Mostrar mensagens com a etiqueta Sertã. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Sertã. Mostrar todas as mensagens

sábado, 19 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23093: Os nossos seres, saberes e lazeres (497): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (42): Em Cernache do Bonjardim e na Sertã, no dia em que aqui recebi a segunda dose da vacina (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos,
Aqui se completa a viagem, de Cernache do Bonjardim até à Sertã, o pretexto fora a segunda dose da vacina e um afeto dilatado que tem pelo menos um quarto de século, quando começaram as digressões a partir da Serra da Lousã até Pedrógão Grande e depois o deslumbramento com todo este coberto florestal, sentindo que há um património injustificadamente ignorado. As vilas são aprazíveis, as redes rodoviárias de muito boa qualidade, a gastronomia de arromba, as praias fluviais acarinhadas, bons parques de campismo, impressiona o desvelo com que se trata o património religioso, há esforço cultural para trazer até à Sertã uma alargada mundividência, é o que acontece com uma iniciativa peculiar que dá pelo nome de Maratona de Leitura e que pôs a Sertã no mapa dos importantes eventos culturais. E para que se julgue o valor do seu património edificado, recorda-se que já se falou do edifício autárquico gizado por Cassiano Branco, e o leitor seguramente tomará nota de que vale a pena visitar a Igreja da Misericórdia e andar de boca aberta a contemplar a Igreja Matriz, merecedora do epíteto de estar entre as mais belas Igrejas de Portugal.

Um abraço do
Mário



Em Cernache do Bonjardim e na Sertã, no dia em que aqui recebi a segunda dose da vacina (2)

Mário Beja Santos

Pode dizer-se sem exagero que Cernache do Bonjardim acaba por ser uma capital da missionação no nosso país. Tudo começou em 1791, no velho Parque e Paços de Bonjardim arranjou-se espaço para a edificação de um seminário ajustado às necessidades do Grão-Priorado do Crato, mais tarde sairão daqui sacerdotes para as missões da China e temos um novo período da vida da instituição, torna-se no Colégio das Missões Ultramarinas (1855-1911). Cernache deixava de se confinar às missões do Oriente, agora tinha a ver com as missões ultramarinas do Padroado português, e ficava sob a alçada do Estado. Não lhe foi indiferente o que se estava a passar na constituição do III Império Português e o aumento da presença em África, e por isso o colégio formava levas cada vez maiores de alunos e missionários. Segue-se outro período, o da República, com uma nova orientação, a laicização, passava a estar destinado à propaganda civilizadora nas colónias portuguesas, formaram-se missionários que tinham fartas caraterísticas e o nome das missões de Republicanos: 5 de outubro, Cândido dos Reis, por exemplo. Os resultados não foram satisfatórios, os próprios dirigentes republicanos o confessaram. Seguem-se duas novas etapas, o Colégio das Missões Católicas Ultramarinas (1927-1932) e a partir de 1932 temos a Sociedade Missionária Portuguesa que a partir de 1934 adotou a designação de Sociedade Missionária da Boa Nova, o seu campo de ação tem vindo a alargar-se: Moçambique, Angola, Brasil, Zâmbia e Japão. Na impossibilidade de visitar a biblioteca ou a sala de ciências, deixa-se imagens de um pormenor do claustro e as lápides que recordam aonde se missionou e quem por elas deu a sua vida.

Esta instalação com beiral tipo casa portuguesa guarda as últimas recordações da Companhia Viação Cernache que à data da sua nacionalização era a terceira maior do país, com uma frota amplíssima, que excedia as recordações da minha infância, via frequentemente estes autocarros na zona da Almirante Reis, saíam daqui até à Sertã e irradiavam para vários polos. E assim satisfiz esta reminiscência da infância, a fachada foi reparada mas guarda belos azulejos, a frota tem outro nome, sempre lhe chamei Empresa de Viação Cernache, mas de facto é Companhia de Viação, fundada por Libânio Vaz Serra, um empreendedor local.

Tomada a vacina, há que voltar ao trabalho, na Sertã tenho dois objetivos, a Igreja da Misericórdia e a Igreja Matriz, estão bem próximas, visitar esta última implicou telefonema ao Sr. Padre Daniel Almeida, que concedeu todas as facilidades.
Comecei pela Igreja da Misericórdia, obra da Confraria de São João da Sertã, aí para meados do século XVI, depois o templo passou para a dependência da Santa Casa da Misericórdia. Distingue-se o esplendor da talha dourada, os azulejos figurativos em dois níveis, encimados por cornija de talha dourada. É um templo de uma só nave, com dois altares, duas sacristias e coro-alto. No teto surge pintado o brasão da Misericórdia, além de outros motivos decorativos. Segundo a literatura, a capela-mor segue o barroco de estilo nacional, teto de caixotões de brutesco, pintado no século XVIII. As paredes laterais da capela-mor são forradas de azulejos azuis e brancos com cenas marianas. Há pintura a óleo e imagens em calcário coimbrão que merecem a atenção do visitante.

E passamos para a Igreja Matriz, considerada entre as mais belas igrejas de Portugal. Entro aqui com um texto de Júlio Gil do livro “As mais belas Igrejas de Portugal”, Editorial Verbo, 1988, e passo a citar: “Conquista a nossa imediata adesão este espaço amplo, acolhedor, sereno, onde duas belas e elegantes linhas em quatro tramos de arcos quebrados separam as três naves. As arcarias apoiam-se em fortes pilares de granito, pedra que dá solidez a todo o edifício, mas suavizado pelo seu possível aspeto de agressiva dureza com os cortes em bisel de todas as arestas, mesmo dos arcos. Revestidas as paredes com valiosos azulejos quinhentistas e seiscentistas, contribuem decisivamente para o agrado que proporciona este ambiente, acrescido ainda pela qualidade das talhas douradas barrocas em que estão realizados o retábulo e o altar da capela-mor, os dois altares laterais e o elegante púlpito”.
O visitante sente-se surpreendido pelas inscrições que se posicionam ao lado da portal da fachada lateral direita, ali se diz que a igreja foi feita em honra de São Pedro e quem a executou foi João Anes Pedro de Ourém. Também ali se pode observar uma Sertã, a chave de São Pedro e a Cruz de Malta. E agora toca de entrar nesta igreja que foi construída nos inícios do século XV.

Estamos num edifício tardo-medieval cheio de intervenções, adicionaram-se capelas, ampliou-se o interior para acolher a Colegiada da Sertã, seguiu-se no século XVII o revestimento azulejar, transbordante, há o sentimento de que estamos num edifício misto, onde se entremeiam temas religiosos e palacianos. É uma igreja de três naves, apartadas por quatro arcos torais quebrados, assentes em pilares cruciformes. O olhar vai imediatamente para esta opulência de tapetes azulejares, para os painéis, e se a visita se prolongar há pintura tardo-maneirista de grande valor, sente-se mesmo influências do maneirismo e talo-flamengo.

A capela-mor é revestida de azulejos idênticos ao da nave. O grande destaque vai, porém, para o retábulo do altar-mor em talha dourada, é barroco português, e tem imponência o cadeiral da colegiada e a cobertura em abóbada de berço em cantaria, com caixotões intercetados por almofadas pintadas com figuração sacra.

Descobriram-se painéis de azulejos, belíssimos, um deles completo, outro não tanto, suficientemente impressionantes para sentirmos que neste templo religioso houve grosso investimento, artistas talentosos, aqui se guarda um património riquíssimo, um dos ex-líbris do concelho da Sertã.
E na sacristia duas imagens de São Pedro e São Paulo, belas e antigas, cuidadosamente conservadas, estão ali em jeito de despedida, a convidar novas visitas, já que a Sertã tem muito a oferecer em património natural e histórico, em museologia, em gastronomia. E aqui nos despedimos, nunca se sabe se não haverá terceira vacina e teremos então circunstância de dilatar o olhar sobre a Sertã e os seus primorosos arredores.


____________

Notas do editor:

Poste anterior de 12 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23071: Os nossos seres, saberes e lazeres (495): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (41): Em Cernache do Bonjardim e na Sertã, no dia em que aqui recebi a segunda dose da vacina (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 15 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23081: Os nossos seres, saberes e lazeres (496): Guerra e Desporto, mais um artigo de Alexandre Silveira publicado no Jornal Fayal Sport Club (José Câmara, ex-Fur Mil Inf)

sábado, 12 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23071: Os nossos seres, saberes e lazeres (495): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (41): Em Cernache do Bonjardim e na Sertã, no dia em que aqui recebi a segunda dose da vacina (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos,
Passei vezes sem conta por Cernache, lembranças para visitas e satisfação da curiosidade nunca foram satisfeitas. A Empresa de Viação Cernache era uma lembrança da minha infância, a minha mãe levou-me na Rodarte para ver as amendoeiras em flor, em 1952, no Algarve e um ano depois viajamos na Empresa de Viação Cernache para Tomar. Como era professora primária, tudo era explicadinho, o itinerário não só até Tomar, o autocarro não se confinaria a Cernache, seguiria até às Beiras, naquele tempo era a rota obrigatória, o quadro só mudou quando apareceu a ponte sobre o Zêzere, então os expressos utilizavam a A23 e o IC8, a importância rodoviária de Cernache decresceu. Passei férias durante anos na Foz do Arelho onde na sala de jantar havia um quadro enorme de Túllio Victorino, o meu padrinho falou-me deste pintor elogiando a sua obra, daí o acicate em querer visitar o ateliê, desta vez não consegui mas um dia acontecerá. O Real Colégio das Missões é uma referência obrigatória para quem estuda as missões em África, alguns padres guineenses vieram estudar a Cernache e um dia que possa visitar a biblioteca hei de perguntar o que nela consta do primeiro sábio guineense de origem africana, o meu muito estimado Padre Marcelino Marques de Barros. Aqui ficam recordações, as primevas, da chegada a Cernache, haverá algumas mais, e depois vou vacinar-me na Sertã e visitar algo que provavelmente vos irá empolgar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (41):
Em Cernache do Bonjardim e na Sertã, no dia em que aqui recebi a segunda dose da vacina (1)

Mário Beja Santos

Ao amanhecer de 9 de julho, parto de um lugarejo de Tomar com destino à Sertã, é dia da segunda dose da vacina. Organizei a viagem de modo a estar pelas dez horas na Junta de Freguesia e visitar o ateliê do pintor Túllio Victorino, o Seminário das Missões e o que foi a Empresa de Viação Cernache, de que guardo lembranças da infância. A que propósito o pintor Túllio Victorino? Passei férias numa casa alugada pelos meus padrinhos na Foz do Arelho, era a antiga colónia de férias do Colégio Moderno. Na ampla sala de jantar, o meu padrinho colocara um imponente quadro a óleo, a Praça dos Restauradores debaixo de chuviscos, o cinema Éden iluminado, o padrão aos heróis da Restauração numa semiobscuridade, impressionante obra-de-arte, hesitava entre o neoimpressionismo e o naturalismo. O meu padrinho esclareceu-me: “É do Túllio Victorino, excelente artista, não é Malhoa nem Silva Porto, mas anda perto”. Foram anos a fio a contemplar este quadro. E sempre que passava por Cernache, bem curioso com esta construção de 1910, compósita, com laivos de arabescos, telhados de beiral, azulejos moçárabes, janelas com laivos medievais, prometia a mim mesmo uma visita que jamais se efetuou. Apresentei-me na Junta de Freguesia, recebi uma obra sobre Cernache de Bonjardim e a informação de que o ateliê estava em obras. Comecei a digressão por Cernache olhando este revivalismo do princípio do século XX, os arcos em ferradura, e olhei demoradamente a estrutura de ferro e o janelão do salão. Túllio Victorino residiu aqui até 1969, o edifício entrou em degradação, a Câmara Municipal transformou-o no “Espaço Cultural Túllio Victorino”, em 2008.

Nora à volta do Espaço Cultural Túllio Victorino
Quadro a óleo de Túlio Victorino
Retrato de Túlio Victorino
Irresistível não fotografar este estreito caminho entre duas ruas, em Cernache do Bonjardim

Bati à porta do Seminário das Missões, houvera conversa telefónica com alguém que se revelara prestável, marcou-se dia e hora para visitar o antigo Real Colégio das Missões Ultramarinas, mandado edificar em 1791 e com a finalidade de preparar sacerdotes para o Grão-Priorado do Crato. No início do século XIX, Mariana de Áustria dotou-o com uma renda para formar padres para a China. O colégio foi encerrado em 1834 e reabriu em 1855 com a função de preparar pessoal missionário para os territórios ultramarinos do Padroado – assim surgiu o Colégio das Missões Ultramarinas. Segue-se a reviravolta de 1911, instala-se aqui um Liceu Colonial e depois o Instituto das Missões Coloniais. Em 1926, o edifício foi restituído aos seus antigos possuidores e em 1930 o seminário passou a integrar a Sociedade Missionária da Boa-Nova. Aqui se formaram centenas de sacerdotes, daqui saíram doze futuros bispos. Venho na mira de me ofuscar com a impressionante biblioteca e a sala das ciências. Quem me recebe nada sabe do telefonema anterior, o padre ecónomo está ausente, a informação é de que tanto a biblioteca como a sala das ciências estão em obras. Paciência, recebe-se permissão para fotografar a boa azulejaria, o claustro e lápides que recordam as missões ultramarinas e quem deu a vida por elas. Dia virá em que poderei aqui vir contemplar esta biblioteca com cerca de 7300 obras, há aqui mesmo um exemplar do dicionário em “Ambrosie Calepini”, que traduz uma palavra em dez línguas, e se possível aproveitarei para ir à sala das ciências para ver como se ensinava os missionários em tempos antigos.

Enquanto percorro estas instalações, penso nos documentos que tive a possibilidade de ler que governadores coloniais enviaram para aqui jovens para se formarem, inevitavelmente veio-me à mente o nome do Padre Marcelino Marques de Barros, que foi Vigário-geral da Guiné, e é seguramente o primeiro sábio guineense, já tem sido alvo de estudos, bom seria que a Guiné-Bissau tratasse a sua memória como património incontornável, saiu das suas mãos o primeiro dicionário de português e crioulo guineense, levantou histórias e tradições, sabe-se lá se se passeou neste claustro com que agora me despeço, ainda vamos continuar a falar de missionários, sigo depois para a antiga Empresa de Viação Cernache e depois a vacina e depois muitas coisas mais há para visitar na Sertã.

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23051: Os nossos seres, saberes e lazeres (494): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (40): Os esplendorosos jardins do Palácio dos Marqueses de Fronteira (2) (Mário Beja Santos)

sábado, 1 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22865: Os nossos seres, saberes e lazeres (485): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (31): Lembranças sertaginenses, pedroguenses e reguengueiras (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
A pretexto de uma nova vacinação, viajou-se com pouca bússola, ao sabor de encontros originais, mesmo confrontado com matéria repetitiva. Reconheça-se que José Saramago tem carradas de razão quando escreveu na sua Viagem a Portugal que o que se vê de manhã não é o que se vê de tarde, é tudo diferente com calor ou frio, ao sabor das estações, até de quem nos acompanha e do grau de disponibilidade que temos para fruir o que já se viu e se repete com a descoberta de diferenças. Pois foi o que aconteceu, a estonteante sinfonia de cor da folhagem outonal, passar por dois espaços carregados de memória, lembrar seres amados ou um projeto devorado pelo fogo, e arribar a um local que nos dá agora tanto aprazimento e registar o fim do dia, porque há amanhãs que cantam, basta ter paz interior e alegria para viver.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (31):
Lembranças sertaginenses, pedroguenses e reguengueiras


Mário Beja Santos

Convocado por SMS para nova vacina na Sertã, decidi-me pelo improviso puro, nada de leituras prévias, de andar a bisbilhotar guias à procura de mares nunca dantes navegados, o que for soará. Após a prestimosa vacina, desce-se à Avenida da Carvalha, como resistir a este deslumbre de cor. Intercalam-se cores esmaecidas e outras quase fluorescentes, é o outono vibrátil, sim, todo este folhedo cairá por terra, será um trabalho suplementar para a limpeza autárquica, para evitar acidentes com as quedas, enquanto estão gloriosas no arvoredo enchem-nos de encanto, no chão atormentam-nos por simbolizarem o fim de vida, embora sabendo que é a podridão orgânica, tem a força de adubo, fertilizante, elemento regenerador. E por ali andei embriagado com esta visão de coloridos, indiferente ao pensamento de que toda esta cor preludia o repouso invernal.

Estou em maré de lembranças, havia uns livros para entregar na Biblioteca Municipal de Pedrógão Grande, onde se guarda memória da minha adorada filha Glória, a autarquia abraçou a minha proposta de se fazer um recanto em sua lembrança, lá o vamos nutrindo com papelada e alguns objetos de Arte que possam amenizar a vida dos leitores. Se sorte tive com o calor outonal na Sertã, aqui apanhei a luz do meio-dia, tenho a impressão que a cirurgia que fiz a uma catarata me fez recuperar tons que me pareciam neutralizados, fui tomando imagens de alguns ângulos, é um espaço que acarinho e para aqui conto caminhar até ao fim dos meus dias.
Quem está em Pedrógão Grande aproveita para nova rememoração, bem negra por sinal. Ainda não se tinha dobrado o século e aqui se adquiriu uma casa agrícola pronta para ser renovada, depois de 20 anos ao abandono. Guardo as melhores recordações do entusiasmo posto neste projeto, encontrou-se uma equipa de truz que deu resposta a espaços confortáveis, tudo renovado, e parecia seguro, aprazível, aqui se recebeu muita gente, até de vários continentes, se ouviu o rouxinol nas noites quentes, o esvoaçar dos morcegos, o piar dos mochos. Ouviam-se as vozes dos velhos agricultores e recebiam-se prendas como um lauto saco de tomate, plantou-se um belo rododendro, havia a felicidade de cultivar, plantar, estar sentado num banco a ouvir o sibilar dos eucaliptos, em contraste com o quase imobilismo dos carvalhos. Pelo adiante, houve mudança de projetos, bateu à porta um casal de professores de ginástica que se tinham afeiçoado à casa, viviam longe e trabalhavam em Figueiró dos Vinhos, por artes mágicas ficaram com a bela casa de Casal dos Matos e entregaram um andar espaçoso em Tomar, outra experiência inesquecível.
E veio aquele inferno em 2017, foi devastador, o proprietário mais recente, de que desconheço o paradeiro, parece estar a remover as marcas do cataclismo, mas ainda dói que se farta saber que se pôs tudo aquilo de pé, que se removeu o apodrecido e se reconstruiu a preceito, que se deixou outros a continuarem aquela aventura, magoa este abandono quando se pôs tanto amor na reconstrução da casa que se encheu do mais doce convívio. Para que conste.

E de Pedrógão se viaja até Reguengo Grande, concelho da Lourinhã, outro projeto sonhador, desta feita em andamento e oxalá que perdure. É mesmo dia de novembro, venho até ao terraço apreciar a paleta de cores no céu, gosto muito destas duas alterações, aquele escuro que parece que esconde as formas, embota os volumes, massifica a superfície da encosta e subitamente é aquele festival de tons ígneos que marcam a despedida do dia, e ali fico especado com o dia de calor, as recordações, os símbolos da ascensão e queda, e também aqueles sinais que vêm dos céus que o dia parte para renascer, igualmente a vida se reconstrói e os sonhos medram, frutificam de acordo com a nossa curiosidade em nos sermos prestáveis e aos outros. E deste recanto tão formoso se regressa ao espaço onde este conjunto de imagens ganha sentido, e me ponho a comunicar para quem me lembra e eu guardo na agenda do meu coração.
(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 25 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22842: Os nossos seres, saberes e lazeres (484): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (23): Lisboa no tempo de D. Manuel I, a cidade que ambicionava o mundo (Mário Beja Santos)

sábado, 12 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22276: Os nossos seres, saberes e lazeres (455): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (2) Na Sertã, no dia em que aqui recebi a primeira dose da vacina (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
Foi um dia em cheio, passeou-se a preceito, a vacina não fez mossa, nem um simples ardor no braço, por ali se andou vivaço, subindo e descendo, sabendo de ciência certa que muito mais fica para ver quando se vier à segunda dose. Não se esconde o quanto se gosta desta região do chamado Pinhal Interior, presta-se homenagem aos edis que procuram a todo o transe embelezar este rincão de grande património vegetal, cuja importância para a História de Portugal se foi diluindo, aqui batalharam ordens militares em tempos da formação do país, há muito mais do que património natural, basta consultar o roteiro turístico da Sertã para perceber que não é digno de uma visita de médico. Há muito para ver, tudo farei para vos mostrar o ateliê de Túlio Victorino e o Seminário das Missões em Cernache do Bonjardim. Há capelas merecedoras de visita, há belas pontes, pelourinhos, Pedrógão Pequeno é uma aldeia de xisto e não se faz favor nenhum em pôr a Igreja Matriz da Sertã entre as mais belas igrejas de Portugal. Para quem gosta de arquitetura, convém recordar o génio de Cassiano Branco, o edifício da Câmara lembra por fora uma construção convencional, com reminiscências francesas e italianas, por dentro fica-se de boca aberta com a ousadia do traço e uma modernidade que ainda hoje perdura.

Um abraço do
Mário


Na Sertã, no dia em que aqui recebi a primeira dose da vacina (2)

Mário Beja Santos

Só para recordar que durante cerca de 20 anos mantive os pés em dois concelhos, Pedrógão Grande e Sertã. Foi experiência edificante, fazia o Vale do Cabril em ambas as margens do Zêzere, umas vezes começava na Cotovia, a admirar as vertentes pedregosas, descia pela Ponte Filipina e mudava de concelho, ou vice-versa. Gostei também sempre de ir à Barragem da Bouçã e escolher entre Figueiró-dos-Vinhos e a Sertã. Aqui experimentei todas as estações do ano, quer no silêncio da floresta, os vales adormecidos na invernia, o gemido das árvores repuxadas pela ventania, passei à procura das primeiras flores da Primavera, banhei-me nas praias fluviais, andarilhei à volta da Albufeira do Cabril, isto quando pousei noutro tipo de permanência no antigo bairro da EDP, o fim do dia é de uma esplendente luminescência e o casario de Pedrógão Pequeno ganha forma de presépio. E o médico de família que apostou na minha saúde até aos 150 anos deu conforto àquele telefonema que me convocava no dia tal e a horas tantas para receber a primeira vacina contra o Covid, nas instalações dos Bombeiros da Sertã. Tinha então despachado qualquer forma de habitação nos dois concelhos, quedando-me num lugarejo em Tomar. Foi com a maior alegria que daqui rumei bem cedo em direção à Sertã, uma viagem em que se enche os olhos com oliveiras e pinheiros, eucaliptos e sobreiros, castanheiros e azinheiras. Jurei que em definitivo iria conhecer as entranhas do edifício camarário sertaginense, projeto de Cassiano Branco, foi acontecimento de truz, que culminou com a visita àquelas salas onde a edilidade toda decisões, impossível não começar a narrativa do dia de hoje sem vos mostrar o pendão da Sertã, seguramente bordado a seda, veja-se tal beleza e harmonia de elementos. Volta-se à Carvalha, por ali se deslocam transeuntes em remanso, como a Natureza se pode disciplinar, transformando-se numa área de lazer que obtém o aplauso de todos. Fica-se ali a contemplar as águas, passeia-se de uma margem para a outra, há murmúrios de cascatas, olha-se para o alto para o Convento de Santo António, que já se conheceu em mau estado e que foi objeto de uma intervenção de truz, dá gosto por ali passear, não fica atrás das boas pousadas de Portugal.

E desce-se para cumprimentar o antigo professor, o Padre Manuel Antunes, um pensador de alto nível, como é que aquele franzino de gente, quase um besnico, de voz macia, um tanto ciciante, as mãos sempre elevadas, dominava perfeitamente o anfiteatro com os seus alunos de cultura clássica ou civilização romana? Era uma sageza de quem sabia encadear os dados da civilização da cultura, naqueles tempos o máximo de ilustração seriam os slides, mas nem a esse recurso o douto jesuíta se apoiava, era tudo aula magistral, as mãos pontificavam, pareciam desprendidas do corpo hirto, homem de grande singeleza e de comprovada cultura universal. Deixou saudades nos seus alunos, e neles me incluo, ninguém tem nada a perder em ler os seus trabalhos, felizmente editados pela Fundação Calouste Gulbenkian.

E Manuel Antunes é o nome da Biblioteca Municipal que foi criada ainda no século XX na dependência da Fundação Calouste Gulbenkian, instalada então no rés-do-chão dos Paços do Concelho. Com a reabilitação da antiga Casa dos Magistrados, a biblioteca ganhou autonomia em outubro de 2007 e o nome do patrono chegou cinco anos depois. Visito-a com deleite e cumplicidade, ali apresentei um livro, peço livros emprestados e já fui honrado com o convite para participar num dos maiores festivais literários de Portugal, a Maratona de Leitura. Não é uma biblioteca só destinada a requisitar livros ou ler jornais e revistas, quem a dirige tem espantosos programas de animação sociocultural e daí a reputação que a biblioteca ganhou e que extravasa o espaço do pinhal interior. Toca, pois, de a mostrar no seu interior e pôr em imagem um espaço ambientalmente amável e que se aproveitaram embalagens de plástico para ver crescer famílias de catos, que belo achado de reciclagem, vale a pena aqui fazer leitura com tal moldura vegetal.

Chegou a hora do piquenique, refere-se a moldura admirável da ribeira da Sertã, por ali a vista se espraia e mordisca-se o pão e come-se a fruta a contemplar aqueles terraços a que a memória se associa aos passeios que se fazem percorrendo a região de Proença até Vila Velha de Ródão, e nunca me canso de pasmar com o labor na construção daqueles terraços a que se arrancaram os pedregulhos não sei para cultivar quais alimentos, pressinto que era centeio, cá em baixo nos valados era lugar de milho e produtos de terra, crucias para a autossubsistência. Batemos com a mão no peito a falar no património material e imaterial, queremos mais e mais reconhecimento, nunca vi a defesa destes terraços marcadores de civilização, não tivessem sido estes agricultores a contrariar terra tão agreste, aqui se fixando com denodo e criando vínculos imemoriais, e teríamos um deserto humano, mesmo que tivesse sido vasto o coberto florestal. São obras do passado que caíram no esquecimento, ponto final, e a vista se regala a ver estes terraços que aformoseiam a encosta que beija a ribeira da Sertã.

Daqui se parte para uma outra romagem de saudade, a caminho do Zêzere, há uma paragem em Pedrógão Pequeno, inevitável uma curta visita ao Moinho das Freiras, atravessa-se a Albufeira do Cabril e entra-se em Pedrógão Grande. Nunca entendi muito bem como a edilidade não é capaz de exibir o seu baú patrimonial: há ruínas romanas, belas capelas no espaço da Devesa, há até para ali perdido no mato um forno romano, o centro histórico guarda vestígios medievais, a Igreja-Matriz é soberba, o património da Misericórdia soberbo é, creio que a generalidade de quem por ali passa desconhece o Museu Pedro Cruz, não foi artista transcendente mas deixou obra com significado, e o concelho guarda em Vila Isaura museus privados com património valiosíssimo, falta um roteiro para convidar o visitante a mergulhar em tanta oferta. Há pouco tempo, o meu amigo Aires Henriques, que detém em Vila Isaura (nos Troviscais) esse espólio soberbo que tem a ver com o povo ratinho, a presença dos primeiros republicanos, artefactos maçónicos, e muito mais, escreveu uma brochura sobre o seu espólio judaico, bem rico, que gostaria de ver exposto no Centro Histórico de Pedrógão Grande, a par de outros objetos culturais do seu património. Não sei o que irá acontecer, e lamento por tanta displicência na política cultural deste concelho.

E percorrendo as ruas deste Centro Histórico vou até à biblioteca cumprimentar gente muito amiga e visitar o espaço construído à memória de uma adorada filha que faleceu em 2009. E termina esta primeira visita, seguir-se-á a segunda vacina, e já se tomou nota do muito que há a ver na próxima viagem. Agora que o maranho da Sertã é marca protegida a nível nacional, tem selo de Indicação Geográfica, espera-se que com o desconfinamento no dia da segunda vacina se possa almoçar um tão suculento manjar, no intervalo das visitas que por ora se organizam no papel. Mas até lá o viandante não para, vai de seguida falar-vos de uma espantosa exposição que está no Museu do Neorrealismo em Vila Franca de Xira intitulada Representações do Povo, exposição talentosa coordenada pela sua diretora científica, Raquel Henriques da Silva.

(continua)

Na sala da Assembleia Municipal, acima de mobiliário de outros tempos, com o estadão do coro cravejado, o brasão da Sertã
A Alameda da Carvalha beneficiou desta ponte que aproxima espaços complementares, dá gosto por aqui passear num folgado espaço de entretenimento que permite espetáculos ao ar livre e com a imensidão florestal em círculo envolvente
A ribeira da Sertã sombreada, é fotografia, não é quadro a óleo, fiquem sabendo
Junto da Ponte Filipina o murmúrio das cascatas em perene mergulho das águas
Uma intervenção de bom gosto, um convento transformado em hotel, grande beleza
Um pormenor da Biblioteca Municipal Manuel Antunes
Espaço para ler jornais e revistas
Um achado da reciclagem, garrafas de plástico a fazer de vasos adornando magnificamente um espaço de lazer e leitura
Cultivo em socalcos à beira da ribeira da Sertã
A mansidão das águas num espaço idílico
Uma inevitável romagem de saudade à Biblioteca Municipal de Pedrógão Grande
____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22255: Os nossos seres, saberes e lazeres (454): Na Sertã, no dia em que aqui recebi a primeira dose da vacina (1) (Mário Beja Santos)