o equipamento de guerra. Canquelifá… Gabu…Canjufa…Pirada…Canjadude… Piche…Bafatá…Bambadinca…Farim…Guidaje, tudo.

As milícias, eternas sacrificadas, voluntárias da sua própria desgraça, num repente incompreensível, se pasmaram na vã gesticulação de mãos vazias. Adeus, camaradas, nada se pode fazer, é o virar de uma época. Os tempos mudam e os homens também.

Com a conquista da independência, os guerrilheiros do PAIGC, qual exército de Gengis Cã, silenciosa e furtivamente instalaram-se nos portões de Canhámina bem no centro dos poilões, tecendo paciente e meticulosamente a sua teia de morte, desafiando insolentemente os deuses de Sancorlã, completando a missão histórica que Amílcar Cabral lhes tinha legado: 

“A sociedade fula é do tipo vertical, em cima estão os régulos, no meio os Djilas ambulantes e, em baixo, os camponeses. Entre os vários segmentos sociais, uma coisa os une fortemente, são contra a luta armada…”

Enfraquecida pela guerra que quase esvaziou as suas aldeias, ferida mortal e traiçoeiramente pela abdicação dos seus aliados, Sancorlã não conseguiu reagir atempadamente ao infortúnio que se abateu sobre ela e, em menos de dois anos completou-se a destruição (decapitação) das suas forças vivas e da sua elite dirigente, encurralada, fragilizada e justamente vitimada. 

O mundo aplaudia a Guiné-Bissau independente, pais onde não havia lugar para aqueles que tinham fraquejado. O acordo de Argel, uma quimera e, não se esqueçam: ”Nem toda a gente é do povo”.

(xv) O martirológio dos valorosos fulas, fuzilados, ou apodrecendo nas masmorras do PAIGC, em Bafatá, Bambadinca, Farim


Todos os valorosos que não quiseram pactuar com o novo regime e eram demasiado orgulhosos para fugir dos seus ex-inimigos, entregaram seus peitos às cordas de nylon dos comissários políticos de PAIGC e mais tarde as suas vidas, fazendo a viagem sem regresso para os cárceres de Bafatá e Bambadinca. As justificações teóricas e práticas não faltaram. As festas também. “Páa-nô-uni! Páa nô mamáa… Páa-nô-uni, Pa-nô-mamáá, Panó terráá…”.

Em Fajonquito, ainda continuamos durante muito tempo, a pescar e a nadar no lodo do que restava do rio Farim/Canjambari e, sem pudor, ao sabor da brisa, mudamos também de camisola e hino. Continuamos a pedir as armas mas já não eram contra os canhões mas contra os colonos e seus aliados. Os heróis de mar não tinham aguentado tão bem em terra firme. 

Os peixes também, assim como os ex-soldados, para se adaptarem ao novo clima, se metamorfosearam em coisas pequenas e escuras escondidas na imundície da lama das bolanhas, escorregadios como o sabão chinês que invadiu os nossos mercados.

Alguns realizaram a proeza de, em tempo recorde, arrastando seus bubus brancos, transformar-se em Marabus de esquinas e mesquitas com salmos e cuspo na testa, pedindo a perdão dos nossos pecados colectivos. Outros passaram as fronteiras. Mas, muitos foram os que morreram sufocados nas prisões de Farim, brigando por escassos graus de cereais crus. Os deuses estavam a ouvir? Aláau…akbaar!

Os tempos, verdadeiramente, tinham mudado e nós vivíamos ou melhor sobrevivíamos sem dar por isso. Aconteceu exactamente como no poema ecológico de Júlio Roberto (5):

- Onde se encontra o matagal?... Destruído!
- Onde está a água, o lago e o poilão?... Desapareceram!
- Onde estão os valorosos de Sancorlã?... Morreram!

Bissau, Junho de 2010. (**)
____________

Notas do autor

(1) Canto das aves mensageiras “Guelodhé” em língua fula: A árvore da vida floriu! Ao velho que tinha visitado as terras altas, informamos: A árvore de vida floriu! Se estiver em vida que nos informem! Se não estiver em vida, que nos elucidem! A árvore da vida floriu de novo!

(2) Djatigui – Anfitrião, palavra de origem incerta utilizada em quase todas as línguas de África do oeste.

(3) Crónicas guerreiras dos reis de Firdu (Fuladu)

(4) Ver René Pélissier: Historia da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegambia. (1841-1936), vol. I e II, Imprensa Universitaria, Editorial estampa, Lisboa, 1989.

(5) Carta do chefe Seattle (Índio) em 1884 ao grande chefe branco de Washington, inserido no poema ecológico de Júlio Roberto

_____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série:

8 de fevereiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22979: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé): Parte III: O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado

7 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22976: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: A chegada dos guerrilheiros, outrora "bandidos", agora "heróis da libertação da Pátria"...A (mu)dança das bandeiras... Os meus novos amigos, balantas...

6 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22973: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Os sinais de uma mudança anunciada, os recados vindos do Oio e a delegação que voltou de mãos a abanar

(**) Excertos do poste de 30 de Junho de 2010 >Guiné 63/74 - P6661: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (16): Canhámina, 1974: o fim do triângulo da vida e do poder do regulado de Sancorlã

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22979: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé): Parte III: O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado

 

 


Mapa geral da antiga província  portuguesa da Guiné (1961) > Escala: 1/ 500 mil > Posição relativa de Fajonquito, Canhámina e Cambajú, setor de Contuboel, na fronteira norte com o Senegal.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)



Cherno Baldé > Com cerca de 19/20 anos, em 1989, na Ucrânia, que então integrava a antiga URSS. Recorde-se que, ainda criança, a família de Canhámina para Fajonquito, em 1968, onde o pai era empregado da Casa Ultramarina.  Até à independênxia, passava os dias enfiado no quartel de Fajonquito. Aqui  aprendeu as primeiras letras. Sairá depois para Bafatá, onde fez o ensino secundário. Entre 1986 e 1989, foi estudante universitário, na antiga União Soviética, primeiro na Moldávia e depois na Ucrânia (1986-1989).


1. Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte III (*)



(vii) Um, dois, três!... Um, dois, Três!... À esquerda!... À esquerda!... Quem somos nós?! Somos pioneiros!...


Estamos no ano de 1975, alguns meses após a independência. Só agora começamos a compreender todo o tamanho do trama em que estamos metidos. Pessoalmente, estou na fase da readaptação de uma nova vida.

Não é fácil para mim, sobretudo, ter de voltar à comida de farinha de milho preto. De manhã vou à escola e à tarde cuido do nosso gado na companhia de outros miúdos. As dificuldades são de vária ordem mas, na memória da criança,  não há lugar para a saudade.

Não é fácil para os outros também. Os antigos serviçais do quartel  de Fajonquito  estão a morrer lentamente, inexoravelmente. O primeiro foi o Sadjo, coitado, com a sua enorme barriga e a gordura acumulada ao longo da sua vida de cozinheiro, debaixo do sol, não conseguia obter o mínimo para sustentar os filhos e as suas três mulheres. Resultado, morreu. Sem jeito para mendigar, sem forças para trabalhar a terra, passava dias a fio metido no mato, escondido, a cogitar milagres. Além do mais, sofria de diarreia constante devido a fome e a mudança do regime alimentar.

Depois, foi a vez do Mamadu, profissão, ex-cozinheiro. Depois foi o Samba, profissão, ex-padeiro. O Maudhô Uri, esse, conseguiu safar-se trabalhando como mecânico de velocípedes. Por pouco tempo.

Tcherno!... Tcherno Adulai!... Adulai shall!...

Ė a minha avó que me vem acordar. Todos os dias é a mesma coisa. Ela insiste de que a porta do meu quarto deve estar aberta de manhã cedo, antes da primeira oração do dia, altura em que a sorte nos bate à porta. Apesar de tudo, ela sabe que não pode entrar no meu quarto, pois o estatuto de circunciso me protege. Fica-se à porta a cacarejar. A contra-gosto levanto-me para ir lavar o rosto. Não é por causa dela, é que hoje temos um desafio de futebol contra a equipa de Canhámina. Tento encontrar, na confusão do quarto, a minha escova de dentes.

−  Menino, levante-se! Olha que os teus colegas já passaram na estrada e chamam por ti dizendo: Tchernó!... Tchernó…

Era inventiva a minha avó, os alunos em marcha para Canhámina, na verdade, clamavam: 

−  Um, dois, três!... Um, dois, Três!... À esquerda!... À esquerda!... Quem somos nós?! Somos pioneiros!... Quem somos nós?! Somos pioneiros!...

Rapidamente, meto os calções, meto as sapatilhas e agarro a camisa indo ao encalço dos colegas. Já estão longe e tenho que correr sem parar. Felizmente é um percurso já habitual e a minha vida é feita de corrida. Entro no pelotão pouco antes da última subida para a aldeia.


(viii) O rabo de um macaco pode ser muito comprido 
mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado


Em Canhámina, esperava-nos um espectáculo desolador. Em pleno centro da aldeia e debaixo de um poilão gigante, estavam agrupadas algumas pessoas formando um círculo, ao meio se encontrava um homem relativamente jovem, amarrado por trás, com as cordas de nylon penetrando na carne dos braços inchados, o peito todo bombeado para a frente.

Era o chamado “peito de pomba”, método preferido dos Comissários do PAIGC. Tinha sido preso no posto de controlo da fronteira com o Senegal. Via-se, pelo aspecto do corpo e pelo sangue seco nas têmporas e no rosto,  que estava assim havia muito tempo e tinha levado porrada a valer. Da multidão, alguém lhe sussurrou na língua local:

−  Diga que tu és! Diga que tu és! Senão ainda te matam, palerma!

Como não reagia, o homem levou ainda com uma coronhada na cara ensanguentada que o derrubou ao chão. Levantou-se com dificuldade mas levantou-se pois, ele era um homem e devia continuar a sê-lo enquanto tivesse o mais leve sopro de vida no seu corpo, é o que lhe ensinaram desde a mais tenra idade. Olhando, desta vez, para os seus torcionários, falou com a boca a escorrer sangue, em língua Fula:

−  Eu sou!..


O Comissário perguntou-lhe:

− Tu és o quê?
−  Eu sou! − respondeu.
−  Tu és da FLING, não é? −  sugeriu o Comissário.
−  Eu sou, sim!.. sou isso mesmo. Isso que você disse.

Finalmente, ele tinha confessado o seu crime. Todos acabam por confessar. O Comissário, cuspiu para o chão o resto do tabaco que tinha na boca e, com desdém, ordenou que o levassem dali. Levaram-no para o acampamento dos guerrilheiros, ali, um pouco metido na mata que circundava a aldeia. Mesmo regressados a casa, estes, por força do hábito, ainda se sentiam melhor e mais seguros entre as árvores como os animais selvagens, com as suas inseparáveis Akas na mão.

Um grupo de curiosos, na maioria crianças, acompanhou o cortejo. Nós seguimos para o campo de futebol, situado ao lado do acampamento militar.





No terreno, frente a Canhámina, ganhamos o jogo sem grandes problemas mas, em vez da satisfação habitual,  estava invadido por uma tristeza vinda de não sei onde. O meu espírito ainda não se tinha libertado do choque do que tinha presenciado. Assaltavam-me a memória muitas coisas que não me permitiam acompanhar a alegria dos colegas. Estes, na corrida de regresso a casa, gritavam, transformando as palavras do prisioneiro em slogan de vitória:

−  Eu sou!... Eu sou aquilo!... Eu sou isso mesmo!... Eu sou o que você disse!... − .  E riam, desgraçadamente.

Ao chegar perto do cruzamento, procurei a sombra de um poilão e, com o rosto virado para a entrada principal de Canhámina, fiquei durante alguns minutos a olhar para a aldeia que, alguns anos antes, fora o símbolo da coragem e do poder de Sancorlã. 

Esta era a terra do meu pai, também, onde recebeu o baptismo e foi circuncidado. Alguma coisa me roía por dentro. A sabedoria popular nos ensinou que: "O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado".

No contexto da vida de Fuladu, a história de Canhámina é invulgar e toca a todos os habitantes do antigo regulado, pequenos e grandes. Uma História breve, colorida de enigmas e que teve um fim trágico.

Cherno Baldé

Bissau, Junho de 2010  (**)


[Revisão, fixação de texto, adaptação, subtítulos, para efeitos de publicação neste poste: LG]

(Contimua)
___________

Notas do editor:

(*) Vd.postes anteriores da série


7 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22976: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: A chegada dos guerrilheiros, outrora "bandidos", agora "heróis da libertação da Pátria"...A (mu)dança das bandeiras... Os meus novos amigos, balantas...