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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26487: Notas de leitura: "Um preto muito português", da luso-angolana e antiga "rapper" Telma Tvon (Lisboa, Quetzal, 2024)... Quem somos nós, "pretugueses" ? - Parte I (Luís Graça)



Telma Tvon (aliás, Telma Marlise Escórcio da Silva
(cortesia da Quetzal Editores)


(i)  nasceu em Luanda em 1980 (portanto, em plena guerra civil angolana, que vai de 1975 a 2002);

(ii) imigrou para Lisboa, em 1993 (com a irmã, sendo acolhida pela avó); 

(iii) frequentou o ensino secundário ao mesmo que tempo se integrava, desde os 16 anos,  na cultura rap, do soul e do hip hop;

(iii) pertenceu aos grupos Backwordz, Hardcore Click e Lweji, sendo os três grupos compostos por MC  femininas;

(iv) mais recentemente colaborou com o brasileiro  Luca Argel no projeto Samba de Guerrilha;

(v) licenciou-se em Estudos Africanos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

(v)  fez  mestrado em Serviço Social pelo ISCTE-IUL.


Capa do livro de Telma  Tvon, "Um Preto Muito Português". 
Lisboa: Quetzal, 2024, 184 pp. (Série "Lígua Comum") (c. 15 €)



Sinopse > Um Preto Muito Português

João, aliás, Bidjura, como é conhecido, é filho de cabo-verdianos que vivem há muito em Portugal e neto de cabo-verdianos que nunca conheceram Portugal. Também é bisneto de holandeses que mal conheceram Portugal e de africanos que muito ouviram falar de Portugal. Vive em Lisboa, mas não é considerado alfacinha. Terminou a licenciatura na faculdade e vai trabalhar num call center, com outros negros e brancos, pobres e ricos. 

Budjurra faz parte de uma minoria que, lentamente, vai sendo cada vez menos minoria. É um preto português, muito português, que, ao longo do livro e das aventuras que relata, levanta questões relativamente a temas como racismo, discriminação, estereótipos, igualdade e humanidade, mas também música, rap, identidade - numa Lisboa morena e colorida que é necessário conhecer: 

«Posso dizer, sem qualquer orgulho, que sou um homem estranho. Tão estranho como a minha alma. […] E assim como os anos e meses  que4 passam em redor, continuo apenas mais um preto muito português.» 

Com a sua rara humanidade, Budjurra mostra-nos como se vive por dentro da invisibilidade da comunidade africana, como se lida com as narrativas falsas que a envolvem, como se sobrevive aos preconceitos e ao esquecimento. (Fonte: contracapa)


1.  Não sei se vamos ter um nova grande escritora da língua portuguesa. Esta é a sua primeira incursão no romance.  Nem sei se é um romance. É uma espécie de "diário de bordo" de um "pretuguês" que na sua viagem pelo seu quotidiano  da Grande Lisboa se interroga sobre a sua identidade, a sua relação com os outros, a começar pela sua família, os amigos, os colegas de trabalho, as mulheres e os homens com quem se cruza na vida, e que tem de lidar com o rascismo, o preconceito, a ignorância, a estupidez, o estereótipo, a discriminação, na escola, na rua, na esquadra de polícia, na agência de emprego,  no local de trabalho, na cama, na comunicação social, na política...

Longe de ser panfletário, é um livro que dá voz a muitos portugueses que tem raízes em África. Uma minoria até agora silenciosa, para além de alguns cantores e "rappers" de sucesso como o Gutto (nascido em Luanda em 1972,  "retornado" em Portugal, com  2 anos)... 

O mérito do livro, para já,  é dar voz a uma juventude que nem sempre está bem na sua pele, com a sua pele, e no país  onde nasceu, de pais em geral "imigrantes".

(...) " Telma Tvon trouxe a voz da juventude negra portuguesa para o romance. Amante de literatura, não encontrava obra que reflectisse a sua realidade. E assim nasceu Um Preto Muito Português, retratos da juventude negra dos subúrbios de Lisboa e de quem passa a vida a ser questionado: “De onde és?” (...) (Joana Gorjão Henriques, Públioc. 5 de Junho de 2018, 9:50

O protoganista não é sequer  a autora, bem podia ser uma espécie de "alter ego".  Mas teve "pudor" em escrever a sua própria história. Não, ela escreveu um livro na primeira pessoa, em discurso direto, dando voz a um homem, ao João, aliás, Badjurra, português nascido em Lisboa, filho de pais cabo-verdianos que emigraram em tempos "à procura de uma vida melhor": ele, de Santiago, ela de Santo Antão... 

E que até nem vivem na... Cova da Moura, ou naqueles "bairros problemáticos", ou nos chamados "bairros sociais"...Ele, João Moreira Tavares, o irmão Carlos e a irmã Sandra, nasceram ainda no "gueto", mas já não vivem no "gueto", desde cedo foram "viver nos prédios" (sic) com uma tia da mãe, já melhor integrada socialmente... 

Na cabeça de quem "imigra", também há a imagem do famoso "ascensor social" que leva os pobres das "subcaves" até pelo menos ao "1º andar", onde já se pode respirar fundo e ver a luz do sol...

No livro não dá perceber onde e quando, exatamente onde e quando, mas é na periferia de Lisboa, na "linha de Sintra", na primeira década do século XXI... 

Apesar de até nem ser muito "escuro", o  João, aliás Budjurra,  é preto mas "muito português"... E até licenciado, com estudos superiores:  licencidado em gestão ambiental, a trabalhar num "call-centre", e num segundo emprego, como muitos outros jovens...

2. Conhecia-a, à Telma Tvon,  na Lourinhã, nos "Livros a Oeste", em 15/5/2024. E fiquei encantado com a sua simplicidade, graça, espontaneidade, frontalidade,  inteligência emocional, capacidade de comunicação... 

Afinal, ela nasceu e viveu em Angola, até aos 13 anos  e tem a desenvoltura e a desinição dos/das MC ou "rappers", e sobretudo da malta nada e criada em Luanda.  De resto, a dedicatória que consta do seu livro, diz muito: "Para os meus de sangue e coração. Para os meus de rua e coração". 

Mas vamos  continuar a falar deste seu primeiro livro, onde ela resto usa (e abusa...) do "calão" falado por estes jovens portugueses: contei até agora umas boas 6 dezenas de vocábulos e expressões idiomáticas, tais como pretugueses, xaxar, bazar, estigar, bazeza, metal, metaleiro, wannabe, canucas, castanhas, latons (mulatos), brownskin,  curtir bué, madie, nha kamba, sista, boelo, pula, ganda filme, beber uma jola,  bater mal, desconseguir, deswligar a ficha,  playa,  baggy, etc. 

Mekié, mana ?...

Romance, diz o editor. Diário, dário de bordo de um "pretuguês", acrescento eu.  Para já citemos algumas das 49 entradas ou pequenos capítulos do livro que lá li e reli (entre parènteses, o níumero da página):

(...) Quem sou eu (9) | O Budjurra até é bacano (16) | Nem és muito escuro (18) | Tu agora chamas-te Arrastão, Budjurra (29) | No call-center, licenciado (42) | Querias tu ser cabo-verdiano, Budjurra (50) | Desmistificar o Black Power (56) | O teu amigo morreu, Budjurra (81) | Achas que sabes dançar, Budjurra ? (89) |  Senhor sénior Budjurra (103) | O teu Escuro tem tanta Luz, Budjurra (127) | As tuas pequenas coisas, Mwafrika (135) | Tu não tens humor negro, Budjurra (142) | Os suspeitos do costume (145) | Voltar para onde nunca estiveste, Budjurra (160) | "Ser negro" - Gutto (172) | De Cabral a Budjurra (175). (...)

(Continua)

_______________

Nota do editor:

Último poste da série > 10 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26481: Notas de leitura (1771): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (5) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Guiné 63/74 - P26408: Manuscrito(s) (Luís Graça): A gramática da vida (poema dedicado ao João, que hoje faz anos)





Guiné-Bissau > Região de Tombali > Parque Nacional do Cantanhez > Iemberém > Dezembro de 2009 > O Dr. João Graça, médico e músico,  ofereceu cinco dias (de 6 a 10 de Dezembro de 2009) das suas férias de quinze dias (de 5 a 19 do corrente), para trabalhar como médico no Centro de Saúde Materno-Infantil de Iemberém. Para além de Bissau e do Cantanhez, esteve também nos Bijagós, na zona leste (Bambadinca, Tabató, Bafatá, Contuboel e Gabu) e na região do Cacheu (São Domingos)

Aceitou, no regresso,  integrar a nossa Tabanca Grande e a publicar alguns apontamentos e fotos do seu diário de viagem.

Espantosa, a primeira foto de cima, em que o menino de Iemberém, a aprender a gramática da vida,  como que nos interpela, a todos, não só os pais-fundadores e os homens grandes da Guiné-Bissau mas também todos nós, portugueses, europeus e cidadãos do mundo... "Que lugar há para mim neste mundo que devia ser meu e teu, o nosso mundo, o único lugar que temos para nascer, crescer, viver e morrer com saúde, em liberdade, com dignidade, em paz ?"

Fotos (e legenda): © João Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A gramática da vida

Ao João, que  hoje faz anos

Contra o ponto (.) a vírgula (,)
Contra o ponto de exclamação (!) as reticências (…)
CONTRA OS TíTULOS DE CAIXA ALTA,
o ponto de interrogação (?).
Ou então abram alas, malta,
parênteses, curvos ( ) ou rectos [ ],
e parem só aos sinais de proibição.

... Por precaução.


E ao Não!, digam Não!, ponto de exclamação (!).
E aqui carreguem nos sinais de interjeição:
Ai! ei! ii! oi! ui!...

... Que, com a vida sem pica, a gente fica
sem palavras nem (lo)comoção!



Ao sinal verde, toca a arrancar e a marchar
contra os OOO da arrogância,
os UUU da flatulência,
os III da intolerância,
os EEE da estupidez,
os AAA da bravata e os RRR do arroto,
mais os ÇÇÇ do caraças da doença,
e, pior, os acen(t)os da demência.


Cuidado, ao final das escadas,
â direita,
o cano de esgoto,
não escorregar em contramão.

... Não há receita contra as gralhas e as calinadas,
e os atropelos à decência.



War is over, baby,
bela bajuda de mama firme,
tira fora o chapéu de abas largas
e atira flores aos que morreram,
em terra, no ar e no mar,
pelas causas que não têm deferimento.

... Não os deixes inumar
na vala comum do esquecimento!



Cuidado, camarada,músico do mundo,
trânsfuga, refractário, desertor,
prisioneiro, inimigo, comissário,
capelão, comandante, detrator,
miliciano, agente duplo, lavadeira,
escriturário, artilheiro, piloto,
grumete, xico, cadete, capitão,
crente ou ateu, tanto faz,
e olha o robô,
que, no fim da picada, podes ser cuspido, zás!,
pela força centrífuga do silvo da cobra cuspideira
que se mordeu a si própria.

... Mas, a sério, ninguém se magoou ?


Quanto ao macaréu, já não é o que era,
garantiram-te no Xime...
Deixaram assorear o Geba Estreito,
que crime!,
os administradores das águas fluviais
braços de mar, tarrafes e canais de irrigação
da liberdade criativa.

... Dizer que o trabalho é bom p'ró preto
já não é politicamente correcto. Corta.


Mas que importa,
se já nem vocês se afoitam, pessoal,
de peito feito, aberto,
contra os jagudis imperiais do Corubal
que comeram as últimas letras do alfabeto.

... Morreram todos, os cabras-machos!


Para que serve afinal a liberdade sem a poesia nem a "bianda" ?
Há que pôr os pontos nos ii,
no semáforo intermitente,
engraxar as botas,
brunir os colarinhos,
escovar o camuflado,
serrar fileiras e os dentes,
pensar na puta da vida,
e no povo, agora, murcho, calado e tolo,
e abrir aspas entre as falas em crioulo.

... Enquanto o corpo está quente e o sangue sai às golfadas.


Até o barqueiro, coitado, perdeu o k da kanoa,
varada no tarrafo do Mato Cao.
Sem o til.

... Levaram-no, ao pobre do til, para o canil de Lisboa.


Há agora um fantasma de um quarteleiro
à procura das estrias, frias, do morteiro...
Triste samurai, aquele, que não encontra o fio nu da espada,
E em vão procura o historiador o rumo da história.

... E, ai! do pobre (a)tirador,
aquele que se mata a (a)tirar
o acento circunflexo da bala na câmara.


Encontraste um 'djubi', numa escola do mato,
exercitando o seu estilo caligráfico,
em caderno de duas linhas,
de acordo com a norma do acordo pouco ortográfico.

... Oxalá, Insh'Allah, Enxalé!



Resta o humorista, o velhaco,
que é sempre o último a perder
os quatros humores,
já no fundo da pista onde acabam todas as peugadas:
sangue, pouco e fraco, diz o o doutor,
fleuma, de mal a piores,
bílis amarela, quanto baste,
e bílis negra, às carradas.

... Que o último a morrer,
nem sempre é o que morre melhor.


Que o que faz bem ao braço, faz mal ao baço
e já não há coração que aguente
a pressão hiperbárica do pulmão.
O fígado, esse, mesmo de aço e de inox,
é um passador crivado....

... De balas sem ética nem estética, diz o raio X.

Não sabes o que é que faz mais urticária,
ao tabanqueiro viril, que não arreda pé,
se a inveja do pobre em hidratos de carbono
ou a pesporrência do rico em sais minerais.
Resta a cruz de guerra
da guerra de mil e troca o passo, na Guiné,
e os seus heróis.

... Todos diferentes, todos iguais.

Quanto à vida, baby,
no fundo, é tudo tretas:
sangue, suor e lágrimas...
é quando se tem 20 anos,
força nas canetas,
e muito esperma para dar e vencer.
Agora já se não usam palavras com trema.

... Nem tu sabes o que fazer com este poema.


De qualquer modo,
quando a gente morrer,
que não seja por falta de imaginação,
ou de habit(u)ação,
ou de fim do prazo de validade,
que seja ao menos numa cama fofa,
de consoantes e vogais.
Sem travessão. E com piedade.

...E mais:
dispensemos a notícia nos jornais.


Luís Graça
© 2008 | Revisto em 21/1/2025

____________

Nota do editor:

domingo, 12 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26381: Recortes de imprensa (142): Lusodescendentes do Sri Lanka e o seu crioulo de base portuguesa (Diário de Notícas e Agência Lusa, 8 mai 2023 )



Jovens falantes de português no Sri Lanka, segundo o projecto "Preserving Sri Lanka Portuguese" 

 Foto DR/Facebook, https://www.facebook.com/preservingsrilankaportuguese1 (com a devida vénia)


Lusodescendentes do Sri Lanka com "interesse crescente" em salvar o crioulo

Diário de Notícias | Agência Lusa | 08 mai 2023 09:40  


É uma peça da Agência Lusa, reproduzida no portal www.dnoticias.pt, que merece a nossa atenção, de portugueses e lusófonos: a existência de uma pequena comunidade de lusodescendentes do Sri Lança (o antigo Ceilão) que teima em manter a sua identidade e inclusive  o crioulo de base portuguesa que está em sério risco de extinção. 

A estes esforços está associada a investigadora Patrícia Costa do Centro de Linguística da Unibversidade de Lisboa (CLUL) e que é entrevistada pela Agència Lusa.

Reproduzimos alguns excertos da peça, com a devida vénia (*):

(...) A investigadora Patrícia Costa lançou um projeto para divulgar o crioulo de base portuguesa do Sri Lanka nas redes sociais porque considera que há 'um interesse crescente' nas comunidades lusodescendentes em preservar a língua."

Em abril de 2023, um grupo de jovens começou a organizar aulas de crioulo português para jovens e crianças. 

(...) "O mesmo grupo tem também procurado dinamizar ações para promover a língua no Sri Lanka, onde 'a maior parte da população desconhece totalmente que existe esta comunidade de euro-asiáticos e desconhece que há uma língua totalmente diferente', referiu Costa." (...)

Destaque para um desses jovens, "Derrick Keil, lançou em fevereiro uma versão moderna de uma canção tradicional em crioulo português, 'Minha Amor',  após ter participado no programa de talentos 'The Voice Sri Lanka' (...)

 Patrícia Costa, ouvida pela Agência Lusa, diz que  é "um marco importante na história da comunidade, porque pela primeira vez temos uma música dirigida a audiências várias que tem o crioulo como língua" (...)

A "baila", hoje o género de música talvez mais popular no país, foi introduzidda no Sri Lanka justamente pela "comunidade de falantes do crioulo português",

Patrícia Costa e Vyvonne Joseph, "jovem falante da língua",  foram quem,  em 2020, kançaram o projeto Preserving Sri Lanka Portuguese (Preservar o Portuguès do Sri Lanka), nas redes sociais (Instagram e Facebook).

O objetivo da inciativa, segundo a investigadora  portuguesa do CLUL é4 de "dar a conhecer a audiências mais gerais, também fora do Sri Lanka,  a existência desta língua, porque mesmo em Portugal não há uma grande consciência de que estas comunidades crioulófonas existem".

Um segundo objetivo é auxiliar, com materiais didáticos simples, os membros da comunidade que querem aprender ou aperfeiçoar a língua.

(...) O crioulo português do Sri Lanka 'neste momento é uma língua definitivamente ameaçada. O número absoluto de falantes é bastante reduzido', por volta de 1.300, sendo que a maioria são 'pessoas mais velhas' (...). Para os jovens, 'aprender o crioulo português não tem o valor instrumental que as línguas oficiais do Sri Lanka, o cingalês e o tâmil, têm, no acesso à educação e ao emprego, referiu Costa" (...)

Além disso, disse a investigadora, é preciso superar alguns preconceitos e ideias feitas, no seio da própria comunidade: para alguns membros  seria uma língua obsoleta, e segundo outros   "aprender o crioulo português em casa pode prejudicar a aprendizagem de outras línguas na escola"...

Embora em risco de desaparecer, o crioulo português do Sri Lanka  pode ter futuro.

(...)  "A académica defendeu ainda que uma maior ligação com os países falantes de português 'seria muitíssimo vantajoso para as comunidades crioulófonas, que teriam uma espécie de reconhecimento oficial da sua existência, da sua importância e da sua herança.

"O crioulo português do Sri Lanka, antigo Ceilão, é uma herança da expansão marítima portuguesa no século XVI, quando nasceu como língua de contacto entre cingaleses e portugueses, os primeiros europeus a lá chegar.

"A colonização portuguesa da ilha não durou mais de 150 anos, mas, mais de meio século depois, este crioulo continua a ser falado no seio das comunidades burghers, tradicionalmente católicas." (...)


A palavra "burghers" ( "cidadãos", "citadinos", "burgieses", em holandês) é a designação comum, usada hoje  para todas as pessoas que tèm uma ascendência euro-asiática (n0omeadeamente  portugueses e holandeses),  no Sri Lanka.



Fonte: USA > CIA > The World Factbook (com a devida vénia...)

Mapa do Sri Lanka: principais cidades do país... Em três delas (assinalada a tracejado verde e vermelho) residem comunidades de lusodescendentes. Os portugueses e seus descendentes fixaram-se sobretudo na costa leste, em Trincomalee e em Batticalloa 

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)



(...) No Sri Lanka de hoje o crioulo limita-se à linguagem falada. A maioria dos falantes são os burghers da província oriental, em Baticaloa e Triquinimale. Atualmente o inglês tornou-se a língua comum, com o cingalês ensinado nas escolas como segunda língua. De influência portuguesa existem ainda os cafrinhas ou kaffir do Sri Lanka, uma comunidade de origem africana, na província do noroeste Putalão, originalmente trazidos por portugueses, neerlandeses e ingleses para trabalhar no Seri Lanca, e que mantêm assumidamente uma cultura e religião portuguesas.

No Censo de 1981 os burghers (holandeses e portugueses) contavam cerca de 40.000 (0,3% da população total do Sri lanka).

Muitos burghers emigraram para outros países. Existem ainda 100 famílias em Baticaloa e Triquinimale e 80 famílias Kaffir em Putalão que falam o crioulo português. Numerosos apelidos de origem portuguesa permanecem até hoje, como Perera, Pereira, Abreu, Salgado, Fonseca, Fernando, Rodrigo e Silva, que se tornaram parte da cultura do Seri Lanca.

A população burgher no mundo será de 100.000 aproximadamente, concentrada sobretudo no Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. (...)

(Fonte: Excerto de Wikipedia > Burghers Portugueses (com a devida vénia)...



Excerto de banda desenhada infantil "Portuguese in Sri Lanka: part two: their exploits" (em inglês). Texto. Hashana Bandara; ilustração: Saman Kalubowila. (Sumitha Publishers. s/d., s/l. 24 pp.) Fonte: Poth Pancha, Panadura, Sri Lanka: uma livraria "on line" para crianças com menos de 12 anos (Imagem reproduzida com a devida vénia...)


Na primeira imagem acima pode ler-se em inglês: "Os Portugueses que chegaram ao Sri Lanka acidentalmente, em 1505, empenharam-se em estabelecer o seu poder na região costeira norte da ilha, até por volta de 1580" (... o que não é exato: a presença portuguesa manteve-se até meados do séc. XVII, Colombom na costa oeste,  cairia nas mãos dos holandeses apenas em 1656, depois de uma heróica resistência, tendo sobrevivido apenas menos de uma centena de defensores...Os holandeses por sua vez serão substituídos pelos ingleses em finais do séc. XVIII, princípios do séc. XIX. O Sri Lanka tornou-se, mais ou ,menos pacificamente, independente da coroa britânica em 1948. 
 ______________

Nota do editor:

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26366: "Dia da Consciência e o Humanismo Universalista Lusófono Em Aristides de Sousa Medes e Luís Souza Dantas” (Pe. Vitor Melícias, OFM, novo membro da Academia Internacional da Cultura Portuguesa)



1. 
Tomada de Posse do 
Padre Vítor Melícias, OFM,  como Académico de Número, Academia Internacional da Cultura Portuguesa, Lisboa,  12 de dezembro de 2024.


Realizou-se no passado dia 12 de dezembro, às 17h00, na sede da AICP - Academia Internacional da Cultura Portuguesa,sita na Sociedade de Geografia de Lisboa, a tomada de posse do  Padre Dr. Vítor Melícias, como Académico de Número.

Em representação do João Crisóstomo e do nosso blogue, esteve presente o nosso grão-tabanqueiro Joaquim Pinto Carvalho.

O novo académico proferiu, na ocasião,  uma conferência cujo texto passamos a reproduzir (cortesia sua e do João Crisóstomo): 



Lisboa, AICP, 12 de dezembro de 2024 > O Pe. Vit0r Melícias e o Dr. Joaquim Pinto de Carvalho

Foto (e legenda): © Joaquim Pinto de Carvalho (2024). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]


“Dia da Consciência e o Humanismo Universalista Lusófono Em Aristides de Sousa Medes e Luís Souza Dantas”

por Vítor Melícias



“Buona sera, buona gente”. Com estas palavras saudava S. Francisco de Assis as pessoas que algures o acolhiam.

Com a mesma saudação, Boa tarde a todos vós, gente boa e amiga. Bem-vindos.


-Senhora Presidente e estimada Profª Doutora Maria Regina

-Ilustríssima Mesa

-Caros e eminentes Académicos

-Caro amigo e irmão Fr. Silvestre Ministro Provincial dos Franciscanos Portugueses e demais irmãos franciscanos aqui presentes

-Caros Presidentes nacionais dos Bombeiros, das Misericórdias, do Montepio e outros Altos dirigentes da Economia Social e do Mutualismo

-Caros Representantes da Fundação, da Comissão do Dia da Consciência e de outros organismos ligados a Aristides de Sousa Mendes

-Meus caros familiares, conterrâneos e demais amigos

-Senhor Embaixador em representação da CPLP

E, permitam-me, em menção muito especial, the last but not the least:

-Caro David Godorovitch e outros membros das comunidades judaicas portuguesa e brasileira

- Caríssimo irmão e amigo D. José Rodriguez Carballo, ilustre Académico Correspondente da nossa Academia, Arcebispo de Mérida e Badajoz, ex-Ministro Geral da Ordem Franciscana. A vossa presença honra-me muito e dignifica assás a nossa comum Academia.

A todos, também como franciscano, começo por saudar com as palavras com que S. Francisco mandou os seus frades saudarem dizendo “Il Signore vì dia Pace”, “O Senhor vos dê Paz”, aquela paz serena e confortante dos que, em bom espírito, se reúnem por boas causas.

É, de facto, em bom espírito e por boas causas que aqui estamos e que, antes de mais, desejo agradecer, bem cá do fundo do coração, a V. Excia, Senhora Presidente, e ao osso muito ilustre Conselho Académico pela subida, ainda que por mim imerecida, honra de passar a integrar o núcleo institucional dos Académicos de Número da nossa prestigiada e prestigiante Academia.

Como muitas vezes digo em idênticas circunstâncias, quanto menos mereço mais agradeço. Bem hajam.

Em primeiro lugar, seguindo o espírito e a letra dos Estatutos desta nossa Academia, desejo homenagear e enaltecer os que me precederam nesta cátedra, que tanto dignificaram.

Evocá-los neste momento de entrada para o lugar que nos deixaram é confirmá-los na galeria de eternidade dos que da lei da morte se foram libertando e na memória sem empo se vão perpetuando. Honra e glória a todos eles. Perpétua memória aos seus nomes.

Ao ponderar de entre os vários temas que melhor pudessem corresponder à identidade e originária vocação pro-cultural da nossa Academia, acabei por escolher, em contexto de comemoração do 70º aniversário das suas mortes, quase simultâneas, evocar aqui as históricas e corajosas opções de consciência de Aristides de Sousa Mendes e de Luís de Souza Dantas, dois dos símbolos maiores do humanismo identitário da cultura lusófona e, por isso, inspiradores do Dia Mundial da Consciência.

Daí, e também em sentido de homenagem, o ter intitulado e contextualizado esta minha primeira comunicação de Académico de Número como “Dia da Consciência e Humanismo Universalista Lusófono em Aristides de Sousa Mendes e Luís Souza Dantas”.

Como é de universal conhecimento, por proposta de Reino de Barém no seguimento do Congresso Internacional sobre a Paz e  a Mente dos Homens, organizado pela UNESCO na Costa do Marfim em 1989, a Assembleia Geral da Nações Unidas decretou, pela Resolução 73/329 de 25 de julho de 2019, que o dia 5 de abril de cada ano fosse celebrado
como “Dia Mundial da Consciência” com o expresso objetivo de “mobilizar os esforços da comunidade nternacional para promover a paz, tolerância, inclusão, entendimento e solidariedade em ordem a construir um mundo de paz, solidariedade e harmonia”.

Após a primeira celebração em 6 de abril de 2020 na sede da ONU em Nova York, o Dia passou, logo no ano seguinte, a ser celebrado na sede da UNESCO em Paris no âmbito da semana que incluísse o dia 5 de abril e, já em 2024, nas instalações da ONU em Genève com ressonância, aliás, muito reduzida.

Ora acontece que, precisamente 20 anos antes, em Nova York um grupo de membros da comunidade portuguesa aí residente, em direta ligação com a Igreja Católica e a Comunidade Judaica e mobilizados por João Crisóstomo, nosso conterrâneo torriense há muito radicado nos Estados Unidos, intrépido promotor de Grandes Causas ligadas a Portugal, como a defesa das Gravuras do Vale do Coa, o apoio político e humanitário à independência de Timor-Leste e, com grande afinco, à reabilitação de Aristides de Sousa Mendes, tinham já lançado um movimento a nível mundial precisamente com a designação de “Dia da
Consciência”, em homenagem e promoção dos valores de humanismo universalista pelos quais o diplomata Aristides de Sousa Mendes, para salvar vidas inocentes e invocando “deveres de consciência”, desobedecera às normas então em vigor e aos seus legítimos superiores, designadamente a Oliveira Salazar, que ao tempo era simultaneamente Presidente do Conselho de Ministros e Ministro dos Negócios Estrangeiros, chegando mesmo a dizer publicamente “não
participo em chacinas, por isso desobedeço a Salazar”.

Esse movimento, que se iniciara, desde logo, com a bênção e patrocínio do Cardeal Renato Martini, Observador Permanente da Santa Sé junto da ONU, recentemente falecido, assentava na promoção de celebrações
eucarísticas em sés catedrais e outros destacados locais de culto católico ou em celebrações culturais e religiosas em sinagogas judaicas de algum modo acessíveis através, nomeadamente, da Fundação Raoul Wallenberg, da qual, aliás, João Crisóstomo era e é Vice-Presidente e da qual, por proposta sua, foram admitidos como “Honorary Members” António Guterres, Jorge Sampaio e eu mesmo.

Celebrado todos os anos a 17 de junho, data em que o cônsul Aristides de Sousa Mendes entrou a conceder, em frenesi de ato salvador, passaportes e visas “a todos os que precisem”, o Dia da Consciência de âmbito judaico-cristão foi-se expandindo gradualmente com o apoio e
direta participação de personalidades tão eminentes como o Cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado do Vaticano, o Cardeal Cláudio Hummes, franciscano meu colega de estudos em Roma e grande amigo do Papa Francisco, que foi aquele que no momento da eleição papal lhe disse “não te esqueças dos pobres”, ou, em Portugal, do Cardeal Manuel Clemente e do seu bispo auxiliar D. Tomás Nunes, que Deus tenha, de D. Serafim Ferreira da Silva, D. António Montes Moreira e tantos outros. 

Eu mesmo recebi e conservo com muito carinho uma carta oficial de John Paul Abranches, filho de Aristides de Sousa Mendes, que, na qualidade de International Chairman do “International Committee to Commemorate Dr. Aristides de Sousa Mendes”, ao agradecer a minha participação nas iniciativas dessa Comissão ou Comité, me escreveu em inglês no dia 30 de maio de 1995: 

“You are the first member of the clergy in Portugal to publically acknowledge the actions of this Portuguese hero of conscience”.

O facto é que foi de tal maneira persistente e eficaz o empenhamento de João Crisóstomo e seus amigos colaboradores na promoção deste Dia da Consciência ligado a Aristides de Sousa Mendes e, ultimamente,
também ao eminente diplomata brasileiro Luís Souza Dantas, que, com surpresa geral, o Papa Francisco na sua Audiência Geral de 17 de junho de 2020 evocou (cito) o “Dia da Consciência, inspirado no testemunho do diplomata português Aristides de Sousa Mendes que, oitenta anos
atrás, decidiu seguir a voz da consciência e salvou a vida de milhares de judeus e outros perseguidos”.

Entusiasmado com este inequívoco apoio e a sua dimensão universalista, João Crisóstomo e os seus mais diretos colaboradores, vencendo algumas compreensíveis resistências à mudança devidas ao receio de que se desvirtuasse a original ligação a Sousa Mendes e ao Holocausto e ao 17 de junho, data mais expressiva da sua corajosa ação, decidiram que (cito literalmente o que ele escreveu em carta ao Cardeal
Parolin) o Dia da Consciência “embora baseado no testemunho de Aristides de Sousa Mendes, em 17 de junho de 1940, será celebrado a partir de agora na mesma semana em que as Nações Unidas celebram o seu ‘Dia Internacional da Consciência’ para evitar qualquer ideia,
mesmo involuntária, de competição e proselitismo, como disse um ilustre diplomata português”.

Como, entretanto, se processava no Brasil a reabilitação de Luís de Souza Dantas, eminente Embaixador do Brasil em França e um dos mais prestigiados diplomatas brasileiros de todos os tempos, o qual evocando, como Sousa Mendes, motivos “de consciência e humanidade” salvara também centenas de vidas de judeus e outros fugitivos do
nazismo e dos seus campos de concentração, em muito boa hora os promotores do Dia da Consciência decidiram estendê-lo ao mundo lusófono e celebrar a 5 de abril o único e universal Dia Mundial da Consciência, mas concentrando as celebrações na específica evocação dos ideais e motivações humanistas tanto de Sousa Mendes e Souza Dantas bem como de todos os que, brasileiros, portugueses ou de qualquer outra fonte lusófona, defenderam e salvaram vidas e se guiaram pelos mesmos critérios de humanidade e consciência como Teixeira Branquinho, Sampaio Garrido, P. Joaquim Carreira
e tantos outros, cujos feitos e nomes se perderam na clandestinidade dos seus atos ou no esquecimento coletivo como, por mero exemplo, Frei Rafael dos Santos, irmão leigo franciscano natural do Vilar, Torres Vedras, o qual, como eu mesmo ouvir de sua própria boca, escondeu,
alimentou e confortou dezenas de famílias judaicas nos extensos sótãos do Colégio Internacional, hoje Universidade, “Antonianum”, na Via Merulana, em Roma, onde, aliás me formei em direito canónico e ele esteve por muitos anos ao serviço da Ordem, situação que só era
conhecida do Superior da casa e de dois outros irmãos que com ele tinham acesso clandestino aos sótãos.

De entre todos sobressaem os dois que estou hoje aqui a homenagear, ambos “Justos entre as Nações”, que, como eferiu o Papa Francisco a propósito de Sousa Mendes em mensagem enviada à inauguração do Museu Sousa Mendes, na sua Casa do Passal, em Cabanas, eram
“homens peritos em humanidade”.

Dois peritos em humanidade, dois modelos de humanismo.

Comecemos por Sousa Mendes.

Votado, por largas décadas, ao mais profundo e intencional esquecimento imposto por vontade e expressas diligências de Salazar e do seu regime, os quais, além da demissão, assim o pretendiam castigar por desobediência, Aristides de Sousa Mendes e a sua obra, recuperadas por ação das liberdades de abril, são hoje plenamente reconhecidas sobretudo em Portugal, no mundo lusófono e na comunidade judaica mundial. 

Assim, tem desde 3 de julho de 2020 honras de Panteão Nacional, tendo também sido condecorado a título póstumo com a Grã-Cruz de Cristo em 1995, a Grã-Cruz da Liberdade em 2016 e a Grã-Cruz do Mérito e declarado, em 1966 , “Justo entre as Nações” pelo Yad Ashem e Museu do Holocausto em Jerusalém, continuando ainda a merecer, como reabilitação a nível mundial, as mais variadas celebrações e altas referências, incluindo uma Fundação e Museu com o seu nome e ainda nomes de ruas, praças e monumentos, biografias, teses e publicações e representações várias.

Não carece, pois, nem se justificaria, que aqui evoquemos todos os passos e feitos da sua vida, pelo que referirei apenas os essenciais para enquadrar o sentido de humanismo com que, por expresso imperativo de consciência e contrariando sucessivas ordens dos seus superiores hierárquicos, ele salvou de modo heróico dezenas de milhares (fala-se mesmo em cerca de 30.000) de vidas de judeus e outros perseguidos pelo nazismo.

Nascido em 19 de julho de 1885 em Cabanas de Viriato, Carregal do Sal, no seio de uma família profundamente católica e de formação franciscana, licenciou-se em Direito na Universidade de Coimbra ao mesmo tempo que seu irmão gémeo, César, tendo depois, tal como seu irmão, entrado na carreira diplomática, onde exerceu as funções
de Cônsul em Zanzibar, Brasil, Espanha, Estados Unidos, Bélgica e, a partir de 1938, em Bordéus.

Neste último Consulado Geral, acorrendo a Bordéus multidões de refugiados das perseguições e campos de concentração nazis, Sousa Mendes, apesar de adoentado, com a ajuda dos filhos e sobrinhos e do Rabino Jacob Kruger, que teria conhecido em Antuérpia e agora
reencontrara numa rua em Bordéus, principalmente nos três dias e três noites de 18, 19 e 20 de junho de 1940, aos milhares carimbou passaportes e passou vistos, dizendo em certo momento, no meio do terror e emoção generalizada entre os requisitantes, “a partir de agora, darei vistos a toda gente; já não há nacionalidade, nem raça
nem religião”. 

Isto é humanismo universalista.

Alertado de que estaria a contrariar e desobedecer a expressas e repetidas orientações governamentais, respondeu “Se há que desobedecer, prefiro que seja a uma ordem dos homens do que a uma ordem de Deus”. 

Isto é a reta consciência a funcionar.

Apesar de lhe terem sido enviadas ordens expressas e funcionários governamentais, incluindo o poderoso Embaixador Teotónio Pereira, para o dissuadir e conter, o corajoso Cônsul, movido por intenso ardor humanitário continuou a passar vistos e carimbar passaportes. E mais:
tendo-lhe chegado a informação de que Espanha ia recusar a entrada e passagem destes refugiados, com a sua própria viatura conduziu uma coluna de veículos de refugiados até à fronteira franco-espanhola, conseguindo fazê-los passar. 

Isto é a determinação a seguir a consciência.

Perante isto e sob as pressões mais variadas, foi compulsivamente exonerado e mandado regressar ao país. Aí começou um calvário de castigos e marginalizações que o reduziram à mais profunda pobreza. Tendo morrido sua mulher Angelina, os filhos para sobreviver foram forçados, porventura com auxílio de alguns familiares ou amigos de
seu pai, a emigrar para os Estados Unidos e Canadá, de modo que, após um largo processo persecutório e punitivo, veio a morrer só e abandonado, como na altura escreveu sua sobrinha, único familiar que o acompanhou na morte:

“Lisboa, 3 de Abril de 1954. Estou no Hospital da Ordem Terceira, na Rua Serpa Pinto. O meu tio, Aristides de Sousa Mendes, acaba de falecer, trombose cerebral agravada por pneumonia. A sua esposa, a minha tia Angelina, morreu em 1948 com uma hemorragia cerebral e
ficou vários meses em coma, coitada.

"Todos os seus filhos, meus primos, vivem hoje nos Estados Unidos e Canadá, conseguiram escapar a tempo do purgatório… Sou a única familiar presente. O meu tio era um homem bom sempre a pensar nos outros. É por isso que morreu pobre e desonrado”.


Foi sepultado com hábito franciscano, provavelmente escapulário e cordão da Ordem Terceira de S. Francisco, da qual era membro, tal como seu irmão gémeo César, que foi Ministro desta Ordem Terceira então ainda existente em Cabanas.

Este verdadeiro herói, português, cristão e franciscano, “Justo entre as Nações”, que em determinado momento dissera “Como pode a minha consciência estar tranquila quando penso que tantas pessoas estão a sofrer e a morrer?”, em peças dos processos disciplinares, com que Salazar e o regime o perseguiram, sempre se defendeu com o
argumento de que agira por “dever de consciência de cristão e bom português”.

E, claro, acrescento eu, também de bom irmão terceiro franciscano, que ele era, cuja Regra, ao seu Capítulo II, nº 5,  determina que os Irmãos 
“Estejam sempre presentes com o testemunho da sua vida humana e também com iniciativas corajosas, quer individuais quer comunitárias, na promoção da justiça, principalmente no âmbito da vida pública, comprometendo-se com opções concretas e coerentes com a sua fé”, designadamente, obedecendo sempre aos seus superiores “a não ser que as suas ordens sejam contra a nossa alma e a nossa Regra”, norma
fundamental do franciscanismo deixada pelo próprio S. Francisco no texto da sua Regra dos Frades Menores. Um franciscano deve obedecer sempre, exceto por razões de consciência.

Assim, por exemplo, no processo disciplinar, arquivado no Arquivo Histórico -Diplomático do MNE, Sousa Mendes disse: “a minha atitude inspirada única e exclusivamente nos sentimentos de altruísmo e de generosidade de que os portugueses, através dos seus oito séculos de história, soubemos tantas vezes dar provas eloquentes e que tanto
ilustram os nossos feitos históricos”.

Isto é o “Humanismo Universalista dos Portugueses” que Jaime Cortesão escolheu como título da sua bem conhecida obra.

Em razão desse seu comportamento humanitário bem merece ser -e de facto já é- reconhecido como símbolo e modelo de humanismo, dever máximo da consciência universal, que o Dia Mundial, a partir de agora, celebra a 5 de abril.




Cartaz do Convite, em inglês, para a celebração de dois grandes humanistas, os diplomatas, o português Sousa Mendes e o brasileiro Sousa Dantas, por ocasião dos 70 anos das suas mortes, e da sua acção em defesa das vítimas de perseguição na II Grande Guerra. Uma iniciativa do Comité do Dia da Consciência, Missão Permanente de Portugal nas Nações Unidas, Igreja Eslovena de São Ciro, Fundação Internacional Raoul Wallenberg e Fundação Sousa Mendes. A cerimónia realizou.se no passado dia 7 de abril de 2024, em Nova Iorque (*)

Foto (e legenda): © João Crisóstomo (2024). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]



Evoquemos então, ainda que ligeiramente, Souza Dantas:

De entre outros heróis que, por dever de consciência e não raro desobedecendo a explícitas ordens superiores, salvaram milhares de judeus e outros perseguidos pelo nazismo, destaca-se o eminente Embaixador brasileiro Luís de Souza Dantas, que, mais recentemente do que Aristides, foi também ele resgatado do olvido imposto pelos
poderes políticos no seu jogo de interesses e artes da diplomacia.

No seguimento da aprofundada investigação de Fábio Koifman, nosso académico correspondente já eleito ainda não empossado, autor do grosso volume “Quixote nas Trevas – O embaixador Dantas e os refugiados do nazismo” e de “Two Diplomats and People in Need” (Sousa Dantas e Raoul Wallenberg) bem como do direto envolvimento (após contato pessoal de João Crisóstomo em Nova York) do então Presidente Fernando Henriques Cardoso, Sousa Dantas, em 10 de dezembro de 2003 foi, tal como Sousa Mendes, reabilitado no Brasil e consagrado pelo Yashem “Justo entre as Nações” com lugar próprio no
Jardim do Holocausto em Jerusalém e passou a integrar a galeria dos “Heróis da Consciência” no mundo da lusofonia.

A própria Comissão que, a partir dos Estados Unidos, promovia o Dia lusófono da Consciência (17 de junho) passou, a partir de 2004, a associá-lo a Aristides de Sousa Mendes nas respetivas celebrações com a constatação da impressionante coincidência de circunstâncias, que João Crisóstomo, emérito aristidesista e, de certo modo pai, do Dia lusófono da Consciência, descreve assim, a páginas 25 do seu “O Papel das Comunidades Luso-Americanas no Reconhecimento de Aristides de Sousa Mendes”:

“É impressionante o quanto estes dois humanistas têm em comum: Os dois têm como língua materna a língua portuguesa. Ambos seguiram a vida diplomática e ambos se encontraram em França, quase vizinhos, no desencadear da WWII. 

"Ambos tomaram a decisão de desobedecer aos mandatos errados dos seus governos para seguir a voz das suas consciências, salvando
indivíduos perseguidos pelo terror nazi. E ambos, aparentemente mesmo sem se conhecerem, vão declarar mais tarde durante os processos disciplinares de que vão ser vítimas, ter sido o dever de “seguir a sua consciência de cristãos”, a razão do seu proceder. 

"E como que para selar todas estas 'irmandades' os dois vêm a morrer no mesmo mês e no mesmo ano, a escassos dias um do outro: Aristides de Sousa Mendes morreu a 3 de abril e Luís Martins de Sousa Dantas duas semanas depois, a 16 de abril de 1954”.

De Sousa Dantas e da sua vida e obra ímpar em favor da liberdade de consciência e do mais profundo humanismo universalista certamente nos falará Fábio Koifman na sua comunicação de posse nesta sua e nossa Academia, pelo que aqui e agora me limito a transcrever duas das múltiplas frases lapidares com que, em processos disciplinares por
causa delas, Dantas justificou as suas corajosas opções.

Assim, em telegramas oficiais ao seu Ministro Aranha, referindo-se ao “internamento em campos de concentração comparáveis ao inferno de Dante”, Souza Dantas evoca a “generosidade da alma brasileira” como justificação para “continuar a passar visas livres de encargos para sair de França” (onde eram horrivelmente perseguidos), e ainda:

“Eu fiz o que faria o mais frio de coração, com a nobreza de alma dos Brasileiros, movido pelos mais elementares sentimentos de piedade Cristã”.

Esta “alma dos brasileiros” é, na verdade, aquela “alma”, “alma portuguesa repartida pelo mundo” de que nos falava amões e que, muito para além dos interesses políticos e económicos, é hoje partilhada na troca de princípios e valores comuns entre os vários intervenientes do grande e permanente “encontro de povos, culturas e crenças diferentes”, a que, em razão do muito que têm de comum,
chamamos lusofonia.

Como escreveu o nosso já clássico Eduardo Lourenço no seu precioso texto “Repensar a Lusofonia” incluído no vol. IV das suas Obras Completas, embora “talvez a muitos apareça inviável,”, “este sonho universalista”, “esse continente imaterial que é a lusofonia” (Nau de Ícaro, 174) é possível, mas “só o aprenderemos a fundo no convívio,
no contato e, quanto possível, na comunhão daqueles (povos e gentes) que quisemos ensinar e que, por sua vez, nos ensinaram e nos recriaram. É uma empresa futurante esta, endereçada à redefinição de nós mesmos no horizonte do mundo lusófono, que nos compreende e nos ultrapassa, e não na revisitação nostálgica de um passado de muitas cicatrizes”. Empresa, diz ele, que “apetecia tutelar pela mais lusófona das vozes, a voz imensa, acusadora e ecuménica de António Vieira”.



Eis porque escolhi por tema desta minha intervenção de caráter institucional a convicção pessoal de que o lusófono humanismo universalista, gerado na fé e marcado de franciscanismo, do qual Aristides e Dantas são testemunho repleto de atualidade.

Sim. Homens como estes precisam-se. Hoje talvez mais que nunca. Os valores, princípios e causas, que regeram as suas corajosas opções não podem perder-se.

A cultura do humanismo, da solidariedade sem barreiras nem fronteiras e a fidelidade à consciência têm de se recuperar, corrigindo a desvairada globalização dominante de interesses e individualismos opostos aos valores da consciência e do universalismo humanista.


Por isso, me congratulo com a feliz decisão de, a partir do próximo ano, passarmos a celebrar o nosso Dia da Consciência na mesma data, objetivos e contexto do Dia Mundial proclamado pelas Nações Unidas, assim evitando duplicações e separatismos, mas permitindo-nos “lusofonizar” (desculpem o atrevimento do neologismo) a celebração do único e universal “Dia da Consciência” com acento tónico nos valores ancestrais identitários da nossa cultura humanista e na evocação dos nossos “heróis da consciência”.

De facto, a própria Resolução 73/329 da Assembleia Geral das Nações Unidas, que o criou, estabelece que a celebração e objetivos do Dia se realizem, (cito) “de acordo com a cultura e com outras circunstâncias ou costumes adequados às suas comunidades locais, nacionais e regionais, sobretudo por meio de uma educação de qualidade e de atividades de sensibilização do público”.


É essa intenção que cada vez mais justifica que Portugal, o Brasil e demais Países-Irmãos da CPLP, evocando esses heróis e revitalizando a sua comum cultura identitária de humanismo universalista, façam que aquela partilhada cultura, que da camoniana “saudade para além dos mares” fez “sodade, sodade dess ‘nha terra San Niclau” seja agora por eles partilhada como vigoroso instrumento de Paz.

Do mesmo modo, sendo a nossa Academia, “instituição de índole cultural”, cuja finalidade fundacional e estatutária é (cito) salvaguardar e promover “as tradições e padrões culturais portugueses no estrangeiro e a identificação e estudo das comunidades filiadas na cultura portuguesa radicadas fora de Portugal” é natural e altamente desejável que assuma o “Dia lusófono da Consciência” como lógico e
envolvente instrumento de portugalidade em lusofonia e, portanto, do humanismo universalista como padrão identitário da cultura lusófona.


Por isso, e a terminar, permitam-me, Senhora Presidente e caros Confrades Académicos, a ousadia de sugerir (que não me sinto com autoridade para propor) que o próximo dia 3 de abril de 2025 seja aqui celebrado como “Dia da Consciência” com convite para vir tomar posse e apresentar a sua inerente comunicação o nosso Académico Correspondente brasileiro Fávio Koifman.

É mera sugestão, claro. Mas oxalá seja compreendida e aceite. OBRIGADO.

Bem hajam todos pela vossa presença e paciência.

Viva o Brasil de Souza Dantas.

Viva Portugal de Sousa Mendes.

Vivam a Lusofonia e a nossa Academia.


P. Vítor Melícias,

OFM

(Revisão / fixação de texto, para efeitos de publicação neste blogue: LG) 
(Com a devida vénia ao autor...)

________________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 4 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25338: Tabanca da Diáspora Lusófona (23): Nova Iorque, Igreja Eslovena de São Ciro, domingo, 7 de abril: recordando e cebrando os 70 anos da morte de dois grandes diplomatas e humanistas do tempo da II Grande Guerra, o português Sousa Mendes, e o brasileiro Sousa Dantas (João Crisóstomo)

sábado, 4 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26344: O nosso blogue em números (101): a nossa pequena Guiné-Bissau ficou, em 2024, no 10º lugar dos países que mais nos visitam...



Figura 1 - Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné,  2024 (n=1,2 milhões):   distribuição do número de  visualizações de páginas por país.  Portugal aparece em 1º lugar, com 25,3 % do t0tal, seguido dos EUA (18,8%)...Em 10º lugar, vem a nossa pequena Guiné-Bissau (0,8%), à frente de países europeus como a França, a Suécia, o Reino Unido, a Espanha...

Fonte: Blogger (2024)



Figura n º 2 - 
Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné,  de 2010 a 2024 (n=14 milhões): Mapa-múndi com a distribuição do número de  visualizações de páginas. Embora muito pouco percetível, há um pontinho nos Açores, Madeira, Cabo Verde, Guiné-Bissau...

Fonte: Blogger (2024)




Infografias: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)




1. Em 2024, a nossa pequena Guiné-Bissau  era o 10º país com maior de visualiações de páginas do nosso blogue (n=9,25 mil visualizações).

Apraz-nos registar que a Guiné-Bissau, em 2023, com 7,4 mil visualizações  (1,1%),  vinha em 12.º lugar, na lista dos países onde tínhamos leitores ou visitantes.

Temos, naturalmemnte, Portugal em 1.º lugar, mas a perder peso relativo, em relação aos anos anteriores: 219 mil visualizações em 2023, menos de 1/3; 303 mil em 2024, representando apenas um 1/4 do total (1,2 milhões).

Na lista dos "vinte mais" (ou "top 20"), não há, em 2024, mais nenhum país lusófono para além de Portugal, Brasil e Guiné-Bissau (representam 28,6%, menos seis pontos percentuais do que no ano anterior)...

Em todo o caso temos que admitir que o nosso público leitor, lusófono, é mais vasto, havendo camaradas nossos um pouco por toda a parte, na diáspora, dos EUA à Europa... (embora isso seja menos provável nos países asiáticos).
 
Suécia volta a ficar num modesto 12.º lugar...o que se pode explicar pela saída, para os States, do nosso querido José Belo e as suas renas...

A única consolação, para o nosso régulo da Tabanca da Lapónia, é que a Suécia continua em 6.º lugar, à frente do Reino Unido, Hong Kong, Singapura e.... Rússia,  quando se analisam os dados relativos ao total acumulado de visualizações, por país, desde maio de 2010 até ao final de 2024 (n=14 milhões). À sua frente, vêm Portugal, EUA, Brasil, Alemanha e França (Figura 2). 
 

(Continua)
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Nota do editor LG:

Último poste da série > 3 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26340: O nosso blogue em números (100): cerca de 1,2 milhões de visualizações páginas em 2024 (da parte de 4,76 mil visitantes)

domingo, 3 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26111: Notas de leitura (1740): "Poemas de Han Shan" (China, séc. VIII), organização, tradução e apresentação de António Graça de Abreu, no Centro Científico e Cultural de Macau, Lisboa, 26/9/2024

 


1.  Para aqueles que não puderam estar presentes na sessão de apresentação do livro "Poemas de Han Shan", organizado e traduzido por António Graça de Abreu, no passado dia 26 de setembro, no Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM) (*),  o nosso amigo e camarada disponiblizou-nos os "slides" que elaborou para a ocasião.  

Perdemos a sua conversa ao vivo, mas temos ao menos o privilégio de poder aceder ao essencial daquilo que ele quis transmitir ao público sobre o lendário poeta e monge ligado ao Budismo chan (ou zen, como é conhecido no Japão), Han Shan, do séc. VIII (em chinês, quer dizer "Montanha Fria"),


Já agora esclarecemos os nossos leitores sobre o que é o CCCM e a sua missão:

(i) tem por missão produzir, promover e divulgar conhecimento sobre Macau enquanto plataforma entre Portugal e a República Popular da China, assim como entre a Europa e a Ásia;

(ii) é, também, um espaço dedicado ao estudo e ensino da língua, cultura e história chinesas, e um centro de investigação científica e de formação contínua e avançada sobre as relações entre Portugal e a China, assim como entre a Europa e a Ásia;

(iii) dotado de autonomia administrativa e património próprio, é um instituto público integrado na administração indireta do Estado e sob tutela do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.

O António Graça de Abreu não precisa de apresentações. Honra-nos com a sua presença na Tabanca Grande desde 5/2/2007, e tem 354 referências no nosso blogue.


Templo de Han Shan, Suzhou, China (Suzhou é uma cidade a oeste de Xangai, no delta do rio Yangtzé, famosa pelos seus cnais,, pontes e jardins clássicos, classificados pela UNESCO com o património  material da humanidadfe em 1997 e 2000).


O António Graça de Abru no templo de Han Shan


Templo de Han Shan


A ponte de Fenqiao (séc. VIII), Suzhou


Famoso poema do poeta ZhangJi (766?-830?), "À noite, ancorando em Fengqiao"...





O poeta 寒 山 Han Shan (700?-780?)


Han Shan e Shi De no Japão, ou seja, Kan Zane Jitttoku. 
O budismo Chan ou Zen que só chega ao Japão em 1191.


Matsuo Bashô (1644-1694), o grande mestre dos haikus japoneses, adorava Han Shan









No meu prefácio aos poemas de Li Bai (1990) tentei explicar,  de forma exaustiva,  os processos que por norma utilizo na tradução e reinvenção de um poema chinês em língua portuguesa. 

Referi também, em detalhe, muitas das características da língua chinesa, talvez a mais depurada de todas as falas e escritas existentes debaixo do céu. 

Os anos passam e um continuado contacto com os grandes poetas da China confirma, convence-me de que, se já é muito difícil traduzir poesia em qualquer língua, no que ao chinês diz respeito a tarefa é impossível. E porque é impossível, as traduções avançam. Trata-se de caminhar pela impossibilidade, é necessário transformar o impossível em possível.

Ao traduzir poesia chinesa sei que trabalho na sombra, iluminado sobretudo pelo silêncio da sombra.

Camilo Pessanha, no prefácio à sua tradução das oito elegias chinesas, escrevia por volta de 1910, referindo uma expressão de Herbert Giles, um dos primeiros tradutores de poesia chinesa para língua inglesa, que escreveu “a chinese poem is at best a hard nut to crack”,  que Pessanha traduziu como “toda a composição poética chinesa é para o tradutor uma noz de casca dura”.

Trata-se de caminhar pela impossibilidade e de transformar o impossível em possível. O resultado é sempre um poema em língua portuguesa que procura ser fiel ao significado dos caracteres e à sensibilidade do poeta chinês, tão próximo do verso original quanto o rigor exige mas reinventado numa outra língua. 

É já um outro poema, quase sempre distante da estrutura poética do chinês porque o poema passa a ser português. Falamos de traduções, do comboio de caracteres que precisamos de identificar, de versões possíveis, da natureza do trabalho do tradutor, enfim, de questões fundamentais amplamente analisadas e debatidas nos estudos e cursos de tradução um pouco por todo o mundo.

Gil de Carvalho, um dos raríssimos críticos portugueses que, com alguns laivos de conhecimento da língua chinesa, se referiu às minhas traduções, considerou “ a vocação missionária e estética de Graça de Abreu” e o “querer fazer poesia sua através do poema ou do poeta chinês”.

Em carta pessoal, Eugénio de Andrade escrevia-me em novembro de 1993: 

Num parecer sobre as minha traduções, que guardo comigo, escrevia Óscar Lopes, em 28 de Janeiro de 1993:

 “Conheço a obra de tradução do Chinês para Português da autoria de António Graça de Abreu, nomeadamente Poemas de Li Bai e Poemas de Bai Juyi, publicados ambos com excelentes introduções históricas e literárias. 

"Não leio directamente textos chineses, mas tive a oportunidade de, num seminário do Curso de Mestrado da Universidade do Minho, apresentar o primeiro deste livros à discussão de duas alunas chinesas (Drªs. Wang Ting e Sun Lin) com boa preparação cultural, quer sinológica, quer ocidental e verifiquei que o tradutor conseguiu equivalências extremamente difíceis de encontrar e de condensar, de um poeta clássico oriental do século VIII.”

Até há poucos anos, o poeta Han Shan era completamente desconhecido em Portugal, o que de resto acontecia com quase todos os grandes poetas chineses. 

Isto apesar de Macau e de uma continuada presença portuguesa de quatrocentos e cinquenta anos nas terras da China. Mas, mesmo na cidade do Nome de Deus na China, a poesia chinesa também já desceu do grande Império do Meio, a norte, atravessou as Portas do Cerco e entrou mui de leve na sensibilidade de alguns dos seus melhores habitantes lusitanos.

Existe o caso singular de Camilo Pessanha que em Macau traduziu, deu forma a poemas a que chamou “oito elegias chinesas”,  oriundas de um álbum de poetas menores da dinastia Mingque, e que  o autor da Clepsidra nos diz ter comprado “pelo preço vil de duas patacas numa casa de prego” .

É pena o genial Pessanha não ter descoberto os grandes poetas da China, Li Bai, DuFu, Wang Wei, Han Shan. Somos o que somos e, apesar de Macau, a Sinologia portuguesa, o estudo sério e rigoroso das coisas do mundo chinês, também o depurar das sensibilidades com o Império do Meio por horizonte, quase não consegue crescer.

Em 1997, o PenClub Português nas suas pequenas “Folhas Soltas” publicou Nove Poemas de Han Shan, a minha primeira tentativa de tradução da poesia do mestre da Montanha Fria.

Em 2003, Ana Hatherly que tão bem conhece o ofício do poeta, companheira de entusiasmantes conversas sobre poesia chinesa e de jantares do PenClub, deu ao prelo as suas originais versões poéticas elaboradas a partir das traduções francesas de Jacques Pimpaneau com o título "O Vagabundo do Dharma, 25 Poemas de Han Shan".

Quem gosta de poesia, quem deseja abrir a mente para as mil subtilezas –chamemos-lhe outra vez assim –, do budismo chan m ou zen, quem procura a simples inteligência do saber encontrará em Han Shan um mestre, um confrade, um amigo. O poeta da Montanha Fria « nous révèle cette esprit de la Chine qui dort aussi en notre tête et attend, telle la Belle au Bois Dormant, qu’un prince comme Han Shan vienne l’y éveiller»,  disse Jacques Pimpaneau .[ Tradução do francês parea português: "revela-nos esse espírito da China que também dorme nas nossas cabeças, à espera, como a Bela Adormecida, que um príncipe como Han Shan venha despertá-lo". (LG)]




Flores no templo de Han Shan, Suzhou, minha foto 2011




"Slides" (incluindo texto): © António Graça de Abreu (2024). Todos os direitos reservados. [Edição, revisão / fixação de texto, links: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

22 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25968: Agenda cultural (860): Convite para o lançamento do livro "Poemas de Han San", organizado e traduzido por António Graça de Abreu, dia 26 de Setembro de 2024, pelas 18h30, no Auditório CCCM, Rua Guerra Junqueira, 30 - Lisboa

17 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26054: Agenda cultural (862): Lançamento do livro Poemas de Han Shan (edição bilingue, seleção, tradução, prefácio e notas de António Graça de Abreu): 19 de outubro, sábado, 17h00 | Casa do Comum, Bairro Alto, Lisboa