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sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26212: (Ex)citações (431): Ainda o caso do nosso saudoso António da Silva Baptista (1950-2016), o "morto-vivo": nas vésperas do "verão quente de 1975" era herói da literatura de cordel nas feiras e romarias do Norte



Fotogranma de vídeo da RTP Arquivos  > Programa: Memórias da Revolução: Soldado António Silva Baptista (passou na RTP, em 2 de junho de 2015; duração: 1'13''). Foto: LG (2024)
 

1. Em junho de 1975, nas vésperas do "verão quente de 1975", nas feiras e romarias do Norte,  o nosso querido António da Silva Baptista (1950-2016), o "soldado morto-vivo", era herói da literatura de cordel... 

Em junho de 1975, nas romarias, a sua história, ao lado de outros dramalhões,  era vendida em folha de jornal. de grande formato, com o título "Dor, Lágrimas e Alegria", ao preço de 5 escudos (o equivalente, a preços de hoje, a 1 euro; no vídeo, que é de 2015, a 69 cêntimos)...Com direito a lágrimas de dor e alegria,  à mistura com  a música de acordeão...

Sabemos como foi o princípio,  meio e fim (*)... Menos de um ano depois, em junho de 1975 ele já era uma lenda: feito prisioneiro do PAIGC em 17 de abril de 1972, e trocada a sua identidade com outro canarada (o António Ferreira, 1950-1972,  que esse, sim, foi efetivamente umas das vítimas mortais da brutal emboscada do Quirafo), só foi libertado em setembro de 1974  (por troca de prisioneiros entre as NT eo PAIGC)... 

Em junho de 1975 a sua história, memso mitificada, já era conmhecida e os cantadores ambulantes de feiras e romarias já ganhavam uns cobres com ela, narrando o seu drama: prisioneiro, incomiunicável,  sem ninguém saber que  estava vivo, fez parte das partilhas do que sobrou da Guiné... Entretant0o, já tinha  sido enterrado em 1972 (por troca de identidade com o António Ferreira) ...Voltaria à sua terra, Moreira da Maia, para espanto dos vivos, e iria visitar a sua própria campa em 18 de setembro de 1974. 

Eu próprio me emocionei,. quando há dias descubri este vídeo da RTP (**)...que merece ser partilhado com os nossos leitores.

2. Sinopse e ficha técnica do vídeo (que pode ser visto acima, no sitío da RTP > Arquivos, e conteúdo está sujeito a licenciamento razão por que não o podemos pôr aqui diretamente):

Programa de caráter histórico que assinala as comemorações dos 40 anos do Processo Revolucionário em Curso (PREC), que ocorreu entre 11 de março e 25 de novembro de 1975, com destaque para a história de António Silva Baptista, o soldado "morto-vivo", dado como morto na Guiné em abril de 1972, quando na verdade tinha sido feito prisioneiro pelo PAIGC.

Ficha técnica:

Nome do Programa: Memórias da Revolução: Soldado António Silva Baptista

Nome da série: Memórias da Revolução

Locais: Lisboa

Temas: História, Política

Canal: RTP 1

Data: 2015-06-23

Duração: 00:01:13

Menções de responsabilidade:

Autoria: Instituto de História Contemporânea e RTP - Série promovida pelo Instituto de História Contemporânea (IHC) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL em parceria com diversas instituições.

Tipo de conteúdo: Programa

Cor: Cor

Som: Stereo

Relação do aspeto: 16:9 PAL


_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15899: Recortes de imprensa (79): Uma "histórica" entrevista dada, em 18/9/1974, pelo António da Silva Batista (1950-2016) ao extinto "Comércio do Porto", quando regressou ao "mundo dos vivos" (Mário Miguéis da Silva, ex-fur mil rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72; vive hoje em Esposende)

(**) Último poste da série > 12 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 – P26146: (Ex)citações (430): Habitações palacianas de Gabu (José Saúde)

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25812: Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal (Excertos) (Jaime Silva) - Parte III: mortos em Angola




Quadro 1 - Lista d0s mortos de Fafe no TO de Angola (1961/1975) (pp.  44/45)






SILVA, Jaime Bonifácio da - Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal- In:  Artur Ferreira Coimbra... [et al.]; "O concelho de Fafe e a Guerra Colonial : 1961-1974 : contributos para a sua história". [Fafe] : Núcleo de Artes e Letras de Fafe, 2014, pp. 23-84.



1. Estamos qa reproduzir, por cortesia do autor (e com algumas correções de pormenor),   excertos do  extenso estudo do nosso camarada e amigo Jaime Silva.  Esta III parte é dedicada a Angola.


Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar – Uma visão pessoal   Excertos ]  - Parte III (pp. 44-57)

por  Jaime Silva



(...) 2.1 Quadro-referência com a identificação dos nomes dos militares de Fafe mortos em cada uma das três Províncias Ultramarinas

A. ANGOLA > QUADRO 1 – Lista dos mortos de Fafe em Angola (vd. acima)


(...) Ao analisarmos o quadro acima,  com a identificação dos militares de Fafe tombados em Angola, podemos verificar que em Angola morreram dezasseis militares,  naturais de Fafe, Como causas da morte e usando a terminologia do Arquivo Geral do Exército, sabemos que tombaram por:

  • “Ferimento em combate com armadilha”, um;
  • “Ferimento em combate com mina anticarro”, um;
  • “Ferimentos em combate”, três;
  • “Combate”, dois;
  • “Acidente de viação”, três;
  • “Acidente – afogamento”, dois;
  • “Acidente com arma de fogo”, dois;
  • “Acidente por outros motivos”, um;
  • “Doença”, um.


Resumindo: 7 em combate; acidente, 8; doença, 1,

Quanto ao posto e especialidade, podemos verificar:

  • em primeiro lugar, que doze eram soldados, tendo as seguintes especialidades: Atiradores, três; Apontador de Morteiro, um; Caçador Especial, um; Radiotelegrafista, um; PM – Polícia Militar, um; Condutor auto, um; Reconhecimento e Informações, um;
  • existem três sem anotação da sua especialidade e, destes, um é de uma Companhia de Caçadores (CCAÇ) e dois de Companhias de Artilharia (CART);
  • em segundo lugar, três tinham o posto de 1.º cabo (um maqueiro e dois atiradores) e, em terceiro, um era oficial miliciano com a patente de alferes.

Dois militares ficaram sepultados em Angola nos cemitérios locais: 

  • soldado atirador Artur de Sousa, natural de Ardegão, pertencente ao BCAÇ 92 e à CCAÇ  94, falecido em 3 junho de 1961 em consequência de acidente com arma de fogo, ficando sepultado no adro da Igreja de Sanza Pombo (Norte);
  • e o soldado atirador Alberto Moniz Nogueira, do BCAÇ 1863 e da CCAÇ 1450, natural de Arões S. Romão, falecido em 16 de dezembro de 1966, em consequência de acidente de viação no destacamento de Messibi (Leste) e está sepultado no cemitério do Luso.

O primeiro militar de Fafe a tombar em Angola e, também, na Guerra Colonial foi o soldado atirador Artur de Sousa, natural de Ardegão. A última vítima da guerra em Angola e, também, o último a morrer na Guerra Colonial  (...)  foi o 1.º Cabo José Pereira Dias, natural de Armil, onde está sepultado. (op cit., pp. 46/47).


  • 1.º Cabo João Pedro Alexandre,  nº mec. 12804373 (op cit., pp. 47-52)


(...) A morte ocorre já depois de se ter dado a Revolução de Abril em 1974. Foi incorporado nas fileiras das Forças Armadas em 6 de maio de 1974 (...)  e é nomeado em agosto para servir no Ultramar com destino à ComAgr  6001, vindo a embarcar em Lisboa a 11 de dezembro de 1974 e a desembarcar em Luanda a 12 do mesmo mês. 

Uma vez em Angola, é destacado para prestar serviço no Comando de Agrupamento  6001/74, em Cabinda, onde veio a falecer a 27 de setembro de 1975, em consequência de acidente de viação.

Do seu processo individual, que consultei no Arquivo do Exército por deferência do seu irmão, que agradeço, transcrevo a participação do acidente feita pelo 1.º cabo João Pedro Alexandre n.º 12804373 e assinada por este e pelo 1.º cabo João Pedrosa Alexandre:


Comando Territorial de Cabinda

Exmo Senhor Comandante Militar

Participo a V. Exa que hoje pelas 12h00, quando seguia na viatura “UNIMOG” N.º MG-27-89 conduzida pelo soldado condutor Auto N.º 03225674 António Gonçalves Capelas, do CMD. AGR. 6001/74, e após a viatura ter desfeito uma curva pouco acentuada, à saída da cidade de Cabinda, guinou em direção à berma da estrada do lado direito, não conseguindo o condutor trazê-la ao sentido de origem apesar de todos os esforços que fez para isso. Em consequência da posição em que ficou a viatura, isto é, com as rodas do lado direito a um nível mais baixo do que as do lado esquerdo os caixotes e os ocupantes que seguiam na carroceria caíram da viatura tendo um dos caixotes atingido gravemente o 1.º cabo NM 026905774 José Pereira Dias do CMD AGR N.º 6001/74. Verificaram-se ainda ferimentos ligeiros nos seguintes militares:

1.º  Cabo NM 12804373 João Pedrosa Alexandre

1.º Cabo NM 14105574 António Fernandes Santos Silva
Soldado NM14105574 António Gonçalves da Silva

Todos deste CMD AGR N.º 6001/74. A viatura não sofreu danos materiais.

São testemunhas: - 1.ºCabo NM 14105574 António Fernandes Santos Silva e o Soldado NM14105574 António Gonçalves da Silva.

Quartel em Cabinda, 27 de Setembro de 1975.
(pág. 48)


Ainda do seu processo individual e referente ao acidente, transcrevo da “Informação n.º 17 / 77”, emanada do Quartel-general da RM (Região Militar) de Lisboa em 20 de janeiro de 1977, assinada pelo Chefe de Serviço de Justiça  ten cor Alfredo Marques de Abreu, o seguinte:

(...) No ponto - 02. Da análise do processo verifica-se que:

a) No acidente contraiu as lesões descritas das quais resultou a morte no mesmo dia.

b) O acidente ocorreu sem culpabilidade do sinistrado.

Ponto - 03. Em face dos elementos existentes no processo é este SJ (serviço de justiça) do parecer que:

a) O acidente deve ser considerado resultante do exercício das suas funções e por motivo do seu desempenho
.  (pág. 48).

“A certidão de Narrativa Completa de Registo de Óbito”,  passada pela Conservatória do Registo Civil de Cabinda,  da Província de Angola,  regista que faleceu no Hospital Regional de Cabinda de "traumatismo toráxico".

  • Onde está o Costa ? (op. cit., pp. 49-52)

Militares casados antes de serem incorporados no serviço militar, existe um na relação dos mortos em Angola. Trata-se do soldado António Matos Costa, que pertenceu à CCAÇ 1783, sediada no destacamento de Magina e integrada no BCAÇ 1930, do qual também fazia parte o fafense furriel António Amável Marinho Mota, da Companhia  1782, destacada no Luvo.

Tenho em meu poder três documentos escritos e o testemunho do Furriel Mota que identificam as causas da morte do Costa, e um deles contradiz os outros quanto às causas da morte:

O primeiro, com a relação dos militares de Fafe tombados em Angola e cedido pelo Arquivo Geral do Exército, diz que o António Matos Costa é filho de Bento Jorge da Costa e Isaura de Matos, natural da freguesia de Vila Cova, casado com Florentina Pereira Rodrigues e pai de uma menina. 

Foi soldado com a especialidade de atirador a quem foi atribuído o Número Mecanográfico 2469367, pertenceu à CCAÇ 1783, integrada no BCAÇ 1930, sendo a Unidade Mobilizadora o RI 2 (Abrantes), que faleceu a 1 de junho de 1968 em Magina e cujas causas da morte são ferimentos em combate (armadilha). Está sepultado no cemitério de Queimadela.

O segundo documento está arquivado na Delegação de Fafe da APGV e foi-me cedida cópia, para este efeito, pelo seu presidente Manuel Ribeiro. Trata-se do “Processo de Trasladação” onde refere que a “Causa da Morte” foi por Acidente com arma de fogo. 

O documento atesta, ainda, que o Governo do Distrito do Zaire, com sede em S. Salvador e através do Alvará n.º22/G/968, datado de 17 de junho de 1968, declara: 

“Hei por bem autorizar a trasladação solicitada pelo Comando de Setor F para se proceder à Trasladação de São Salvador para um cemitério da Metrópole, do corpo de que foi sodado António Matos Costa, cuja urna se encontra em São Salvador. O Encarregado do Governo, Manuel Dias Peão." (op. cit, pág. 49)

O terceiro documento é um livro extraordinário escrito pelo Capelão do Batalhão, Padre Manuel Leal Fernandes, intitulado: Angola - As Brumas do Mato. Foi publicado em 1977 pela Livraria Telos Editora e foi-me oferecido pelo meu amigo António Mota, então furriel e camarada de Batalhão do António Costa. Descreve os momentos mais marcantes e dramáticos do BCAÇ 1930 durante a sua comissão entre 29 de novembro de 1967 e 27 de janeiro de 1970.

Durante a minha comissão vi, conheci e testemunhei no Norte e Leste de Angola os sacrifícios, as dificuldades de sobrevivência a que foram sujeitos muitos dos meus camaradas das Companhias do Exército destacados em locais recônditos, longe de tudo e onde, por vezes, foram sujeitos ao extremo da falta de apoio militar vendo, por isso, morrer os seus camaradas por falta de apoio aéreo para evacuar os feridos, como aconteceu com o meu primo Arsénio no Norte, e de mantimentos, passando fome.

O Padre Manuel Leal Fernandes, através dos depoimentos dos seus camaradas, transcorrido já mais de quarto de século sobre os acontecimentos vividos, retrata com uma grande seriedade e grandeza, que deve ser enaltecida, os momentos mais marcantes de sobrevivência de um grupo de homens que viveram durante dois anos em destacamentos construídos e situados no meio do mato e onde nada existia. No meio do nada, como escreve. É um excelente livro de apoio pedagógico para a disciplina de História nas escolas e para aqueles que querem saber a verdade dos factos.

O fafense António Costa fez parte do grupo da Companhia que não regressou vivo. Nas páginas 171 a 177, o autor dedica um capítulo ao António Costa, intitulado: Onde está o Costa, e no qual descreve a circunstância da sua morte.

Considero-o um documento histórico muito importante, porque, para além de nos dar a conhecer as circunstâncias da tragédia da morte do António Costa, permite-nos, também, ficar a saber e compreender o modo como se defendiam os aquartelamentos dos ataques do inimigo e como se colocava o sistema de minas no terreno.

Por isso, com esse objetivo e com a devida vénia, tomo a liberdade de transcrever e sintetizar algumas partes do seu texto:

Pelas 4 da manhã de 1 de junho de 1968, tinham rebentado duas armadilhas, habitualmente dispostas lá em cima, no morro, para defesa periférica do aquartelamento. O Comandante da companhia destaca o furriel de minas e armadilhas Aníbal Martins de Matos para ir lá acima ver o que se passou. O local ficava a uns 200-300 metros e o furriel Matos faz-se acompanhar da secção do furriel Figueira que estava de baixa, constituída por dez homens e da qual fazia parte o Costa. 

Chegados ao local o furriel lentamente, com redobrada cautela começa a inspeção das armadilhas. Faltava-me ver ainda duas, continua o furriel Matos – e dou com o Costa junto do meu ombro esquerdo. O furriel retirou-o do local e colocou-o a uma distância de segurança fora da zona armadilhada, continuando a inspeção. Voltei atrás, à penúltima armadilha. Eu tinha-as colocado de sete em sete passos. Como estavam numa zona lateral, nunca havia o perigo de eu tropeçar nelas. Elas estavam colocadas no meu lado direito e mesmo que eu desse um passo mais alargado não havia problema. Ao fim de sete passos, mais ou menos centímetros, lá estaria uma. Tinha visto já a penúltima armadilha e ia ao encontro da última, teria eu dado os dois primeiros passos e de repente há um rebentamento, uma explosão. (…) 

Com o impacto da explosão da armadilha o furriel Matos fica caído enfiado no capim. O Paiva levou uns estilhaços e o 1.º cabo Melo apanhou com uns estilhaços nas pernas e na cara. Quando recuperei a mente – continuou o furriel Matos (…) gritei para que ninguém se mexesse. Tive medo que entrassem pela zona perigosa e houvesse mais problemas (…). 

Onde está o Costa? (…) Caído no chão, todo esfacelado, barriga aberta, intestinos saídos, encharcado em sangue, o Costa esvai-se. Era a luta entre a vida e a morte (…). A avaliar pela posição em que ficou – deve-se ter inclinado sobre ela, e ao roçar de leve no capim ou no arame de tropeçar, tão sensível, acionou involuntariamente a sua explosão. (...)

Pela minha experiência pessoal, não resisto em destacar um comentário do furriel Matos, responsável e comandante do grupo, abalado pela morte do Costa, quando afirmou: 

"Cheguei ao ponto de começar a dizer que sou eu que o tinha matado. É que as armadilhas tinham sido feitas por mim, eu sou que as tinha montado e nelas morria um camarada me”. (…) De maneira nenhuma, Matos – dizia-lhe o Cap. Vilas Boas. Nem pense nisso. Você não matou ninguém. Tudo isto acontece no cumprimento da nossa missão."

Só quem sentiu a responsabilidade de comandar homens num teatro de guerra, sendo responsável pela vida dos que comanda, também seus amigos, perceberá a angústia do furriel Matos. Eu compreendo-o muito bem. Nos Montes Mil e Vinte, não muito longe do local onde o Costa tombou, também vivi um momento semelhante com a morte de um soldado do meu pelotão numa operação precedida do lançamento de bombas de napalm pelos aviões da Força Aérea. Com toda a honestidade o digo, ainda hoje revejo o assalto ao acampamento, os tiros, o local, e interrogo-me sobre o que poderia ter mudado para evitar a morte do meu camarada!...

Finalmente, o testemunho do furriel Mota do mesmo Batalhão e que deu a recruta e a especialidade ao Costa, na Metrópole. Apesar de não pertencer à mesma Companhia em Angola, diz que se encontrava frequentemente com o Costa no cruzamento das picadas do Lucuso, local onde a coluna de viaturas das três Companhias que constituíam o Batalhão se encontrava às quartas-feiras para, em conjunto, seguirem para a sede do Batalhão em S. Salvador, a cerca de noventa quilómetros, a fim de recolherem e transportar os mantimentos frescos chegados de Luanda no avião Nord Atlas. Tinham-se encontrado dias antes do acidente nesse local e, por ironia do destino, é na coluna que o furriel Mota apanha boleia para Luanda para vir de férias ao “Puto” que é transportada a urna com os restos mortais do conterrâneo e amigo António Costa.

Perguntei ao António Mota se sabia a razão da contradição entre os documentos quanto às causas da morte do António Costa.

Disse que esse procedimento era normal e que o faziam por causa das famílias. Segundo ele, na altura da guerra era mais fácil para a família aceitar um acidente provocado por negligência do que morrer com uma mina e ficar todo esfacelado. Disse-lhe que não concordava, se bem que nunca tenha vivido durante a minha comissão uma situação idêntica.

Realçou que a guerra do seu batalhão não se comparou a nenhuma outra. Foi a guerra deles. Lembrou que, quando chegaram à entrada do aquartelamento, se depararam com uma placa que dizia: nunca dês o último cigarro. Nunca bebas o último gole de água. Nem nunca gastes a última bala. Os irmãos não se escolhem. Os amigos sim. A partir daqui começa a guerra.


  • Alferes mil Venâncio Marinho da Cruz (pp.52-57)


O Venâncio Marinho da Cruz  (...)  foi o primeiro oficial miliciano fafense a morrer na guerra. Consultei em Lisboa, no Arquivo Geral do Exército, o seu processo individual por deferência da família, que agradeço. 

Apesar de não ter nascido em Fafe, o alferes Cruz quando foi incorporado nas fileiras das Forças Armadas já morava com a família em Seidões, onde está sepultado, e o seu nome consta, também, no Monumento aos Combatentes da Guerra Colonial, em Fafe. 

Nasceu em 25 de janeiro de 1941, na freguesia de Rego, concelho de Celorico de Basto. Frequentou o Seminário Conciliar de Braga. A 4 de maio de 1965 é incorporado na EPI (Escola Prática de Infantaria em Mafra), onde termina o 1.º Ciclo do COM (Curso de Oficiais Milicianos) a 5 de agosto e, aí, jura Bandeira a 4 de agosto. 

A 8 de agosto é colocado na EPC (Escola Prática de Cavalaria) para frequentar o 2.º Ciclo do COM na especialidade de Atirador de Cavalaria, terminado a 30 de outubro. A 1 de novembro de 1965 é transferido para o RC3 (Estremoz) e promovido ao Posto de Asp. Of. Mil. de CAV. 

 No seu processo consta que a 9 de fevereiro de 1966 pelas 14h30 "caiu durante o tempo de instrução no RC 7 (Lisboa), batendo com a cabeça no solo, tendo ficado inconsciente, sendo transferido para o Hospital Militar de Lisboa. São testemunhas os 1.º cabo mil 6953364 Regala e Leal n.º 7939664". Assina a participação o tenente cav João Nunes e Sena.

No RC3, a sua Unidade Mobilizadora, é nomeado para servir no Ultramar nos termos da alínea c) do Art.º 3.º do Dec. Lei 42.937 de 22.4 1960, embarcando em Lisboa com destino à Região Militar de Angola no navio Niassa a 15 de abril de 1966, data em que é promovido a Alferes, e desembarca em Luanda a 26 do mesmo mês.

Em 5 de maio pelas 06h00, marchou em coluna auto do Centro Militar do Grafanil em Luanda para o estacionamento do BART  753, tendo feito a sua apresentação naquele local no mesmo dia pelas 11h00. Em 15.4.66 é colocado no RC 3”.

Em março de 1968 faz parte da CCAV 1537 pertencente ao BCAV  1883/RC 3, e na noite de 27 para 28 de março sofre, durante uma operação de combate, uma violenta emboscada, vindo a falecer em consequência dos ferimentos em combate.

Em todas as operações militares realizadas e após o regresso do mato, o comandante do grupo de combate tinha que fazer e entregar ao superior hierárquico um relatório circunstanciado das movimentações e ocorrências durante a operação.

Com a intenção de informar e dar a conhecer como funcionava a máquina administrativa militar durante a guerra nestas circunstâncias, transcrevo uma síntese do Relatório da Operação de Combate em que veio a falecer o Alf. Cruz, juntamente com o furriel mil cav  José Martins Cavaco e o soldado Manuel Caetano Nunes.

“Relatório Imediato da Acção N.º 1/68”

O relatório, datado às 15h00 de 30 de março de 1968, é assinado pelo Comandante da Companhia de Cavalaria 1537,  pertencente ao Batalhão de Cavalaria  1883, Capitão Graduado de Cavalaria João Manuel da Fonseca Nunes e Sena, estacionado no Luacano (Zona Militar Leste – Luso), do qual fazia parte o Destacamento de Lago Dilolo, sendo seu Comandante o alf Venâncio.

O Relatório “Imediato da Acção nº 1/68” é organizado ao longo de seis pontos:

1. Local e grupo data /hora em que teve lugar a acção

Lago Dilolo, 27 março 1968, com início às 21.00 horas.

2. Descrição da ação (síntese)


Em 27 de março de 1968 pelas 18.00 horas apareceu no Estacionamento da NT (nossas tropas) no Lago Dilolo um nativo, que informou o Comandante do Destacamento, Snr. Alf Mil, Cruz, que um grupo IN (inimigo / turras) tinha estado na “Embala” do Soba (chefe nativo da sanzala /aldeamento nativo) NHACHICULO, dizendo que iria nessa noite atacar o Estacionamento matando todos os soldados. 

Em face das declarações do nativo” o Alf Cruz organiza uma patrulha de 13 elementos e desloca-se na única viatura que tinha, um UNIMOG UN3, pelas 19.00 horas, com o objetivo de averiguar a informação. Chegado ao local indicado pelo nativo, que ficava a cerca de 3 Km do Estacionamento na Picada Dilolo – Luacano, faz uma batida nas imediações, não encontra ninguém, dando, por esse facto, ordem para regressar, pelas 20.30 horas. (…)

Quando regressava a patrulha e a cerca de 300 metros da Escola Lago Dilolo, no mesmo local onde em Abril de 1967 o IN já tinha feito uma emboscada às nossas tropas, o IN estimado entre 15 a 20 elementos desencadeou uma forte emboscada atirando uma granada de mão defensiva que rebentou à frente da viatura UN3 e imediatamente abrindo fogo com as armas automáticas, lançando granadas incendiárias que lançaram fogo à viatura cujo depósito de gasolina explodiu.

Logo nos primeiros tiros foram alvejados diversos elementos das NT, tendo o Furriel Martins Cavaco, sido atingido mortalmente e calcinado pelas chamas uma vez que foi o único que ficou dentro da viatura.

Neste momento o Alf Cruz, ao organizar NT para resistir ao IN dentro do capim, verifica que o Furriel está inanimado e a ser devorado pelas chamas em cima da viatura e volta para junto da viatura tentando puxá-lo para fora da viatura, ao mesmo tempo que o IN lança uma granada de mão incendiária para a picada tendo com o clarão detetado o Alferes, atingindo-o de imediato com 3 tiros no tórax. O Alferes ainda consegue dar ordens aos seus homens para tomarem conta das armas dos Soldados feridos, arrastando-se mortalmente ferido e sangrando abundantemente para o capim.

O IN continuou a flagelar as nossas tropas com armas automáticas e granadas, não retirando a algumas delas as cavilhas de segurança, aproveitando-se da claridade das chamas da viatura incendiada.

Como resultado imediato da emboscada, tinham ficado ilesos somente 3 soldados da Patrulha. É então que o Soldado Condutor Auto N.º 2491/65, António Nunes Soares, toma iniciativa com grande coragem e sangue frio de retirar da “Zona de morte” cinco dos seus camaradas gravemente feridos, recuperando as respetivas armas automáticas, e arrastá-los às costas para o meio do capim, salvando-os, assim, da morte certa. Vendo, ainda, que um IN tentava assaltar a viatura e capturar a arma do Furriel que ardia em chamas em cima da viatura, o Soldado Nunes corre para a viatura e tentou fazer fogo com a sua arma que se lhe encravou (…), carregou para cima do IN e com uma cronhada na cabeça do bandoleiro (turra) atirou com ele para o capim e recuperou a arma que o mesmo já segurava.

Quando chegou junto dos seus camaradas, Soldados 2714/65, Helder Martins e 692 /65 António José Brito Fadista, disse a este último que fosse a corta mato pedir socorro ao Estacionamento. Os dois soldados, Soares e Martins transportaram os feridos para uma mata próxima até que chegaram os reforços (9 homens) sob o comando do 1.º Cabo n.º 2649 /65, João António, continuando o IN a flagelar as nossas tropas.

Os quatro feridos mais graves foram transportados com a ajuda dos camaradas e dois soldados foram dados como desaparecidos. Estes, os soldados 2669/65 Manuel Gomes Pires e 2674 /65, Cândido de Sousa Mata Rosa que se encontravam feridos, arrastaram-se para o capim, tendo chegado pelos seus próprios meios às 6.00 horas do dia 28 ao Estacionamento, pelo que não foram encontrados no local e durante aquele tempo foram dados como desaparecidos.

É o 1.º Cabo auxiliar de Enfermeiro n.º 2723/65 Constantino António Teixeira que trata dos feridos, ao mesmo tempo que o IN continuava a flagelar o Estacionamento (00.00 horas, 00.45horas e 02.00 horas do dia 28 março de 1968.

Pelas 11.30 horas do dia 28 é evacuado por HELI para o Luacano o ferido que se encontrava em piores condições, o soldado 2646/65, Manuel Caetano Nunes, que, atingido por dois tiros, sangrava abundantemente, tendo vindo a falecer durante a evacuação Heli.


O relatório resume este ponto do seguinte modo:

MORTOS:

– Alferes Venâncio Cruz, Furriel José Cavaco e Soldado Manuel Nunes.

FERIDOS GRAVEMENTE:

– 1.º Cabo n.º 2640/65 Manuel Paulo Gomes da Silva, Soldado 2683/65 Manuel Francisco Mourão Gaspar, Soldado 2703/65 Fernando Pereira de Carvalho e Sodado 2709/65 Helder de Sousa Cristóvão.

FERIDOS:

Soldado 2669 Manuel Gomes Pires e Soldado 2674/65 Cândido de Sousa Mata Rosa.

3. Apoio aéreo

Em 28 de março às 09.00 horas começaram a ser feitas evacuações de Héli de Lago Dilolo – Luacano e com dois DO-27 de Luacano para o Luso.

4. Transmissões

O destacamento da NT do Dilolo esteve em contínua ligação com a CCAV  1537 na rede AM NA /GRC – 9, muito embora fosse difícil a ligação devido às más condições atmosféricas.

5. Resumo dos resultados


a) Causadas pelo In:

- Mortos ………………. 3 (1 Oficial, 1 Sargento e 1 Praça)

- Feridos graves……….4

- Feridos ligeiros ……. 2

Destruída pelo fogo a Viatura UNIMOG UN3 – MX-O1-55

- Carbonizada a Espingarda Mauser n.º 9961

b) Obtidas pelas NT:

- Mortos prováveis …. 2

- Feridos não controlados. … Alguns

- Gr. M. Def. F-1 …......2 e outra destruída.

- Invólucros …..........127


6 . Conclusões, ensinamentos, diversos

a. Conclusões e ensinamentos

A emboscada sofrida pelas NT no mesmo local que em abril de 1967 as NT foram emboscadas, revela que o IN (MPLA) regressou, como vinha desde há muito referido por este Comando, à Zona do Dilolo moralizado e fortemente armado e com um efetivo bastante considerável (…).


b. Diversos

Citações


O relatório realça a ação em combate dos principais intervenientes na operação:

Alferes Venâncio Cruz, a quem será atribuída uma Cruz de Guerra, a título póstumo, o 1.º cabo auxiliar de enfermeiro Constantino António Teixeira, 1.º  cabo João António, os soldados António Nunes Soares e os soldados Helder Martins e António José Brito Fadista.

A todos é realçado o exemplo da sua coragem: 

(…) "Deu um exemplo frisante de valentia, sangue frio, qualidades de comando e desprezo pelo perigo debaixo do fogo do IN que mereceu a geral estima e admiração dos seus camaradas presentes que contribuiu para o prestígio do Exército."

Transcrevo, também, o louvor atribuído ao Alferes Cruz, publicado na O.S. (ordem de serviço) N. 226 do RC3:

Nesta ação, comandando uma patrulha de pequeno efetivo e tendo a maioria dos seus homens sido atingidos aos primeiros tiros, deu rapidamente as ordens para a reação e vendo que em cima da viatura que os transportava, e que estava incendiada jazia um seu subordinado que começava a ser devorado pelas chamas, voltou para junto daquela e, não só, indiferente ao fogo nutrido do inimigo, tentou puxar o corpo, quando descoberto no meio da picada e iluminado pelo clarão de uma granada incendiária foi mortalmente atingido por uma rajada do inimigo. 

Logo que se sentiu ferido, o Alferes Cruz incitou os seus homens para o combate, recomendou-lhes que cuidassem das armas dos seus camaradas feridos e, sangrando abundantemente, arrastou-se para o capim onde veio a falecer. A admirável valentia deste oficial e o excelso altruísmo e rara abnegação que o levaram, conscientemente a sacrificar a vida por um seu subordinado, são paradigma das mais acrisoladas virtudes militares, causam o comovido orgulho dos seus camaradas de armas, contribuem para a Glória do Exército que devotamente serviu e honraram a Pátria. Morto em combate em 27.3.1968.

Louvado por despacho de 6 maio de 1968 de Sua Ex.ª o General Comandante da RMA, por proposta do Exmo comandante da ZILESTE “pela maneira brilhante esforçada e aguerrida como comandou a sua equipa.

Condecorado com a medalha de Prata de Valor Militar com Palma, a título póstumo nos termos do Art. 7.º, com referência ao primeiro do Art.51.º do Regulamento da Medalha Militar, de 28 de maio de 1946, pelas suas extraordinárias qualidades de coragem, abnegação e camaradagem demonstradas
(Fim do relatório) (op. cit. 53-57).

Como nota, gostaria de salientar que o soldado Joaquim Augusto Alves, sepultado no cemitério de Antime, não consta desta lista em virtude de ser natural do concelho de Cabeceiras de Basto, apesar de já estar a morar em Antime com os seus pais na altura da sua incorporação militar.

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos:  LG)



Jaime Bonifácio Marques da Silva (n. Seixal, Lourinhã, 1946): (i)  foi alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72); (ii)  tem uma cruz de guerra por feitos em combate; (iii)  viveu em Angola até 1974; (iv)  licenciatura em Ciências do Desporto (UTL/ISEF) e pós-graduação em Envelhecimento, Atividade Física e Autonomia Funcional (UL/FMH); (v)  professor de educação física reformado, no ensino secundário e no ensino superior ; (vi) autarca em Fafe, em dois mandatos (1987/97), com o pelouro de cultura e desporto; (vii) vive atualmente entre a Lourinhã, donde é natural, e o Norte;  (viii) é membro da nossa Tabanca Grande desde 31/1/2014; (ix) tem 86 referências no nosso blogue.

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sábado, 3 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25804: Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal (Excertos) (Jaime Silva) - Parte II: c. 1500 mobilizados, 41 mortos


SILVA, Jaime Bonifácio da - Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal- In:  Artur Ferreira Coimbra... [et al.]; "O concelho de Fafe e a Guerra Colonial : 1961-1974 : contributos para a sua história". [Fafe] : Núcleo de Artes e Letras de Fafe, 2014, pp. 23-84.


1. Na "Intodução", Artur Ferreira Coimbra (n. 1956), escreveu:

"A Guerra Colonial foi um período fortemente traumatizante para toda uma geração de portugueses, que viveram, recriaram e pensaram o último meio século da vida colectiva deste país.

"Não esqueçamos que mais de um milhão de jovens com idade em redor dos 20 anos, impreparados, mal armados, deficientemente treinados, deslocados abruptamente das suas aldeias, vilas e cidades, passaram, em comissões com uma média de duração de 24 meses, pelas colónias de Angola, Guiné e Moçambique, sobretudo,  onde a espada da guerra foi mais acesa e o troar das metralhadoras mais acentuado. Com aquelas condições, o mínimo que se pode afirmar é que os nossos soldados deslocados para África foram autênticos heróis.

"Daquele número global, mais de 10 mil jovens tombaram, impunemente, na frente de combate ou em acidentes diversos, cerca de 120.000 foram feridos, mais de 20 mil ficaram estropiados ou deficientes para a vida e estima-se que cerca de 140.000 ficaram a sofrer de 'Stress Pós Traumático de Guerra', cujas consequências funestas nunca mais os abandonaram. (...)

"Do concelho de Fafe (...), foram coagidos a participar nos três teatros operacionais mais de 1500 jovens (...)"  (pp. 9/10)




Jaime Bonifácio Marques da Silva (n. 1946): (i)  foi alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72); (ii)  tem uma cruz de guerra por feitos em combate; (iii)  viveu em Angola até 1974; (iv)  licenciatura em Ciências do Desporto (UTL/ISEF) e pós-graduação em Envelhecimento, Atividade Física e Autonomia Funcional (UL/FMH); (v)  professor de educação física reformado, no ensino secundário e no ensino superior ; (vi) autarca em Fafe, em dois mandatos (1987/97), com o pelouro de cultura e desporto; (vii) vive atualmente entre a Lourinhã, donde é natural, e o Norte;  (viii) é membro da nossa Tabanca Grande desde 31/1/2014; (ix) tem 85 referências no nosso blogue.



2. Estamos qa reproduzir, por cortesia do autor (e com algumas correções de pormenor),   excertos do  extenso estudo do nosso camarada e amigo Jaime Silva, na parte sobretudo que diz respeito a: ((i) introdução e contextualização (pp. 25-39); (ii)  mortos do concelho de Fafe, e nomeadamente no TO da Guiné, incluindo alguns testemunhos recolhidos pelo autor  (pp. 39-84).


Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar – Uma visão pessoal   Excertos ]  - Parte II (pp. 39-43)

por  Jaime Silva


(...) 6. A participação e enquadramento dos militares de Fafe durante a Guerra – Questões concretas a levantar

É já neste contexto (*) que os jovens de Fafe, como todos os jovens do seu país, foram também obrigados a contribuir para o esforço da guerra. Como a partir de 1961, início da guerra em Angola, nem todos foram mobilizados para África e nem todos tiveram uma especialidade de combate, será forçoso, por isso, colocar e tentar esclarecer um conjunto de questões, se queremos conhecer e perceber melhor qual o tipo de participação, enquadramento e grau de dificuldade na atuação de cada fafense durante os dois anos ou mais de comissão num dos três teatros de operações em África.

As questões que me parecem pertinentes levantar, pelas razões aduzidas, têm como referência a minha experiência pessoal no terreno de operações de um dos teatros de guerra, Angola (Norte e Leste), durante uma comissão que durou cerca de trinta meses, sempre operacional e durante a qual, em quase todas as operações de combate em que participei e comandei, houve tiros, confronto, guerrilheiros mortos ou feridos ou armas capturadas. 

Em consequência dos confrontos, um soldado do meu Pelotão foi morto na sequência de um assalto a um acampamento do MPLA nos Montes Mil e Vinte, outro ficou sem uma perna, devido ao rebentamento de uma mina (eu e mais dois soldados passámos pelo mesmo sítio e não pisámos a mina!) e um sargento ficou ferido na sequência do rebentamento de uma armadilha, todos no Norte de Angola.

Será com esta preocupação que tentarei, por isso, enumerar e encontrar a resposta a um conjunto de questões que me parecem mais pertinentes para compreender o envolvimento dos militares de Fafe, no contexto da sua atuação no âmbito das Forças Armadas, durante a sua Comissão de Serviço no Ultramar. Concretamente:

1. Quantos fafenses foram chamados às inspeções militares (às sortes) entre janeiro de 1961 e dezembro de 1974?

2. Quantos ficaram “aptos para todo o serviço militar” ou “livres de todo o serviço militar”, na sequência da “Inspeção Sanitária”, por doença crónica ou “grande cunha”?

3. Quantos cumpriram o serviço militar na Metrópole ou nas Ilhas?

4. Quantos decidiram “dar o salto” para o estrangeiro, para fugirem à Guerra, antes de irem às inspeções, após serem “apurados para todo o serviço militar”, ou depois de saberem que tinham sido mobilizados para o Ultramar?

5. Quantos fafenses foram mobilizados e cumpriram uma Comissão de Serviço militar em África?

Destes, dos que foram mobilizados para África, qual o seu envolvimento pessoal na orgânica e dinâmica das ações levadas a cabo pelas Unidades Militares onde estavam destacados, concretamente:

I. Quantos prestaram serviço em cada um dos três ramos das Forças Armadas: Exército, Marinha ou Força Aérea?

II. Quantos fizeram parte do Quadro Permanente (oriundos da Academia Militar) ou, sendo milicianos, optaram por fazer carreira nas fileiras das Forças Armadas?


III. Quantos pertenceram às tropas especiais (paraquedistas, fuzileiros, comandos ou rangers) e, destes, quantos tomaram a iniciativa de se oferecer para estas com o objetivo de não serem mobilizados para a Guiné ou outra razão?

IV. Quantos se casaram antes de “assentar praça” na expetativa de não serem mobilizados para o Ultramar, já eram casados e tinham filhos quando partiram para África ou casaram, depois, “por procuração”?

V. Quem optou por emigrar para Angola ou Moçambique para, mais tarde, ser incorporado localmente nas fileiras das Forças Armadas e, assim, não ser mobilizado para a Guiné ou poder vir a ter uma especialidade diferente da de “atirador”?

VI. Quantos participaram em operações de combate, tiveram de apontar ao “inimigo” e atirar primeiro para não morrer, ou foram vítimas das emboscadas e viram os seus colegas de pelotão ficarem feridos, amputados ou mortos?

VII. Quantos viveram o drama de verem um seu camarada morrer, transportaram às costas um camarada morto, ferido ou estropiado, ou deram sangue no local para o salvar, na sequência de uma emboscada ou rebentamento de mina?

VIII. Algum matou, por represália, algum guerrilheiro ou cortou-lhe alguma parte do corpo com a faca de mato ou teve que tomar a iniciativa de dar o “tiro de misericórdia” a algum guerrilheiro ou elemento da população que ficaram às portas da morte e sem hipóteses de sobrevivência em consequência do resultado dos combates?

IX. Na sequência das emboscadas ou assaltos aos acampamentos, quem capturou guerrilheiros, material de guerra ou documentos políticos dos Movimentos Independentista Africanos?

X. Quantos tiveram a sorte de nunca participar numa operação de combate, nunca saíram das cidades ou, pelo menos, das sedes de Companhia ou Batalhão, ou puderam participar numa atividade civil paralela, como praticar desporto federado, ou exercer a sua profissão, etc.?

XI. Quantos tiveram a possibilidade económica de vir de férias ao “Puto” ver a família?

XII. Quantas mulheres fafenses acompanharam os maridos durante a comissão, viveram em cidades ou em zonas de combate?

XIII. Quem comandou ou fez parte dos Grupos Especiais de tropa africana apoiados e organizados pelas Forças Armadas Portuguesas, como os GE ou Flechas[1] em Angola, Comandos africanos na Guiné ou de paraquedistas em Moçambique, entre outros?

XIV. No seu relacionamento com a população nativa, quem deixou por lá os chamados “filhos do vento” ou assumiu, perfilhando-os e trazendo-os consigo para a Metrópole?

XV. Desertou algum para combater ao lado do “Inimigo”?

XVI. Algum foi feito prisioneiro de guerra pelas tropas dos movimentos independentistas?

XVII. Quantos ficaram sepultados em África?

XVIII. Quantos pertenceram a Companhias que tiveram de se cotizar para pagar ao Estado a trasladação do corpo dos camaradas que morreram?

XIX. Há algum militar fafense desaparecido em combate?

XX. Quantos foram louvados, condecorados ou apanharam “porradas” (sanção disciplinar)?

XXI. Quantos ficaram a sofrer de Stress Pós-Traumático de Guerra ou adquiriram outras doenças crónicas (paludismo, hepatite, etc.)?

XXII. Quantos ficaram feridos em combate, devido a minas, rebentamento de armadilhas ou acidentes e ainda têm estilhaços de granadas ou minas no corpo?

XXIII. Quantos morreram em consequência dos combates, do rebentamento de minas ou armadilhas, de acidente ou doença?


Enfim, um mundo de vivências e circunstâncias que, a conhecê-las, permitir-nos-ão dar um pequeno passo, mas decisivo, na construção da História da participação dos jovens militares de Fafe na Guerra Colonial.


7. História da participação dos militares de Fafe durante a Guerra - O estado atual da informação


A História da participação dos Militares de Fafe durante a Guerra Colonial ainda está por fazer. A pouca informação disponível sobre este tema ainda não está organizada e sistematizada e encontra-se no processo individual de cada um, depositado no Arquivo Geral do Exército, da Força Aérea ou da Marinha, e só poderá ser consultada pelos próprios, os familiares ou alguém com autorização da família, de acordo com o Dec. Lei n.º 46/2007 de 24 de agosto, ou, ainda, na documentação dispersa em poder dos próprios combatentes ou familiares.

Apesar de se estar no início da sistematização da informação, já podemos responder com segurança ou encontrar caminhos para prosseguir a investigação a algumas das questões levantadas durante a minha intervenção, nomeadamente:


1. Quantos fafenses foram chamados às inspeções militares (“às sortes”) entre janeiro de 1961 e dezembro de 1974?


Não sabemos. Será possível sabê-lo, no entanto, consultando os Editais Municipais com as listas dos “mancebos” que eram chamados “às sortes”, existentes no Arquivo da Câmara Municipal de Fafe.


2. Quantos militares de Fafe morreram em consequência dos combates, do rebentamento de minas ou armadilhas, de acidente ou doença?


Durante a Guerra Colonial, tombaram em África quarenta e um militares de Fafe.

Este número está de acordo com a lista que me foi enviada pelo Arquivo Geral do Exército e da pesquisa efetuada no concelho por mim e pelos dirigentes da Direção da Delegação de Fafe da APVG (Associação Portuguesa de Veteranos de Guerra). Sabemos quem, onde, quando e as circunstâncias que causaram a sua morte e onde estão sepultados.

Apresentamos um quadro detalhado por cada Província Ultramarina: Angola, Guiné e Moçambique (...), realçando, a partir de cada um deles, alguns elementos mais relevantes, de acordo com o conhecimento mais circunstanciado que fomos obtendo através das diferentes fontes históricas mencionadas.

Numa primeira análise geral feita aos três quadros, podemos verificar que em relação aos que tombaram em África (n=41): 

(i) todos os mortos pertenceram à Arma do Exército, não havendo, ainda, conhecimento de ocorrência que tivesse provocado a morte ou ferimento grave nas fileiras da Força Aérea ou Marinha; 

(ii) a primeira morte na Guerra ocorre no dia 3 de julho de 1961, três meses após os massacres no Norte de Angola e foi o soldado atirador Artur de Sousa, natural da freguesia de Ardegão, e que ficou sepultado em Sanza Pombo; 

(iii) o último a tombar na Guerra Colonial foi o 1.º Cabo José Pereira Dias no dia 27 de setembro de 1975, em Cabinda, Angola; natural de Armil, onde está sepultado;

(iv) seis militares eram casados (Angola, 1; Moçambique, 4 e Guiné, 1); 

(v) em relação ao posto, desapareceu em combate um Furriel em Moçambique, morreram dois Alferes milicianos (1 en Angola outro em Moçambique), vinte e oito soldados e dez 1.ºs cabos; 

(vi) quanto às causas de morte: 

  • três por acidente de viação (em Angola);
  • quatro por acidente por afogamento (2 em Angola, 1 na Guiné e outro em Moçambique);
  • quatro por acidente com arma de fogo ;2 em Angola, 1 na Guiné e outro em Moçambique);
  • um acidente  outras causas, sendo o total de acidentes de 12 (Angola:  8; Guiné: 2; Moçambique: 2);
  • vinte e três em combate (7 em Angola, 7 na Guiné, 9 em Moçambique), sendo 4 em minas e armadilhas (2 em Angola, 1 na Guiné e outro em Moçambique); 
  • quatro por doença (2 na Guiné, 1 em Angola, e 1 em Moçambique);
  •  e, finalmente, dois, em Moçambique, por causas desconhecidas (incluindo um desaparecido em combate).


(vii) Após a Revolução de 25 de Abril de 1974 e já depois do final da Guerra, ainda morreram cinco fafenses em África: quatro em Moçambique (Agostinho Carvalho, Francisco Carvalho, Manuel Carneiro e Norberto Salgado) e um em Angola, o último, José Dias, em 27 de setembro de 1975.

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos:  LG)
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Nota do autor:

[1] Forças especiais criadas pela PIDE em Angola.

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O livro supracitado resultou do "Curso Livre de História Local: O Concelho de Fafe e a guerra colonial (1961-1974)", organizado pelo Núcleo de Artes e Letras de Fafe, com o apoio de diversas entidades, entre elas a Câmara Municipal de Fafe e o Museu da Guerra Colonial, com sede em  V. N. Famalicão, e cujo programa na devida divulgámos no nosso blogue, na série "Agenda Cultural". Decorreu entre 21 de outubro e 24 de novembro de 2013.

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Nota do editor:

(*) Vd. último poste da série > 30 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25792: Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal (Excertos) (Jaime Silva) - Parte I: Maçaricos, periquitos, checas... 

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25048: O segredo de...(40): Patrício Ribeiro, 76 anos: Angola, Quifangondo, 1975: uma das "minhas guerras" a que assisti ao vivo


Patrício Ribeiro, ex-grumete fuzileiro, Angola, 1969/72


1. Afinal, todos temos pequenos/grande segredos da tropa, da guerra e da Guiné (e de outros lugares do planeta) que em vida ainda não partilhámos, ou só contámos a alguma ou outra pessoa das nossas relações mais íntimas: o pai, a esposa, o filho mais velho, o amigo do peito, o camarada de armas que ficou nosso amigo para sempre... Ou às vezes nem isso... 

Há coisas que decidimos não contar à família nem aos amigos do peito... Há coisas que nem às paredes se confessa, como diz a cohecida letra de fado. São coisas "muito nossas" que até preferimos, nalguns casos, levar connosco para o caixão... Todos temos esse direito. 

Outras há que, com o passar dos anos, achamos que podem entrar "no domínio público", sem consrangimento, sem mágoa, sem ferir ninguém... Pode até ser um forma de fazer o luto (em caso de perda de alguém ou de alguma coisa muito preciosa para nós)..

Já aqui publicámos, no blogue, cerca de quatro de dezenas de postes na série "O segredo de...". Em 20 anos, dá uma média de 2 por ano. Mas o "confessionário" continua de portas abertas... 

Já aqui o dissemos, a propósito de segredos partilhados por (e segundo a ordem cronológica, com alguns a partilharme mas do que um segredo):

  • Mário Dias, 
  • Santos Oliveira, 
  • Luís Faria (1948-2103),
  • Virgínio Briote, 
  • Amílcar Ventura, 
  • Joaquim Luís Mendes Gomes, 
  • António Medina,
  • Ovídio Moreira,
  • António Carvalho,
  • Sílvio Fagundes Abrantes,
  • Amadu Djaló (1940-2015),
  • Antóno Graça de Abreu,
  • Augusto Silva Santos,
  • Ricardo Almeida,
  • Fernando Gouveia,
  • Vasco Pires (1948-2016),
  • Cláudio Brito,
  • Ribeiro Agostinho,
  • Mário Gaspar,
  • Domingos Gonçalves,
  • João Crisóstomo,
  • Victor Garcia,
  • António Ramalho
  • Manuel Oliveira Pereira,
  • Alcídio Marinho (1940-1921),
  • João (Candeias da) Silva (1950-2022)
  • Dionísio Cunha, 
  • José Ferraz de Carvalho, 
  • Jorge Araújo,
  • Demburri Seidi/Cherno Baldé, 
  • António Branquinho (1947-2023)

Seria uma pena que estes e outros camaradas levassem  para a cova os pequenos/grandes segredos contaram no nosso "cofessionário"... São histórias fabulosas que humanizam a guerra, que engrandecem os seres humanos que as protagonizam, e que nos tocam, fundo... 

Claro que algunas são como abrur a caixinha de Pandora... (Foi o caso, por exemplo, do Amílcar Ventura que teve  comentários... agrestes).

Este, que hoje trazemos a público, já foi dito em comentário ao poste P25035 (*). Mas merece ser recuperado e publicado, na montra grande do nosso blogue, nesta série...

Sobre o Patrício Ribeiro, convém lembrar:  nascido em Águeda, em 1947, cresceu em Angola, em Nova Lisboa (hoje Huambo), onde casou, viveu e trabalhou; ali fez a tropa como fuzileiro (1969/72). 

Ficámos a saber que veio para Portugal na véspera da independência; mas deu-se mal com a sua condição de "retornado": "africanista", decidiu ir viver e trabalhar, em 1984, na Guiné-Bissau; empresário, fundou uma empresa ligada à energia; agora, aos  76 anos está cá e lá, dedicando-se ao neto e à sua agricultura em Águeda mas também dando uma mãozinha ao filho que lhe sucedeu nos negócios... Aqui, em Águeda, sente-me mais confortável para falar do seu passado, como foi o caso há dias (*).

É autor da série "Bom dia desde Bissau", é um histórico do nosso blogue, para onde entrou formalmente em 2/1/2006: é nosso correspondente em Bissau, colaborador permanente da Tabanca Grande para as questões do ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau; mais de 130 referências no blogue..

 
O segredo de...(39): Patrício Ribeiro, 76 anos: Angola, Quifangondo, 1975: uma das "minhas guerras" a que assisti ao vivo (**)

Assisti e ouvi perto a artilharia durante muitos dias, da batalha do Quifangondo.

Ia trabalhar todos os dias a poucos quilómetros do Cacuaco.

Todos os dias a caminho do trabalho, passava junto de diversos guerrilheiros mortos, que durante a noite ali eram abatidos e recolhidos, durante o dia, pela tropa Portuguesa para a morgue, que eu visitava quase diariamente, a fim de ver quem chegava, pois poderia ser um amigo.

Havia ex-tropa portuguesa de ambos os lados da batalha, alguns vieram mais tarde para Portugal, onde constituíram família.

Nos últimos dias do fim do mês de outubro de 1975, passavam por mim os carros blindados com cubanos para a linha da frente, que saíam dos navios às escondidas, ou não, da tropa portuguesa. A saída era pela linha do comboio, do porto de Luanda.

Até que no dia 30 de outubro de 1975, resolvi não morrer naquela estrada e naquela guerra, já que por vezes disparavam para todos os lados, até para o meu carro, quando diariamente lá passava e tinha que mostrar um cartão de filiado em qualquer movimento, o que eu não queria.

Esta foi uma das "minhas guerras" a que assisti ao vivo.




Angola > Luanda > Cacuaco > Quifangondo  (o Kifangondo) 

"Esta obra é de autoria do museu nacional de história Marco Histórico do Quifangondo, fotografada por Abraão Fernando Figueira, 01:02, 5 September 2015, numa exposição escolar realizada pela escola Flor viva. Mostra os heróis que lutaram para libertação nacional de Angola." Fonte (e legenda): Wikimedia Commons (imagem editada, com a devida vénia, pelo Blogue Luís Greaça & Camaradas da Guiné...)

(...) No local da batalha, uma colina com vista para o rio Bengo, foi construído o Memorial da Batalha de Quifangondo, como um tributo a todos aqueles que participaram na luta de libertação nacional. O memorial foi projectado pelo escultor Rui de Matos e inaugurado em 2004 pelo presidente de Angola, José Eduardo dos Santos" (...) (Fonte: Wikipedia > Quifangondo)

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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24074: (De) Caras (195): Em 1975, cinco anos depois, saí do Hospital Militar Principal com as marcas da mina A/P, armadilhada, que me mudou completamente a vida: estava destroçado, cego, sem a mão direita e com dois dedos na mão esquerda (Manuel Seleiro, 1º cabo, Pel Caç Nat 60, DFA, São Domingos, Ingoré e Susana, 1968/70)


Foto nº 1A > Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Çaç Nat 60 > 1968/70 > Março de 1970 > 1º cabo Seleiro à porta da sua morança. Faltavam-lhe dois meses para acabar a sua comissão de serviço... Mas só sairá da tropa em 1975... Uma mina vai-lhe mudar alterar completamente a sua vida e os seus sonhos...


Foto nº 1 > Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Çaç Nat 60 > 1968/70 > 1970 1º cabo Seleiro à porta da sua morança, "cinco dias antes do acidente" (sic), com a mina que lhe roubou a vista e as mãos. (Claro que não foi em "acidente", foi "em combate"...)


Foto nº 2 > Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Çaç Nat 60 > 1968/70 > s/d >  Esta foto foi tirada junto à porta da arrecadação do velho quartel de S. Domingos. A foto mostra três minas A/P em situações diferentes. A primeira está fechada e pronta a ser acionada. A segunda está aberta, vê-se a dinamite e o mecanismo. A terceira está aberta,  vê-se todo o mecanismo desmontado."


Foto nº 3 > Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Çaç Nat 60 > 1968/70 > s/d >  A DO-27 na pista de São Domingos. Foi numa avioneta destas que veio a  enfermeira paraquedista (Maria) Ivone Reis (1929-2022):  foi ela quem assistiu os dois feridos da mina, em 11 de março de 1970, o Seleiro e o Guerra, na evacuação Ypsilon.

Escreveu o Hugo Guerra, hoje cor ref DFA: 

(...) "Comecei a levantar-me e senti o estrondo infernal, o sopro que me projectou de costas, o sangue quente a escorrer na cara e os gritos dele a dizer que estava morto… Mas não estava. Os nossos homens trataram-nos o melhor possível, pediram as evacuações e fizeram uma macas com bambus e camisas. Tinha medo de perder a consciência e passar para o outro lado.

Aguentei, em choque, até chegarmos ao HM 241 em Bissau e o que mais me agradava naquele desespero todo era continuar a ouvir o Seleiro a dizer que estava morto. Se ele se calasse, sabia que podia ter perdido um amigo. (...) (*)


Fotos (e legendas): © Manuel Seleiro (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. O Manuel Seleiro passou a ser nosso grã-tabanqueiro desde ontem. Já o devia ter sido há muitos mais anos... Mas só agora calhou falar com ele, ao telemóvel.  Senta-se  à sombra do nosso poilão, sob o nº 870 (**). E, como é da praxe, vamos publicar a seguir um texto dele, justamente aquele em que  relata as circunstâncias dramáticas da explosão da mina A/P que lhe roubou aos de vida e  os seus melhores sonhos. É um texto que um dia tem de figurar na antologia dos nossos melhores postes. Aqui reproduzido, com a devida vénia...

Quarta-feira, 10 de março de  2010 > Pel Caç Nat 60 Guiné 68/74 -P61: Aquele dia (Dez de Março de 70!)...

Quartel de S. Domingos. Sector Militar, de São Domingos: Algures nas matas da Guiné, junto a fronteira do Senegal. Decorria então o ano de 1970 na Guiné.

Destacamento de São Domingos, sete e trinta da manhã, o Pel Caç Nat 60 sai com destino à fronteira do Senegal, com o objectivo de pintar os marcos que faziam a divisão da fronteira Guiné/Senegal...

Às dez e meia da manhã, volvidos os primeiros vinte quilómetros, já em plena mata, há uma chamada de atenção, alguma coisa se passa. Os homens passam a palavra até chegarem à minha secção. Sou informado que, na frente, foi detectada uma mina anti-pessoal. Os homens ficam nervosos.

Quando cheguei ao local da mina, o alf mil Hugo Guerra 
[foto à esquerda ] nforma que vai tentar levantar a mina, Decorridos alguns minutos pergunto ao alf mil Hugo Guerra como iam as coisas, ao que ele me responde que estava nervoso.

O alf mil Hugo Guerra dá a ordem para que a mina seja desactivada. Tomei o lugar dele junto da mina.
Procede-se à segurança do local para que as coisas decorram sem incidentes. Mando afastar os homens a uma distância razoável, processo que requer muita atenção.

Procede-se à desminagem do local, o momento de muita tensão... O passo seguinte é desmontar o sistema da mina, que é constituido por dinamite e o detonador, este o mais perigoso, que requer particular cuidado...

O inevitável aconteceu, a mina estava armadilhada e explode. Gritos, confusão, leva algum tempo até os homens se recomporem.

No momento tudo ficou em silêncio depois as vozes de algums soldados Que se aproximavam. Senti umas mãos que me seguravam, era o enfermeiro José Augusto, que me prestava os primeiros socorros, colocava os garrotes para parar as hemorragias, o soro e uma injecção para as dores.

Alguns homens preparavam uma maca, com as camisas e uns paus para me transportar, fizeram cinco quilómetros comigo através da mata serrada. O alf mil Hugo Guerra sai ferido com alguma gravidade…
Como estava relativamente perto de mim foi atingido por estilhaços.

Pelo Rádio foi pedido ao quartel de São Domingos para mandarem viaturas ao nosso encontro para chegar mais rápido à pista onde deveria estar uma avioneta à espera. 

Assim foi, quando chegámos à pista já lá estava avioneta, fui entregue à enfermeira paraquedista (quero aqui prestar a minha homenagem a estas Mulheres, em particular à enfermeira Ivone Reis; estas Mulheres muitas vezes corriam riscos quando tinham de socorrer os feridos em pleno combate)...

Meia hora depois chegam à Base Aérea e fui levado para o Hospital Militar de Bissau. Já no hospital, foram feitas as primeiras intervenções cirúrgicas, provavelmente devido às anestesias perdi a noção do tempo, e do local onde me encontrava.

Num momento de lucidez ouvi passos, que se aproximavam perguntei onde me encontrava. Foi me dito que estava no hospital de Bissau, perguntei quando ia para Lisboa. A resposta foi... "amanhã".

No dia seguinte 
 [quinta-feira, 12 de março de 1970 ]pela manhã, tive a visita do Governador da Guiné, o general António de Spínola. Que deixou palávras de consolo e rápidas melhoras, e um elogio pelo dever de servir a Pátria...

Nesse mesmo dia à noite saí da Guiné no avião militar. Cheguei a Lisboa no dia treze de Março por volta das cinco da manhã, caía uma chuva miudinha.

As macas eram muitas pois este avião militar fazia o transporte de Angola, Moçambique, e Guiné, Em Lisboa as ambulâncias faziam o percurso de noite para não chamar a atenção dos lisboetas.

Nesta altura já estava internado no hospital Militar, na Estrela. Serviço de cirurgia plástica. Quero aqui informar que logo que dei entrada neste serviço, entrei em coma... Só decorridos quinze dias recuperei a consciência.

A partir daqui foi um desencadear de acontecimentos, uns bons e outros maus. Descobri que não tinha uma das mãos, o braço esquerdo estava com gesso, e tinha os olhos com pensos, este foi o primeiro choque que sofri.

Os dias iam passando lentamente, até descobrir que estava cego... Mas o mais grave desta situação, a minha família não sabia que eu estava gravemente ferido no Hospital Militar, os serviços do Exército não comunicaram o facto à minha família. Os meus pais tiveram a informação por um amigo meu que por essa altura prestava serviço no Hospital Militar.

O tempo decorrido da minha chegada a Lisboa, até os meus pais terem conhecimento foi de 23 dias
... Nesse  ano de setenta completei vinte e quatro anos, estava na flor da idade, andei de serviço em serviço durante mais quatro anos [no total, 5 anos, mais 20 meses no TO da Guiné, de julho de 1968 a março de 1970 ]. 

Em 1975 sai do hospital Militar com a bonita recordação: cego, sem a mão direita e com dois dedos na mão esquerda. Moral baixa, estado psicológico baixo. O Hospital Militar não dispunha de Psicólogos... (***)

PS - A data que consta no texto acima é a minha versão do acidente. A versão do alf mil Hugo Guerra aponta para o dia 13 de março de 1970. (*) 
[foto à esquerda: O Seleiro e o Guerra ].

Entrada para o Serviço Militar: 18 de abril de 67. Partida de Lisboa: 12 julho 1968 para a Guiné. Acidente na Guiné 10 de março de 1970. (****)

Manuel Seleiro, 1º cabo, DFA,

[Revisão / Fixação de texto / Negritos / Notas entre parênteses retos: LG ]
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3518: História de vida (18): Evacuado duas vezes e meia...(Hugo Guerra, ex-alf mil, cmdt Pel Caç Nat 50, 55 e 60 (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70); hoje cor ref, DFA

(**)  Vd. poste de 
16 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24072: Tabanca Grande (543): Manuel Seleiro, ex-1º cabo, Pel Caç Nat 60 (São Domingos, Ingoré e Susana, 1968/70), natural de Serpa, DFA, sofreu cegueira total e amputação das mãos, ao levantar e desativar um engenho explosivo, durante uma operação, em 13/3/1970... Senta-se à sombra do nosso poilão, sob o nº 870.

(***) Último poste da série > 3 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24033: (De)Caras (194): O mecânico-desempanador Mota, da CCAÇ 3535 (Zemba, Angola, 1972/74), mais conhecido por "Matraquilho" (Fernando de Sousa Ribeiro)

(****) Também pelas minhas contas, e de acordo com a própria narrativa do Seleiro, o "acidente" foi a 11 de março de 1970, uma quarta-feira... Evacuados para o HM 241, em Bissau, os nossos camaradas partem em avião militar, para Lisboa,no dia seguinte, dia 12, à noite. Chegam a Figo Maduro, na sexta-feira, 13, às 5 horas da manhã.