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quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22526: Histórias... com abracelos do Carlos Arnaut (ex-alf mil, 16º Pel Art, Binar, Cabuca, Dara, 1970/72)(5): O jogo do ouri (ou mancala)


1. Mensagem de Carlos Arnaut, ex-alf mil, 16º Pel Art, Binar, Cabuca, Dara, 1970/72)

Data - segunda, 16/08/2021, 13:12



Assunto - Jogos ancestrais (*)


Bom dia, Caro Luís,

Em primeiro lugar o meu desejo de óptimas férias a todos os camaradas, num tempo em que a ameaça que sobre nós pairou parece estar finalmente a desvanecer-se (com ajuda da Marinha).

Deparei num Blog de que sou leitor assíduo, e no seguimento de comentários avulsos sobre o xadrez, jogo de que sou fã, uma referência a um jogo "mancala", que em tempos idos seria jogado pelos árabes e de que existem vestígios no Alentejo.

Este jogo, também ele um jogo de estratégia para dois jogadores, consistiria na transferência de punhados de pedrinhas de cova para cova até se atingir o lado oposto.

A descrição não vai mais além, mas desde logo me recordou aquilo que observei vezes sem conta ser jogado nas zonas por onde andei, na Guiné.

Utilizando-se um madeiro com duas fiadas de covas, os jogadores iam tirando o que me parecia serem umas sementes grandes e arredondadas, de uma cova e vertendo-as noutra ou noutras covas, não tendo eu nunca entendido nem as regras nem quem seria o vencedor.

Recordo-me no entanto que os jogadores estavam sempre altamente concentrados, às vezes com assistência, e tanto quanto me recordo os jogadores eram sempre homens feitos, nunca vi garotos entretidos com tal jogo.

Lembras-te de ter presenciado este jogo? Consegues adiantar mais alguma coisa?

Talvez o nosso amigo Cherno Baldé me consiga matar esta curiosidade, pois acredito que este jogo merece ser divulgado.

Se entenderes que este assunto vale a pena ser debatido, vai em frente.

Grande abraço (agora sim, já vacinado). 

Carlos Arnaut



O jogo de toda a Africa (Ouri, Wari, Solo, Mancala, Awélé, etc.) - Revista Jeux & Strategie, nº 7, Fev / Mar 1981. (Cortesia de Carlos Geraldes) (*)


2. Comentário do editor LG:


Carlos, para já vê aqui uma referência a "jogos tradicionias felupes"... 

Tu referes-te a um jogo de "tabuleiro" fula, de que tenho ideia de ver jogar em tabancas fulas, no meu tempo...  O único poste em que temos referência a esse jogo (um tipo de jogos de tabuleiro) é do falecido Carlos Geraldes (*) (ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66).  Ele chamava-lhe ôri, mas a grafia correta, em português, é ouri ou uril.

Ab, boa saúde. Luís (, estou pelo Norte).

PS1- Vou reencaminhar a tua mensagem anterior para o Cherno Baldé, que nos vai ajudar.

PS2 - Grafia(s)

ouri
ouri | n. m.

ou·ri
(origem duvidosa)

nome masculino

[Jogos] Jogo de origem africana, disputado entre dois jogadores num tabuleiro com duas filas de cavidades ou casas, sob um conjunto de regras variáveis que permitem acumular e capturar peças, que geralmente são pedras ou sementes. = MANCALA, URIL

"ouri", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/ouri [consultado em 08-09-2021].

mancala
mancala | n. m.

man·ca·la
(inglês mancala, do árabe)

nome masculino

[Jogos] Designação dada a vários jogos africanos e asiáticos disputados entre dois jogadores num tabuleiro com várias cavidades, sob um conjunto de regras variáveis que permitem acumular e capturar peças, que geralmente são pedras ou sementes.
Palavras relacionadas: ouri, uril.

"mancala", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/mancala [consultado em 08-09-2021].

uril
uril | n. m.

u·ril
(origem duvidosa)

nome masculino

[Jogos] Jogo de origem africana, disputado entre dois jogadores num tabuleiro com duas filas de cavidades ou casas, sob um conjunto de regras variáveis que permitem acumular e capturar peças, que geralmente são pedras ou sementes.= MANCALA, OURIPlural: uris.
Palavras relacionadas: ouri.

"uril", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/uril [consultado em 08-09-2021].


4. Resposta do Cherno Baldé, com data de hoje, às 18h23:


Entre os povos muçulmanos e por influência destes também entre os outros grupos, há a prática do jogo de Xadrez designado na língua fula por "Txoqui" (ler Tchoqui) que deve ser a corruptela da palavra Xeque (do xeque-mate) de origem Arabe ou Oriental. 

Joga-se num tabuleiro improvisado no chão usando um certo número de paus de lado a lado e a técnica é a mesma da do Xadrez, mas aqui a lógica é bem mais simples pois os paus tem o mesmo estatuto e designação, não havendo hierarquia dos pioes ou paus usados no jogo e ganha o oponente que conseguir eliminar/comer o maior número dos paus do adversário mediante uma regra pré-estabelecida.

Por outro lado, pratica-se também o jogo designado na lingua fula por "Worri", este mais para adultos,  embora, como simples jogo de exercício mental em cálculos matemáticos, não existem fronteiras de idades na sua prática. 

Para o efeito utilizam-se pedrinhas ou carroços/sementes da palmeira dendém num instrumento talhado para o efeito com 5 buracos em cada lado ou simplesmente com buracos improvisados no chão. Ganha a partida o oponente que conseguir eliminar (sacar/comer) o maior número das pedrinhas/caroços do adversário mediante uma regra bem estabelecida. 

No geral são jogos/passatempos em períodos mortos quando não há muito que fazer no campo, durante a época seca e, ainda nas pastagens enquanto se espera pelo retorno do gado que está  pastar numa zona aberta de boa visibilidade e sem grandes riscos.

Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
__________

Notas do editor:

(*) Último poste da série >8 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21867: Histórias... com abracelos do Carlos Arnaut (ex-alf mil, 16º Pel Art, Binar, Cabuca, Dara, 1970/72)(4): O meu saudoso Xico, um "macaco verde" que comprei a um garoto de Dara

segunda-feira, 29 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22048: Tabanca Grande (517): Jean Soares, ex-1º cabo de radiolocalização, Batalhão de Reconhecimento de Transmissões (Trafaria, e Maquela do Zombo, 1972/75): enfermeiro psiquiátrico reformado, a viver em França, em Caen, Normandia, e que está a tentar a recuperar a nacionalidade portuguesa que perdeu... Nasceu em Pirada... Senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 839.



Foto nº 1 > Guiné > Região de Gabu > Pirada > s/d  [c. meados 1950]  > O João Pinheiro Soares, talvez com 4 anos, brincando com um jipe da MP [Polícia Militar] dos EUA


Foto nº 2 > Guiné > Região de Gabu > Pirada > s/d  [c. 1960] > O jovem João Pinheiro Soares, na fronteira do Senegal, nas férias grandes, com um chefe de posto administrativo à sua direita e um alferes miliciano do Exército Português à sua èsquerda


Foto nº 2A >  Região de Gabu > Pirada > s/d  [c. 1960] > O nosso  jovem  , na fronteira do Senegal, nas férias grandes, com um chefe de posto administrativo   


Foto nº 2B Região de Gabu > Pirada > s/d  [c. 1960] > Possivelmente m alferes miliciano  do Exército Português, das primeiras subunidades que passaram por aquelas bandas. Esta foto deve ser anterior ao Carlos Geraldes (1941-2012),  ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.



Foto nº 3 >  Região de Gabu > Pirada > s/d  [c. meados de 1960 ] > O jovem João Pinheiro Soares, já com 13 ou 14 anos (o primeiro à direita), num jantar de família, tendo à sua direita a mãe,o pai, duas irmãs e outros familiares. Os dois  adultos, no lado esquerdo, devem ser militares.

 Sabemos, pelo nosso saudoso Carlos Geraldes, que foi amigo  e "hóspede" do comerciante de Pirada, que em 1964/65, era casado, tinha duas filhas e um filho e era natural de Lisboa. É possível o Carlos que  tenha intencionalmente  trocada os nomes dos familiares para proteger as suas verdadeiras identidades..., mas Luísa seria o nome da esposa, Rosa, o da  filha mais velha, e o filho do meio era José  (e estudava em Lisboa) (, na realidade era o nosso João, ou Jean Soares). A mais nova, Eva Lúcia, tinha nascido em 11/9/1957. O Carlos Geraldes chamava M. Santos ao Mário Soares. 

Por email de hoje, o Jean Soares acrescentou o seguinte a respeito desta foto:

(...) "O senhor Carlos Geraldes nâo tenho lembranças em o ter visto, infelizmente. Na fotografia da família está um alferes e o médico da companhia que gostava muito de fado. O nome da minha mãe era Irene ( morreu o ano passado com 102 anos) e as minhas irmãs sâo a Nini (Maria Irene) e a Ana Maria. O outro médico que esteve em Pirada foi o Dr. Luís Goes já falecido." (...)




Foto nº 4 > Guiné Região de Gabu > Pirada > s/d [c. meados de 1960 ] > O jovem João Pinheiro Soares, com um dos empregados da família. (Seria o Demba, de que nos fala o nosso saudoso camarada Carlos Geraldes, em 1964 ?)



Foto nº 5  > Bilhete de Identidade Militar do soldado recruta João Pinheiro L.P. Soares, emitido pelo R I 7 [, Leiria,] em 10/7/1972


Foto nº 5A > Assinatura do João Pinheiro L.P.Soares, nº mecanográfico 101687/72


Fotos (e legendas): © Jean Soares (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


I. Mensagem de Jean Soares, filho do c0merciante de Pirada, Mário [Rodrigues] Soares,vivendo desde 1975 em França, atualmente em Caen, Normandia.



Jean Soares, 70 anos, 
nascido em Pirada, Gabu, Guiné-Bissau.
Vive em França. Foto atual.



Sold reruta nº
mecanográfico  101687/72
 
Data - quarta, 24/03, 15:11 
Assunto - Mário Rodrigues Soares


Senhor Luís Graça,

Muito obrigado em ter publicado no seu blogue a minha história e tentar ajudar -me (*).

 Vou tentar responder às suas perguntas:


1. A minha história de vida:

Chamo-me Joâo Pinheiro Loio Pequito Soares, tenho 70 anos e nasçi em Pirada [, hoje Guiné-Bissau], aí vivi até aos 6 anos.


Nesse ano fui para Lisboa viver com a minha avó paterna, na calçada de Sant’ana [, freguesia da Pena], tendo feito os meus estudos até o serviço militar. 

Todos os anos ia a Pirada durante as férias grandes (4 meses).

Após o serviço militar ,  em 1975 fui para a França fazer os meus estudos , casei, e obtive a naçionalidade francesa. Fui enfermeiro em psiquiatria e estou reformado desde 2011. Tenho 2 filhos e 3 netos. Hoje moro na Normandia, na cidade de Caen.  [Hoje uma belíssima cidade, que foi quase totalmente destruída durante a II Guerra Mundial, justamente na sangrenta batalha da Normandia, iniciada em 6 de junho de 1944. (LG)]

2. Regresso de meu Pai a Lisboa, em  1975:

Quando chegou, foi para a prisâo de Caxias, por ordem do  pela Copcon,  tendo saído livre mais tarde.

Tentou uma nova vida em Aljezur,  criando uma fábrica de mármore e um restaurante mas sem sucesso e com muitos problemas pessoais (, incluindo o divórcio em 1983).

Das poucas relações que guardou em Portugal foi com o senhor Comandante Alpoim Calvão,
faleçido em 2014, em Cascais.

3. Relações com o meu Pai :

Tenho a recordação de um pai "distante, ausente",  durante a minha infância. 

Na adolescência não partilhava as paixões dele,  como a política, a vida social, mas sempre o admirava.

De 1984 a 1995 (ano da sua morte), ficávamos muito juntos com a presença dos seus netos todos os anos durante as férias, na Quarteira,  com a sua segunda esposa.

Os meus respeitosos cumprimentos
Jean Soares

P.S. - Junto envio fotos de documentos militares meus [. Fotos nºs 5, 6 e 7], fotografias de oficiais em nossa casa em Pirada [, Foto nº 3]  e na fronteira com o Senegal [,Foto nº 2], uma  foto quando tinha 4 anos  [Foto nº 1] e que se parece com aquela em que me enganei (*),  assim como o livro que fala do meu pai, de António Ramalho de Almeida  (páginas 125 a 140) [Vd, capa, Foto nº 8]

Espero que compreenda, depois de ter lido a minha história e a do meu pai,  que vou passar o resto da minha vida a bater-me para recuperar a minha nacionalidade portuguesa e a minha caderneta militar.

Obrigado pela atenção.
 



Foto nº 6 > Passaporte militar: licença, com data de 6 de maio de 1975, assinada pelo comandante do Batalhão de Reconhecimento de Transmissões, autorizando o 1º cabo de radiolocalização nº 101687/72 João Pinheiro Loio [, no original Loiro, erro dactilográfico,] Pequito Soares, na situação de disponibilidade, a ausentar-se do país "a título eventual, por espaço de tempo não superior a noventa dias"...


Foto nº 7 > Documento passado pelo Consulado Português do Havre, com data de 10 de maio de 1978.


Foto nº 8 > Capa do livro de António Ramalho de Almeia (**), que conheceu em Pirada o comerciante Mário Soares. 


Luís Graça, editor

II.  Mensagem do editor LG, enviada no passado domingo, 28,às 11h23:


Jean, obrigado pela partilha. Vamos tratar-nos por tu, como mandam as nossas regras da Tabanca Grande. Facilita a comunicação. E de resto somos/fomos camaradas (de armas) e amigos da Guiné. O enfoque deste blogue (com 17 anos!) é a partilha de memórias (e de afetos). 

Vejo que estiveste ligado à saúde toda a vida. Este blogue deve ser salutogénico. Eu próprio sou da área da saúde: socíólogo, doutorado em saúde pública, docente da Escola Nacional de Saúde Pública. Estou com 74 anos, já aposentado. Tenho uma mana mais nova que é enfermeira e dois filhos "psis", ele psiquiatra (em oncologia) e ela psicóloga...

Diz-me se posso partilhar no blogue a tua história,incluindo as fotos... E se aceitas integrar a Tabanca Grande (tertúlia): já tenho as 2 fotos da praxe, uma atual e outra mais antiga. Se sim, passas a ser o membro nº 839. Temos um "livro de estilo" com 10 regras de "convívio" que todos procuramos respeitar.
 
Jean, tu dando a cara no blogue, facilitas também a resolução do teu problema. Haverá mais gente a interessar-se pelo teu caso. Tens o meu/nosso apoio. E vais reaver a tua nacionalidade portuguesa. O teu processo militar deve estar no Arquivo Histórico-Militar (de momento fechado, por causa da situação pandémica).

O autor do livro cuja capa nos manda,foi visita do teu pai, e é amigo de dos nossos coeditores, o Virgínio Briote

Fico à espera da tua resposta. Luís

4. Resposta pronta do novo membro da Tabanca Grande, nº 839. Jean Soares (***):

(...) "É com honra que aceito integrar a vossa Tabanca Grande com o número 839; li as 10 regras de »convívio" e aceito partihar no vosso blogue a minha história mais  as fotografias." (...)

_____________



(...) António Ramalho de Almeida, estudante de medicina em 1963, foi mandado apresentar-se em Mafra para efectuar a recruta, após a qual foi destacado para a EPC em Santarém, onde tirou a especialidade de autometralhadoras Panhard. Logo a seguir, que o tempo urgia, foi mobilizado para a Guiné como alferes miliciano, recebendo como missão dar instrução a naturais da então Província, organizando-os em companhias de milícias.

Neste livro, António Ramalho de Almeida aproveita para nos descrever os contrastes a que assistiu. A guerra, ainda no princípio mas já na brutalidade em mortos e estropiados pelas minas, armadilhas, emboscadas e flagelações, os olhos a perderem-se nas maravilhosas paisagens, a presença de Portugal de mais de 400 anos praticamente ausente no interior da Província, de tal forma que, em certos locais, se julgava o primeiro branco a pisá-los e a vê-los.
 
(...) Fui contemporâneo do António Ramalho, conhecido, entre nós, por Toni Ramalho. Éramos companheiros assíduos, sempre que coincidia estarmos presentes em Bissau, na esplanada do Bento e nos jantares à mesma mesa do hotel. Muito do que aqui conta, regressou-me, vi, ouvi e vivi naqueles anos. Quanto mais não fosse estou-lhe grato por isso.
 
(...) António Ramalho prometera à Mãe, antes de a ver morrer, que havia de ser médico. Fiel à promessa e ao desejo pessoal preparou-se para o ser e convenceu-se de que iria beneficiar do estatuto de adiamento de incorporação que o Exército então facultava, dada a escassez de médicos.

Houve, porém, um acontecimento, que lhe alterou a vida. Em Maio de 1963, comemorou-se em Lisboa o Dia do Estudante e esse dia trouxe-lhe consequências. Quando deu por si estava em Mafra a fazer o COM. Depois seguiu-se Santarém, o RC6 (Porto), o RC8 em Sta. Margarida e o embarque, em 12 de Outubro de 1964, no Niassa, rumo à Guiné. (...)
 
Vd. também postes de:

16 de setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12048: Notas de leitura (520): "Guiné Mal Amada - O Inferno da Guerra", por António Ramalho de Almeida (Mário Beja Santos)

(...) alferes instrutor de milícias,  chega a Pirada, descreve o ambiente fronteiriço, a atmosfera de espionagem e o papel de levar e trazer atribuído ao comerciante Mário Soares. Tanto quanto parece, já não estamos na ficção, o que se descreve é real, os incidentes fronteiriços, com retaliações de premeio. (...)

1 de julho de  2014 > Guiné 63/74 - P13352: Notas de leitura (607): Livro de memórias de guerra, de António Ramalho de Almeida, médico pneumologista, do Porto, ex-alf mil, GG, Bissau, 1964/66

(***) Último poste da série > 19 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22019: Tabanca Grande (516): Joaquim da Silva Correia (Penalva do Castelo, 1946 - Oliveira de Azemeis, 2021), ex-1.º Cabo, Pel Mort 1242 (Buba, 1967/69): em sua memória, no dia do Pai (e em apreço ao gesto do seu filho, António Correia), reservamos o talhão n.º 838, sob o nosso simbólico poilão

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20927: (De)Caras (158): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte VII: mais uma achega do Carlos Geraldes: o caso do ataque (anunciado) a Pirada em 28/5/1965 e o linchamento do gila confundido com um espião,


Comunicado do PAIGC referindo um ataque a Pirada,  o dia 28 [, sem mês nem ano],,, Cruzando informação disponível no blogue, esse ataque só pode ser o dia 28 de maio de 1965, ao tempo da CCART

Instituição:
Fundação Mário Soares
Pasta: 07065.068.053
Título: Comunicado [Frente Leste]
Assunto: Comunicado sobre o ataque da Secção do Exército Popular ao quartel de Pirada.
Data: s.d. 
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Documentos
Página(s): 1

Citação:
(s.d.), "Comunicado [Frente Leste]", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40762 (2020-4-29)




Mário Soares > Pirada >
14/2/1974.
Foto: António Rodrigues 
(2015)
1. Continuamos à(s) volta(s) dessa figura algo misteriosa que foi o comerciante português Mário Soares, ou Mário Rodrigues Soares, mas também identificado com António Mário Soares (*). Dizem, justa ou injustamente, que serviu dois senhores, as NT e o PAIGC. Foi acusado de ter sido informador da PIDE/DGS tanto quanto "espião" do PAIGC. Em suma, "um "hábil agente duplo (...) durante muito tempo", condição que "acaba sempre por ter um preço amargo de pagar" (, segundo o seu amigo Carlo Geraldes). No fim da guerra, terá sido escorraçado por uns e por outros.

Esteve estabelecido em Pirada, no leste da Guiné, na fronteira com o Senegal, e diversos camaradas nossos (, nomeadamente, alferes milicianos)  conviveram com ele ao longo da guerra colonial, pelo menos desde 1963 a 1974.

Tende, por vezes, a ser confundido com o  seu homónimo,  esse, sim,  inconfundível figura pública Mário [ Alberto 
Nobre  Lopes] Soares (1924-2017), presidente da República Portuguesa (1986-1996), duas vezes primeiro ministro, fundador 
e secretário geral do Partido Socialista, opositor do regime de 
Salazar-Caetano,  etc.

A ignorância pode ser tanta que até a jovem cabo-verdiana, nascida em 1991, Kathleen Rocheteau Gomes Coutinho, troca os dois nomes, os homónimos,  num trabalho académico, defendido em provas públicas numa universidade brasileira (**).

Sabemos, por testemunhos anteriores (*), que o Mário Soares: (i) era natural de Lisboa; (ii) terá vindo para a Guiné por "dificuldades financeiras); (iii) estabeleceu-se como comerciante em Pirada; (iv) era casado (com Luísa  e tinha 3 filhos (um rapaz. José, a estudar em Lisboa,  e duas raparigas, Rosa e Eva Lúcia, esta a mais nova,  nascida em 1958); (v) deverá ter nascido na década d 1920, pelo que nos anos de1964/65 já teria mais de 40 anos; (vi) era "o branco mais africano que comheci" (, segundo a opinião de José Pratas, antigo alf mil médico, CCS/BCAV 3864, Pirada, 1971/73).

Sabemos ainda que: (vii) em Pirada havia mais 4 comerciantes brancos, em 1964/65; (vii) em 1971/73,  havia um agente da PIDE na vizinhança, "bom para seviciar e intimidar", o Carvalho [, Gumersindo Fernandes Carvalho, agente de 2ª, nascido em Castanheira de Pera, 1946 ?], substituído pelo Pereira [, Manuel Rodrigues Pereira, agente de 2ª, nascido em 1945, em S. Pedro do Sul ?,]  que "tinha farroncas mas com as flagelações tremia como varas verdes" (José Pratas).

Portanto, o Mário Soares não era o gente da PIDE/DGS de Pirada, nem nunca pertenceu ao quadro de pessoal da PIDE/DGS... o que não o impedia de colaborar com a política política, aproveitando-se das "relações especiais" que tinha com as autoridades fronteiriças do Senegal. O que também não quer dizer que não fosse "informador" da PIDE/DGS...e não pudesse também ser útil ao PAIGC. Dáí que, desde muito cedo, corresse a fama de ser um "agente duplo".


Guiné - Bissau > Região de Gabu > Pirada > 2018 > Antiga delegação local da PIDE/DGS, e hoje esquadra local da polícia de segurança pública. Entre 1971 e 1973, ao tempo do alf mil médico José Pratas (CCS/BCAV 3864, Pirada, 1971/74),  terão passado por aqui dois agentes:  o Carvalho [, Gumersindo Fernandes Carvalho, agente de 2ª, nascido em Castanheira de Pera, 1946 ?], substituído pelo senhor Pereira [, Manuel Rodrigues Pereira, agente de 2ª, nascido em 1945, em S. Pedro do Sul ?,]  (José Pratas). 


Guiné > Região de Gabu > Pirada > 2018 > Antiga casa do comerciante Mário Soares. Ficava,  à esquerda,  na Rua principal que levava à fronteira do Senegal, 

Fotos (e legendas): cortesia da página do Facebook Pirada Guiné-Bissau (2018). [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]

No livro de Maria José Tíscar ("A PIDE no Xadrez Africano: Conversas com o Inspector Fragoso Allas", Lisboa, Edições Coilibri, 2017), o "patrão" da polícia política na Guiné, homem  da confiança pessoal de Spínola, o Fragoso Allas, dá a entender, abusivamente, que  o comerciante Mário Soares era "mais" agente que o "seu"agente, o Carvalho, e depois, o Pereira:  que estes, ou um deles,  viveriam na casa do comerciante, que ele é que atenderia, em 90% dos casos o rádio da DGS, e que era aceite por ele, Fragoso Allas, como "agente duplo"... Porque lhe convinha... No fundo, é menorizado o papel do Mário Soares, conforme se pode deduzir das longa conversa com a historiadora,em que ele terá aberto o seu "livro": 

(...) "Era habilidoso [, o Mário Soares], tinha boas relações com as autoridades portuguesas e tinha bons contactos, também, com as do Senegal. Teve atuações muito importantes para nós. 

(...) " Era útil como agente de contrainformação. Quando queríamos enviar informações falsas ao PAIGC dizíamos-lhe que era muito secreto e então ele ia logo transmiti-las.

/...) "As informações que ele fornecia sobre o PAIGC quase não serviam, porque nós sabíamos que ele também trabalhava para eles.


(...) "Quando cheguei à Guiné, o General Spínola estava muito zangado com ele e queria mesmo expulsá-lo da província, mas isso não seria conveniente porque o posto da PIDE estava dentro da sua casa, pelo que me interessei para que ele continuasse na sua atividade”. (...)


2. Quem mais escreveu sobre o comerciante Mário Soares,  aqui no blogue,  foi  ex-alf mil Carlos Geraldes, da CART 676 (Bissau, Pirada, Bajocunda e Paunca, 1964/66), infelizmente já falecido em 2012. 

A sua foi a primeira companhia a ficar aquartelada em Pirada (, a partir de 15 de outubro de 1964). Até então Pirada era um destacamento guarnecido por um pelotão: em 1963, por exemplo, o nosso camarada e grã.tabanqueiro Jorge Ferreira disse-me, em conversa ao telefone, que esteve lá em Pirada, dois dias, e almoçou na casa do Mário Soares, ele, e outros militares, incluindo  o comandante do destacamento, o então alf inf Artur Pita Alves, hoje cor ref, que faria mais tarde uma outra comissão na Guiné, como capitão (CAÇ 1423, Bolama. Empada e Cachil, 1965/67).

O destacamento possivelmente pertencia ao BCAÇ 512 (Mansoa e Nova Lamego, 1963/65) ou então ao BCAÇ 506 (Bafatá, 1963/65), pormenor que o Jorge Ferreira já não pode precisar, mas seria o batalhão de Mansoa,

O Mário Soares recebeu, de resto,  em sua casa vários camaradas nossos, a começar pelos veteranos, o alf mil António [de Figueiredo] Pinto (BCAÇ 506 e 512, 1963/1965), o alf mil médico Luiz Goes (BCAÇ 506, Bafatá, 1963/65), e o Carlos Geraldes (CART 674, 1964/66), os dois últimos já falecidos. (Ao António Pinto, que  vive em Vila do Conde, mandamos um especial abraço.)

O Jorge Ferreira (ex-alf mil da 3ª CCAÇ,  Bolama, Nova Lamego, Buruntuma e Bolama, 1961/63),  autor do livro de etnofotografia, "Buruntuma: 'algum dia serás grande', Guiné, Gabu, 1961-63". (Edição de autor, Oeiras, 2016), estava nessa altura destacado em Buruntuma. Portanto, em 1963, ele também confirma que o Mário Soares já estava estabelecido em Pirada.

No Arquivo Amílcar Cabral, disponível no portal Casa Comum, criado pela Fundação Mário Soares, há pelo menos 11 referências a Pirada, mas nenhuma referência ao nome ou à pessoa do comerciante Mário Soares...

Sabe-se que em 1963 o PAIGC tinha muitas dificuldades de implantação na região, devido à hostilidade dos fulas e à fraca lealdade dos seus simpatizantes e militantes,  de maioria mandinga,  bem como à concorrência da FLING. Por outro lado, o Senegal, de Leopoldo Senghor, impunha, na época,  sérias limitações à liberdade de movimentos do PAIGC.

Se o Mário Soares fosse militante ou simpatizante do PAIGC seria, na época, um recurso precioso: os homens do PAIGC queixavam-se, então,  de que passavam fome, não dispunham de cuidados médicos, não tinham  armamento em condições nem muitos menos explosivos para a destruição de pontes, eram combatidos pelos fulas... Em suma, o moral era baixo ou estava em baixo.



Excerto de carta (manuscrita) remetida por Areolino Cruz a Pedro Pires, data de Pirada, 17/7/1963. É referido um ataque a "quartel de Pirada", no dia 15, tendo sido incendia a casa de um "tipo da PIDE".  Resultados: (i) "morreu um soldado europeu"; (ii) " soldados europeus têm agora medo de sair à noite, e mesmo depois das 6 da tarde"... O PAIGG não teria na época um bigrupo, o Areolino Cruz diz que "fomamos de agora em diante um só grupo comandado por Chico Tê, aproximadamente 22 homens"... (Não temos noticia de que nessa data, 15/71963, tenha morrido algum militar português no TO da Guiné.)

(Fonte: Arquivo Amílcar Cabral... Com a devida vénia; Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)

Citação:
(1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36881 (2020-4-30)


3. O primeiro verdadeiro ataque a Pirada só acontece em 28 de maio de 1965, ao tempo da CART 676. (Talvez não por acaso, o PAIGC desencadeou mais do que um ataque ao longo da guerra, nessa efeméride, evocativa do 28 de maio de 1926,  data histórica em que triunfou, em Portugal, o golpe de Estado que deu origem à Ditadur Militar e ao Estado Novo; estou-me a lembrar, por exemplo, do ataque a Bambadinca, em 28 de maio de 1969.) 

Estava então o Carlos Geraldes de licença de férias na Metrópole... [Há um interregno da sua correspondência para a Metrópole entre 18/4/1965 e 13/6/1965, correspondente ao período - mês de maio - em que não apenas gozou a sua licença de férias como celebrou  o seu primeiro casamento.]

A posteriori, logo a seguir, quando regressa a Pirada e a Paunca (onde o seu pelotão está destacado), reconstitui esse ataque e os acontecimentos que se lhe seguiram, o linchamento de um pobre gila (comerciante ambulante), confundido com um espião,  por ter sido encontrado transportando alguns sacos de invólucros na sua bicicleta depois do ataque do PAIGC...

Não tendo sido "testemunha ocular" nem do ataque do PAIGC  nem do linchamento do gila,  Carlos Geraldes, por uma questão de honestidade intelectual, começa a narrativa com a segyinte reserva: "Não sei se o deva contar"...Mas depois conta, e o que escreveu está  publicado no blogue, na sua série "Gavetas da Memória".

Voltamos a reproduzir essa crónica, com título e subtítulos nossos. Pode ser que, entretanto, mais algum camarada possa confirmar ou infirmar  (ou acrescentar algo mais sobre) o que aconteceu nesse dia 28 de maio de 1965, em Pirada.


O caso do  ataque (anunciado)  a Pirada em 28/5/1965 e o o linchamento do gila, confundido com um espião (**)


(i) O Primeiro Ataque a Pirada

Não sei se o deva contar, porque nem sequer fui testemunha ocular. Nesse dia, 28 de Maio de 1965, estava de férias na Metrópole junto com a família. Um mês inteiro longe da guerra, na total ignorância de como as coisas se iam passando por lá,  a milhares de quilómetros. Só quando regressei de avião a Bissau é que me contaram a novidade.

Pirada tinha sido atacada!

Ao princípio custou-me a acreditar, até porque quem mo contou também não sabia bem os pormenores. Mal pude conter a impaciência nos dias que se seguiram à espera de boleia num Dakota (o velhinho, mas muito útil DC-6) para Nova Lamego onde depois teria um jeep da Companhia para me ir buscar. O sempre sorridente alferes Pinheiro lá estava pontualíssimo para me servir de condutor de regresso a casa.

E então lá me contou como tudo se tinha passado, enquanto eu o ouvia,  embasbacado, ainda pouco crente que me estivesse a falar verdade.

O M[ário] Soares, como sempre, fora informado que um numeroso grupo de guerrilheiros se estava a juntar do outro lado da fronteira, no Senegal. Estava bem armado e tinha intenção de fazer qualquer coisa ao quartel da tropa em Pirada. E até se sabia o dia e a hora em que isso iria acontecer. 

O nosso Capitão fez aquilo que a prudência mandava, entrincheirou-se o melhor que pôde e aguardou. Aliás, tomou até uma medida que sempre me pareceu um pouco ousada e timorata. Quis contra-atacar. Planeou então uma manobra para emboscar o inimigo que supostamente viria atacar o aquartelamento do lado ocidental a coberto da povoação nativa, a cintura de palhotas que envolvia Pirada. Para isso mandou que o alferes Pinheiro e o seu Grupo de Combate se fossem colocar, muito discretamente, do lado de fora da tabanca, numa zona baixa, já perto da bolanha, onde aí, montariam uma emboscada e contra-atacariam os assaltantes encurralando-os contra o quartel. Só que as coisas nem sempre correm tão bem como se planeiam no papel. A noite estava escuríssima, conforme me ia contando o Pinheiro:

"Eu mal consegui dar com o sítio que o capitão me tinha dito onde eu e os meus homens nos deveríamos ocultar para depois apanhar os gajos. E depois quando a festa começou deu-me a impressão que afinal estávamos mais afastados do que era previsto. E pelo arraial que faziam deviam de ser mais de duzentos. Olha, eu, pelo sim pelo não, para não estar para ali a fazer fogo sem mais nem menos, resolvi que o melhor seria esperar muito caladinho e ver como as coisas se iriam passar. Se revelássemos a nossa posição até talvez ficássemos numa situação muito perigosa. Aliás poderia acabar por fazer fogo contra os nossos, não achas? Por isso, ficámos ali muito quietinhos à espera que tudo passasse. No quartel estavam mais bem protegidos pelos abrigos, eu ali não tinha protecção nenhuma!"

Sim, o alferes Pinheiro tinha razão, era insensato atacar às cegas um inimigo que não se sabia bem onde estava nem de onde vinha, muito superior em número e armamento. Tomou uma decisão que à primeira vista poderá ser tomada como um acto de cobardia, mas que na verdade, tratou-se apenas de evitar um mero suicídio colectivo totalmente gratuito e ineficaz.

Assim o ataque desenrolou-se durante grande parte da noite, com a população nativa aterrorizada, escondida o mais que podia para escapar às balas perdidas que voavam em todas as direcções, varando de lado a lado as palhotas e as vedações dos quintais, enquanto do quartel atiravam morteiradas em todas as direcções e abriam fogo de metralhadora à vontade numa ânsia de aniquilar um inimigo que nem conseguiam descortinar.


(ii) O enigmático Mário Soares


Segundo depois me contou o M[ário] Soares, elementos do PAIGC passearam-se mesmo pelo centro do povoado, donde, até debaixo do alpendre da sua casa, fizeram fogo na direcção do quartel. Mas a ele e à família nem num cabelo tocaram. 

Admirável cavalheirismo romântico, que não seria fácil encontrar ali no mais remoto interior da Guiné. Gesto que, no entanto, lhe acarretaria futuros problemas com as desconfianças que a tropa foi alimentando a seu respeito, esquecendo que paralelamente M. Soares sempre lhes fornecera amplas e atempadas informações das andanças dos grupos inimigos que transitavam regularmente pelo Senegal, vindos da Guiné-Conacri em direcção à região do Morés, no triângulo Mansabá-Mansoa-Bissorã.

Na verdade a imunidade de M. Soares devia-se muito à sua condição de hábil agente duplo que soube manter durante muito tempo e isso acaba sempre por ter um preço amargo de pagar.

Com o raiar do dia [, 28 de maio de 1965], já depois de as armas se terem silenciado,  é que, aos poucos e poucos se foram verificando os estragos. Felizmente do nosso lado não houve mortos nem feridos, apenas danos materiais. As instalações ficaram com as paredes crivadas de balas, e duas viaturas foram atingidas mas nada de grande monta. [No comunicado do PAIGC, acima reproduzido, fala-se em 3 viaturas incendiadas: 1 jipe, 1 Unimog, 1 Mercedes Benz; mais: diz-se que "incendiámos toda a Pirada"...]

Na tabanca é que tinha sido pior, tinham ardido umas dezenas de casas, devido talvez ao nosso fogo de morteiro. Quatro mortos a lamentar e bastantes feridos sem grande gravidade, pois grande parte da população tinha fugido para longe. O posto médico depressa se encheu e o pessoal de saúde não teve mãos a medir, enquanto patrulhas percorriam toda a zona de onde o inimigo teria estado a fazer o fogo, agora facilmente identificável pelo elevado número de cápsulas vazias de vários calibres 
espalhas pelo chão. 

Os rastos deixados pelo grupo dos atacantes indicavam também que deveriam ter sofrido algumas baixas pelos vestígios de sangue deixados nos percursos de fuga em direcção do Senegal [, pelo menos dois mortos, conforme comunicado do PAIGC acima reproduzido].


(iii) O linchamento do gila


Mal recuperados do susto que tinham apanhado, tanto oficiais como sargentos e praças nem tinham vontade de falar no assunto.

Mas envergonhados também pelas reacções primárias a que se entregaram, quando ainda naquela manhã, prenderam um atónito gila que, inocentemente, tinha carregado na sua bicicleta vários sacos de cartuchos vazios que fora apanhando pelo caminho que percorrera despreocupadamente (?). 

Logo ali o acusaram de espião e resolveram fazer justiça pelas próprias mãos. Enquanto o capitão e o resto dos oficiais e sargentos se fecharam na caserna, a turba,  uivando cada vez mais enfurecida, arrastou o pobre desgraçado para o meio da parada e,  no meio de insultos e pancadaria, acabou de matar o pobre do gila, regando-o em seguida com gasolina e chegando-lhe fogo.

E até me mostraram fotografias, que acabaram por depois fazer desaparecer, cientes da barbaridade cometida.

Ainda cheguei a tentar falar com o capitão sobre o acontecimento. Mas apenas me respondeu com um silencioso encolher de ombros, revelador de uma total incapacidade de impedir o linchamento. E se calhar até de algum tácito consentimento para serenar os ânimos.

Mas só na antiga Roma é que os cruéis imperadores proporcionavam ao povo espectáculos de morte, para o poder controlar a seu bel-prazer! Teria acontecido aqui o mesmo?

Porém, com o passar do tempo,  tudo foi esmorecendo e caiu no esquecimento.Mas, o gila teria deixado família? Mulher,  filhos, outros parentes? Qual teria sido a raiva e a dor deles? Como teriam encarado o futuro?

A guerra não foi só recheada de heroísmos, ou uma alegre perseguição das bajudas lavadeiras apanhadas desprevenidas no regresso da bolanha, ou uma imprevidente saída para o mato na escuridão de uma noite tenebrosa.

A guerra foi também um longo rosário de pesadelos que nos marcou profundamente, mas que teimamos em não valorizar também.

Recolhi a Paunca [, destacamento da CART 676], logo que pude, para tentar esquecer.

(iv) A guarda republicana senegalesa corre com todos os grupos armados que podem ameaçar os postos fronteiriços portugueses (****)


(...) Voltando à vaca fria, nesta guerra, como se pode ver mais uma vez, tive sorte. Pois foram logo escolher o dia do ataque para quando estava de férias. Parece que eles ainda pensaram em voltar, mas viemos a saber depois que tinham resolvido ir atacar outra zona que, se calhar, lhes seria mais favorável. Entretanto a população regressou e tudo voltou à normalidade.

O Presidente do Senegal (Senghor) enviou para esta região membros da guarda republicana senegalesa para correr com todos os grupos armados que circulam por aqui e que já o estavam a inquietar, de maneira que hoje de manhã [, 15 de junho de 1965,]tivemos a inevitável confraternização, mesmo sobre a linha de fronteira.

Confraternização essa que levámos a efeito em regime estritamente confidencial, pois mais ninguém deveria saber, para não se armarem as habituais confusões junto do poder central. De um lado, eu, o Capitão, o alferes Carvalho [, pseudónimo do Pinheiro], e o alferes médico representando a tropa. O M. Santos representando os civis. Do outro lado, três guardas senegaleses.

O ambiente foi bastante cordial e prometeram-nos nunca mais autorizar a permanência, nesta zona, de grupos de guerrilheiros armados que, pelos vistos, também já os estariam a preocupar e incomodar. (...)

[Seleção, revisão e fixação de texto, incluindo negritos, itálicos e realces a amarelo: editor LG]
_______________


(**) Katheleen Rocheteau Gomes Coutinho - A Política Externa de Cabo Verde (1975 a 1990): uma análise da configuração e atuação da política externa de Cabo Verde durante a guerra fria. Monografia apresentada ao Instituto de Relações Internacionais como requisito parcial à obtenção do Bacharel em Relações Internacionais. Brasília, Unibversiade de Brasília, Faculdade de Relações Internacionais, Instituto de Relações Internacionais, 2015. Disponível em: https://bdm.unb.br/bitstream/10483/16366/1/2015_KathleenRochteauCoutinho_tcc.pdf

(...) Estes dois fatores [, a vitória da luta de Libertação Nacional levada a cabo pelo PAIGC,  e a Revolução dos Cravos ou Revolução de 25 de abril de 1974,] foram importantes e estiveram na origem do Acordo para a independência de Cabo Verde, assinado em 19 de dezembro de 1974, pelas delegações do governo de Portugal e o PAIGC, nomeadamente entre Mário Soares (representando Portugal) e Pedro Pires (representando o PAIGC). (...)

Em nota de rodapé, diz-se que o seguinte: 

(...) Mário Rodrigues Soares- Português, 1922. Comerciante na região de Pirada onde acabou por funcionar como “agente” ou “espião”, nos contatos entre as autoridades portuguesas, senegaleses e o PAIGC. (Lopes, 2012).(...) [LOPES, José Vicente. “Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História”. Spleen edições, Cabo Verde, Cidade da Praia, 2012.]

(...) Pedro Pires, Cabo-verdiano 1934. Oficial miliciano na Força Aérea Portuguesa. Membro do PAIGC. Formação militar em Cuba e URSS. Comandante da Região Militar do PAIGC. Lidera a delegação do PAIGC na assinatura (...)

(****) Excerto da carta datada de  Pirada, 13 de junho de 1965, reproduzida aqui;

7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4916: Cartas (Carlos Geraldes) (6): 2.ª Fase - Abril a Junho de 1965

sábado, 18 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20867: (De)Caras (154): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte III (Depoimento do nosso saudoso camarada Carlos Geraldes)


Guiné > Região de Gabu > Pirada > 1973 > Vista aérea de Piarada, foto tirada em 1 de agosto de 1972, no DO-27, nº 3492, pelo então ten pilav António Martins de Matos.  Legenda: 1. Pista de aviação e heliporto ( a leste); 2. Estrada para o Senegal (a norte); 3. Estrada para Bajocunda (a sudeste); 4. Estrada para sul / sudoeste (Sonaco, Bafatá e Nova Lamego)

Foto (e legenda): © António Martins de Matos (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Gabu > Pirada > c. 1964/66 > Croquis, com a localização da casa dos comerciantes Mário Soares e Palha, e de mais outros dois comerciantes, no centro de Pirada, além da tasca do Paiva,  contígua à casa do Mário Soares, a messe de oficiais, o quartel, a escola, a casa do chefe de posto, Barbosa... Junto deste funcionava também um posto sanitário. O quartel foi adaptado de um antigpo armazém de mancarra.


Croquis de parte das instalações ocupadas pelos militares da CART 676 (Pirada, 1964/66): quartos e messe de oficiais,  cozinha, WC, oficina, poço... A sul / sudeste,  ficava a tabanca.

Fonte:  Geraldes (2009) (*)



Guiné > Região de Gabu > Carta de Pirada (1957) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Pirada e Bajocunda.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)



Mário Soares > Pirada > 14/2/1974.

Foto: António Rodrigues (2015)
1. Quem foi Mário Soares, o comerciante de Pirada, de seu nome completo Mário  Rodrigues Soares, que alguns de nós, que passsaram pelo leste da Guiné, conheceram, ou pelo menos ouviram falar dele,  muitos de nós, ao longo da guerra ? (**)

Dizia-se, mais ou menos à boca cheia,  que o Mário Rodrigues Soares (, mais conhecido por Mário Soares,) tinha "relações privilegiadas" com os dois lados do conflito, as NT e o PAIGC. Dizia-se inclusive quer era um "agente duplo", trabalhando tanto para a PIDE/DGS como para o PAIGC. Onde está a verdade, se é que algum dia o viremos saber ?

A CART 676 (Bissau, Pirada, Bajocunda e Paunca, 1964/66) foi a primeira ficar aquartelada em Pirada. O nosso camarada e grã-tabanqueiro Carlos [Adrião] Geraldes (Lisboa, 1941- Viana do Castelo, 2012) era um dos alferes dessa companhia.   É autor de duas séries no nosso blogue, "Gavetas da Memória"  (13 postes) e "Cartas" (10 postes), onde fala do quotidiano dos militares que nessa época estiveram em Piradas e nos destacamentos de Bajocunda e Paunca.

O Carlos Geraldes conheceu o Mário Soares justamente quando a CART 676, chegou a Pirada, em 15 de outubro de 1964, vinda de Bissau (via Bambadinca, Bafatá e Nova Lamego). Tornar-se-iam amigos. O Carlos passa a ser visita frequente da sua casa. E, nas suas carta, vem defendê-lo da acusação, injusta, de que ele jogava com um pai de dois bicos...

Foi assim, num dos seus postes ds série "Gavetas da Memória" (**), que ele descreveu a chegada a Pirada e o início da sua amizade com Mário Rodrigues Soares:

(...) Pirada, naquela época, resumia-se a uma rua de terra batida que tinha a meio uma espécie se praceta, com um pequenino monumento e tudo. 

(i) para a esquerda era o caminho para o aglomerado populacional, as palhotas;

(ii) ara a direita o caminho levava a uma pequena pista de aviação. 

(iii) m cada canto desta praceta, erguiam-se quatro edifícios caiados e com telhados de telha: eram as casas comerciais, representantes locais de outras sediadas em Bissau;

(iv) seguindo sempre em frente, chegávamos à fronteira com o Senegal, ali a escassos metros;

(v) a meio caminho [, do lado esquerdo,]  erguia-se a casa do Chefe de Posto e o edifício do Posto Sanitário;

(vi) ao lado [, direito,] um celeiro de mancarra que provisoriamente servia de quartel para um pelotão indígena: era ali que a Companhia iria residir… 150 homens, mais ou menos, iriam ficar alojados onde anteriormente estavam pouco mais de 30 (...)

(...) Para alojar os sargentos e os oficiais também se arranjou solução. O nosso amigo comerciante que tinha encabeçado a recepção às tropas recém-chegadas [, o Mário Soares], também já tinha pensado nisso.

Como de propósito tinha mandado arranjar uma casa, situada nas traseiras de um dos estabelecimentos comerciais que, chegava para albergar os dois oficiais e alguns dos furriéis. Os que não couberam, foram alojados pelo Chefe de Posto, o senhor Barbosa, um simpático velhote que vivia sozinho e ansiava por companhia. A casa que ocupava era demasiado grande para ele e de certo modo até ficava mais resguardado a dormir debaixo do mesmo tecto que a tropa. (...)

(...) Depois de um retemperador banho de bidão e de um opíparo jantar para os oficiais e sargentos, em casa do nosso anfitrião, o nosso futuro anjo da guarda, Mário Rodrigues Soares era assim que ele se chamava, sentíamo-nos num paraíso até aí inimaginável. (...) (**)

2. Continuamos à procura de outros testemunhos sobre esta "eminência parda" da guerra na Guiné, no nosso tempo, que foi o Mário Soares, seguramente o civil então mais conhecido... 

Estivemos a reler as cartas do Carlos Geraldes, que nos ajudam a perceber melhor a personalidade e o comportamento deste comerciante português, "bon vivant", hospitaleiro, insinuante, amável, generoso, prestável, com um vasto capital de relações sociais, a nível interno e até externo (com as autoridades e os comerciantes do outro lado da fronteira, no Senegal).

Nesta III parte, continuamos a publicar excertos, selecionados, das cartas remetidas para a família, no período de agosto de 1965 a abril de 1966, ou seja na última parte da comissão, e em que o Carlos  continua a fazer  referências ao seu "amigo M. Santos [leia-se: Soares]".

Em agosto de 1965, ele deixou o destacamento de Paunca e foi comandar a companhia, em Pirada, em substituição, cap art Álvaro Santos Carvalho Seco, a gozar a sua licença de férias na metrópole.

Em abril de 1966, chega ao fim a comissão, o Carlos Geraldes faz um despedida emocionada aos amigos que fez em Pirada e que deixa, com apreensão em relação ao seu futuro. Não sabemos se voltou algum dia a ver (ou a contactar com) o seu amigo Mário Soares.

Outras companhias, entretanto, passaram  por Pirada e o Mário Soares voltou a receber, na sua casa, outros oficiais,como foi o caso do alf mil médico José Pratas, da CCS/ BCAV 3864 (1971/73). Reproduziremos o seu depoimento no próximo poste desta série.


Carlos Geraldes (Lisboa, 1941 - Viana
do Castelo, 2012)
Na véspera do 25 de Abril de 1974, estavam em Pirada o comando e a CCS do BCAV 8323/73, bem a 3ª C/BCAV 8323/73. O Manuel Valente Fernandes, ex-alf mil médico do BCAV 8323/73 (Pirada, 1973/74), nosso grã-tabanqueiro (e antigo aluno do nosso editor Luís Graça, no curso de especialização em medicina do trabalho, na ENSP/NOVA) também era visita da casa do Mário Soares.


Paúnca, 1 de agosto de 1965 (****)

De novo em Pirada agora a comandar a própria Companhia!

O capitão foi de férias e, como o Cardoso, que é o alferes mais graduado, ainda se encontra na Metrópole, tive de vir eu para o comando das tropas, pois sou o alferes que se lhe segue quanto a graduação. (...)

Continuo a ir todas as tardes e principalmente depois de jantar, a casa do M. Santos, onde jogamos umas partidas de xadrez, novo entretenimento que descobrimos. Mas perco sempre pois ele é um jogador muito mais forte que eu. Agora, costumam juntar-se a nós, dois ou três furriéis, de maneira que os serões são muito mais animados. Discute-se política, cinema, literatura e de tudo um pouco, conforme as preferências de cada um.

Quanto às minhas novas atribuições no comando da Companhia, não me preocupam muito porque são poucas ou quase nenhumas. Daqui a poucos dias deve chegar o Cardoso e então regressarei de novo a Paúnca. (...)

Pirada, 8 de agosto de 1965


(...) Hoje tivemos também a festa de despedida do Gabriel,  aquele alferes de Cavalaria, meu companheiro em Bajocunda, de quem me tinha tornado amigo e que, foi nada mais, nada menos, nomeado ajudante do Governador!

É claro que delirámos com a notícia e fizemos mais uma grande festa em casa do amigo M. Santos que, coitado, depois do jantar, já abria a boca até às orelhas, cansado e mortinho por se ir deitar. 


Pirada, 29 de agosto de 1965

Tudo na mesma. Continuo um bocado azedo mas a coisa passa-me.

Só peço que o capitão chegue depressa, para poder regressar a Paúnca. Não fui ensinado para ocupar lugares destes e já estou farto de, quando quero fazer qualquer coisa, ter de andar a perguntar ao 1.º sargento (que também é uma boa bisca) se o posso fazer ou não.

(...)  De resto, a vida aqui em Pirada tem-se limitado a uma ida todos os dias ao quartel, assinar umas quantas mensagens que vão chegando e dar despacho a outras. Depois almoça-se, dorme-se a sesta e se ainda há mais alguma coisa a tratar volta-se ao quartel, senão vai-se até ao balcão da loja do M. Santos dar à língua até a hora do jantar. À noite vai-se outra vez para lá, jogar às cartas com as crianças e também com alguns graúdos que já apanharam o vício.


Pirada, 11 de setembro de 1965


Acabo de vir de casa do M. Santos, onde fui jantar juntamente com o capitão que, felizmente já cá está. Chegou ontem e fui eu próprio buscá-lo a Nova Lamego. Por enquanto parece ainda um pouco abananado com a mudança da Metrópole para aqui e só me deixa voltar para Paunca segunda-feira (hoje é sábado). (...)

A filha mais nova do M. Santos fez oito anos e houve grande festa lá em casa. Ficámos todos muito alegres como não podia deixar de ser. Eu ainda fiz uma retirada a tempo mas o médico e alguns furriéis teimaram em ficar mais algum tempo. Acabaram a cantar e a gritar desalmadamente no meio da praceta. Tive de os mandar calar à força e o furriel enfermeiro tropeçou e deu um valente tombo. No dia seguinte andava de braço ao peito. Foi uma risota.

Paunca, 10  de outubro de  1965


(...) À noite, quando não chove, geralmente sento-me cá fora e coloco o gira-discos a tocar. Como sei que eles [, os homens do pelotão,] não apreciam jazz, pedi ao M. Santos uns discos emprestados, entre eles, os do Solnado (os famosos discos com os monólogos da “Ida à Guerra”), que têm tido um sucesso estrondoso, pois ficam ali à minha volta, sentados em cadeiras, caixotes ou mesmo no chão. E assim passamos grandes bocados da noite, entretidos a conversar e a rir.


Paunca-Pirada, 24  de outubro de  1965

Hoje fui até Pirada ver um jogo de futebol com a Companhia de Cavalaria que está em Bajocunda.

Em Paunca já temos professor primário, é o Timóteo, um rapaz negro muito alto e ligeiramente coxo. Grande falador e grande bebedor também, como deu também para verificar. Esperemos que não me venha a dar problemas, pois parece ter prosápia a mais.

(De facto, como que a comprovar a minha estranheza quanto a alguns aspectos da sua conduta, vim a saber depois, pelo M. Santos, quando já estava na Metrópole, que ele afinal, tinha sido sempre um elemento do IN infiltrado e que, desaparecera repentinamente, quando sentiu avolumar as suspeitas sobre ele.)

Quanto a batuques, são todos os dias, mas não têm metade da graça dos que se faziam em Pirada. A população daqui é menos simpática e pouco comunicativa. Se não fosse por causa do capitão e daquela convivência forçada com o porcalhão da companhia (refiro-me ao Cardoso) andaria desejoso de voltar para lá. Mas assim é preferível ficar estagnado nesta absurda calma de Paunca. À noite, tenho até experimentado ir até casa de um ou outro comerciante, para uma visita, mas, francamente, são de tal maneira broncos e soezes que, regresso sempre sem vontade nenhuma de lá voltar. (...)

Paunca, 17 de fevereiro de 1966


Ultimamente tem havido uma série de falsos alarmes, convergindo as atenções para esta mísera localidade. Assim, de repente, sem qualquer aviso, surgiu aqui um Grupo de Combate de Nova Lamego e um Pelotão de Autometralhadoras Panhard, perguntando a toda a gente onde é que estava o inimigo!

Tratava-se, é claro, de mais um falso alarme, que fez logo saltar dos sofás os chefões na sede do Batalhão.

Confirmado o engano, óbvio é claro, o Grupo de Combate regressou ordeiramente a penates, deixando, no entanto, para trás as Autometralhadoras Panhard, que já agora aproveitavam para fazer umas patrulhas pelas redondezas, não fosse o diabo tecê-las…

Assim temos passado agora umas noites bem divertidas com a companhia destes hóspedes inesperados, aliás excelentes camaradas, especialmente o Comandante, o Alferes Alexandre, um gigante de Angola, sempre bem disposto.

A população que, tem um medo terrível das Panhard, com as suas imponentes metralhadoras de 20 mm, nem quer passar ao pé delas. No entanto soube que as populações mais afastadas parecem ter ficado tranquilizadas com o poderio de fogo que a tropa mostrou ter, para os proteger daqueles a quem eles chamam os bandidos (os turras).

Mas a miudagem atrevida, passada meia hora já andava encavalitada em cima dos blindados, brincando com as fitas das balas tracejantes de 20 mm, rindo com as brincadeiras dos soldados.

E tem sido assim esta guerra, sempre bem encenada, mas sem grandes palmas.

Agora que o Pelotão de Blindados também já se foi embora, voltámos àquela paz bucólica de sempre. Amanhã temos de dar uma grande limpeza no quartel e repor tudo nos seus lugares como dantes. Ficou como uma casa depois de uma grande festa, toda desarrumada e cheia de lixo.

Não deixei de ir a Pirada apresentar os meus hóspedes ao M. Santos, mas, não sei porquê, fui recebido com má cara. No entanto o [alferes]  Castro soube fazer as honras da casa e pagou as bebidas da praxe. 

Quando nos viemos embora, o M. Santos nem apareceu para as despedidas. Fiz de contas que não reparei. Afinal, não lhe devo nada e portanto, boa tarde!

Consta que já fez as pazes com o Cardoso e o recebe muito bem lá em casa. Alguém percebe isto? (...)

Paunca, 8 de março de  1966

No sábado passado, fui a Bafatá passear, pois apeteceu-me mudar de ambiente. No entanto apanhei uma valente estafadela pois a estrada está em péssimo estado e ainda por cima o jeep já não tem amortecedores.

Na companhia do M. Santos, almocei num café e depois fomos às compras. Apenas comprei uns livros e não encontrei mais nada de especial, a não ser um pequeno tapete com motivos árabes, alguns panos típicos, um canhangulo novo e uns pratos feitos de ráfia que podem servir de resguardo, quando se colocam panelas ou outros recipientes quentes em cima da mesa.

Mas o que mais de encontrava eram coisas feitas na China! (...)

Como o Manel Jaquim [,o homem do cinema ambulante,] agora parece ter medo de vir cá cima, não sei porquê, o nosso entretenimento continua a ser jogar às cartas ou ler alguma coisa. (...)



Paunca, 13 de março de 1966

Na semana passada estive dois dias em Pirada, a pedido do Capitão. Esperava a vinda de umas autoridades senegalesas e, como não tem lá ninguém que fale francês, pediu-me para lhe ir dar uma mãozinha.

Afinal a entrevista limitou-se a uma breve apresentação de cumprimentos mesmo sobre a linha de fronteira.

Em seguida, limitei-me a ficar por lá, ir até casa do M. Santos conversar e ouvir um pouco de música dos novos discos que tem recebido.
Em suma passei dois dias sem fazer nada, tal como um verdadeiro turista, passeando e cumprimentando velhos conhecidos. (...)



Paunca, 21 de março de 1966


As novidades para esta semana resumem-se à chegada do Manel Jaquim e a pouco mais. Finalmente reapareceu por cá, com um filme tão ordinário que até senti ganas de lhe apertar o pescoço. Chamava-se “O Capitão Sindbad” e era uma historieta desconchavada tirada das Mil e Uma Noites, excedendo tudo o que já vi de mau gosto e estupidez.

Durante o resto dos dias fui até Pirada várias vezes, para mudar de ambiente, conversar com o M. Santos, ver alguns amigos.

No domingo tivemos cá a visita de um velho comerciante de Pirada, o Gomes, que vive muito só, acompanhado apenas por um criado preto, quase tão velho como ele. Muito amigo de alguns furriéis, foram estes que se lembraram de o convidar para vir também conhecer esta já famosa estância turística. Bebemos uns whiskies e comemos galinha assada no espeto.


Bissau, 19 de abril de 1966

Todas as noites, depois de jantar, reunimo-nos e vamos até qualquer bar ou esplanada da baixa, petiscar camarão ou ostras.

No quartel temos mantido um comportamento tão acima da média que toda a gente está bem impressionada connosco. Acabaram-se os problemazinhos quotidianos que surgiam constantemente, quando estávamos no mato, em Pirada e em Paunca. Agora acordamos todos os dias, alegres e descontraídos, pensando sempre que falta menos um dia.

Uma das coisas que mais me impressiona no comportamento que os nossos soldados estão a ter agora é precisamente a calma com que estão a encarar estes últimos dias de comissão. Até parece que reina entre nós uma certa nostalgia por deixarmos estes lugares.

A nossa despedida de Pirada foi extraordinariamente comovente. Todos os amigos que lá fizemos e que por lá ficaram, o M. Santos e a família, o velhote Gomes e os outros comerciantes, a Ti Clara, a Cumba e todas as outras meninas do régulo Solo Só, vieram despedir-se com lágrimas nos olhos e correram atrás dos camiões até os perderem de vista no pó da picada.

Foi até hoje, uma das despedidas mais dolorosas que vivi. Deixámos ali abandonada para sempre (?) aquela gente que não tem outro modo de existência senão ficar ali, expondo-se a uma ameaça eminente, desaparecendo aos poucos da nossa memória.

(A ameaça eminente a que me referia, era a das presumíveis retaliações, logo que a guerra terminasse, pois os guerrilheiros, futuros vencedores, iriam certamente tratá-los como gente traidora, como cobardes que nunca fizeram qualquer sacrifício em favor da causa. O que infelizmente veio a acontecer, nos primeiros anos de euforia da independência.)

Confesso que também me vieram as lágrimas aos olhos.

Agora aqui em Bissau levamos uma vida regalada, pois o serviço até nem é muito e a camaradagem com aqueles que, como nós, também vão regressar, é entusiasta e franca.

Estes últimos dias são de uma emoção fora de todos os limites. Estou ansioso de subir para o barco. (...)
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Notas do editor: