sábado, 1 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22865: Os nossos seres, saberes e lazeres (485): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (31): Lembranças sertaginenses, pedroguenses e reguengueiras (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
A pretexto de uma nova vacinação, viajou-se com pouca bússola, ao sabor de encontros originais, mesmo confrontado com matéria repetitiva. Reconheça-se que José Saramago tem carradas de razão quando escreveu na sua Viagem a Portugal que o que se vê de manhã não é o que se vê de tarde, é tudo diferente com calor ou frio, ao sabor das estações, até de quem nos acompanha e do grau de disponibilidade que temos para fruir o que já se viu e se repete com a descoberta de diferenças. Pois foi o que aconteceu, a estonteante sinfonia de cor da folhagem outonal, passar por dois espaços carregados de memória, lembrar seres amados ou um projeto devorado pelo fogo, e arribar a um local que nos dá agora tanto aprazimento e registar o fim do dia, porque há amanhãs que cantam, basta ter paz interior e alegria para viver.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (31):
Lembranças sertaginenses, pedroguenses e reguengueiras


Mário Beja Santos

Convocado por SMS para nova vacina na Sertã, decidi-me pelo improviso puro, nada de leituras prévias, de andar a bisbilhotar guias à procura de mares nunca dantes navegados, o que for soará. Após a prestimosa vacina, desce-se à Avenida da Carvalha, como resistir a este deslumbre de cor. Intercalam-se cores esmaecidas e outras quase fluorescentes, é o outono vibrátil, sim, todo este folhedo cairá por terra, será um trabalho suplementar para a limpeza autárquica, para evitar acidentes com as quedas, enquanto estão gloriosas no arvoredo enchem-nos de encanto, no chão atormentam-nos por simbolizarem o fim de vida, embora sabendo que é a podridão orgânica, tem a força de adubo, fertilizante, elemento regenerador. E por ali andei embriagado com esta visão de coloridos, indiferente ao pensamento de que toda esta cor preludia o repouso invernal.

Estou em maré de lembranças, havia uns livros para entregar na Biblioteca Municipal de Pedrógão Grande, onde se guarda memória da minha adorada filha Glória, a autarquia abraçou a minha proposta de se fazer um recanto em sua lembrança, lá o vamos nutrindo com papelada e alguns objetos de Arte que possam amenizar a vida dos leitores. Se sorte tive com o calor outonal na Sertã, aqui apanhei a luz do meio-dia, tenho a impressão que a cirurgia que fiz a uma catarata me fez recuperar tons que me pareciam neutralizados, fui tomando imagens de alguns ângulos, é um espaço que acarinho e para aqui conto caminhar até ao fim dos meus dias.
Quem está em Pedrógão Grande aproveita para nova rememoração, bem negra por sinal. Ainda não se tinha dobrado o século e aqui se adquiriu uma casa agrícola pronta para ser renovada, depois de 20 anos ao abandono. Guardo as melhores recordações do entusiasmo posto neste projeto, encontrou-se uma equipa de truz que deu resposta a espaços confortáveis, tudo renovado, e parecia seguro, aprazível, aqui se recebeu muita gente, até de vários continentes, se ouviu o rouxinol nas noites quentes, o esvoaçar dos morcegos, o piar dos mochos. Ouviam-se as vozes dos velhos agricultores e recebiam-se prendas como um lauto saco de tomate, plantou-se um belo rododendro, havia a felicidade de cultivar, plantar, estar sentado num banco a ouvir o sibilar dos eucaliptos, em contraste com o quase imobilismo dos carvalhos. Pelo adiante, houve mudança de projetos, bateu à porta um casal de professores de ginástica que se tinham afeiçoado à casa, viviam longe e trabalhavam em Figueiró dos Vinhos, por artes mágicas ficaram com a bela casa de Casal dos Matos e entregaram um andar espaçoso em Tomar, outra experiência inesquecível.
E veio aquele inferno em 2017, foi devastador, o proprietário mais recente, de que desconheço o paradeiro, parece estar a remover as marcas do cataclismo, mas ainda dói que se farta saber que se pôs tudo aquilo de pé, que se removeu o apodrecido e se reconstruiu a preceito, que se deixou outros a continuarem aquela aventura, magoa este abandono quando se pôs tanto amor na reconstrução da casa que se encheu do mais doce convívio. Para que conste.

E de Pedrógão se viaja até Reguengo Grande, concelho da Lourinhã, outro projeto sonhador, desta feita em andamento e oxalá que perdure. É mesmo dia de novembro, venho até ao terraço apreciar a paleta de cores no céu, gosto muito destas duas alterações, aquele escuro que parece que esconde as formas, embota os volumes, massifica a superfície da encosta e subitamente é aquele festival de tons ígneos que marcam a despedida do dia, e ali fico especado com o dia de calor, as recordações, os símbolos da ascensão e queda, e também aqueles sinais que vêm dos céus que o dia parte para renascer, igualmente a vida se reconstrói e os sonhos medram, frutificam de acordo com a nossa curiosidade em nos sermos prestáveis e aos outros. E deste recanto tão formoso se regressa ao espaço onde este conjunto de imagens ganha sentido, e me ponho a comunicar para quem me lembra e eu guardo na agenda do meu coração.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22842: Os nossos seres, saberes e lazeres (484): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (23): Lisboa no tempo de D. Manuel I, a cidade que ambicionava o mundo (Mário Beja Santos)

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