sexta-feira, 1 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20927: (De)Caras (158): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte VII: mais uma achega do Carlos Geraldes: o caso do ataque (anunciado) a Pirada em 28/5/1965 e o linchamento do gila confundido com um espião,


Comunicado do PAIGC referindo um ataque a Pirada,  o dia 28 [, sem mês nem ano],,, Cruzando informação disponível no blogue, esse ataque só pode ser o dia 28 de maio de 1965, ao tempo da CCART

Instituição:
Fundação Mário Soares
Pasta: 07065.068.053
Título: Comunicado [Frente Leste]
Assunto: Comunicado sobre o ataque da Secção do Exército Popular ao quartel de Pirada.
Data: s.d. 
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Documentos
Página(s): 1

Citação:
(s.d.), "Comunicado [Frente Leste]", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40762 (2020-4-29)




Mário Soares > Pirada >
14/2/1974.
Foto: António Rodrigues 
(2015)
1. Continuamos à(s) volta(s) dessa figura algo misteriosa que foi o comerciante português Mário Soares, ou Mário Rodrigues Soares, mas também identificado com António Mário Soares (*). Dizem, justa ou injustamente, que serviu dois senhores, as NT e o PAIGC. Foi acusado de ter sido informador da PIDE/DGS tanto quanto "espião" do PAIGC. Em suma, "um "hábil agente duplo (...) durante muito tempo", condição que "acaba sempre por ter um preço amargo de pagar" (, segundo o seu amigo Carlo Geraldes). No fim da guerra, terá sido escorraçado por uns e por outros.

Esteve estabelecido em Pirada, no leste da Guiné, na fronteira com o Senegal, e diversos camaradas nossos (, nomeadamente, alferes milicianos)  conviveram com ele ao longo da guerra colonial, pelo menos desde 1963 a 1974.

Tende, por vezes, a ser confundido com o  seu homónimo,  esse, sim,  inconfundível figura pública Mário [ Alberto 
Nobre  Lopes] Soares (1924-2017), presidente da República Portuguesa (1986-1996), duas vezes primeiro ministro, fundador 
e secretário geral do Partido Socialista, opositor do regime de 
Salazar-Caetano,  etc.

A ignorância pode ser tanta que até a jovem cabo-verdiana, nascida em 1991, Kathleen Rocheteau Gomes Coutinho, troca os dois nomes, os homónimos,  num trabalho académico, defendido em provas públicas numa universidade brasileira (**).

Sabemos, por testemunhos anteriores (*), que o Mário Soares: (i) era natural de Lisboa; (ii) terá vindo para a Guiné por "dificuldades financeiras); (iii) estabeleceu-se como comerciante em Pirada; (iv) era casado (com Luísa  e tinha 3 filhos (um rapaz. José, a estudar em Lisboa,  e duas raparigas, Rosa e Eva Lúcia, esta a mais nova,  nascida em 1958); (v) deverá ter nascido na década d 1920, pelo que nos anos de1964/65 já teria mais de 40 anos; (vi) era "o branco mais africano que comheci" (, segundo a opinião de José Pratas, antigo alf mil médico, CCS/BCAV 3864, Pirada, 1971/73).

Sabemos ainda que: (vii) em Pirada havia mais 4 comerciantes brancos, em 1964/65; (vii) em 1971/73,  havia um agente da PIDE na vizinhança, "bom para seviciar e intimidar", o Carvalho [, Gumersindo Fernandes Carvalho, agente de 2ª, nascido em Castanheira de Pera, 1946 ?], substituído pelo Pereira [, Manuel Rodrigues Pereira, agente de 2ª, nascido em 1945, em S. Pedro do Sul ?,]  que "tinha farroncas mas com as flagelações tremia como varas verdes" (José Pratas).

Portanto, o Mário Soares não era o gente da PIDE/DGS de Pirada, nem nunca pertenceu ao quadro de pessoal da PIDE/DGS... o que não o impedia de colaborar com a política política, aproveitando-se das "relações especiais" que tinha com as autoridades fronteiriças do Senegal. O que também não quer dizer que não fosse "informador" da PIDE/DGS...e não pudesse também ser útil ao PAIGC. Dáí que, desde muito cedo, corresse a fama de ser um "agente duplo".


Guiné - Bissau > Região de Gabu > Pirada > 2018 > Antiga delegação local da PIDE/DGS, e hoje esquadra local da polícia de segurança pública. Entre 1971 e 1973, ao tempo do alf mil médico José Pratas (CCS/BCAV 3864, Pirada, 1971/74),  terão passado por aqui dois agentes:  o Carvalho [, Gumersindo Fernandes Carvalho, agente de 2ª, nascido em Castanheira de Pera, 1946 ?], substituído pelo senhor Pereira [, Manuel Rodrigues Pereira, agente de 2ª, nascido em 1945, em S. Pedro do Sul ?,]  (José Pratas). 


Guiné > Região de Gabu > Pirada > 2018 > Antiga casa do comerciante Mário Soares. Ficava,  à esquerda,  na Rua principal que levava à fronteira do Senegal, 

Fotos (e legendas): cortesia da página do Facebook Pirada Guiné-Bissau (2018). [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]

No livro de Maria José Tíscar ("A PIDE no Xadrez Africano: Conversas com o Inspector Fragoso Allas", Lisboa, Edições Coilibri, 2017), o "patrão" da polícia política na Guiné, homem  da confiança pessoal de Spínola, o Fragoso Allas, dá a entender, abusivamente, que  o comerciante Mário Soares era "mais" agente que o "seu"agente, o Carvalho, e depois, o Pereira:  que estes, ou um deles,  viveriam na casa do comerciante, que ele é que atenderia, em 90% dos casos o rádio da DGS, e que era aceite por ele, Fragoso Allas, como "agente duplo"... Porque lhe convinha... No fundo, é menorizado o papel do Mário Soares, conforme se pode deduzir das longa conversa com a historiadora,em que ele terá aberto o seu "livro": 

(...) "Era habilidoso [, o Mário Soares], tinha boas relações com as autoridades portuguesas e tinha bons contactos, também, com as do Senegal. Teve atuações muito importantes para nós. 

(...) " Era útil como agente de contrainformação. Quando queríamos enviar informações falsas ao PAIGC dizíamos-lhe que era muito secreto e então ele ia logo transmiti-las.

/...) "As informações que ele fornecia sobre o PAIGC quase não serviam, porque nós sabíamos que ele também trabalhava para eles.


(...) "Quando cheguei à Guiné, o General Spínola estava muito zangado com ele e queria mesmo expulsá-lo da província, mas isso não seria conveniente porque o posto da PIDE estava dentro da sua casa, pelo que me interessei para que ele continuasse na sua atividade”. (...)


2. Quem mais escreveu sobre o comerciante Mário Soares,  aqui no blogue,  foi  ex-alf mil Carlos Geraldes, da CART 676 (Bissau, Pirada, Bajocunda e Paunca, 1964/66), infelizmente já falecido em 2012. 

A sua foi a primeira companhia a ficar aquartelada em Pirada (, a partir de 15 de outubro de 1964). Até então Pirada era um destacamento guarnecido por um pelotão: em 1963, por exemplo, o nosso camarada e grã.tabanqueiro Jorge Ferreira disse-me, em conversa ao telefone, que esteve lá em Pirada, dois dias, e almoçou na casa do Mário Soares, ele, e outros militares, incluindo  o comandante do destacamento, o então alf inf Artur Pita Alves, hoje cor ref, que faria mais tarde uma outra comissão na Guiné, como capitão (CAÇ 1423, Bolama. Empada e Cachil, 1965/67).

O destacamento possivelmente pertencia ao BCAÇ 512 (Mansoa e Nova Lamego, 1963/65) ou então ao BCAÇ 506 (Bafatá, 1963/65), pormenor que o Jorge Ferreira já não pode precisar, mas seria o batalhão de Mansoa,

O Mário Soares recebeu, de resto,  em sua casa vários camaradas nossos, a começar pelos veteranos, o alf mil António [de Figueiredo] Pinto (BCAÇ 506 e 512, 1963/1965), o alf mil médico Luiz Goes (BCAÇ 506, Bafatá, 1963/65), e o Carlos Geraldes (CART 674, 1964/66), os dois últimos já falecidos. (Ao António Pinto, que  vive em Vila do Conde, mandamos um especial abraço.)

O Jorge Ferreira (ex-alf mil da 3ª CCAÇ,  Bolama, Nova Lamego, Buruntuma e Bolama, 1961/63),  autor do livro de etnofotografia, "Buruntuma: 'algum dia serás grande', Guiné, Gabu, 1961-63". (Edição de autor, Oeiras, 2016), estava nessa altura destacado em Buruntuma. Portanto, em 1963, ele também confirma que o Mário Soares já estava estabelecido em Pirada.

No Arquivo Amílcar Cabral, disponível no portal Casa Comum, criado pela Fundação Mário Soares, há pelo menos 11 referências a Pirada, mas nenhuma referência ao nome ou à pessoa do comerciante Mário Soares...

Sabe-se que em 1963 o PAIGC tinha muitas dificuldades de implantação na região, devido à hostilidade dos fulas e à fraca lealdade dos seus simpatizantes e militantes,  de maioria mandinga,  bem como à concorrência da FLING. Por outro lado, o Senegal, de Leopoldo Senghor, impunha, na época,  sérias limitações à liberdade de movimentos do PAIGC.

Se o Mário Soares fosse militante ou simpatizante do PAIGC seria, na época, um recurso precioso: os homens do PAIGC queixavam-se, então,  de que passavam fome, não dispunham de cuidados médicos, não tinham  armamento em condições nem muitos menos explosivos para a destruição de pontes, eram combatidos pelos fulas... Em suma, o moral era baixo ou estava em baixo.



Excerto de carta (manuscrita) remetida por Areolino Cruz a Pedro Pires, data de Pirada, 17/7/1963. É referido um ataque a "quartel de Pirada", no dia 15, tendo sido incendia a casa de um "tipo da PIDE".  Resultados: (i) "morreu um soldado europeu"; (ii) " soldados europeus têm agora medo de sair à noite, e mesmo depois das 6 da tarde"... O PAIGG não teria na época um bigrupo, o Areolino Cruz diz que "fomamos de agora em diante um só grupo comandado por Chico Tê, aproximadamente 22 homens"... (Não temos noticia de que nessa data, 15/71963, tenha morrido algum militar português no TO da Guiné.)

(Fonte: Arquivo Amílcar Cabral... Com a devida vénia; Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)

Citação:
(1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36881 (2020-4-30)


3. O primeiro verdadeiro ataque a Pirada só acontece em 28 de maio de 1965, ao tempo da CART 676. (Talvez não por acaso, o PAIGC desencadeou mais do que um ataque ao longo da guerra, nessa efeméride, evocativa do 28 de maio de 1926,  data histórica em que triunfou, em Portugal, o golpe de Estado que deu origem à Ditadur Militar e ao Estado Novo; estou-me a lembrar, por exemplo, do ataque a Bambadinca, em 28 de maio de 1969.) 

Estava então o Carlos Geraldes de licença de férias na Metrópole... [Há um interregno da sua correspondência para a Metrópole entre 18/4/1965 e 13/6/1965, correspondente ao período - mês de maio - em que não apenas gozou a sua licença de férias como celebrou  o seu primeiro casamento.]

A posteriori, logo a seguir, quando regressa a Pirada e a Paunca (onde o seu pelotão está destacado), reconstitui esse ataque e os acontecimentos que se lhe seguiram, o linchamento de um pobre gila (comerciante ambulante), confundido com um espião,  por ter sido encontrado transportando alguns sacos de invólucros na sua bicicleta depois do ataque do PAIGC...

Não tendo sido "testemunha ocular" nem do ataque do PAIGC  nem do linchamento do gila,  Carlos Geraldes, por uma questão de honestidade intelectual, começa a narrativa com a segyinte reserva: "Não sei se o deva contar"...Mas depois conta, e o que escreveu está  publicado no blogue, na sua série "Gavetas da Memória".

Voltamos a reproduzir essa crónica, com título e subtítulos nossos. Pode ser que, entretanto, mais algum camarada possa confirmar ou infirmar  (ou acrescentar algo mais sobre) o que aconteceu nesse dia 28 de maio de 1965, em Pirada.


O caso do  ataque (anunciado)  a Pirada em 28/5/1965 e o o linchamento do gila, confundido com um espião (**)


(i) O Primeiro Ataque a Pirada

Não sei se o deva contar, porque nem sequer fui testemunha ocular. Nesse dia, 28 de Maio de 1965, estava de férias na Metrópole junto com a família. Um mês inteiro longe da guerra, na total ignorância de como as coisas se iam passando por lá,  a milhares de quilómetros. Só quando regressei de avião a Bissau é que me contaram a novidade.

Pirada tinha sido atacada!

Ao princípio custou-me a acreditar, até porque quem mo contou também não sabia bem os pormenores. Mal pude conter a impaciência nos dias que se seguiram à espera de boleia num Dakota (o velhinho, mas muito útil DC-6) para Nova Lamego onde depois teria um jeep da Companhia para me ir buscar. O sempre sorridente alferes Pinheiro lá estava pontualíssimo para me servir de condutor de regresso a casa.

E então lá me contou como tudo se tinha passado, enquanto eu o ouvia,  embasbacado, ainda pouco crente que me estivesse a falar verdade.

O M[ário] Soares, como sempre, fora informado que um numeroso grupo de guerrilheiros se estava a juntar do outro lado da fronteira, no Senegal. Estava bem armado e tinha intenção de fazer qualquer coisa ao quartel da tropa em Pirada. E até se sabia o dia e a hora em que isso iria acontecer. 

O nosso Capitão fez aquilo que a prudência mandava, entrincheirou-se o melhor que pôde e aguardou. Aliás, tomou até uma medida que sempre me pareceu um pouco ousada e timorata. Quis contra-atacar. Planeou então uma manobra para emboscar o inimigo que supostamente viria atacar o aquartelamento do lado ocidental a coberto da povoação nativa, a cintura de palhotas que envolvia Pirada. Para isso mandou que o alferes Pinheiro e o seu Grupo de Combate se fossem colocar, muito discretamente, do lado de fora da tabanca, numa zona baixa, já perto da bolanha, onde aí, montariam uma emboscada e contra-atacariam os assaltantes encurralando-os contra o quartel. Só que as coisas nem sempre correm tão bem como se planeiam no papel. A noite estava escuríssima, conforme me ia contando o Pinheiro:

"Eu mal consegui dar com o sítio que o capitão me tinha dito onde eu e os meus homens nos deveríamos ocultar para depois apanhar os gajos. E depois quando a festa começou deu-me a impressão que afinal estávamos mais afastados do que era previsto. E pelo arraial que faziam deviam de ser mais de duzentos. Olha, eu, pelo sim pelo não, para não estar para ali a fazer fogo sem mais nem menos, resolvi que o melhor seria esperar muito caladinho e ver como as coisas se iriam passar. Se revelássemos a nossa posição até talvez ficássemos numa situação muito perigosa. Aliás poderia acabar por fazer fogo contra os nossos, não achas? Por isso, ficámos ali muito quietinhos à espera que tudo passasse. No quartel estavam mais bem protegidos pelos abrigos, eu ali não tinha protecção nenhuma!"

Sim, o alferes Pinheiro tinha razão, era insensato atacar às cegas um inimigo que não se sabia bem onde estava nem de onde vinha, muito superior em número e armamento. Tomou uma decisão que à primeira vista poderá ser tomada como um acto de cobardia, mas que na verdade, tratou-se apenas de evitar um mero suicídio colectivo totalmente gratuito e ineficaz.

Assim o ataque desenrolou-se durante grande parte da noite, com a população nativa aterrorizada, escondida o mais que podia para escapar às balas perdidas que voavam em todas as direcções, varando de lado a lado as palhotas e as vedações dos quintais, enquanto do quartel atiravam morteiradas em todas as direcções e abriam fogo de metralhadora à vontade numa ânsia de aniquilar um inimigo que nem conseguiam descortinar.


(ii) O enigmático Mário Soares


Segundo depois me contou o M[ário] Soares, elementos do PAIGC passearam-se mesmo pelo centro do povoado, donde, até debaixo do alpendre da sua casa, fizeram fogo na direcção do quartel. Mas a ele e à família nem num cabelo tocaram. 

Admirável cavalheirismo romântico, que não seria fácil encontrar ali no mais remoto interior da Guiné. Gesto que, no entanto, lhe acarretaria futuros problemas com as desconfianças que a tropa foi alimentando a seu respeito, esquecendo que paralelamente M. Soares sempre lhes fornecera amplas e atempadas informações das andanças dos grupos inimigos que transitavam regularmente pelo Senegal, vindos da Guiné-Conacri em direcção à região do Morés, no triângulo Mansabá-Mansoa-Bissorã.

Na verdade a imunidade de M. Soares devia-se muito à sua condição de hábil agente duplo que soube manter durante muito tempo e isso acaba sempre por ter um preço amargo de pagar.

Com o raiar do dia [, 28 de maio de 1965], já depois de as armas se terem silenciado,  é que, aos poucos e poucos se foram verificando os estragos. Felizmente do nosso lado não houve mortos nem feridos, apenas danos materiais. As instalações ficaram com as paredes crivadas de balas, e duas viaturas foram atingidas mas nada de grande monta. [No comunicado do PAIGC, acima reproduzido, fala-se em 3 viaturas incendiadas: 1 jipe, 1 Unimog, 1 Mercedes Benz; mais: diz-se que "incendiámos toda a Pirada"...]

Na tabanca é que tinha sido pior, tinham ardido umas dezenas de casas, devido talvez ao nosso fogo de morteiro. Quatro mortos a lamentar e bastantes feridos sem grande gravidade, pois grande parte da população tinha fugido para longe. O posto médico depressa se encheu e o pessoal de saúde não teve mãos a medir, enquanto patrulhas percorriam toda a zona de onde o inimigo teria estado a fazer o fogo, agora facilmente identificável pelo elevado número de cápsulas vazias de vários calibres 
espalhas pelo chão. 

Os rastos deixados pelo grupo dos atacantes indicavam também que deveriam ter sofrido algumas baixas pelos vestígios de sangue deixados nos percursos de fuga em direcção do Senegal [, pelo menos dois mortos, conforme comunicado do PAIGC acima reproduzido].


(iii) O linchamento do gila


Mal recuperados do susto que tinham apanhado, tanto oficiais como sargentos e praças nem tinham vontade de falar no assunto.

Mas envergonhados também pelas reacções primárias a que se entregaram, quando ainda naquela manhã, prenderam um atónito gila que, inocentemente, tinha carregado na sua bicicleta vários sacos de cartuchos vazios que fora apanhando pelo caminho que percorrera despreocupadamente (?). 

Logo ali o acusaram de espião e resolveram fazer justiça pelas próprias mãos. Enquanto o capitão e o resto dos oficiais e sargentos se fecharam na caserna, a turba,  uivando cada vez mais enfurecida, arrastou o pobre desgraçado para o meio da parada e,  no meio de insultos e pancadaria, acabou de matar o pobre do gila, regando-o em seguida com gasolina e chegando-lhe fogo.

E até me mostraram fotografias, que acabaram por depois fazer desaparecer, cientes da barbaridade cometida.

Ainda cheguei a tentar falar com o capitão sobre o acontecimento. Mas apenas me respondeu com um silencioso encolher de ombros, revelador de uma total incapacidade de impedir o linchamento. E se calhar até de algum tácito consentimento para serenar os ânimos.

Mas só na antiga Roma é que os cruéis imperadores proporcionavam ao povo espectáculos de morte, para o poder controlar a seu bel-prazer! Teria acontecido aqui o mesmo?

Porém, com o passar do tempo,  tudo foi esmorecendo e caiu no esquecimento.Mas, o gila teria deixado família? Mulher,  filhos, outros parentes? Qual teria sido a raiva e a dor deles? Como teriam encarado o futuro?

A guerra não foi só recheada de heroísmos, ou uma alegre perseguição das bajudas lavadeiras apanhadas desprevenidas no regresso da bolanha, ou uma imprevidente saída para o mato na escuridão de uma noite tenebrosa.

A guerra foi também um longo rosário de pesadelos que nos marcou profundamente, mas que teimamos em não valorizar também.

Recolhi a Paunca [, destacamento da CART 676], logo que pude, para tentar esquecer.

(iv) A guarda republicana senegalesa corre com todos os grupos armados que podem ameaçar os postos fronteiriços portugueses (****)


(...) Voltando à vaca fria, nesta guerra, como se pode ver mais uma vez, tive sorte. Pois foram logo escolher o dia do ataque para quando estava de férias. Parece que eles ainda pensaram em voltar, mas viemos a saber depois que tinham resolvido ir atacar outra zona que, se calhar, lhes seria mais favorável. Entretanto a população regressou e tudo voltou à normalidade.

O Presidente do Senegal (Senghor) enviou para esta região membros da guarda republicana senegalesa para correr com todos os grupos armados que circulam por aqui e que já o estavam a inquietar, de maneira que hoje de manhã [, 15 de junho de 1965,]tivemos a inevitável confraternização, mesmo sobre a linha de fronteira.

Confraternização essa que levámos a efeito em regime estritamente confidencial, pois mais ninguém deveria saber, para não se armarem as habituais confusões junto do poder central. De um lado, eu, o Capitão, o alferes Carvalho [, pseudónimo do Pinheiro], e o alferes médico representando a tropa. O M. Santos representando os civis. Do outro lado, três guardas senegaleses.

O ambiente foi bastante cordial e prometeram-nos nunca mais autorizar a permanência, nesta zona, de grupos de guerrilheiros armados que, pelos vistos, também já os estariam a preocupar e incomodar. (...)

[Seleção, revisão e fixação de texto, incluindo negritos, itálicos e realces a amarelo: editor LG]
_______________


(**) Katheleen Rocheteau Gomes Coutinho - A Política Externa de Cabo Verde (1975 a 1990): uma análise da configuração e atuação da política externa de Cabo Verde durante a guerra fria. Monografia apresentada ao Instituto de Relações Internacionais como requisito parcial à obtenção do Bacharel em Relações Internacionais. Brasília, Unibversiade de Brasília, Faculdade de Relações Internacionais, Instituto de Relações Internacionais, 2015. Disponível em: https://bdm.unb.br/bitstream/10483/16366/1/2015_KathleenRochteauCoutinho_tcc.pdf

(...) Estes dois fatores [, a vitória da luta de Libertação Nacional levada a cabo pelo PAIGC,  e a Revolução dos Cravos ou Revolução de 25 de abril de 1974,] foram importantes e estiveram na origem do Acordo para a independência de Cabo Verde, assinado em 19 de dezembro de 1974, pelas delegações do governo de Portugal e o PAIGC, nomeadamente entre Mário Soares (representando Portugal) e Pedro Pires (representando o PAIGC). (...)

Em nota de rodapé, diz-se que o seguinte: 

(...) Mário Rodrigues Soares- Português, 1922. Comerciante na região de Pirada onde acabou por funcionar como “agente” ou “espião”, nos contatos entre as autoridades portuguesas, senegaleses e o PAIGC. (Lopes, 2012).(...) [LOPES, José Vicente. “Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História”. Spleen edições, Cabo Verde, Cidade da Praia, 2012.]

(...) Pedro Pires, Cabo-verdiano 1934. Oficial miliciano na Força Aérea Portuguesa. Membro do PAIGC. Formação militar em Cuba e URSS. Comandante da Região Militar do PAIGC. Lidera a delegação do PAIGC na assinatura (...)

(****) Excerto da carta datada de  Pirada, 13 de junho de 1965, reproduzida aqui;

7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4916: Cartas (Carlos Geraldes) (6): 2.ª Fase - Abril a Junho de 1965

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A resposta a "esta" questão, é também a resposta a questões análogas: quem eram comerciantes da Guiné, europeus, cabo-verdianos, libaneses ? Qual era a sua atitude e os seus comportamentos face às NT e ao PAIGC ? Quem ficou na Guiné-Bissau ? Quem "retornou" a Portugal ou a Cabo Verde ? Dos libaneses sabemos pouco... Muitos teriam já a nacionalidade portuguesa...

Manuel Luís Lomba disse...

Aí vão as minhas memórias, referidas a esse ataque a Pirada.
A nossa CACav 703 foi acordada e enviada à pressa de intervenção para Nova Lamego, uma ponte aérea de 7 ou 8 viagens, feita por um lendário DC 3 Dakota, (só havia 2 em Bissalanca), com a capacidade de cerca de 20 passageiros. Como éramos cerca de 160, terá feito 7 ou 8 viagens.
Coube-me ir na primeira leva, manhã cedo; estava sentado no topo do banco corrido de lona, entrou o gorducho Comandante-chefe General Arnaldo Schulz, na sua farda de terylene amarelo, as suas 4 (ou 5?) estrelas nas platinas vermelhas, recebe-o o major comandante da aeronave, oferece-lhe uma cadeira no copkit, recusou a dizer sento-me aqui. Levanto-me de um salto, bato-lhe a continência, ofereço-lhe o meu lugar, mas ele disse cheguem-se para lá e sentou-se em minha companhia. Mas não me passou mais cartão.
Como eu pesaria uns 40 Kg, representávamos um bom quadro como Bucha e Estica.
O comandante de Nova Lamego carregou-o no jipe, nós fomos a pé, a guarnição andava em alvoroço, enchemos o olho com uma moça branca, gordinha, rosto de lua-cheia e grandes olhos negros - era a professora escolar, que todas as hierarquias da guarnição disputavam.
Como chegamos depois do horário, não tivemos direito a pequeno almoço e eu e outros fomos parar ao estabelecimento de um libanês, com uma placa "Bebida gelado", bebemos-lhe todas as bijecas com essa temperatura e comemos-lhe todas as latas de conserva de anchovas.
Ao fim da tarde, fui escalado para ir proteger a jangada do Ché-ché, num camião Mercedes e um jipe com um canhão s/r 10,7, da guarnição, outro foi destacado para a tabanca Pinto da Silva, outro em reforço de Paunca e o resto da Companhia foi para a sacrificada Pirada, em reforço da CArt 6767.
Lembro o Ché-ché como um sítio medonho e lembro-me que a malta que fora para Púnca comentar que o destacamento era comandado por um alferes, casado com uma moça loira, que alinhava nas escoltas, no meio dos soldados, que a tratavam por "nossa alfera"...
A seguir reunimos-nos em Buruntuma.
O camarada Domingos Pardal, que se amesenda nas tainas da Tabanca da Linha, acaba de me dizer que o famigerado Mário Soares de Pirada veio parar a Aljezur, como retornado, o IARN financiou-lhe uma oficina de mármores nessa vila, que pouco tempo depois entrou depois entrou em falência.
Abr.
Manuel Luís Lomba

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Obrigado, Manuel Luís Lomba e Domingos Pardal, dois camaradas da CCAV 703... O Domingos, vou-o encontrando de tempos a tempos em Algés, na Tabanca da Linha...É um conceituado empresário, de Pero Pinheiro, a ind+ustria de rochas ornamentais...

É preciosa esta informação do Domingos Pardal sobre o Mário Soares:

(...) "O camarada Domingos Pardal, que se amesenda nas tainas da Tabanca da Linha, acaba de me dizer que o famigerado Mário Soares de Pirada veio parar a Aljezur, como retornado, o IARN financiou-lhe uma oficina de mármores nessa vila, que pouco tempo depois entrou depois entrou em falência.(...)

Isto significa que o Mário Soares não ficou na Ginué-Bissau, depois da independência, contrariamente à informação da historiadora Maria José Tríscar...