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quarta-feira, 28 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26856: S(C)em Comentários (69): A maldição de...Bissássema, no setor de Tite, região de Quínara (Cherno Baldé, Bissau)




Guiné-Bissau > Regiãods e Quínara > Tite > 2019 > Esquadra da Polícia de Ordem Pública (POP) 

Foto de Assana Sambú.  Jornal Odemocrata 04/08/2019. (com a devida vénia...)



1. Comentário de Cherno Baldé, ao poste P26839 (*):

Bissássema é um paradoxo, tão perto de Bissau, a capital, e tão longe da civilização.

 Desde a independência do território que nesta localidade,  situada no Sector de Tite,   acontecem, quase todos os anos, crimes e ajustes de contas com acusações de feitiçaria e outras barbaridades típicos de sociedades dominadas pelo obscurantismo.

Não conheço, nunca lá estive e é das zonas mais abandonadas do país, pois nunca se houve falar  dela a não ser pelos piores motivos.

Cdte, Cherno AB


2. Não é fácil encontrar notícias sobre Bissássema, setor de Tite, região de Quínara, Guiné-Bissau, por bons ou mais motivos... Nem com a ajuda de um assistente de  IA - Inteligência Artificial... 

No jornal da Guiné-Bissau "O Democrata" encontrámos uma(e única) referênmcia a Bissássema, mas já é antiga, de 2019, anterior à pandemia... Merece, mesmo assim, ser citada. (**)


Esquadra de Polícia de Tite é um "lixo que espelha a banalidade" do Estado Guineense.
 Jornal Odemocrata, 04/08/2019.

 Texto e foto: Assana Sambú


[Reportagem, julho 2019] O edifício da Esquadra da Polícia de Ordem Pública (POP) do setor de Tite, região de Quinará, no sul da Guiné-Bissau, encontra-se em avançado estado de degradação (...).

(...) A Esquadra cobre todo o setor de Tite e conta com 15 agentes, dos quais apenas três são efetivos, nomeadamente: o comandante, o seu adjunto e o responsável da logística. As restantes 12 pessoas são todas auxiliares recrutadas internamente, sem salários nem subsídios, porém são elas que fazem todo o serviço da esquadra.

(...) O comandante da Esquadra, Sete Djassi, reconheceu na entrevista a O Democrata a situação de degradação daquela Esquadra.

(...) O subinspetor (alferes) Sete Djassi reconheceu igualmente que a Esquadra não está nada bem e precisa de uma intervenção das autoridades competentes, de formas a servir condignamente as forças policiais que dão as suas vidas para servir o país e a população todos os dias.  

(...)  “O edifício onde funciona a esquadra é uma antiga loja no período colonial e até hoje tem aquela zona do balcão. Tem ainda um salão, um quarto e na parte lateral tem uma sala que foi adaptada para funcionar como o Gabinete do Comandante. A Esquadra dispõe de cela que éuma espécie de túnel, aproveitado para cela”, contou.

(...) Em termos de meios de transporte para a mobilidade dos polícias, explicou que dispõem de uma viatura (Jeep) descapotável adquirido já há alguns meses do Comando da Província Sul e uma motorizada que receberam no quadro das eleições legislativas de março deste ano. Lembrou que trabalhavam sem nenhum meio de transporte e que as missões eram feitas a pé, sobretudo no concernente à caça aos gatunos ou pessoas que tenham cometido algum crime.

“Andávamos a pé até ao interior das tabancas mais longínquas do setor para ir buscar as pessoas que recusam obedecer às ordens do comando, mesmo notificadas. A mesma coisa acontece com as pessoas que cometem crimes de roubos ou de homicídio e muitas vezes corremos risco de vida ao sermos confrontados. Felizmente sempre cumprimos a nossa missão.  

(...) Djassi revelou que as deslocações das forças policiais para as operações no interior do setor são asseguradas pelos queixosos, ou seja, são essas pessoas que compram o combustível para a viatura, porque, conforme disse, a esquadra não tem meios para garantir o combustível todo o tempo para a viatura.

Sobre o famoso caso de “feiticeiria” que se registava com frequência na secção de Bissassema e que acabava sempre em morte de pessoas acusadas da prática de feiticeira, disse que atualmente os casos diminuíram muito e que agora trabalham em colaboração com algumas pessoas naquela aldeia para denunciar as que tentam acusar outras sem fundamento. 

Sublinhou ainda que os casos de roubo de gado também diminuíram, porque, de acordo o polícia, neste momento toda a gente está preocupada mais com os trabalhos do campo, razão pela qual não se regista com frequência casos ligados a roubo de animais.

Contudo, ressalvou que no momento a grande preocupação tem a ver com a questão do conflito de posse de terra para a produção dos pomares de caju. Frisou que apenas no período da seca é que se registam mais problemas de roubo e de agressões. (...)


Por: Assana Sambú | Foto: A. S. (com a devida vénia...)

(Seleção, excertos, revisão/fixação de texto, negritos, edição de foto: LG) 
_________________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 24 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26839: Facebok...ando (79): Bissássema (cor GNR ref João Manuel Pais Trabulo, ex-alf mil, CCAÇ 2314, Tite e Fulacunda, 1968/69) - Parte II: a tragédia de 3 de fevereiro de 1968 e dias seguintes, que a NT e o PAIGC tentaram esquecer

(**) Último poste da série > 21 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26826: S(C)em Comentários (68): Fome, camaradas ?!.... Não, em Nova Lamego, São Domingos, Bissau (Virgílio Teixeira ex-alf mil SAM, BCAÇ 1933, 1967/69): sim, "aos poucos de cada vez" na Ponta do Inglês, Xime (Manuel Vieira Moreira, 1945-2014, ex-1º cabo mec auto, CART 1746, 1967/69)

quarta-feira, 26 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26618: Nunca Tantos Deveram Tanto a Tão Poucas (8): Grande coragem, sangue frio, inteligência emocional, autocontrolo, empatia, serenidade, a da Rosa Exposto!..


As enfermeiras paraquedistas, da esquerda para a direita, Maria Rosa Exposto  (*) e Maria La Salette. Imagem obtida a partir de foto de grupo, da autoria de Fernando Miranda (trabalhou no Hospital da Força Aérea e tem o melhor álbum fotográfico sobre as enfermeiras paraquedistas). O Fernando Miranda é membro da União Portuguesa dos Paraquedistas (grupo público no Facebook, entretanto suspenso desde 16/1/2023). 


Edição do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025), com a devida vénia..


 
1. Os riscos que corriam as nossas enfermeiras paraquedistas não eram poucos nem pequenos.  Riscos para a sua saúde e segurança no palco de guerra... Riscos físicos e psicológicos (e, em menor grau, químicos e biológicos, já que lidavam com sangue, derivados do sangue e produtos de primeiros socorros usados a bordo)...  Riscos não só por andarem de avião, de serem atingidas pelo fogo do IN ou de sofrerem um acidente em terra ou no ar, como sobretudo devido à  exposição a situações de grande stress, durante as evacuações de doentes e de feridos graves,  tendo que saber lidar com a vida e a morte, a dor e o sofrimento, a violência e o descontrolo emocional dos evacuados,  etc.

Este relato da Maria Exposto, transmontana de Bragança, ex-alf grad enf pqdt, do 4º Curso (1964), é bem revelador das situações mais insólitas e imprevistas que podiam ocorrer... Era preciso muita coragem, sangue frio, inteligência emocional, autocontrolo, empatia, serenidade ...

 Grande mulher e grande profissional, a Rosa Exposto,  que soube salvar uma vida ou mais do que uma... na situação a seguir descrita.

Este caso devia fazer parte da "casoteca" das nossas escolas que formam profissionais que têm de lidar com distúrbios emocionais, crises e outros conflitos podendo pôr a risco a vida do próprio e de terceiros: polícias, militares, bombeiros, médicos, enfermeiros, psicólogos, etc.

A situação descrita (um distúrbio emocional, ou "transtorno de ansiedade",   frequente e muitas vezes associado ao álcool nos quartéis do mato)  podia ter redundado em tragédia como aconteceu noutros sítios. É pena não podermos identificar o local e a subunidade. 

A Rosa  diz-nos apenas que foi "algures na Guiné",  e o quartel  (talvez provavelmente um destacamento) era tão pequeno que nem tinha um pista de aterragem para uma avioneta, nem talvez sequer um heliporto. (**)

No fim "tudo acabou em bem", mas ela confessa, com toda a humildade, que sentiu muito medo e suores frios quando se apercebeu do que estava em jogo... Um homem perturbado e com uma arma na mão é sempre imprevisível...



Fonte: Excerto de "IX. Os riscos que corríamos". In: "Nós, enfermeiras paraquedistas", 2ª ed., org. Rosa Serra, prefácio do Prof. Adriano Moreira (Porto: Fronteira do Caos, 2014), pp.  302-302 (com a devida vénia).

(Seleção, digitalização, edição da foto, título do poste: LG)


__________________


Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

25 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26614: Desaparecido do nosso radar (3): Maria Rosa Exposto, ex-alf grad enfermeira paraquedista, do 4º curso (1964)... Tudo indica que tenha ficado, como enfermeira civil, na FAP.

15 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26392: Nunca Tantos Deveram Tanto a Tão Poucas (2): O que é feito de ti, Maria Rosa Exposto ?... "Nunca vos esqueci nem esquecerei", escreveu ela em depoimento para o livro "Nós, Enfermeiras Paraquedistas", 2ª ed., 2014, pág. 403)

(**) Último poste série > 13 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26578: Nunca tantos Deveram Tanto a Tão Poucas (7): Cristina Silva, ten grad enf pqdt, a única das 46 que foi ferida em combate

sábado, 25 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26424: O segredo de... (45): António Medina (1939-2025) - Parte I: "Uma história de terror que me atormentou toda a vida (Jolmete, junho / setembro de 1964)"


  
Guiné  > Região do Cacheu > Jolmete > CART 527 (1963/65) > Aspeto da vida no aquartelamento.   O António Medina, à esquerda


Foto (e loegenda): © António Medina (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




António Mediba, 2016
1. Mensagem, de  
 23 de Junho de 2014, às 22:52, enviada pelo nosso saudoso camarada da diáspora António Medina (1939-2025) (*) , e que voltamos a republicar (em quatro postes, a última com com os comentários dos nossos leitores) (**).


Recorde.se:

(i) o António Medina era natural da ilha de Santo Antão, Cabo Verde,

(ii) foi fur mil inf, CART 527 (Teixeira Pinto, Bachile, Calequisse, Cacheu, Pelundo, Jolmete e Caió, 1963/65):

(iii) trabalhou depois BNU em Bissau (***) e em Lisboa;

(iv) passou a viver nos EUA desde 1980, em Medford, Massachusetts (onde morreu há dias) (*)


Olá,  camarada e amigo Luís:

Há muito não te contactei porque procurei ultimar este trabalho que vivia em letargia nas minhas memórias, precisamente para coincidir com o aniversário deste acontecimento que na altura me desapontou imenso, sem todavia nada poder fazer.

Antes de se tomar qualquer iniciativa,  gostaria que atentamente lesses o seu conteúdo e me desses a tua opinião se pode ou não ser publicado no blogue. Considerei este caso como uma forma de terror que se pode juntar a muitos mais e infelizmente praticados pelo nosso exército em todas as frentes de luta.

Aguardarei ouvir a tua opinião quando puderes.

Um abraço
Medina


2. Resposta de L.G. na mesma data (23/6/2014):

António:

Não há, não houve, nem nunca haverá guerras "limpas". No caso da guerra que nos coube em sorte, é minha opinião que nem nós nem o PAIGC fomos "meninos de coro".

Na mesma altura, ou antes, em que se passam os acontecimentos que tu relatas (em Jolmete, na região do Cacheu, entre junho e setembro de 1964), o PAIGC fazia o seu 1º congresso em Cassacá, no sul, na região de Tombali, e "limpava" a casa, com julgamentos revolucionários e execuções sumárias que tiveram o OK de Amílcar Cabral...

Mas uma mão não limpa a outra, nem um partido dito revolucionário como o PAIGC podia servir de bitola para "avalizar" o comportamento dos militares de um exército regular, de um país ocidental como o nosso.

Usámos a arma do terror, tal como o PAIGC usou. Infelizmente, vou sabendo, aqui e acolá, em conversas "off record", com outros camaradas do teu tempo, de mais casos, pontuais é certo, de execuções sumárias, praticadas nessa época, noutros sítios (por ex., no setor de Bambadinca, zona leste onde estive)... Não sabemos qual a extensão dessas práticas, espero que tenham sido meros casos isolados. Também não adianta "sacar" culpas para o exército, ou reparti-las com a PIDE e/ou a administração colonial...

No mínimo, e não havendo tribunais de guerra, estas decisões deviam ter o OK (tácito ou explícito ) de Bissau, e no caso concreto que relatas, do brig Arnaldo Schulz (ministro do interior de Salazar, entre 1958 e 1961, promovido a brigadeiro em 1963, ainda em Angola, e nomeado depois governador e comandante-chefe no TO da Guiné, em maio de 1964; chegou a Bissau a 24 de maio de 1964).

Eu fiz a guerra, de junho de 1969 a março de 1971, no tempo de Spínola e da chamada política da "Guiné Melhor"... Não participei nem tive conhecimentos de casos como o que relatas. Mas no meu tempo, os meus soldados africanos da CCAÇ 12, os mais velhos (com o pobre do Abibo Jau, mais tarde fuzilado pelo PAIGC) contaram-me algumas histórias macabras, da responsabilidade da polícia administrativa de Bambadinca.

Por outro, Samba Silate é um exemplo triste de uma tabanca balanta reduzida a cinzas.... E um padre italiano, da missão de Samba Silate, Antonio Grillo, foi preso pela PIDE em 23/2/1963, acusado de atividades subversivas... Já escrevemos sobre isso, aqui no blogue... 

A "guerra subversiva" e "contrassubversiva", nesta época (1959/64), ainda está muito mal documentada....

Um dos princípios fundamentais do nosso blogue é a nossa obrigação de relatar factos e episódios por nós vividos ou do nosso conhecimento direto, procurando dizer a verdade e só a verdade, e recusando fazer juízos de valor...

O teu testemunho é assertivo, pormenorizado, ponderado, equilibrado e, parece-me, isento e responsável, ditado também por um imperativo de consciência de um homem cristão e português, como tu.

Em dez anos de blogue é a primeira vez, em 2014, que um camarada nosso tem a coragem de, publicamente, assinar um relato desses, com execuções sumárias de suspeitos de colaborar com o IN.

Da minha parte, suspeito que este tipo de ações não chegava a constar dos nossos relatórios militares, sendo portanto altamente improvável que um dia os investigadores tenham acesso a estes factos no Arquivo Histórico Militar, por exemplo.

Tens o meu OK, para publicar o teu testemunho, e gostaria que fosse já, 50 anos depois. É uma efeméride trágica. Tens o cuidado de não identificar nenhum camarada, e esse é um dos nossos princípios. Não somos juízes nem queremos julgar ninguém. Esses factos também fazem parte da nossa memória (dolorosa) da guerra na Guiné.

Dou-te os parabéns pela tua decisão de contar este "segredo". É também uma afirmação contra o medo de seres julgado pelos teus pares. Espero que apareçam mais versões destes acontecimentos. As tuas melhoras, se possível.

Um abraço fraterno. Luís Graça


O António Medina na mata da Caboiana
(c. 1964)

3. R
esposta do António Medina, na "volta do correio" (24/6/2014):


 Obrigado,  Luís,  pela tua apreciação ao meu testemunho que resolvi trazer à tona do que realmente aconteceu há cinquenta anos. Vamos então publicá-lo quanto antes como dizes e conto com a tua colaboração nesse sentido.

 Gostaria de o realçar talvez com algumas fotos minhas de Jolmete que certamente aí tens, assim mesmo vou tentar reenviá-las de imediato para que não se perca mais tempo. Logo após a publicação, agradecia que me avisasses para que eu possa tomar conhecimento. Telefonar-te-ei um dia desses.

Um abraço amigo
AMedina



Crachá da CART 527

4. Ficha de unidade >  Companhia de Artilharia nº 527

Identificação: CArt 527
Unidade Mob: RAL 1 - Lisboa
Crndt: Cap Mil Art António Maria de Amorim Pessoa Varela Pinto | Cap Art Domingos Amaral Barreiros

Divisa: -
Partida: Embarque em 27mai63; desembarque em 4jun63 | Regresso: Embarque em 29abr65

Síntese da Atividade Operacional

Em 25jun63, seguiu para Teixeira Pinto, a fim de reforçar o BCaç 239 e depois o BCaç 507, com vista à realização de operações de patrulhamento e batida na região de Binar.

Em 8ag063, substituindo a CCaç 154, assumiu a responsabilidade do subsector de Teixeira Pinto e destacamento de Cacheu, ficando então integrada no dispositivo e manobra do BCaç 507 e tendo ainda empenhado efectivos em diversas operações realizadas na região do Jol e Pelundo, entre outras; por períodos variáveis, destacou, ainda, efectivos para reforço das guarnições locais de Calequisse, Caió e Bachile.

Em 28abr65, foi rendida no subsector de Teixeira Pinto pela CCav 789 e recolheu a Bissau para embarque de regresso.

Observações - Não tem História da Unidade. Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pág. 439.


5. O essencial do "segredo" do António Medina  será republicado, dez anos depois, no poste seguinte desta série (***):  

em resumo,  "foi há 50 anos [agora 60], a 24 de junho de 1964, sofremos uma emboscada no regresso ao quartel, que teria depois trágicas consequências para a população de Jolmete: como represália, cerca de 20 homens, incluindo o régulo e o neto, serão condenados à morte e executados pelas NT, dois meses depois".

 _____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 23 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26417: In Memoriam (531): António Medina (Santo Antão, Cabo Verde, 1939 - Medford, Massachusetts, EUA, 2025), ex-fur mil at inf, OE, CART 527 (Teixeira Pinto, Bachile, Calequisse, Cacheu, Pelundo, Jolmete e Caió 1963/65), nosso grão-tabanqueiro desde 2014

(**) Último poste da série > 21 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25862: O segredo de... (44): Aos 70 anos, comecei a ficar farto da guerra (Torcato Mendonça, 1944-2021)... Um "segredo póstumo" que chega ao blogue por mão da Ana Mendonça e do Virgínio Briote

Vd também poste de 29 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14945: O segredo de... (19): António Medina (ex-fur mil, CART 527, 1963/65, natural de Cabo Verde, mais tarde empregado do BNU, e hoje cidadão norte-americano): Desenfiado em Bissau por três dias, por causa dos primos Marques da Silva, fundadores do conjunto musical "Ritmos Caboverdeanos"... Teve de se meter num táxi, até Teixeira Pinto, que lhe custou mil pesos, escapando de levar uma porrada por "deserção"!

(***( Vd. poste de 4 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24725: O segredo de... (39): António Medina: O surpreendente reencontro, em Bissau, em junho de 1974, com o meu primo Agnelo Medina Dantas Pereira, comandante do PAIGC

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26090: Timor Leste: Passado e presente (27): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Anexo VI: um herói esquecido e injustiçado, o tenente António PIres

O actor Marco Delgado no papel de Tenente Pires, na série "Abandonados" (realização de Francisco Manso, produção RTP, 2022). Imagem: cortesia de RTP e
 


1. No livro de José dos Santos Carvalho, que temos vindo a seguir (*), reproduzindo excertos e notas de leitura, há uma adenda, no final (pp. 195/204), que merece também destaque: nela o autor reproduz  informações complementares de dois sobreviventes, tal como ele, da tragédia que foi a ocupação japonesa de Timor  (fevereiro de 1942 / setembro de 1945). 

A adenda foi escrita em dezembro de 1970, quando o livro já estava no prelo. Por um feliz acaso encontrou em Lisboa Joaquim Luís Carrapito, antigo deportado, padeiro   (em Díli e depois em Baucau). Este, por sua vez, apresentou-lhe um segundo sobrevivente, César de Castro, também ele antigo deportado, serralheiro, a viver na Cova da Piedade, Almada. 

Na adenda tomamos conhecimentos de factos novos, ocorridos durante a ocupação nipónica. Mas, mais importante do que a revelação das circunstâncias e pormenores de mais uma série de crimes bárbaros, importa sublinhar o papel do tenente Manuel António Pires, um verdadeiro herói que arriscou a sua vida  para salvar compatriotas seus (e em especial mulheres e crianças, talvez cerca de uma centena, repatriados para a Austrália) e que foi um grande patriota (acabaria por morrer em 1944 na prisão,  às mãos dos japoneses).  
 
2. Sobre esse doloroso período (fevereiro de 1942 / setembro de 1945) (em que morreram 90 portugueses e c. 40 mil timorenses), o médico José dos Santos Carvalho publicou, 30 anos depois, um livro de memórias, "Vida e morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (imagem da capa, a seguir) . 



Capa do livro de José dos Santos
Carvalho:"Vida e Morte em
Timor Durante a Segunda
Guerra Mundial",
Lisboa: Livraria Portugal,
1972, 208 pp. , il


 
 O livro (disponível em formato digital na Internet Archive) e o autor merecem ser aqui lembrados. Recorde-se que a obra foi digitalizada e carregada, em 2010, no Archive.org, por um sobrinho do autor ("Fernando in Lisbon"). Na dedicatória lê-se: "Ao Fernando, com um abraço, muito amigo, do tio, José. Lisboa, 2/v/72" (**)
 
Recorde-se, entretanto, que dos 28 louvores atribuídos formalmente, pelo Governador aquando da cessação das suas funções, com datas de 10 de outubro e 21 de novembro de 1945, apenas se contempla um profissional de saúde (o médico de 2ª classe José dos Santos Carvalho). Os restantes são militares (oficiais, sargentos e praças) (n=10), pessoal da administração (chefes de posto e outros) (n=10), deportados (=6), além de 1 missionário e o diretor da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho...

Há um silêncio incómodo em relação à figura do tenente Manuel de Jesus Pires, administrador de Bacau.

Mais tarde, já em junho de 1947, no relatório que fez para o Governo sobre os "acontecimentos de Timor", o antigo Governador (alvo de suspeições de "colaboracionismo", de que acabou por ser ilibado)  alargou a lista dos portugueses e inclui uma mão cheia de timorenses, vivos e mortos, merecedores do reconhecimento da Pátria portuguesa: são mais de 60 os liurais, chefes de suco, "moradores" (milícias), e outros "indígenas" expressamente citados. 

Mais uma vez o tenente Manuel de Jesus Pires aparece como "persona non grata" aos olhos do regime de então, sendo completamente esquecido (para não dizer banido).  O Governador que esteve a desgraça de estar em Timor neste período trágico da sua (e nossa) história, não lhe terá perdoado a sua colaboração com os Aliados (australianos e americanos), desrespeitando assim a orientação superior (de Salazar) que era de manter, a todo o custo, a estrita neutralidade...face aos invasores estrangeiros do território (os australianos e depois os japoneses).

Mas este português (tal como outros que optaram por resistir aos japoneses, como o deportado político, o dr. Carlos Cal-Brandão) merece, oportunamente, um poste sobre a sua história. (Sobre ele, de resto, já aqui falámos no blogue em vários postes desta série e dissemos que, se ele fosse vivo, em 1945, no regresso a Portugal, seria seguramente preso e condenado por deserção e traição.)

 Recorde-se apenas, "en passant", que a sua história inspirou uma recente série televisisa, cujo guião teve por base o livro Timor na II Guerra Mundial: o diário do Tenente Pires (editado pelo ISCTE,  da autoria do historiador António Monteiro Cardosoentretanto falecido em 2016).


(...) "Portugal tem um novo herói. Chama-se Manuel de Jesus Pires, mas podemos tratá-lo como Tenente Pires. Foi ele o administrador da Vila de Baucau durante a invasão de Timor pelos japoneses, em 1942, e liderou a resistência ao invasor, tendo salvado quase uma centena de vidas numa altura em que o regime do Estado Novo abandonou portugueses à sua sorte. A sua história é agora uma série de ficção da RTP com o título 'Abandonados' " (....)
 

Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.)


Anexo VI:  Adenda: o papel do tenente Pires (pp. 195-204) (Excertos)


(...) Estando já no prelo o presente livro, um acaso providencial fez-me deparar numa das ruas de Lisboa com o sr. Joaquim Luís Carraquico que eu conhecera em Díli exercendo a profissão de industrial de padaria.

A sua amabilidade permitiu-me obter o esclarecimento de circunstâncias de acontecimentos de que eu tinha imperfeita noção e a notícia de outras que eu desconhecia e que é forçoso transmitir ao leitor para sua mais completa elucidação.

No dia 14 de novembro de 1942 encontrava-se o sr. Carraquico em Baucau onde residia após a evacuação de Díli ordenada pelo Governador.

Constando-lhe o assassinato de europeus em Manatuto por uma coluna [negra], que se dirigia a Baucau, afastou-se desta vila e seguiu para o interior na direcção de Quelicai.

Reuniram-se os foragidos de Baucau, e outras terras, cerca de 300 europeus e timorenses, nas faldas do monte Mate-Bían, no suco de Lai-Súru-Lau, sendo naturalmente guiados pelo tenente Pires e dedicadamente auxiliados por timorenses que lhes traziam alimentos e permanentemente os informavam dos movimentos dos japoneses.

Assim, chegou ao seu conhecimento que, após o assassinato do administrador de Manatuto [dr. João Mendes de Almeida, em 13 de novembro de 1942],e do secretário [Augusto Pereira] Padinha, haviam os japoneses passado em Vemasse, a caminho de Baucau, e, aquando ou depois da sua passagem, se tinha dado o assassinato do deportado sr. António Dias que vivia numa casa que possuía à beira da estrada de Manatuto a Baucau, num suco de Vemasse.

No dia seguinte ao da chegada dos japoneses a Baucau, uma coluna atingira Lautém onde então foram assassinados [em 17 de novembro de 1942] o administrador Manuel [Arroio E.] de Barros e a esposa [Maria das Dores de Barros], e dois deportados, os srs. António Teixeira e Mário Gonçalves [no dia seguinte].

O grupo de foragidos, de que faziam parte muitas mulheres e crianças, estava sob a permanente ameaça das colunas negras e, por isso, o tenente Pires contactando com um oficial australiano que se encontrava então por aqueles lados [1], conseguiu a sua evacuação para a Austrália num destroyer que veio ancorar na praia da Aliambata na noite de 18 de dezembro [de 1942].

Pressurosamente se apresentaram no local do embarque todos os foragidos, porém só foram autorizados a embarcar os constantes duma lista elaborada pelo tenente Pires, entre os quais todas as mulheres e crianças.

O sargento Martins, de metralhadora em punho, impediu, então a salvação de muitos dos homens, os quais teriam de ficar em Timor "para manter a soberania portuguesa naquela área e para auxiliarem as forças australianas que haveriam de vir a desembarcar na ilha".

Assim, o sr. Carraquico, o dr. [José Aníbal Torres] Correia Teles [médico] , o condutor de obras públicas, [Orlando] Vale do Rio Paiva, e vários outros, assistiram à partida das suas famílias e eles ficaram para ali, abandonados, fracionados em pequenos grupos para evitar as colunas negras que os perseguiam, mas amigável e caridosamente ajudados pelos timorenses da região.

Em breve os foragidos se sentiram cercados pelos japoneses que se instalaram em Ossú, Viqueque, Báguia e Quelicai, lançando colunas negras pelo interior.

Impôs-se-lhes, assim, a retirada para a zona litoral de Luca e Barique onde ainda não dominavam os nipónicos e havia locais propícios à ancoragem de embarcações que os viessem salvar, transportando-os para a Austrália.

Como a tropa japonesa patrulhasse incessantemente a estrada de Viqueque a Ossú, os foragidos só conseguiram atravessá-la divididos em pequenos grupos, altas horas da noite e guiados por dedicados amigos timorenses.

O grupo a que pertencia o sr. Carraquico foi acampar em Nátar-Bora, na região de Luca, e outros grupos ficaram por ali perto. Dois missionários [Padre António Manuel Serra e padre Júlio Augusto Ferreira], o secretário 
[de circunscrição José Luís] Howell de Mendonça e o chefe de posto Eugénio de Oliveira, juntaram-se ao deportado sr. Américo de Sousa [surrador, de profissão] e foram acolher-se à protecção de um chefe de um suco [2] ao qual pertencia a companheira do sr. Sousa e que também vinha com eles.

Em Nátar-Bora, o dr. Correia Teles que estava muito doente e extremamente debilitado, afastou-se momentaneamente dos seus companheiros e suicidou-se descalçando a bota alta e premindo o gatilho da caçadeira que trazia, com o dedo grande do pé, depois de ter apoiado os canos da espingarda contra o maxilar inferior.

Em janeiro de 1943 receberam os foragidos uma comunicação do dr. Cal Brandão (que se encontrava com militares australianos para os lados de Fátu-Berliu) , de que no dia 9 viria um navio à praia de Quirás, junto à foz da ribeira Sáhe, ao sul da povoação da Soibada, para evacuar para a Austrália os australianos e, também, os portugueses que por ali andavam.

Assim, na tarde do dia aprazado encontraram-se em Kirás algumas dezenas de portugueses com o dr. Cal Brandão e a tropa australiana comandada pelo major [Bernard] Callinan. Pelo dr. Cal Brandão foi então referido que o comandante australiano havia proibido o embarque ao aspirante [administrativo José] Armelim Mendonça, assim, como a toda a sua família, não lhes permitindo, sequer, a deslocação a Kirás! [3]

Por grande infelicidade, as duas primeiras baleeiras que chegaram à praia e eram as destinadas ao transporte dos portugueses, voltaram-se devido ao mar bravo, pelo que somente puderam embarcar muito poucos, juntamente com os militares australianos.

Lembra-se o sr. Carraquico de terem conseguido embarcar:

  • a esposa e filhas do tenente reformado Sequeira;
  • os cabos Rente chefe do posto do Remexio] e Robalo;
  • os enfermeiros Alfredo Borges e Marcelo Nunes;
  • o aspirante administrativo Artur Oliveira;
  • e os deportados Arsénio José Filipe, José Maria e Rodrigo Rodrigues.

Ficou em Timor uma secção australiana (16 militares), que, segundo o dr. Cal Brandão, se foi esconder nas montanhas de Fátu-Berliu com a incumbência de observar o movimento das tropas inimigas e dar informação pela TSF para a Austrália.

A situação dos portugueses foragidos era agora mais que nunca desesperada, pois as colunas negras continuamente os perseguiam. Forçados a esconder-se nos matagais pantanosos da planície de Barique onde os mosquitos que transmitem o paludismo constituem legião mortífera, estavam condenados a privarem-se de alimentos provenientes de plantas cultivadas pois esta zona é completamente despovoada devido aos timorenses evitarem nela residir por ser doentia.

Seguiram-se tempos dos mais desgraçados e miseráveis para aqueles infelizes que, minados pela fome e doença e sugados pelos mosquitos erravam pela floresta do litoral de Barique, colhendo frutos e raízes silvestres e apanhando a furto uma espiga em horta de há muito abandonada e, sempre, sob o terror das colunas negras que tanto os incomodavam.

Fracionados em pequenos grupos para mais facilmente poderem subsistir viam, pouco a pouco, cair em mortos de inanição ou de doença ou apanhados pelas colunas negras vários companheiros.

O enfermeiro Alcino Madeira, um seu irmão e o cunhado, tenente reformado Sequeira, resolveram afastar-se da costa sul e procurar abrigo entre timorenses seus amigos na terra da família Madeira, a Ermera. Puseram-se a caminho, mas todos cairam assassinados, não se sabendo, porém, onde nem como.

Também o cabo Acácio de Oliveira, o deportado sr. Severino Faria Coelho, o deportado sr. Manuel Simões Miranda e um enteado deste último, garoto de cerca de oito anos, se afastaram do grupo em que andavam para procurarem comida. Apanhados por uma coluna negra, todos foram assassinados com exceção do sr. Miranda que conseguiu escapar-se na ocasião mas que sucumbiu, depois, à fome.

O enfermeiro Fernando [José Maria] Senanes, ferido numa perna por uma bala disparada por uma coluna negra atacante, foi apanhado e assassinado à catana, sendo-lhe decepadas as mãos para se exporem como troféu no alto de uma azagaia! [na região de Luca, antes de 28 de fevereiro de 1943].

O velho sr. Delfim, que era nos tempos de paz o encarregado das oficinas dos Serviços de Obras Públicas em Díli, já não podia andar e, por isso ficara numa povoação timorense, ao cuidado de um chefe de suco, onde durante algum tempo foi muito bem tratado. Morreu intoxicado, porém, por lhe terem dado numa refeição mandioca brava, talvez no intuito de se apoderarem das patacas mexicanas que ele guardava numa faixa que lhe envolvia o abdómen e cujo volume se distinguia perfeitamente sob a camisa.

Em meados de fevereiro veio um submarino americano à praia da «alfândega» de Barique
 [4]  para evacuar para a Austrália todos os militares dessa nacionalidade e os timorenses de Ossuroa que os tinham auxiliado.

Neste mesmo navio embarcou também o tenente Pires; que só o fez depois de muito lho pedirem os seus companheiros e com o fim de instar na Austrália por socorro urgente aos portugueses.

Conta o dr. Cal Brandão que os australianos deixaram aos portugueses de Timor dois aparelhos transmissores e recetores de TSF e uma cifra para que pudessem continuar a comunicar com a estação de Port Darwin ficando a cargo do sargento-telegrafista da Armada, Luís de Sousa, adido à Missão Geográfica, no tempo de paz.

No grupo a que pertencia o sr. Carraquico andavam o cabo reformado Alexandre [B. Gomes] (por alcunha o «cabo Macau») e o enfermeiro Manuel Turquel dos Santos, os quais sofriam de enormes úlceras, nas pernas, instaladas em ferimentos devidos aos espinhos do mato que lhes rasgaram a carne durante as precipitadas correrias.

Num dado dia, foi o grupo atacado por uma coluna negra chefiada por japoneses e todos se puseram em fuga, sendo forçados a atravessarem uma ribeira de águas quase paradas mas funda. 

Passado o perigo e reunido de novo o grupo deram pela falta daqueles dois companheiros. Timorenses amigos lhes vieram depois comunicar terem encontrado os dois cadáveres boiando na ribeira. Deduziram que o afogamento teria sido motivado pela debilidade dos membros inferiores que não permitiu o aguentarem-se de pé nem a nado.

Deste mesmo grupo fazia também parte o soldado Mendes [ou António Mendes, cabo de infantaria ?] que andava transtornado mentalmente, parece que por ter explodido uma bomba muito perto de si. Veio a morrer, de fome e paludismo, pouco depois.

O sr. [Orlando] Vale do Rio Paiva, condutor de obras públicas, foi atingido por uma intoxicação geral que se manifestava por bolhas que se rompiam e ulceravam e em breve faleceu. 

O sr. Soares que no tempo de paz estava empregado na plantação do sr. Sebastião da Costa, no posto da Hera, fazia parte de um grupo de foragidos que foi atacado por uma coluna negra. Enervado, em vez de fugir, enfrentou a turba, de pistola em punho. Lançaram, então, contra ele uma granada de mão que o vitimou.

O Pe. Francisco Madeira andava num grupo de que fazia parte, além de outros, o deportado sr. Jacinto Estreia, e recebeu de um amigo timorense o presente de um cacho de bananas num momento em que se encontrava com desesperada fome. A abundante e não habitual refeição provocou-lhe, porém, uma indigestão que o vitimou.

Lembra-se, ainda, o sr. Carraquico de três portugueses europeus que morreram à fome, «só com pele e osso», na costa sul. Foram eles, o sr. Venceslau Pereira (escrivão do tribunal de Díli) , o deportado sr. Mário Vitorino Enguiça e outro deportado conhecido pelo apelido de «Silvinha» , o qual nos seus últimos tempos ficou cego devido às privações.

Em princípios de julho 
[de 1943] o tenente Pires voltou da Austrália num submarino americano dando a notícia de que em breve viria um navio evacuar os portugueses foragidos. Pela TSF combinaram estes com os autralianos que o local do embarque fosse a já referida «alfândega» de Barique [4] e o dia escolhido, o de 3 de agosto.

Com efeito, pelas 5 horas da tarde desse dia 
[3 de agosto de 1943] , ancoraram duas «vedetas» australianas onde embarcaram as seguintes pessoas de que o sr. Carraquico se recorda:

(i) Deportados: 

  • dr. Carlos Cal Brandão, 
  • Joaquim Carraquico, 
  • Jacinto Estrela,
  • Domingos Paiva,
  • Paulo Soares, 
  • Hilário Gonçalves, 
  • Álvaro Damas, 
  • Francisco Horta, 
  • José Luís de Abreu, 
  • Bernardino Dias, 
  • Hermenegildo Granadeiro, 
  • António Pereira (e esposa), 
  • Pedro de Jesus (e família), 
  • Francisco Albuquerque (e esposa)

(ii) Sargentos: 

  • Lourenço Martins, 
  •  José Arranhado, 
  •  Luís de Sousa

(iii) Cabos: 

  • José Pires (chefe do posto de Lacluta) e família, 
  • Ilídio dos Santos
  •  José Rebelo

(iv) Outros: 

  • Eduardo Gamboa (Chefe de posto), 
  • António Sebastião da Costa, 
  • Henrique Pereira, 
  • Fernando Pereira, 
  • Joaquim Campos (Funcionário das Obras Públicas), 
  • Abel Cidrais (Funcionário das Obras Públicas),
  • 0 Sr. Sousa (natural da Índia Portuguesa),
  • duas filhas do falecido sr. Manuel Simões Miranda,
  • dois chineses,
  • vários timorenses dos dois sexos

Em Timor ficou um grupo de voluntários, em missão, de observação, de que faziam parte os seguintes portugueses: 

  • Tenente Manuel de Jeus Pires, 
  • Chefe de posto Augusto Leal de Matos e Silva  [natural de Sardoal e homenageado pela sua terra em 1946],
  • Chefe de posto  José  [Plínio dos Santos] Tinoco   [morto na cadeia de Díli, em 8 de abril de 1944] 
  • Enfermeiro Serafim  [Joaquim] Pinto  [morto na cadeia de Díli, antes  de 29 de abril de 1944] 
  • Radiotelegrafista Patrício Luz ,
  • Soldado  [ou cabo de infantaria ?]  João Vieira. 

Julga-se que todos eles morreram na prisão japonesa   [em 1944]  com exceção do sr. Patrício Luz que se escondeu entre timorenses amigos da sua família. 

Dos portugueses que conseguiram passar para a Austrália, aí faleceram os seguintes: 

  • Coronel Jorge Castilho  [5],
  • Sargento Gastão Ornelas de Vasconcelos,
  • Joaquim Campos,
  • António Sebastião da Costa,
  • Sr. Cachaço (empregado do sr. Sebastião da Costa),
  • Sr. Santos (olheiro das Obras Públicas),
  • Um menino timorense.

Teve o sr. Carraquico conhecimento de alguns pormenores de assassinatos de portugueses, os quais amavelmente me referiu. Pelo cabo Rente, que era o chefe do posto do Remexio, soube dos assassinatos dos deportados srs. Ramos Graça e Fernando Martins.

O cadáver do primeiro foi encontrado retalhado à catana japonesa de tal modo que estava irreconhecível. Os japoneses haviam-no abandonado numa ravina não longe da casa em que o sr. Ramos Graça habitava.

Quanto ao sr. Fernando Martins (que era coxo por ter um joelho anquilosado e com a perna fletida) , havia-se juntado a uma guerrilha australiana que actuava na área do Remexio. Passando o grupo por um acampamento japonês instalado num local situado entre o Remexio e Díli, notaram que as sentinelas estavam a dormir, o que aproveitaram para se aproximarem e lançarem uma granada de mão para o meio do acampamento.

Então, os japoneses perseguiram-nos e alcançaram o sr. Martins ao qual prenderam com uma corda pelo pescoço a um cavalo e assim o arrastaram até Díli e o abandonaram na praia, onde o sargento Vicente, chefe da polícia, somente pôde reconhecer o cadáver pelo aleijão do joelho.

Soube também o sr. Carraquico como foi assassinado o alferes reformado Alípio Ferreira que vivia em Cribas com a sua esposa timorense, um filho adulto e uma filha muito gentil e elegante. Quando por sua casa passou a coluna do tenente Ramalho que havia combatido os rebeldes de Maubisse, o alferes Ferreira, profundo amigo dos timorenses, pediu ao comandante que lhe deixasse ficar à sua protecção um rapazinho timorense que ele tinha recolhido por já não ter pai nem mãe.

Após o assassinato de europeus em Manatuto, o alferes Ferreira refugiou-se numa palhota bem escondida no mato, protegido pelo sigilo dos seus amigos timorenses. Porém, era necessário sair dela e ir a uma certa distância para trazer a água essencial para a vida da família e disso era encarregado o garotito de Maubisse.

Ora, num dado dia, deu-se a fatal coincidência de este ter encontrado no seu caminho uma coluna negra em que vinham timorenses da sua terra, que logo o reconheceram. Inocentemente, indicou-lhes o abrigo do seu protetor que logo foi assassinado juntamente com o filho [Alberto Ferreira], escapando incólumes a esposa e a filha.

Sobre os assassinatos de portugueses na circunscrição de Lautém após a chegada de japoneses, referiu-me o sr. Carraquico ter-Ihe constado, dias depois, que em Lautém haviam sido mortos o administrador Manuel [Arroio E. ]de Barros e a esposa [Maria das Dores de Barros] e os deportados Mário Gonçalves e António Teixeira e, em Iliómar, o chefe do posto, cabo [João ] Brás e o deportado Raul Dias Monteiro.

Acrescentou, então, que eu poderia ser devidamente esclarecido sobre esses bárbaros acontecimentos pelo sr. César de Castro [serralheiro ] que eu conhecera deportado em Timor e agora reside na Cova da Piedade. Com a melhor vontade se prontificou o sr. Castro a rememorar a tragédia de que foi figurante e da qual é o único europeu sobrevivente.

Aproveitando as qualidades do sr. César de Castro, hábil serralheiro, o Estado havia-o contratado 
[6 ] para exercer as funções de encarregado da fábrica de serração de madeira instalada em Loré (na área do posto de Iliómar e na costa sul) , junto à principal e mais rica floresta de Timor . Raras vezes ele se poderia deslocar a Lautém pois que, além do percurso a cavalo demorar cerca de dois dias, ele era o único responsável por todos os serviços da fábrica, competindo-lhe a direcção, administração, contabilidade, etc.

Porém, em novembro de 1942, apresentou-se em Loré o deportado sr. José Filipe, recomendado pelo administrador Barros para trabalhar junto do sr. Castro, o que permitiu a este deixá-lo a vigiar os trabalhos na fábrica e seguir para Lautem para apresentar contas ao administrador, receber os salários, etc, e tratar de assuntos da sua vida particular.

Chegado à vila na manhã do dia 15 foi instalar-se em casa do deportado Luís Maria Félix que exercia as funções de olheiro da circunscrição. Por este seu amigo foi então informado de que não havia comunicações telefónicas para oeste de Lautem, nada se sabendo pois do que se passava no resto de Timor [7].

Apresentou-se, em seguida, na secretaria da circunscrição tendo-o o administrador convidado para almoçar em sua casa, o que não pôde aceitar por estar comprometido a ir tomar a refeição com um comerciante chinês, juntamente com o sr. Luís Félix.

À tarde, quando os dois amigos conversavam na varanda da residência do sr. Félix, ouviram um tiro, sendo em breve informados por timorenses que passavam espavoridos que os japoneses haviam chegado e morto a tiro o sr. Mário Gonçalves [deportado] . Imediatamente a família do sr. Félix (companheira timorense e dois filhos) se pôs em fuga para os arredores e logo apareceram militares japoneses que se instalaram na casa, destinando um quarto para os dois europeus e dando-lhes ordem de não se afastarem do local.

Assim se passaram oito dias em que eles se mantiveram isolados, eles próprios cozinhando a sua comida. Passado este tempo, os japoneses avisaram-nos que seguiriam para Baucau no dia seguinte.

Assim, o sr. Félix conseguiu disso avisar a família que logo voltou do mato e com os europeus foi metida numa camioneta. Em Baucau embarcaram numa lancha de desembarque que os levou a Díli.

Seguiram depois para a zona de concentração de Liquiçá onde o sr. Félix veio a morrer de beribéri [em 10 de junho de 1945] e o sr. Castro se manteve até ao fim da guerra.

Segundo timorenses contaram à companheira do sr. Félix, o deportado Mário Gonçalves havia, por acaso, saído a cavalo para os arredores da vila quando a tropa japonesa que chegava o encontrou. Mandaram-no desmontar e meteram-no numa camioneta, levando-o para Lautém onde o encerraram na casa de um comerciante chinês. Tendo ele pedido licença para ir tomar banho à praia, esta foi-lhe concedida, o que não obstou ser abatido a tiro no trajeto!

Das circunstâncias em que se deram as mortes do administrador Barros e da esposa e do deportado António Teixeira [8] nada soube o sr. Castro, nem na ocasião nem depois.

Segundo na época dos acontecimentos constou ao sr. Carraquico, o administrador foi assassinado após a chegada dos japoneses à vila, seguindo-se-lhe na mesma sorte a sua esposa, mas por ela o ter insistentemente requerido aos algozes de seu marido, pois queria morrer com ele.

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, parênteses retos, título: LG)

___________


Notas do autor (complementadas pelo editor):

(1) Segundo o dr. Cal Brandão (Funo, Porto, 1946,  p. 115), tratava-se do capitão Brothers, inglês, chefe de um grupo da Inteligência Militar Australiana, que se havia instalado junto da habitação do liurai D. Paulo, de Ossuroa, na área do posto administrativo de Ossú.

(2) Segundo um louvor conferido pelo Governador, tratava-se do chefe do suco de Umuai de Baixo, área do posto de Viqueque, Miguel da Costa Soares. 
 ["Conservou  escondidos em sua casa, com grave risco de vida, os padres Serra e Ferreira, o secretário Mendonça e o aspirante  Eigénio de Oliveira durante dois meses, mostrabdo-se sempre leal e dedicado português. Tendo-lhe sido  confiado dinheiro (180  libras) pelo secretário Mendonça, no fim da guerra entregiu  integralmente a quantia que havia recebido"... Fonte:   antigo Governador Ferreira de Carvalho, "Relatório dos Acontecimentos de Timor", Lisboa,  junho de 1947] 

(3) O aspirante administrativo José Armelim Mendonça prestava serviço na sede da circunscrição de Manatuto. Deve ter-se refugiado com a sua família no interior dessa circunscrição, depois, segundo conta o dr. Cal Brandão, apresentou-se aos australianos na área de Fátu-Berliu, pedindo ajuda económica.

(4) O local era assim designado pelos timorenses por ai existirem uns barracões onde aguardavam transporte para Dili, os géneros que embarcações lá vinham carregar.

(5)  O coronel da aeronáutica Jorge de Castilho, descendente de António Feliciano de Castilho, foi o ilustre capitão encarregado da navegação aérea no hidroavião «Argus» comandado por Sarmento de Beires. Colaborador e íntimo amigo do almirante Gago Coutinho, era uma personagem de excepcional valor, brilhando sempre pela sua cultura e agudez do seu espírito.

(6) Em1927 chegaram a Timor 80 deportados, acusados de pertencerem a uma organização "bombista", a "Legião Vermelha", muitos deles operários e artesãos. O governador Teófilo Duarte (1928-1929) aproveitou, habilmente, as suas competências profissionais e deu-lhes emprego na ilha. Havia ainda um pequeno grupo de presos, oriundos de Macau. Estes deportados eram chamados "socais", para os distinguir dos "políticos", como dr.Carlos Cal-Brandão, envolvidos em ações contra a Ditadura Militar,em 1931. Ao todo deveriam ser quase uma centena, os deportados em Timor. (LG).

(7) A linha telefónica havia sido cortada pelos japoneses em Baucau, após a sua chegada à vila. Porém os de Lautém estavam longe de imaginar o que sucedera.

(8) O sr. António Teixeira, natural da Ilha da Madeira, exercia em Lautém atividades de pesca. Era geralmente conhecido pelo «António Ilhéu».



Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a eufemisticamente chamada zona de proteção,  , imposta aos portugueses pelo exército nipónico (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)

sábado, 24 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25877: Timor: passado e presente (18): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte IX: Parte IX: resumo dos acontecimentos do 2º semestre de 1943


Timor > s/l > s/d (c. 1936-1940) > O régulo ("liurai") de Ainaro e Suro, Dom Aleixo Corte Real, com a esposa de um funcionário português. Foi  O "liurai" Dom Aleixo Corte-Real (1886-1943), régulo de Ainaro e Suro. Foi um dos heróis luso-timorenses  da resistência contra o ocupante japonês na II Guerra Mundial. Morreu heroicamente com grande parte dos seus filhos.

Foto do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagem do domínio público, de acordo com a Wikimedia Commons. Editada (e legendada) por blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)

O Álbum «Colónia Portuguesa de Timor», mais conhecido por «Álbum Fontoura», nome do governador que o mandou elaborar em finais dos anos 30, e coincidindo, então, com a permanência em Timor de uma missão geográfica e geológica, chefiada pelo geógrafo Jorge Castilho, contém 549 fotografias relativas a «grupos étnico-linguísticos e tipos em geral», «trajos, ornamentos, pertences e armas», «vida familiar e social», «formas de trabalho (…), arte indígena e instrumentos musicais» e «acção civilizadora e colonizadora». O exemplar do álbum, recuperado após Abril de 1974 pelo antropólogo, professor António de Almeida, foi depositado no AHS (Arquivo Histório Social, ISC/UL, pela «Família Almeida», através do Doutor Pedro Cardim. (Fonte: AHS/Album Fontoura)




1. Mesmo publicado tardiamente, em 1972, trinta anos depois dos acontecimentos (aliás, numa época em que ainda havia a censura a obras literárias, e os autores faziam autocensura), o livro em apreço, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive, continua a ser um documento importante para o estudo deste dramático período da história do Timor português (mas também da nossa história),

Há outras fontes contemporâneas: o autor cita, por exemplo, os livros do deportado Cal Brandão e do tenente António Liberato, e
m complemento do seu relato em primeira mão (que, de resto,  só peca por tardio; o de Cal Brandão, "Funo", foi publicado logo em 1946; os do António Oliveira Liberato, "O caso Timor" e "Os Japoneses Estiveram erm Timor" logo a seguir, c. 1946-1951).  

Para ajudar a leitura que estamos a fazer, voltamos a  reproduzir neste poste o mapa de Timor em 1940 (da autoria de José dos Santos Carvalho). Em termos administrativos, a atual República Democrática de Timor-Leste encontra-se dividido em 13 distritos (contrariamente ao que se passou na Guiné-Bissau ou em Angola, por exemplo, os topónimos continuam a ser os mesmos): (i) Bobonaro, Liquiçá, Díli, Baucau, Manatuto e Lautém na costa norte;  |  (ii) Cova-Lima, Ainaro, Manufahi e Viqueque, na costa sul;  (iii) Ermera e Aileu, situados no interior montanhoso;  |(iv) e Oecussi-Ambeno, enclave no território indonésio.



Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.)

Parte IX:  resumo dos acontecimentos do 2º semestre de 1943 (pp.  75-79)


(i) O drama dos portugueses (e dos timorenses) durante a ocupação japonesa vai continuar nos últimos meses que faltam para completar o ano de 1943. A pequena comunidade europeia está concentrada
na zona de Liquiçá e Maubara, a oeste de Díli.
Um outro grupo, está em Lahane, nos arredores de Díli 
(e nele se encontra o médico José dos Santos, 
um dos dois que restam: eram quatro, dois suicidaram-se).
Para a Austrália, conseguiram escapar-se umas tantas famílias.


(...) No dia seguinte ao da sua chegada a Lahane  os portugueses vindos de Viqueque foram cumprimentar e informar o Governador do que tinham passado. Foi então, que o aspirante Oliveira reconheceu as crianças há tempos trazidas pelos japoneses, por serem filhas do seu colega José Armelim de Mendonça que prestava serviço na administração da circunscrição de Manatuto.

Tratava-se das meninas Maria Helena e Maria Ida e foi, para o aspirante Oliveira, grande surpresa encontrá-las pois lhe tinha constado que toda a família do aspirante Mendonça, inexplicavelmente excluída da lista das pessoas autorizadas a embarcar para a Austrália, havia perecido em abril, na região de Barique, no mato para onde fugira, acompanhando o seu chefe.

Conta-nos o capitão Liberato, num dos seus livros (1) o sucedido a essa infeliz família.

«Foram patéticas as operações de embarque. Ninguém queria ficar em terra. Os excluídos das listas pediam que os deixassem embarcar. O oficial australiano, superintendente no serviço de embarque, não se demoveu. Nem as súplicas de uma mãe, acompanhadas do choro enternecedor de seis crianças, de idade inferior a dez anos, conseguiram comover o duro coração do australiano. Foi o caso da família do aspirante administrativo Mendonça. Sucumbiram depois. Minados pela fome, pela febre e pela vérmina, morreram em qualquer parte da colónia. Só duas filhas do casal se salvaram» (1) .

Soubemos no fim da guerra que as duas crianças haviam escapado à morte por se terem perdido dos pais, na ocasião de uma precipitada fuga, sendo encontradas por timorenses que as entregaram aos japoneses.

Na tarde do dia 25 de maio estabeleceu-se em Maubara uma força nipónica comandada pelo tenente Sibassáki que, no dia seguinte, impunha ao tenente Liberato a entrega do armamento do destacamento por ele comandado e instalado em Guguleur (1).

Assim foi dissolvida a última força militar de que dispúnhamos, recolhendo o tenente Liberato a Liquiçá, a 29, ficando alojado numa casa do governador, denominada «o palácio», conjuntamente com as famílias do dr. Nepomuceno dos Santos, juiz da comarca
 [pai do futuro cantar Zeca Afonso, na altura ainda a estudar em Coimbra] , do sargento Ribeiro e do funcionário da F.O.A.G.E., Cláudio Alexandre Vaz, e com o aspirante Eugénio de Oliveira, ao todo treze pessoas ocupando seis compartimentos! (1).

Pouco tempo se demorou o tenente Sibassáki na região de Maubara, voltando para Liquiçá, onde reassumiu o comando das forças japonesas acantonadas na localidade (1) .

«Depois de cinco meses de permanência quase ininterrupta na zona e durante os quais fora o árbitro dos nossos destinos, deixou-nos em princípios de Agosto, não sem que primeiro desse largas ao ódio que lhe inspirávamos, descarregando todo o rancor, acumulado na sua alma perversa, sobre dois infelizes concentrados, esbofeteando-os em plena rua, perante os olhares curiosos dos indígenas e a ira recalcada dos europeus, que assistiram ao ultrajante espectáculo. Motivos fúteis serviram de pretexto à agressão» (1) .

A afronta matou o chefe de posto Nascimento. Sofrendo de doença que não perdoa, o enxovalho abreviou-lhe a existência. Não resistiu à vergonha de se ver esbofeteado na presença de timorenses seus súbditos de véspera (1).

Em fins de julho 
[de 1943] ,  os japoneses exigiram a entrega dos pouquíssimos aparelhos recetores de rádio e respetivo material, que ainda possuíamos, os quais, de resto, já não eram, praticamente, utilizados pela dificuldade de carregar as baterias queos alimentariam de corrente eléctrica. Desapareceu, assim, para nós, este último elo que nos ligava ao mundo, ficando completamente isolados.

(ii) Mas o drama dos portugueses e timorenses (e também australianos) (terror, fuzilamentos, isolamento, fome, doença, humilhações,  racismo, etc.) foi também,  de algum modo, contrabalançado  por muitos atos de altruísmo e heroísmo por parte de alguns, que inclusivamente se envolveram 
na resistência armada contra o ocupante . 
Os japoneses eram implacáveis contra a guerrilha luso-timorense, 
procedendo a execuções sumárias.



(...) Também, neste mesmo mês  [de julho de 1943], impuseram termo às arriscadíssimas viagens que os deportados, senhores José Rodrigues da Silva (2) e João dos Santos faziam, desde o estabelecimento da zona de concentração, à zona Leste e ao território do Oecússi, para trazerem para Liquiçá todos os géneros alimentícios que pudessem adquirir. 

Viajando nas frágeis embarcações à vela, denominadas «corcoras» em Timor, não haviam temido insistir na sua abnegada empresa apesar de terem sido recebidos a tiro em alguns pontos e, sobretudo, das suspeitas e vexames dos japoneses, a que se expuseram com a maior temeridade.

Em Lahane, éramos testemunhas da permanente e intensa actividade diplomática do engenheiro Canto, exercida temerariamente perante os japoneses, e da vida febril que levava, sempre com o pensamento de levar a bom termo a tarefa em quepatriótica e abnegadamente estava empenhado.

As suas idas e vindas a Liquiçá eram constantes, deixando-nos em Lahane sempre à espera de lhe ser causado o maior dano pelos japoneses. Ele, nunca desanimava. Cheio de energia e com inteiro desprezo pelo perigo que perfeitamente conhecia, enfrentava sorridente as mais difíceis situações e não se dobrava às veladas ameaças.

A polícia nipónica aparecia frequentemente no hospital, para «o visitar», e com infinda diplomacia os aturava, fingindo não compreender as suas intenções. É inenarrável a paciência com que o engenheiro aguentava as suas exigências ou «pedidos» e lutava contra as suas desconfianças, mostrando-lhes, sempre, que a nossa atitude perante eles, somente poderia ser de completa neutralidade e nunca de «cooperação», palavra que muito usavam e, veladamente, insinuavam deveríamos seguir para não sofrermos as agruras da ocupação.


(iii) Julgando poder manter alguma normalidade, mesmo sob violenta ocupação estrangeira, o Governador lá ia tomando algumas decisões administrativas como, por exemplo, nomear (o que é patético!) o dr. José dos Santos Carvalho, novato em Timor (tinha chegado em finais de 1940)
 para chefiar os serviços de saúde pública... E este, por sua vez, ainda arranjava tempo e pachorra para fazer 
os burocráticos relatórios anuais de saúde que a lei exigia... 
Grande exemplo como português e homem foi
 o do engenheiro e cartógrafo  da Missão Geográfica, 
o açoriano Artur do Canto Resende ( 1897-1945), 
que acabaria de morrer na prisão, em resultado de sevícias, fome e doença. 
Será agraciado, a título póstumo, com o grau de oficial 
da Ordem Militar da Torre e Espada


(...) Em fins de agosto resolveu o engenheiro Canto um dos maiores problemas que, então, era necessário eliminar, para sossego dos portugueses. As atividades da guerrilha do sr. Júlio Madeira na região da Hátu-Lia é Ermera, afligiam, incessantemente, os nipónicos, tendo-lhe causado várias baixas, entre mortos e feridos.

Falhadas algumas tentativas para o apanhar, apresentaram nas suas «visitas» o assunto ao engenheiro, mostrando-lhe as gravíssimas consequências que para a comunidade portuguesa concentrada poderiam advir, de portugueses estarem, ainda, violando a neutralidade em favor dos aliados.

O engenheiro iniciou, então, com conhecimento dos japoneses, tentativas perigosíssimas, para ir ao encontro do sr. Júlio Madeira e convencê-lo a vir para a zona de concentração 
 [de Liquiçá / Maubara].

Depois de com ele falar, obteve dos nipónicos a promessa de que garantiam a vida e integridade física do guerrilheiro se viesse para Lahane, à responsabilidade do engenheiro Canto.

Voltou este ao encontro do sr. Júlio e consigo o trouxe para o hospital, onde ficou a viver connosco, nunca incmodado pelos nipónicos, até ao fim da guerra.

Nesta sua última viagem à região da Ermera, colheu o engenheiro Canto a notícia da morte dos europeus que se tinham juntado aos povos do liurai do Suro, D. Aleixo Corte Real. 

Fortificando-se em posições que aguentaram durante longas semanas e rechassando as tentativas de assalto em que se empregava já o uso de morteiros e artilharia de montanha, havia o grupo de D. Aleixo, numa hora feliz, abatido um dos aviões nipónicos que procurava desalojá-los à metralhadora (3).

As forças japonesas, postas em cheque, redobraram os seus esforços, a fundo, para aniquilar os sitiados, e fizeram quebrar aquela heróica resistência (3) .

Neste último combate, travado em maio, nas faldas do monte Ramelau, morreu o deportado sr. Eduardo Felner Duarte, e foram aprisionados o sargento José Estêvão Alexandrino e os soldados Romualdo Aniceto e José Cachaço.

Levados para a Ermera, foram aí fusilados, no mês de junho, os dois soldados. O sargento Alexandrino, quando já os japoneses se tinham comprometido a entregá-lo ao administrador, engenheiro Canto, foi assassinado com um tiro de pistola,na nuca, por um oficial japonês que o convidara a dar um passeio (1). O seu corpo está enterrado junto à tranqueira da pequena localidade (4).

No dia 2 de agosto, o médico que prestava serviço em Lahane foi nomeado, interinamente, por portaria do Governador, chefe da Repartição Técnica de Saúde e Higiene. Assim, passei eu a ser o responsável pelos Serviços de Saúde que, felizmente, puderam sempre cumprir integralmente a sua missão de assistência médica e de enfermagem, apesar de desprovidos da maior parte dos meios de que, antes da ocupação dispunham.

Devido às dificuldades de comunicações e relativo isolamento entre médico responsável pela zona de Liquiçá e Maubara e o chefe da Repartição em Lahane, resolvi delegar no dr. Francisco Rodrigues vários dos meus poderes, o que lheparticipei por nota datada do dia 21.

Logo após a minha nomeação ponderei a grande vantagem em os dois médicos existentes poderem ministrar conhecimentos de enfermagem aos jovens que nada tinham em que se ocupar e que mostravam grande interesse em aprender.

Deste modo, organizei e propus ao Governador cursos intensivos de enfermagem, elaborando os respectivos programas e modo de funcionamento, contando com um único professor, em cada uma das localidades de Liquiçá e Lahane. Em 4 de Setem-bro, principiaram as respectivas lições que puderam ser mantidas, ininterruptamente, até aos exames que se fizeram no fim do 2.° ano.

No dia 17 de setembro fomos surpreendidos no hospital de Lahane pelo aparecimento duma pequena força japonesa que mandou desocupar a casa mortuária e logo aí se instalou, montando uma guarda com patrulhas, durante a noite, em frente ao hospital.

Em breve soubemos que haviam procedido da mesma maneira quanto ao palácio do Governador, instalando-se na casa da guarda, à sua entrada.

O engenheiro Canto foi, então, avisado no consulado nipónico de que todos os portugueses residentes no hospital, assim como os seus criados e auxiliares, se deveriam, sempre, fazer acompanhar de um salvo-conduto, fornecido pelo consulado, para poderem ser identificados pela guarda ao entrarem nopalácio ou no hospital.

Assim, me foi fornecido um quadrilátero de papel, cabendo na carteira, onde o meu nome, escrito em caracteres sínicos e dirigido verticalmente de cima para baixo, era acompanhado da indicação da minha profissão.

Na primeira visita que, a seguir, fiz ao palácio (5) encontrei montado o serviço de guarda, perante o comandante da qual pronunciei a palavra que sabia ser, em japonês, a correspondente a «governador», isto é, «sòtòkò» e apresentei o meu salvo-conduto.

O comandante, leu, em voz alta «JIÕSÉ DOS SANTOSSÊ CÃRÃVÃRIO» e lançou-me a palavra «doutoro», que eu confirmei com um aceno de cabeça afirmativo.

Um seu gesto permitiu, logo, a minha entrada, e assim se passou das outras vezes em que eu visitei o palácio, com guarda, portando-se sempre esta, para comigo, com correcção que posso sinceramente classificar de delicadeza.  (...)


(Continua): A seguir: Os acontecimentos de 1944

(Seleção, revisão / fixação de texto, reordenação das notas de rodapé, comentários introdutórios, negritos, itálicos: LG)


Mapa de Timor em 1940. 

In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a zona de detenção dos portugueses, imposta pelos japoneses (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)



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Notas do autor (JSC):


(1) Vd. Capitão António de Oliveira Liberato, "Os japoneses Estiveram em Timor". Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

(2)  O deportado José Rodrigues da Silva, que deu provas de excepcional valor, era em Timor conhecido como o senhor «José da Rosa».

(3) Vd. Carlos Cal Brandão, "Funo". Porto, 1946.

(4) Vd. Capitão António Oliveira Liberato, "O Caso de Timor",  Portugália, Lisboa. 

(5) "Além das visitas ao palácio feitas por motivo de doença, que felizmente foram raríssimas, eu sempre aí pude passar o domingo, por convite permanente do governador, almoçando e regressando à tarde ao hospital."

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