segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22849: Notas de leitura (1402): Memórias de um alferes, Leste da Guiné, 1967-1969: A CART 1690, uma das mais sinistradas, em toda a Guerra da Guiné (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos,
Aqui fica o relato que António Martins Moreira dedicou à sua CART 1690, de vida tão atribulada, no setor de Geba, nunca pensei que os meus vizinhos para lá da ponte do rio Gambiel atingissem tal nível de sofrimento. No início da guerra houve uma separação radical da população no regulado de Mansomine, região onde o PAIGC passou a dispor de algumas bases como Sinchã Jobel, e mais para o interior Sara-Sarauol, confinando, um pouco mais abaixo, com Belel, aqui estacionavam, tal como em Madina, os meus atacantes. Ficamos a dever a António Martins Moreira um belo depoimento, ele não se cansa de afirmar que comandou gente de bravura e de enorme capacidade de sacrifício. Veio a tempo, felizmente, uma importante narrativa para que não se esqueça o que foi a vida dura no setor de Geba entre 1967 e 1969.

Um abraço do
Mário



Memórias de um alferes, Leste da Guiné, 1967-1969:
A CART 1690, uma das mais sinistradas, em toda a Guerra da Guiné

Mário Beja Santos

Trata-se de uma edição do Município de Idanha-a-Nova, com data de 2018, são as memórias do então alferes António Martins Moreira, que combateu na região de Geba, entre 1967 e 1969, não quis o destino que nos conhecêssemos, éramos vizinhos, ele estava para lá da ponte do Rio Gambiel, eu para cá, e quando ele diz que a paisagem era deslumbrante, estou à vontade para o confirmar. Este nativo de Penha Garcia foi para Mafra em janeiro de 1966, onde permaneceu até julho, promovido a aspirante foi transferido para o Regimento de Infantaria em Abrantes, e aqui mobilizado e colocado na CART 1690, do BART 1914, frequentou o curso de operações especiais, em Lamego, ainda andou por Lisboa, Torres Novas e Oeiras, desembarcou no Pidjiquiti em 15 de abril de 1967, quem comanda a companhia é o Capitão Manuel Carlos Guimarães. Faz-se a viagem sacramental até Bambadinca, seguem para Bafatá, é-lhes atribuído o setor de Geba. Nesta localidade substituem a CCAÇ 1426. A Companhia dissemina-se por quatro destacamentos. A 17, avança para Banjara, que ele classifica como pior destacamento a seguir a Madina do Boé. “Banjara era um destacamento de alto risco, situado na estrada de Bafatá-Mansabá, a cerca de 40 quilómetros de Geba, e outros tantos de Bafatá, na mata do Oio”

Descreve Banjara e o seu perímetro. O destacamento era um verdadeiro inferno se bem que só tenha havido uma flagelação, era o isolamento, não havia população civil, os abastecimentos e o correio chegavam uma vez por mês. Banjara tinha um grupo de combate, reforçado por uma seção de autometralhadoras, Granadeiros da Cavalaria de Bafatá, um Esquadrão de Reconhecimento, 15 milícias, uma seção de armas pesadas, num total de 70 a 80 homens. “Lá passámos os 8 mais longos meses da nossa juventude”. Descreve as atividades desenvolvidas em Banjara.

Em 21 de agosto morre o comandante da Companhia e o seu guarda-costas, caíram num campo de minas anticarro e antipessoal na estrada de Geba-Banjara, depois de terem ultrapassado o destacamento de Sare Banda. O Alferes Domingos Maçarico passou a comandar a Companhia, Martins Moreira e Maçarico trocam posições, Martins Moreira vai para Geba. O histórico desta unidade militar é marcado por várias infelicidades, para além da morte do Capitão Guimarães, os alferes Maçarico e Marques Lopes foram evacuados com ferimentos em combate. Recorda situações penosas como quinze dias de alimentação sem sal e depois dá-nos uma descrição do destacamento de Cantacunda, a cerca de 35 quilómetros para norte, refere os efetivos, não esquecem o nome do comandante do pelotão de milícias, Samba So, o destacamento tinha população civil e régulo. 

Parecia calmo e seguro, mas era profundamente vulnerável, como se comprovou em abril de 1968, um numeroso grupo do PAIGC apanhou a guarnição descontraída, tomou de assalto a caserna e os abrigos, aprisionou 12 elementos, assassinou um à facada. Muitos militares conseguiram escapar e chegaram a Geba depois deambularem pelo mato uma noite inteira. Dez destes prisioneiros virão a ser resgatados em 1970, no âmbito da Operação Mar Verde.

O novo comandante da CART 1690 passou a ser o Capitão Sarmento Ferreira, é chamado a Bafatá onde lhe entregam uma ordem de operações para uma batida de Sinchã Jobel, uma importante base do PAIGC, vão dois destacamentos, a CART 1690 com três grupos de combate, Martins Pereira está em Banjara, mas dá-nos a versão dos acontecimentos. Quando os efetivos chegaram as imediações do objetivo já estavam bem referenciados pelas sentinelas, as nossas tropas caíram numa emboscada brutal, procuraram reagir abatendo os atiradores que estavam na copa das palmeiras, mas o embate era fortíssimo, retiraram deixando para trás alguns mortos e feridos e cerca de 25 desaparecidos que só se conseguiram recuperar, completamente extenuados e famintos, no dia seguinte. 

O Alferes Fernandes foi assassinado a sangue frio, conforme testemunhou o seu guarda-costas, que nessa ocasião se fingiu de morto. O Alferes Fernandes tinha substituído o Alferes Marques Lopes, ferido em 21 de agosto. O resultado desta operação foram nove mortes e cerca de vinte feridos.

O autor refere que faltavam cerca de 25 elementos, no rescaldo desta ida a Sinchã Jobel foi recuperar os desaparecidos, na manhã seguinte. Ao amanhecer, estavam em frente ao objetivo, foram aparecendo soldados a correr em grupos, completamente exaustos, um deles vinha gravemente ferido. Teve apoio aéreo e um dos pilotos avisou que à frente, a cerca de 2 quilómetros, aguardava-os uma forte emboscada, inverteram a marcha, novo aviso que há emboscada à frente, então afastam-se da picada e embrenham-se na mata até à margem do rio Geba.

 Repetiu-se a operação de resgate no dia seguinte, ainda faltavam 9 ou 10 homens, recuperaram todos com exceção do assassinado Alferes Fernandes e de um capturado, gravemente ferido e levado para Ziguinchor. “Ficou ainda o Armindo Correia Paulino, o magarefe da Companhia, também assassinado, fria e cobardemente, à facada por vários elementos do PAIGC, depois de o terem cercado e aprisionado”.

Fazendo o balanço da situação, o autor estima que em maio de 1968 a sua unidade vivia numa situação muito difícil, o comandante Companhia morto em combate, dois alferes evacuados, o Alferes Fernandes assassinado, em abril passado o assalto a Cantacunda com resultados trágicos, a Companhia estava desmoralizada. 

Em junho, o destacamento de Sare Banda, na estrada Bafatá-Mansabá, com quarenta milícias, foi tomado de assalto pelo PAIGC, com a cumplicidade do chefe de tabanca. Os guerrilheiros incendiaram todas as moranças. “Sare Banda era um destacamento vital que nos garantia a progressão a poente na direção de Mansabá até ao nosso destacamento de Banjara, o mais isolado. Retornava-se, pois, imperioso reocupar, reconstruir e reforçar este destacamento. Foi esta a missão que recebemos”

E dá-nos conta dos trabalhos de reconstrução, ergueram-se seis abrigos subterrâneos, construiu-se uma autêntica fortaleza. Findas as obras, Martins Moreira regressa a Geba. Em 12 de junho, o PAIGC ataca Sare Gana, o pelotão de milícias reage com bravura, houve que recuar, PAIGC instalou-se, na manhã seguinte as nossas tropas puseram os atacantes em debandada. Ao fim de 19 meses no setor de Geba, a CART é transferida para Bissau, teve uma comovente despedida em Geba, os últimos 4 meses foram relativamente tranquilos, fazendo colunas, rusgas, preceitos da rotina, várias emboscadas sem confronto, em 2 de março de 1969 embarcam para Lisboa. Há ainda alguns textos soltos, a completar a missão.

Um relato bem sentido da história de uma unidade militar que conheceu o martírio e o pleno sofrimento, muitos mortos, sequestros, homens devastados e perdidos depois de uma tempestade de fogo. E enternecedor, atenda-se que António Martins Moreira já não é criança, mas exigiu-se ao dever da memória, fielmente cumprido.

António Martins Moreira, no lançamento do seu livro na Câmara Municipal de Idanha-a-Nova
Bafatá
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22828: Notas de leitura (1401): "Adeus... até ao meu regresso": livro de memórias fotográficas de 56 antigos combatentes, naturais de Vila Real, incluindo o Miguel Rocha, ex-alf mil inf, CCAÇ 2367/BCAÇ 2845, "Os Vampiros" (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70) - Parte I

7 comentários:

José Botelho Colaço disse...

Um das 1ª companhias a ocupar aquelas zonas subsectores creio que foi a C.caç 412 a seguir a minha C.caç. 557 que rendeu a 412 e a 1426 que redeu a 557 e pela narrativa a C.Art. 1690 que rendeu a 1426 tenho acompanhado os posteres referentes a estas companhias devido a ser chão que eu pizei e acabo por concluir que eu tive muita sorte em ser dos primeiros, pelos relatos vividos a situação piorou muito de dia para dia o que será contabilizar para pior 4 anos quando ano tem 365 dias. Exemplo basta lembrar que a secção do Geba em 1965 era comandada apenas por uma secção 9 homens onde a patente de comando era um Furriel.

Valdemar Silva disse...

Ufff
Arrepiante !!!

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O António Moreira é membro da nossa Tabanca Grande tal como os restantes alferes da sacrificada e heróica CART 1690. Falta neste poste o marcador "António Moreira". Vou pedir ao Carlos Vinhal para fazer a actualização.

António J. P. Costa disse...

Olá Camarada Moreira

Devido à pandemia o BArt. 1914 não se tem reunido no eixo ex-RAL1-João do Grão com o Maçarico, o Alex Nunes, o Alves de Sousa e os outros. Costumávamos ser 7 e íamos fazer festas no monumento aos mortos da unidade. Não tive ocasião de comprar o teu livro. Ora informa como posso comprá-lo, mas não te esqueças do autógrafo.
Tenho para oferta, escrito por mim e aí falo da minha passagem por Banjara (2 visitas).
Um Ab.
António J. P. Costa

Cherno Baldé disse...

A CART 1690 (do Alferes Marques Lopes), de facto, foi das mais sacrificadas nao soh no seu tempo, mas provavelmente de toda a guerra. Tudo contribuiu para que isso acontecesse, desde a localizaçao dos Destacamentos a seu cargo quase em pleno Oio (Banjara, Cantacunda, Saré-Banda), a distancia entre os Destacamentos entre si e com a Sede da Companhia (Geba), o periodo da sua Comissao (1967-1969), se nao o mais violento, pelo menos, o mais mortifero de toda a guerra e que, para muitos analistas, é considerado o momento da viragem a favor da guerrilha, consubstanciado na frase "...Quando o Gen. Spinola chegou, a guerra estava quase perdida...". Curiosamente, no mesmo periodo, os Destacamentos da zona um pouco mais a Norte (Fajonquito-Saré-Jamara-Cambaju) mesmo com alguns ataques e minas nas picadas e exceptuando a chacina de Janeiro de 1966 em Saré-Dico, dos elementos do BCAV 757 (As-de-Copas) relatado nos Diarios de Inacio Maria Gois e Cristovao de Aguiar, foram menos azarados. Enquanto que o eixo Contuboel-Sonaco, na mesma regiao, era uma zona de paz. Segundo o Inacio Maria Gois (CCAC 674_1964/66) o ultimo ataque a Fajonquito aconteceu em Setembro de 1964. Em contrapartida os seus Destacamentos de Suna (perto de Cantacunda) Saré-Jamara (perto de Saré-Dico, na estrada para Canjambari), Cambaju e Saré-Uale (a Nordeste de Fajonquito) foram muito castigados com ataques e flagelaçoes e nao sabiamos o que o destino nos reservava, nao fosse o 25A74.

Com um abraço amigo,

Anónimo disse...

PS:

O que, na minha opiniao, foi muito lamentavel, apesar dos factores que mencionei mais acima, a que acrescentava o numero de efectivos, logistica e armamentos, os Comandantes desta Companhia (1690) nos seus relatorios de ocorrencias, sistematicamente, encontraram seus bodes expiatorios seja na populaçao civil, constituida quase exclusivamente por Fulas, seja nos Chefes tradicionais (régulos) que foram presos e sujeitos a humilhaçao e tortura fisica e psicologica, e outras vezes nos elementos das milicias locais. Isto foi muito mau, pois a memoria colectiva da comunidade local ainda nao esqueceu. Estas populaçoes foram mal tratadas durante a guerra e no fim acabaram por ser vitimas dos "libertadores" por colaboracionismo com o IN. Por outras palavras, preso por ter cao e por nao ter. Ao menos resta-nos o consolo pelo facto de o ex-Alferes, Marques Lopes, reconhecer que foram erros cometidos devido a desorientaçao, do momento, dos seus responsaveis e pela necessidade imperiosa que se impunha de justificar o injustificavel, pelo que tinham apontar o dedo a alguém e

Abraços,

Cherno Baldé

Anónimo disse...

...E o elo mais fraco situava-se, precisamente, nos elementos menos sujeitos ao controlo do efectivo militar e com menores possibilidades de defesa.

Cherno AB