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terça-feira, 29 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26090: Timor Leste: Passado e presente (27): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Anexo VI: um herói esquecido e injustiçado, o tenente António PIres

O actor Marco Delgado no papel de Tenente Pires, na série "Abandonados" (realização de FranciscomManso, produção RTP, 2022). Imagem: cortesia de RTP e
 


1. No livro de José dos Santos Carvalho, que temos vindo a seguir (*), reproduzindo excertos e notas de leitura, há uma adenda, no final (pp. 195/204), que merece também destaque: nela o autor reproduz  informações complementares de dois sobreviventes, tal como ele, da tragédia que foi a ocupação japonesa de Timor  (fevereiro de 1942 / setembro de 1945). 

A adenda foi escrita em dezembro de 1970, quando o livro já estava no prelo. Por um feliz acaso encontrou em Lisboa Joaquim Luís Carrapito, antigo deportado, padeiro   (em Díli e depois em Baucau). Este, por sua vez, apresentou-lhe um segundo sobrevivente, César de Castro, também ele antigo deportado, serralheiro, a viver na Cova da Piedade, Almada. 

Na adenda tomamos conhecimentos de factos novos, ocorridos durante a ocupação nipónica. Mas, mais importante do que a revelação das circunstâncias e pormenores de mais uma série de crimes bárbaros, importa sublinhar o papel do tenente Manuel António Pires, um verdadeiro herói que arriscou a sua vida  para salvar compatriotas seus (e em especial mulheres e crianças, talvez cerca de uma centena, repatriados para a Austrália) e que foi um grande patriota (acabaria por morrer em 1944 na prisão,  às mãos dos japoneses).  
 
2. Sobre esse doloroso período (fevereiro de 1942 / setembro de 1945) (em que morreram 90 portugueses e c. 40 mil timorenses), o médico José dos Santos Carvalho publicou, 30 anos depois, um livro de memórias, "Vida e morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (imagem da capa, a seguir) . 



Capa do livro de José dos Santos
Carvalho:"Vida e Morte em
Timor Durante a Segunda
Guerra Mundial",
Lisboa: Livraria Portugal,
1972, 208 pp. , il


 
 O livro (disponível em formato digital na Internet Archive) e o autor merecem ser aqui lembrados. Recorde-se que a obra foi digitalizada e carregada, em 2010, no Archive.org, por um sobrinho do autor ("Fernando in Lisbon"). Na dedicatória lê-se: "Ao Fernando, com um abraço, muito amigo, do tio, José. Lisboa, 2/v/72" (**)
 
Recorde-se, entretanto, que dos 28 louvores atribuídos formalmente, pelo Governador aquando da cessação das suas funções, com datas de 10 de outubro e 21 de novembro de 1945, apenas se contempla um profissional de saúde (o médico de 2ª classe José dos Santos Carvalho). Os restantes são militares (oficiais, sargentos e praças) (n=10), pessoal da administração (chefes de posto e outros) (n=10), deportados (=6), além de 1 missionário e o diretor da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho...

Há um silêncio incómodo em relação à figura do tenente Manuel de Jesus Pires, administrador de Bacau.

Mais tarde, já em junho de 1947, no relatório que fez para o Governo sobre os "acontecimentos de Timor", o antigo Governador (alvo de suspeições de "colaboracionismo", de que acabou por ser ilibado)  alargou a lista dos portugueses e inclui uma mão cheia de timorenses, vivos e mortos, merecedores do reconhecimento da Pátria portuguesa: são mais de 60 os liurais, chefes de suco, "moradores" (milícias), e outros "indígenas" expressamente citados. 

Mais uma vez o tenente Manuel de Jesus Pires aparece como "persona non grata" aos olhos do regime de então, sendo completamente esquecido (para não dizer banido).  O Governador que esteve a desgraça de estar em Timor neste período trágico da sua (e nossa) história, não lhe terá perdoado a sua colaboração com os Aliados (australianos e americanos), desrespeitando assim a orientação superior (de Salazar) que era de manter, a todo o custo, a estrita neutralidade...face aos invasores estrangeiros do território (os australianos e depois os japoneses).

Mas este português (tal como outros que optaram por resistir aos japoneses, como o deportado político, o dr. Carlos Cal-Brandão) merece, oportunamente, um poste sobre a sua história. (Sobre ele, de resto, já aqui falámos no blogue em vários postes desta série e dissemos que, se ele fosse vivo, em 1945, no regresso a Portugal, seria seguramente preso e condenado por deserção e traição.)

 Recorde-se apenas, "en passant", que a sua história inspirou uma recente série televisisa, cujo guião teve por base o livro Timor na II Guerra Mundial: o diário do Tenente Pires (editado pelo ISCTE,  da autoria do historiador António Monteiro Cardosoentretanto falecido em 2016).


(...) "Portugal tem um novo herói. Chama-se Manuel de Jesus Pires, mas podemos tratá-lo como Tenente Pires. Foi ele o administrador da Vila de Baucau durante a invasão de Timor pelos japoneses, em 1942, e liderou a resistência ao invasor, tendo salvado quase uma centena de vidas numa altura em que o regime do Estado Novo abandonou portugueses à sua sorte. A sua história é agora uma série de ficção da RTP com o título 'Abandonados' " (....)
 

Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.)


Anexo VI:  Adenda: o papel do tenente Pires (pp. 195-204) (Excertos)

 


(...) Estando já no prelo o presente livro, um acaso providencial fez-me deparar numa das ruas de Lisboa com o sr. Joaquim Luís Carraquico que eu conhecera em Díli exercendo a profissão de industrial de padaria.

A sua amabilidade permitiu-me obter o esclarecimento de circunstâncias de acontecimentos de que eu tinha imperfeita noção e a notícia de outras que eu desconhecia e que é forçoso transmitir ao leitor para sua mais completa elucidação.

No dia 14 de novembro de 1942 encontrava-se o sr. Carraquico em Baucau onde residia após a evacuação de Díli ordenada pelo Governador.

Constando-lhe o assassinato de europeus em Manatuto por uma coluna [negra], que se dirigia a Baucau, afastou-se desta vila e seguiu para o interior na direcção de Quelicai.

Reuniram-se os foragidos de Baucau, e outras terras, cerca de 300 europeus e timorenses, nas faldas do monte Mate-Bían, no suco de Lai-Súru-Lau, sendo naturalmente guiados pelo tenente Pires e dedicadamente auxiliados por timorenses que lhes traziam alimentos e permanentemente os informavam dos movimentos dos japoneses.

Assim, chegou ao seu conhecimento que, após o assassinato do administrador de Manatuto [dr. João Mendes de Almeida, em 13 de novembro de 1942],e do secretário [Augusto Pereira] Padinha, haviam os japoneses passado em Vemasse, a caminho de Baucau, e, aquando ou depois da sua passagem, se tinha dado o assassinato do deportado sr. António Dias que vivia numa casa que possuía à beira da estrada de Manatuto a Baucau, num suco de Vemasse.

No dia seguinte ao da chegada dos japoneses a Baucau, uma coluna atingira Lautém onde então foram assassinados [em 17 de novembro de 1942] o administrador Manuel [Arroio E.] de Barros e a esposa [Maria das Dores de Barros], e dois deportados, os srs. António Teixeira e Mário Gonçalves [no dia seguinte].

O grupo de foragidos, de que faziam parte muitas mulheres e crianças, estava sob a permanente ameaça das colunas negras e, por isso, o tenente Pires contactando com um oficial australiano que se encontrava então por aqueles lados [1], conseguiu a sua evacuação para a Austrália num destroyer que veio ancorar na praia da Aliambata na noite de 18 de dezembro [de 1942].

Pressurosamente se apresentaram no local do embarque todos os foragidos, porém só foram autorizados a embarcar os constantes duma lista elaborada pelo tenente Pires, entre os quais todas as mulheres e crianças.

O sargento Martins, de metralhadora em punho, impediu, então a salvação de muitos dos homens, os quais teriam de ficar em Timor "para manter a soberania portuguesa naquela área e para auxiliarem as forças australianas que haveriam de vir a desembarcar na ilha".

Assim, o sr. Carraquico, o dr. [José Aníbal Torres] Correia Teles [médico] , o condutor de obras públicas, [Orlando] Vale do Rio Paiva, e vários outros, assistiram à partida das suas famílias e eles ficaram para ali, abandonados, fracionados em pequenos grupos para evitar as colunas negras que os perseguiam, mas amigável e caridosamente ajudados pelos timorenses da região.

Em breve os foragidos se sentiram cercados pelos japoneses que se instalaram em Ossú, Viqueque, Báguia e Quelicai, lançando colunas negras pelo interior.

Impôs-se-lhes, assim, a retirada para a zona litoral de Luca e Barique onde ainda não dominavam os nipónicos e havia locais propícios à ancoragem de embarcações que os viessem salvar, transportando-os para a Austrália.

Como a tropa japonesa patrulhasse incessantemente a estrada de Viqueque a Ossú, os foragidos só conseguiram atravessá-la divididos em pequenos grupos, altas horas da noite e guiados por dedicados amigos timorenses.

O grupo a que pertencia o sr. Carraquico foi acampar em Nátar-Bora, na região de Luca, e outros grupos ficaram por ali perto. Dois missionários [Padre António Manuel Serra e padre Júlio Augusto Ferreira], o secretário 
[de circunscrição José Luís] Howell de Mendonça e o chefe de posto Eugénio de Oliveira, juntaram-se ao deportado sr. Américo de Sousa [surrador, de profissão] e foram acolher-se à protecção de um chefe de um suco [2] ao qual pertencia a companheira do sr. Sousa e que também vinha com eles.

Em Nátar-Bora, o dr. Correia Teles que estava muito doente e extremamente debilitado, afastou-se momentaneamente dos seus companheiros e suicidou-se descalçando a bota alta e premindo o gatilho da caçadeira que trazia, com o dedo grande do pé, depois de ter apoiado os canos da espingarda contra o maxilar inferior.

Em janeiro de 1943 receberam os foragidos uma comunicação do dr. Cal Brandão (que se encontrava com militares australianos para os lados de Fátu-Berliu) , de que no dia 9 viria um navio à praia de Quirás, junto à foz da ribeira Sáhe, ao sul da povoação da Soibada, para evacuar para a Austrália os australianos e, também, os portugueses que por ali andavam.

Assim, na tarde do dia aprazado encontraram-se em Kirás algumas dezenas de portugueses com o dr. Cal Brandão e a tropa australiana comandada pelo major [Bernard] Callinan. Pelo dr. Cal Brandão foi então referido que o comandante australiano havia proibido o embarque ao aspirante [administrativo José] Armelim Mendonça, assim, como a toda a sua família, não lhes permitindo, sequer, a deslocação a Kirás! [3]

Por grande infelicidade, as duas primeiras baleeiras que chegaram à praia e eram as destinadas ao transporte dos portugueses, voltaram-se devido ao mar bravo, pelo que somente puderam embarcar muito poucos, juntamente com os militares australianos.

Lembra-se o sr. Carraquico de terem conseguido embarcar:

  • a esposa e filhas do tenente reformado Sequeira;
  • os cabos Rente chefe do posto do Remexio] e Robalo;
  • os enfermeiros Alfredo Borges e Marcelo Nunes;
  • o aspirante administrativo Artur Oliveira;
  • e os deportados Arsénio José Filipe, José Maria e Rodrigo Rodrigues.

Ficou em Timor uma secção australiana (16 militares), que, segundo o dr. Cal Brandão, se foi esconder nas montanhas de Fátu-Berliu com a incumbência de observar o movimento das tropas inimigas e dar informação pela TSF para a Austrália.

A situação dos portugueses foragidos era agora mais que nunca desesperada, pois as colunas negras continuamente os perseguiam. Forçados a esconder-se nos matagais pantanosos da planície de Barique onde os mosquitos que transmitem o paludismo constituem legião mortífera, estavam condenados a privarem-se de alimentos provenientes de plantas cultivadas pois esta zona é completamente despovoada devido aos timorenses evitarem nela residir por ser doentia.

Seguiram-se tempos dos mais desgraçados e miseráveis para aqueles infelizes que, minados pela fome e doença e sugados pelos mosquitos erravam pela floresta do litoral de Barique, colhendo frutos e raízes silvestres e apanhando a furto uma espiga em horta de há muito abandonada e, sempre, sob o terror das colunas negras que tanto os incomodavam.

Fracionados em pequenos grupos para mais facilmente poderem subsistir viam, pouco a pouco, cair em mortos de inanição ou de doença ou apanhados pelas colunas negras vários companheiros.

O enfermeiro Alcino Madeira, um seu irmão e o cunhado, tenente reformado Sequeira, resolveram afastar-se da costa sul e procurar abrigo entre timorenses seus amigos na terra da família Madeira, a Ermera. Puseram-se a caminho, mas todos cairam assassinados, não se sabendo, porém, onde nem como.

Também o cabo Acácio de Oliveira, o deportado sr. Severino Faria Coelho, o deportado sr. Manuel Simões Miranda e um enteado deste último, garoto de cerca de oito anos, se afastaram do grupo em que andavam para procurarem comida. Apanhados por uma coluna negra, todos foram assassinados com exceção do sr. Miranda que conseguiu escapar-se na ocasião mas que sucumbiu, depois, à fome.

O enfermeiro Fernando [José Maria] Senanes, ferido numa perna por uma bala disparada por uma coluna negra atacante, foi apanhado e assassinado à catana, sendo-lhe decepadas as mãos para se exporem como troféu no alto de uma azagaia! [na região de Luca, antes de 28 de fevereiro de 1943].

O velho sr. Delfim, que era nos tempos de paz o encarregado das oficinas dos Serviços de Obras Públicas em Díli, já não podia andar e, por isso ficara numa povoação timorense, ao cuidado de um chefe de suco, onde durante algum tempo foi muito bem tratado. Morreu intoxicado, porém, por lhe terem dado numa refeição mandioca brava, talvez no intuito de se apoderarem das patacas mexicanas que ele guardava numa faixa que lhe envolvia o abdómen e cujo volume se distinguia perfeitamente sob a camisa.

Em meados de fevereiro veio um submarino americano à praia da «alfândega» de Barique
 [4]  para evacuar para a Austrália todos os militares dessa nacionalidade e os timorenses de Ossuroa que os tinham auxiliado.

Neste mesmo navio embarcou também o tenente Pires; que só o fez depois de muito lho pedirem os seus companheiros e com o fim de instar na Austrália por socorro urgente aos portugueses.

Conta o dr. Cal Brandão que os australianos deixaram aos portugueses de Timor dois aparelhos transmissores e recetores de TSF e uma cifra para que pudessem continuar a comunicar com a estação de Port Darwin ficando a cargo do sargento-telegrafista da Armada, Luís de Sousa, adido à Missão Geográfica, no tempo de paz.

No grupo a que pertencia o sr. Carraquico andavam o cabo reformado Alexandre [B. Gomes] (por alcunha o «cabo Macau») e o enfermeiro Manuel Turquel dos Santos, os quais sofriam de enormes úlceras, nas pernas, instaladas em ferimentos devidos aos espinhos do mato que lhes rasgaram a carne durante as precipitadas correrias.

Num dado dia, foi o grupo atacado por uma coluna negra chefiada por japoneses e todos se puseram em fuga, sendo forçados a atravessarem uma ribeira de águas quase paradas mas funda. 

Passado o perigo e reunido de novo o grupo deram pela falta daqueles dois companheiros. Timorenses amigos lhes vieram depois comunicar terem encontrado os dois cadáveres boiando na ribeira. Deduziram que o afogamento teria sido motivado pela debilidade dos membros inferiores que não permitiu o aguentarem-se de pé nem a nado.

Deste mesmo grupo fazia também parte o soldado Mendes [ou António Mendes, cabo de infantaria ?] que andava transtornado mentalmente, parece que por ter explodido uma bomba muito perto de si. Veio a morrer, de fome e paludismo, pouco depois.

O sr. [Orlando] Vale do Rio Paiva, condutor de obras públicas, foi atingido por uma intoxicação geral que se manifestava por bolhas que se rompiam e ulceravam e em breve faleceu. 

O sr. Soares que no tempo de paz estava empregado na plantação do sr. Sebastião da Costa, no posto da Hera, fazia parte de um grupo de foragidos que foi atacado por uma coluna negra. Enervado, em vez de fugir, enfrentou a turba, de pistola em punho. Lançaram, então, contra ele uma granada de mão que o vitimou.

O Pe. Francisco Madeira andava num grupo de que fazia parte, além de outros, o deportado sr. Jacinto Estreia, e recebeu de um amigo timorense o presente de um cacho de bananas num momento em que se encontrava com desesperada fome. A abundante e não habitual refeição provocou-lhe, porém, uma indigestão que o vitimou.

Lembra-se, ainda, o sr. Carraquico de três portugueses europeus que morreram à fome, «só com pele e osso», na costa sul. Foram eles, o sr. Venceslau Pereira (escrivão do tribunal de Díli) , o deportado sr. Mário Vitorino Enguiça e outro deportado conhecido pelo apelido de «Silvinha» , o qual nos seus últimos tempos ficou cego devido às privações.

Em princípios de julho 
[de 1943] o tenente Pires voltou da Austrália num submarino americano dando a notícia de que em breve viria um navio evacuar os portugueses foragidos. Pela TSF combinaram estes com os autralianos que o local do embarque fosse a já referida «alfândega» de Barique [4] e o dia escolhido, o de 3 de agosto.

Com efeito, pelas 5 horas da tarde desse dia 
[3 de agosto de 1943] , ancoraram duas «vedetas» australianas onde embarcaram as seguintes pessoas de que o sr. Carraquico se recorda:

(i) Deportados: 

  • dr. Carlos Cal Brandão, 
  • Joaquim Carraquico, 
  • Jacinto Estrela,
  • Domingos Paiva,
  •  Paulo Soares, 
  • Hilário Gonçalves, 
  • Álvaro Damas, 
  • Francisco Horta, 
  • José Luís de Abreu, 
  • Bernardino Dias, 
  • Hermenegildo Granadeiro, 
  • António Pereira (e esposa), 
  • Pedro de Jesus (e família), 
  • Francisco Albuquerque (e esposa)

(ii) Sargentos: 

  • Lourenço Martins, 
  •  José Arranhado, 
  •  Luís de Sousa

(iii) Cabos: 

  • José Pires (chefe do posto de Lacluta) e família, 
  • Ilídio dos Santos
  •  José Rebelo

(iv) Outros: 

  • Eduardo Gamboa (Chefe de posto), 
  • António Sebastião da Costa, 
  • Henrique Pereira, 
  • Fernando Pereira, 
  • Joaquim Campos (Funcionário das Obras Públicas), 
  • Abel Cidrais (Funcionário das Obras Públicas),
  • 0 Sr. Sousa (natural da Índia Portuguesa),
  • duas filhas do falecido sr. Manuel Simões Miranda,
  • dois chineses,
  • vários timorenses dos dois sexos

Em Timor ficou um grupo de voluntários, em missão, de observação, de que faziam parte os seguintes portugueses: 

  • Tenente Manuel de Jeus Pires, 
  • Chefe de posto Augusto Leal de Matos e Silva  [natural de Sardoal e homenageado pela sua terra em 1946],
  • Chefe de posto  José  [Plínio dos Santos] Tinoco   [morto na cadeia de Díli, em 8 de abril de 1944] 
  • Enfermeiro Serafim  [Joaquim] Pinto  [morto na cadeia de Díli, antes  de 29 de abril de 1944] 
  • Radiotelegrafista Patrício Luz ,
  • Soldado  [ou cabo de infantaria ?]  João Vieira. 

Julga-se que todos eles morreram na prisão japonesa   [em 1944]  com exceção do sr. Patrício Luz que se escondeu entre timorenses amigos da sua família. 

Dos portugueses que conseguiram passar para a Austrália, aí faleceram os seguintes: 

  • Coronel Jorge Castilho  [5],
  • Sargento Gastão Ornelas de Vasconcelos,
  • Joaquim Campos,
  • António Sebastião da Costa,
  • Sr. Cachaço (empregado do sr. Sebastião da Costa),
  • Sr. Santos (olheiro das Obras Públicas),
  • Um menino timorense.

Teve o sr. Carraquico conhecimento de alguns pormenores de assassinatos de portugueses, os quais amavelmente me referiu. Pelo cabo Rente, que era o chefe do posto do Remexio, soube dos assassinatos dos deportados srs. Ramos Graça e Fernando Martins.

O cadáver do primeiro foi encontrado retalhado à catana japonesa de tal modo que estava irreconhecível. Os japoneses haviam-no abandonado numa ravina não longe da casa em que o sr. Ramos Graça habitava.

Quanto ao sr. Fernando Martins (que era coxo por ter um joelho anquilosado e com a perna fletida) , havia-se juntado a uma guerrilha australiana que actuava na área do Remexio. Passando o grupo por um acampamento japonês instalado num local situado entre o Remexio e Díli, notaram que as sentinelas estavam a dormir, o que aproveitaram para se aproximarem e lançarem uma granada de mão para o meio do acampamento.

Então, os japoneses perseguiram-nos e alcançaram o sr. Martins ao qual prenderam com uma corda pelo pescoço a um cavalo e assim o arrastaram até Díli e o abandonaram na praia, onde o sargento Vicente, chefe da polícia, somente pôde reconhecer o cadáver pelo aleijão do joelho.

Soube também o sr. Carraquico como foi assassinado o alferes reformado Alípio Ferreira que vivia em Cribas com a sua esposa timorense, um filho adulto e uma filha muito gentil e elegante. Quando por sua casa passou a coluna do tenente Ramalho que havia combatido os rebeldes de Maubisse, o alferes Ferreira, profundo amigo dos timorenses, pediu ao comandante que lhe deixasse ficar à sua protecção um rapazinho timorense que ele tinha recolhido por já não ter pai nem mãe.

Após o assassinato de europeus em Manatuto, o alferes Ferreira refugiou-se numa palhota bem escondida no mato, protegido pelo sigilo dos seus amigos timorenses. Porém, era necessário sair dela e ir a uma certa distância para trazer a água essencial para a vida da família e disso era encarregado o garotito de Maubisse.

Ora, num dado dia, deu-se a fatal coincidência de este ter encontrado no seu caminho uma coluna negra em que vinham timorenses da sua terra, que logo o reconheceram. Inocentemente, indicou-lhes o abrigo do seu protetor que logo foi assassinado juntamente com o filho [Alberto Ferreira], escapando incólumes a esposa e a filha.

Sobre os assassinatos de portugueses na circunscrição de Lautém após a chegada de japoneses, referiu-me o sr. Carraquico ter-Ihe constado, dias depois, que em Lautém haviam sido mortos o administrador Manuel [Arroio E. ]de Barros e a esposa [Maria das Dores de Barros] e os deportados Mário Gonçalves e António Teixeira e, em Iliómar, o chefe do posto, cabo [João ] Brás e o deportado Raul Dias Monteiro.

Acrescentou, então, que eu poderia ser devidamente esclarecido sobre esses bárbaros acontecimentos pelo sr. César de Castro [serralheiro ] que eu conhecera deportado em Timor e agora reside na Cova da Piedade. Com a melhor vontade se prontificou o sr. Castro a rememorar a tragédia de que foi figurante e da qual é o único europeu sobrevivente.

Aproveitando as qualidades do sr. César de Castro, hábil serralheiro, o Estado havia-o contratado 
[6 ] para exercer as funções de encarregado da fábrica de serração de madeira instalada em Loré (na área do posto de Iliómar e na costa sul) , junto à principal e mais rica floresta de Timor . Raras vezes ele se poderia deslocar a Lautém pois que, além do percurso a cavalo demorar cerca de dois dias, ele era o único responsável por todos os serviços da fábrica, competindo-lhe a direcção, administração, contabilidade, etc.

Porém, em novembro de 1942, apresentou-se em Loré o deportado sr. José Filipe, recomendado pelo administrador Barros para trabalhar junto do sr. Castro, o que permitiu a este deixá-lo a vigiar os trabalhos na fábrica e seguir para Lautem para apresentar contas ao administrador, receber os salários, etc, e tratar de assuntos da sua vida particular.

Chegado à vila na manhã do dia 15 foi instalar-se em casa do deportado Luís Maria Félix que exercia as funções de olheiro da circunscrição. Por este seu amigo foi então informado de que não havia comunicações telefónicas para oeste de Lautem, nada se sabendo pois do que se passava no resto de Timor [7].

Apresentou-se, em seguida, na secretaria da circunscrição tendo-o o administrador convidado para almoçar em sua casa, o que não pôde aceitar por estar comprometido a ir tomar a refeição com um comerciante chinês, juntamente com o sr. Luís Félix.

À tarde, quando os dois amigos conversavam na varanda da residência do sr. Félix, ouviram um tiro, sendo em breve informados por timorenses que passavam espavoridos que os japoneses haviam chegado e morto a tiro o sr. Mário Gonçalves [deportado] . Imediatamente a família do sr. Félix (companheira timorense e dois filhos) se pôs em fuga para os arredores e logo apareceram militares japoneses que se instalaram na casa, destinando um quarto para os dois europeus e dando-lhes ordem de não se afastarem do local.

Assim se passaram oito dias em que eles se mantiveram isolados, eles próprios cozinhando a sua comida. Passado este tempo, os japoneses avisaram-nos que seguiriam para Baucau no dia seguinte.

Assim, o sr. Félix conseguiu disso avisar a família que logo voltou do mato e com os europeus foi metida numa camioneta. Em Baucau embarcaram numa lancha de desembarque que os levou a Díli.

Seguiram depois para a zona de concentração de Liquiçá onde o sr. Félix veio a morrer de beribéri [em 10 de junho de 1945] e o sr. Castro se manteve até ao fim da guerra.

Segundo timorenses contaram à companheira do sr. Félix, o deportado Mário Gonçalves havia, por acaso, saído a cavalo para os arredores da vila quando a tropa japonesa que chegava o encontrou. Mandaram-no desmontar e meteram-no numa camioneta, levando-o para Lautém onde o encerraram na casa de um comerciante chinês. Tendo ele pedido licença para ir tomar banho à praia, esta foi-lhe concedida, o que não obstou ser abatido a tiro no trajeto!

Das circunstâncias em que se deram as mortes do administrador Barros e da esposa e do deportado António Teixeira [8] nada soube o sr. Castro, nem na ocasião nem depois.

Segundo na época dos acontecimentos constou ao sr. Carraquico, o administrador foi assassinado após a chegada dos japoneses à vila, seguindo-se-lhe na mesma sorte a sua esposa, mas por ela o ter insistentemente requerido aos algozes de seu marido, pois queria morrer com ele.

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, parênteses retos, título: LG)

___________


Notas do autor (complementadas pelo editor):

(1) Segundo o dr. Cal Brandão (Funo, Porto, 1946,  p. 115), tratava-se do capitão Brothers, inglês, chefe de um grupo da Inteligência Militar Australiana, que se havia instalado junto da habitação do liurai D. Paulo, de Ossuroa, na área do posto administrativo de Ossú.

(2) Segundo um louvor conferido pelo Governador, tratava-se do chefe do suco de Umuai de Baixo, área do posto de Viqueque, Miguel da Costa Soares. 
 ["Conservou  escondidos em sua casa, com grave risco de vida, os padres Serra e Ferreira, o secretário Mendonça e o aspirante  Eigénio de Oliveira durante dois meses, mostrabdo-se sempre leal e dedicado português. Tendo-lhe sido  confiado dinheiro (180  libras) pelo secretário Mendonça, no fim da guerra entregiu  integralmente a quantia que havia recebido"... Fonte:   antigo Governador Ferreira de Carvalho, "Relatório dos Acontecimentos de Timor", Lisboa,  junho de 1947] 

(3) O aspirante administrativo José Armelim Mendonça prestava serviço na sede da circunscrição de Manatuto. Deve ter-se refugiado com a sua família no interior dessa circunscrição, depois, segundo conta o dr. Cal Brandão, apresentou-se aos australianos na área de Fátu-Berliu, pedindo ajuda económica.

(4) O local era assim designado pelos timorenses por ai existirem uns barracões onde aguardavam transporte para Dili, os géneros que embarcações lá vinham carregar.

(5)  O coronel da aeronáutica Jorge de Castilho, descendente de António Feliciano de Castilho, foi o ilustre capitão encarregado da navegação aérea no hidroavião «Argus» comandado por Sarmento de Beires. Colaborador e íntimo amigo do almirante Gago Coutinho, era uma personagem de excepcional valor, brilhando sempre pela sua cultura e agudez do seu espírito.

(6) Em1927 chegaram a Timor 80 deportados, acusados de pertencerem a uma organização "bombista", a "Legião Vermelha", muitos deles operários e artesãos. O governador Teófilo Duarte (1928-1929) aproveitou, habilmente, as suas competências profissionais e deu-lhes emprego na ilha. Havia ainda um pequeno grupo de presos, oriundos de Macau. Estes deportados eram chamados "socais", para os distinguir dos "políticos", como dr.Carlos Cal-Brandão, envolvidos em ações contra a Ditadura Militar,em 1931. Ao todo deveriam ser quase uma centena, os deportados em Timor. (LG).

(7) A linha telefónica havia sido cortada pelos japoneses em Baucau, após a sua chegada à vila. Porém os de Lautém estavam longe de imaginar o que sucedera.

(8) O sr. António Teixeira, natural da Ilha da Madeira, exercia em Lautém atividades de pesca. Era geralmente conhecido pelo «António Ilhéu».



Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a eufemisticamente chamada zona de proteção,  , imposta aos portugueses pelo exército nipónico (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)

sábado, 24 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25877: Timor: passado e presente (18): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte IX: Parte IX: resumo dos acontecimentos do 2º semestre de 1943


Timor > s/l > s/d (c. 1936-1940) > O régulo ("liurai") de Ainaro e Suro, Dom Aleixo Corte Real, com a esposa de um funcionário português. Foi  O "liurai" Dom Aleixo Corte-Real (1886-1943), régulo de Ainaro e Suro. Foi um dos heróis luso-timorenses  da resistência contra o ocupante japonês na II Guerra Mundial. Morreu heroicamente com grande parte dos seus filhos.

Foto do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagem do domínio público, de acordo com a Wikimedia Commons. Editada (e legendada) por blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)

O Álbum «Colónia Portuguesa de Timor», mais conhecido por «Álbum Fontoura», nome do governador que o mandou elaborar em finais dos anos 30, e coincidindo, então, com a permanência em Timor de uma missão geográfica e geológica, chefiada pelo geógrafo Jorge Castilho, contém 549 fotografias relativas a «grupos étnico-linguísticos e tipos em geral», «trajos, ornamentos, pertences e armas», «vida familiar e social», «formas de trabalho (…), arte indígena e instrumentos musicais» e «acção civilizadora e colonizadora». O exemplar do álbum, recuperado após Abril de 1974 pelo antropólogo, professor António de Almeida, foi depositado no AHS (Arquivo Histório Social, ISC/UL, pela «Família Almeida», através do Doutor Pedro Cardim. (Fonte: AHS/Album Fontoura)




1. Mesmo publicado tardiamente, em 1972, trinta anos depois dos acontecimentos (aliás, numa época em que ainda havia a censura a obras literárias, e os autores faziam autocensura), o livro em apreço, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive, continua a ser um documento importante para o estudo deste dramático período da história do Timor português (mas também da nossa história),

Há outras fontes contemporâneas: o autor cita, por exemplo, os livros do deportado Cal Brandão e do tenente António Liberato, e
m complemento do seu relato em primeira mão (que, de resto,  só peca por tardio; o de Cal Brandão, "Funo", foi publicado logo em 1946; os do António Oliveira Liberato, "O caso Timor" e "Os Japoneses Estiveram erm Timor" logo a seguir, c. 1946-1951).  

Para ajudar a leitura que estamos a fazer, voltamos a  reproduzir neste poste o mapa de Timor em 1940 (da autoria de José dos Santos Carvalho). Em termos administrativos, a atual República Democrática de Timor-Leste encontra-se dividido em 13 distritos (contrariamente ao que se passou na Guiné-Bissau ou em Angola, por exemplo, os topónimos continuam a ser os mesmos): (i) Bobonaro, Liquiçá, Díli, Baucau, Manatuto e Lautém na costa norte;  |  (ii) Cova-Lima, Ainaro, Manufahi e Viqueque, na costa sul;  (iii) Ermera e Aileu, situados no interior montanhoso;  |(iv) e Oecussi-Ambeno, enclave no território indonésio.



Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.)

Parte IX:  resumo dos acontecimentos do 2º semestre de 1943 (pp.  75-79)


(i) O drama dos portugueses (e dos timorenses) durante a ocupação japonesa vai continuar nos últimos meses que faltam para completar o ano de 1943. A pequena comunidade europeia está concentrada
na zona de Liquiçá e Maubara, a oeste de Díli.
Um outro grupo, está em Lahane, nos arredores de Díli 
(e nele se encontra o médico José dos Santos, 
um dos dois que restam: eram quatro, dois suicidaram-se).
Para a Austrália, conseguiram escapar-se umas tantas famílias.


(...) No dia seguinte ao da sua chegada a Lahane  os portugueses vindos de Viqueque foram cumprimentar e informar o Governador do que tinham passado. Foi então, que o aspirante Oliveira reconheceu as crianças há tempos trazidas pelos japoneses, por serem filhas do seu colega José Armelim de Mendonça que prestava serviço na administração da circunscrição de Manatuto.

Tratava-se das meninas Maria Helena e Maria Ida e foi, para o aspirante Oliveira, grande surpresa encontrá-las pois lhe tinha constado que toda a família do aspirante Mendonça, inexplicavelmente excluída da lista das pessoas autorizadas a embarcar para a Austrália, havia perecido em abril, na região de Barique, no mato para onde fugira, acompanhando o seu chefe.

Conta-nos o capitão Liberato, num dos seus livros (1) o sucedido a essa infeliz família.

«Foram patéticas as operações de embarque. Ninguém queria ficar em terra. Os excluídos das listas pediam que os deixassem embarcar. O oficial australiano, superintendente no serviço de embarque, não se demoveu. Nem as súplicas de uma mãe, acompanhadas do choro enternecedor de seis crianças, de idade inferior a dez anos, conseguiram comover o duro coração do australiano. Foi o caso da família do aspirante administrativo Mendonça. Sucumbiram depois. Minados pela fome, pela febre e pela vérmina, morreram em qualquer parte da colónia. Só duas filhas do casal se salvaram» (1) .

Soubemos no fim da guerra que as duas crianças haviam escapado à morte por se terem perdido dos pais, na ocasião de uma precipitada fuga, sendo encontradas por timorenses que as entregaram aos japoneses.

Na tarde do dia 25 de maio estabeleceu-se em Maubara uma força nipónica comandada pelo tenente Sibassáki que, no dia seguinte, impunha ao tenente Liberato a entrega do armamento do destacamento por ele comandado e instalado em Guguleur (1).

Assim foi dissolvida a última força militar de que dispúnhamos, recolhendo o tenente Liberato a Liquiçá, a 29, ficando alojado numa casa do governador, denominada «o palácio», conjuntamente com as famílias do dr. Nepomuceno dos Santos, juiz da comarca
 [pai do futuro cantar Zeca Afonso, na altura ainda a estudar em Coimbra] , do sargento Ribeiro e do funcionário da F.O.A.G.E., Cláudio Alexandre Vaz, e com o aspirante Eugénio de Oliveira, ao todo treze pessoas ocupando seis compartimentos! (1).

Pouco tempo se demorou o tenente Sibassáki na região de Maubara, voltando para Liquiçá, onde reassumiu o comando das forças japonesas acantonadas na localidade (1) .

«Depois de cinco meses de permanência quase ininterrupta na zona e durante os quais fora o árbitro dos nossos destinos, deixou-nos em princípios de Agosto, não sem que primeiro desse largas ao ódio que lhe inspirávamos, descarregando todo o rancor, acumulado na sua alma perversa, sobre dois infelizes concentrados, esbofeteando-os em plena rua, perante os olhares curiosos dos indígenas e a ira recalcada dos europeus, que assistiram ao ultrajante espectáculo. Motivos fúteis serviram de pretexto à agressão» (1) .

A afronta matou o chefe de posto Nascimento. Sofrendo de doença que não perdoa, o enxovalho abreviou-lhe a existência. Não resistiu à vergonha de se ver esbofeteado na presença de timorenses seus súbditos de véspera (1).

Em fins de julho 
[de 1943] ,  os japoneses exigiram a entrega dos pouquíssimos aparelhos recetores de rádio e respetivo material, que ainda possuíamos, os quais, de resto, já não eram, praticamente, utilizados pela dificuldade de carregar as baterias queos alimentariam de corrente eléctrica. Desapareceu, assim, para nós, este último elo que nos ligava ao mundo, ficando completamente isolados.

(ii) Mas o drama dos portugueses e timorenses (e também australianos) (terror, fuzilamentos, isolamento, fome, doença, humilhações,  racismo, etc.) foi também,  de algum modo, contrabalançado  por muitos atos de altruísmo e heroísmo por parte de alguns, que inclusivamente se envolveram 
na resistência armada contra o ocupante . 
Os japoneses eram implacáveis contra a guerrilha luso-timorense, 
procedendo a execuções sumárias.



(...) Também, neste mesmo mês  [de julho de 1943], impuseram termo às arriscadíssimas viagens que os deportados, senhores José Rodrigues da Silva (2) e João dos Santos faziam, desde o estabelecimento da zona de concentração, à zona Leste e ao território do Oecússi, para trazerem para Liquiçá todos os géneros alimentícios que pudessem adquirir. 

Viajando nas frágeis embarcações à vela, denominadas «corcoras» em Timor, não haviam temido insistir na sua abnegada empresa apesar de terem sido recebidos a tiro em alguns pontos e, sobretudo, das suspeitas e vexames dos japoneses, a que se expuseram com a maior temeridade.

Em Lahane, éramos testemunhas da permanente e intensa actividade diplomática do engenheiro Canto, exercida temerariamente perante os japoneses, e da vida febril que levava, sempre com o pensamento de levar a bom termo a tarefa em quepatriótica e abnegadamente estava empenhado.

As suas idas e vindas a Liquiçá eram constantes, deixando-nos em Lahane sempre à espera de lhe ser causado o maior dano pelos japoneses. Ele, nunca desanimava. Cheio de energia e com inteiro desprezo pelo perigo que perfeitamente conhecia, enfrentava sorridente as mais difíceis situações e não se dobrava às veladas ameaças.

A polícia nipónica aparecia frequentemente no hospital, para «o visitar», e com infinda diplomacia os aturava, fingindo não compreender as suas intenções. É inenarrável a paciência com que o engenheiro aguentava as suas exigências ou «pedidos» e lutava contra as suas desconfianças, mostrando-lhes, sempre, que a nossa atitude perante eles, somente poderia ser de completa neutralidade e nunca de «cooperação», palavra que muito usavam e, veladamente, insinuavam deveríamos seguir para não sofrermos as agruras da ocupação.


(iii) Julgando poder manter alguma normalidade, mesmo sob violenta ocupação estrangeira, o Governador lá ia tomando algumas decisões administrativas como, por exemplo, nomear (o que é patético!) o dr. José dos Santos Carvalho, novato em Timor (tinha chegado em finais de 1940)
 para chefiar os serviços de saúde pública... E este, por sua vez, ainda arranjava tempo e pachorra para fazer 
os burocráticos relatórios anuais de saúde que a lei exigia... 
Grande exemplo como português e homem foi
 o do engenheiro e cartógrafo  da Missão Geográfica, 
o açoriano Artur do Canto Resende ( 1897-1945), 
que acabaria de morrer na prisão, em resultado de sevícias, fome e doença. 
Será agraciado, a título póstumo, com o grau de oficial 
da Ordem Militar da Torre e Espada


(...) Em fins de agosto resolveu o engenheiro Canto um dos maiores problemas que, então, era necessário eliminar, para sossego dos portugueses. As atividades da guerrilha do sr. Júlio Madeira na região da Hátu-Lia é Ermera, afligiam, incessantemente, os nipónicos, tendo-lhe causado várias baixas, entre mortos e feridos.

Falhadas algumas tentativas para o apanhar, apresentaram nas suas «visitas» o assunto ao engenheiro, mostrando-lhe as gravíssimas consequências que para a comunidade portuguesa concentrada poderiam advir, de portugueses estarem, ainda, violando a neutralidade em favor dos aliados.

O engenheiro iniciou, então, com conhecimento dos japoneses, tentativas perigosíssimas, para ir ao encontro do sr. Júlio Madeira e convencê-lo a vir para a zona de concentração 
 [de Liquiçá / Maubara].

Depois de com ele falar, obteve dos nipónicos a promessa de que garantiam a vida e integridade física do guerrilheiro se viesse para Lahane, à responsabilidade do engenheiro Canto.

Voltou este ao encontro do sr. Júlio e consigo o trouxe para o hospital, onde ficou a viver connosco, nunca incmodado pelos nipónicos, até ao fim da guerra.

Nesta sua última viagem à região da Ermera, colheu o engenheiro Canto a notícia da morte dos europeus que se tinham juntado aos povos do liurai do Suro, D. Aleixo Corte Real. 

Fortificando-se em posições que aguentaram durante longas semanas e rechassando as tentativas de assalto em que se empregava já o uso de morteiros e artilharia de montanha, havia o grupo de D. Aleixo, numa hora feliz, abatido um dos aviões nipónicos que procurava desalojá-los à metralhadora (3).

As forças japonesas, postas em cheque, redobraram os seus esforços, a fundo, para aniquilar os sitiados, e fizeram quebrar aquela heróica resistência (3) .

Neste último combate, travado em maio, nas faldas do monte Ramelau, morreu o deportado sr. Eduardo Felner Duarte, e foram aprisionados o sargento José Estêvão Alexandrino e os soldados Romualdo Aniceto e José Cachaço.

Levados para a Ermera, foram aí fusilados, no mês de junho, os dois soldados. O sargento Alexandrino, quando já os japoneses se tinham comprometido a entregá-lo ao administrador, engenheiro Canto, foi assassinado com um tiro de pistola,na nuca, por um oficial japonês que o convidara a dar um passeio (1). O seu corpo está enterrado junto à tranqueira da pequena localidade (4).

No dia 2 de agosto, o médico que prestava serviço em Lahane foi nomeado, interinamente, por portaria do Governador, chefe da Repartição Técnica de Saúde e Higiene. Assim, passei eu a ser o responsável pelos Serviços de Saúde que, felizmente, puderam sempre cumprir integralmente a sua missão de assistência médica e de enfermagem, apesar de desprovidos da maior parte dos meios de que, antes da ocupação dispunham.

Devido às dificuldades de comunicações e relativo isolamento entre médico responsável pela zona de Liquiçá e Maubara e o chefe da Repartição em Lahane, resolvi delegar no dr. Francisco Rodrigues vários dos meus poderes, o que lheparticipei por nota datada do dia 21.

Logo após a minha nomeação ponderei a grande vantagem em os dois médicos existentes poderem ministrar conhecimentos de enfermagem aos jovens que nada tinham em que se ocupar e que mostravam grande interesse em aprender.

Deste modo, organizei e propus ao Governador cursos intensivos de enfermagem, elaborando os respectivos programas e modo de funcionamento, contando com um único professor, em cada uma das localidades de Liquiçá e Lahane. Em 4 de Setem-bro, principiaram as respectivas lições que puderam ser mantidas, ininterruptamente, até aos exames que se fizeram no fim do 2.° ano.

No dia 17 de setembro fomos surpreendidos no hospital de Lahane pelo aparecimento duma pequena força japonesa que mandou desocupar a casa mortuária e logo aí se instalou, montando uma guarda com patrulhas, durante a noite, em frente ao hospital.

Em breve soubemos que haviam procedido da mesma maneira quanto ao palácio do Governador, instalando-se na casa da guarda, à sua entrada.

O engenheiro Canto foi, então, avisado no consulado nipónico de que todos os portugueses residentes no hospital, assim como os seus criados e auxiliares, se deveriam, sempre, fazer acompanhar de um salvo-conduto, fornecido pelo consulado, para poderem ser identificados pela guarda ao entrarem nopalácio ou no hospital.

Assim, me foi fornecido um quadrilátero de papel, cabendo na carteira, onde o meu nome, escrito em caracteres sínicos e dirigido verticalmente de cima para baixo, era acompanhado da indicação da minha profissão.

Na primeira visita que, a seguir, fiz ao palácio (5) encontrei montado o serviço de guarda, perante o comandante da qual pronunciei a palavra que sabia ser, em japonês, a correspondente a «governador», isto é, «sòtòkò» e apresentei o meu salvo-conduto.

O comandante, leu, em voz alta «JIÕSÉ DOS SANTOSSÊ CÃRÃVÃRIO» e lançou-me a palavra «doutoro», que eu confirmei com um aceno de cabeça afirmativo.

Um seu gesto permitiu, logo, a minha entrada, e assim se passou das outras vezes em que eu visitei o palácio, com guarda, portando-se sempre esta, para comigo, com correcção que posso sinceramente classificar de delicadeza.  (...)


(Continua): A seguir: Os acontecimentos de 1944

(Seleção, revisão / fixação de texto, reordenação das notas de rodapé, comentários introdutórios, negritos, itálicos: LG)


Mapa de Timor em 1940. 

In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a zona de detenção dos portugueses, imposta pelos japoneses (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)



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Notas do autor (JSC):


(1) Vd. Capitão António de Oliveira Liberato, "Os japoneses Estiveram em Timor". Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

(2)  O deportado José Rodrigues da Silva, que deu provas de excepcional valor, era em Timor conhecido como o senhor «José da Rosa».

(3) Vd. Carlos Cal Brandão, "Funo". Porto, 1946.

(4) Vd. Capitão António Oliveira Liberato, "O Caso de Timor",  Portugália, Lisboa. 

(5) "Além das visitas ao palácio feitas por motivo de doença, que felizmente foram raríssimas, eu sempre aí pude passar o domingo, por convite permanente do governador, almoçando e regressando à tarde ao hospital."

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segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25858: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte X: "Obrigadu, malae" João Crisóstomo!



Torres Vedras > Praia de Santa Rita > 15 de dezembro de 2016 > Eduardo Jorge e João Crisóstomo (Foto de Luís Graça)


Lourinhã > Ribamar > Praia de Porto Dinheiro > Tabanca de Porto Dinheiro > Convívio anual > 18 de agosto de 2017 > Eduardo, Luíse Rui (Foto de Álvaro Carvalho)




Lourinhã > Praia da Areia Branca > 2 de dezembro de 2017 > Rui Chamusco e Gaspar Sobral (Foto de Luís Graça)




Timor Leste > Liquiçá > Manati > Boebau > Escola de São Francisco de Assis (ESFA) > Março de 2018 > Da esquerda para a direita, Rui Chamusco, João Crisóstomo e Gaspar Sobral (foto de Rui Chamusco)



1. O nosso amigo Rui Chamusco partiu para Timor, em 25 de janeiro de 2018, com o Gaspar Sobral, ambos cofundadores e dirigentes da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste), criada em 2015, com sede em Coimbra. 

Foi o nosso saudoso Eduardo Jorge Pinto Ferreira (Lourinhã, Vimeiro, 1952 -  Torres Vedras,  A dos Cunhados, 2019) quem mo apresentou, a mim, Luís Graça,  e me falou dos seus projetos em Timor. 

Eu, por minha vez, apresentei ao Eduardo o João Crisóstomo, afinal seu vizinho  (de A dos Cunhados).  O João conheceu o Rui, pelo Eduardo,  e ficou logo entusiasmado com a sua ligação a Timor. Afinal, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!

De Timor Leste o Rui mandou para Portugal as crónicas dessa viagem (a segunda, de cinco já feitas, de 2016 a 2024), que achámos oportuno e relevante publicar no nosso blogue. Trata-se de uma seleção. Elas ajudam-nos a perceber melhor a idiossincrasia timorense, a história recente e passada deste povo a que nos ligam laços linguísticos, culturais e afetivos.

O Rui é  membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de maio último. Natural da Malpaca, Sabugal, vive na Lourinhã onde durante cerca de 4 décadas foi professor de música no ensino secundário.  Em Timor, o Rui tem-se dedicado de alma e coração aos projetos que a ASTIL tem lá desenvolvido,nas montanhas de Liquiçá.

Em Dili  costuma ficar em Ailok Laran, bairro dos arredores na casa do Eustáquio (alcunha do João Moniz) , irmão (mais novo) do luso-timorense Gaspar Sobral, e que andou, com a irmã mais nova, a mãe e mais duas pessoas amigas da família, durante três anos e meio, refugiado nas montanhas de Liquiçá, logo a seguir à invasão e ocupação do território pelas tropas indonésias (em 7 de dezembro de 1975) (tinha "apenas" 14 anos...). O pai de ambos foi "liurai", "no tempo dos portugueses".

A menina dos seus olhos (dos três, o Rui, o Gaspar e o Eustáquio) é a Escola de São de Francisco de Assis, de Manatti / Boebau, município de Liquiçá. A escola e as suas crianças da montanha que finalmente podem aprender música e português. Há também um programa de apadrinhamento de crianças em idade escolar.


II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)


Parte X -   "Obrigadu, " malae" João Crisóstomo!





Dia 08.05.2018, terça feira  - Relatório da Exposião Lameta para conhecimento do João Crisóstomo, em Nova Iorque



O João Telefonou a pedir-me um pequeno texto/relato sobre as exposições “ Lameta”, para ser utilizado, a seu critério, nos seus encontros made in USA. Aqui vai:



João Crisóstomo, Lourinhã, 
2017 (Foto de Luís Graça)

Caro amigo João Crisóstomo

Venho por este meio apresentar-te um relatório sobre a exposição “LAMETA - O Contributo Desconhecido das Comunidades Luso Americanas para a Independência de Timor Leste”.


Depois de 4 exposições já realizadas: Escola Rui Cinati, Escola Amigos de Jesus, Escola São Francisco de Assis, Universidade Nacional de Timor Leste, verificamos, com satisfação, o interesse crescente do povo timorense em conhecer este precioso contributo vindo de outras partes do mundo, tão distantes mas tão presentes e colaborantes no processo de autodeterminação deste jovem país.

E se, em Boebao, nas montanhas que abrigaram tantas lutas, ex-combatentes olhavam avidamente para as fotos que mostravam entidades relevantes do mundo internacional, em Dili, capital da nação, muitos estudantes e professores ficaram a conhecer factos e acontecimentos da história recente para muitos desconhecidos, através desta preciosa coleção. 

Quero destacar a exposição na UNTL no passado dia 4 de maio, onde a “Lameta” e o Grupo de Crianças de Ailok Laran tiveram tão caloroso acolhimento. Reitor da universidade, Diretora do Departamento de Língua Portuguesa, Embaixador de Portugal, vários professores catedráticos, ilustres convidados, e muitos alunos nos felicitaram pelo evento.

Quanto à coleção “Lameta”,  várias entidades, nomeadamente o senhor Reitor, manifestaram o seu apreço dizendo-nos: 

“Isto é um documento muito importante para a história de Timor Leste. É importante que os nossos jovens, muitos indiferentes ao passado, conheçam através dele a sua recente história.”

Nós também temos esta consciência. E, como fiéis depositários (património da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau), tudo faremos por dá-lo a conhecer através de futuras exposições. Talvez, durante a nossa estadia em Timor, ainda possamos fazer mais uma na sede da Cruz Vermelha, em Liquiçá.

Caro amigo, a ti e a todos os que contribuíram ou contribuem para estas nobres causas o nosso preito e gratidão, sabendo de antemão que Deus vos pagará por tudo isso. “Quem dá aos pobres empresta a Deus", e Ele vos retribuirá 100X mais. E tu, João, sabes bem que há sorrisos que não têm preço. São a melhor moeda de troca.

OBRIGADO! THANK YOU! MERCI BIEN! GRAZIA TANTA! MUCHAS GRACIAS! DANKE SHAN!

O B R I G A D U !



Dia 09.05.2018, quarta feira  - De poeta, músico e louco ....


A história e os comportamentos de Felisberto (irmão Beto,  como é vulgarmente chamado) surpreendem-nos dia a dia, a cada instante. 

O Felisberto, ex-prisioneiro do regime indonésio, é um doente do foro psíquico, que merece a atenção de todos devido ao seu estilo de abordagem. De vez em quando tem atitudes violentas, destruindo o que bem lhe interessa, mas ele considera-se um verdadeiro messias, pelo que quando ele aparece já sabemos que vamos ouvir um grande sermão. Fala muito mas pouco ouve, porque se considera o detentor da verdade. E quando assim é, já sabemos o que acontece. A conversa começa a chatear.

Hoje ao pequeno almoço surgiu de novo o tema do Felisberto. Aproveitando a presença do Lito (Carlito), amigo desde a infância do Eustáquio que mora aqui mesmo ao lado, lembraram alguns dos episódios que passaram com o TiBeto. 

Contam os dois amigos que uma vez o TiBeto, passou-se dos carretos como de vez em quando é habitual, e decidiu enterrar dentro da sua casa, mesmo a pegar com a do Eustáquio, todas as imagens que tinha em seu poder. Fez um buraco bem fundo e para lá atirou tudo o que era santo ou santa, tapando bem a seguir para que ninguém pudesse lá ir salvá-los.

 Mas costuma dizer-se que “ o diabo faz a panela mas esquece-se do testo”. O Lito e o Eustáquio bem combinados, decidiram resgatar as imagens soterradas. Enquanto um vigiava o outro ia descobrindo cada santo e, num saco de arroz à maneira, aí ia depositando e escondendo o tesouro. Depois do trabalho completo, o Lito fugiu com o saco às costas, levando o espólio para lugar seguro, nunca descoberto pelo iconoclausta.

Conta também o Lito que uma vez, chamado pelo pregador Filisberto, foi interpelado pelo mesmo, e lhe disse: “disseram-me que tu lês muito a Bíblia. É verdade?"...  E o Lito lhe respondeu: "Sim, é verdade. Todos os dias eu leio a Bíblia. Abro o livro a meio e coloco-a sobre a minha cabeça para ela entrar dentro.” 

O TiBeto, muito admirado, comentou: “Qualquer dia ainda sabes mais do que eu!”

Pois é. Mal suspeita o Filisberto que a gente se ri com estas coisas. Considerando que “de poeta, músico e louco todos temos um pouco...”, penso que o Tibeto tem mesmo necessidade de ajuda. Ainda que ele não o admita, precisa de tratamento psiquiátrico, coisa que por aqui não será fácil de arranjar..




O  Toqué  (em Timor), ou Tokay Gecko.
Copyright (c) 1998 Richard Ling/GFDL
Fonte: Wikimedia Commons
(com a devida vénia...)
Vd. aqui áudios com as vocalizações
deste pequeno réptil
(Wikipedia, em inglês).
O Toqué, sinal de sorte?!...


Hoje vi o “Toquê” pela primeira vez. Este réptil tão respeitado e apreciado em Timor Leste, que devido ao preço inflacionado (os indonésios chegavam a trocar carros por estes lagartos) esteve em vias de extinção, está agora, graças ao programa de proteção por parte do governo timorense, em franca expansão. 

È rara a noite que não oiçamos ao nosso redor o seu canto vigilante: “Toquê!...Toquê!...” Na casa do Anô, mesmo aqui à nossa beira, há uns três ou quatro. E ninguém pense em espantar ou matar estes prestigiosos bichinhos. A sua presença dá sorte e proteção aos da casa.

Pois hoje o Valente apareceu por aqui em direção a casa, e trazia com ele um Toquê e um bonito galináceo. Claro que examinei ao pormenor este exemplar que, em boa verdade, não é nada feio, mesmo para quem não gosta de répteis. Depois de uns momentos de conversa, ajudado pelo Eustáquio como tradutor, o Valente pediu
 licença para se retirar e voltar a casa. 

Apeteceu-me gritar bem alto este desejo profundo que nos invade em relação à família do Valente: 

“ Que o Toquê vos proteja e que Deus, com as nossas ajudas, cuide de vós. Oxalá a vida vos sorria, tal como vós sorris para nós. Que o presente e o futuro possam ser melhores para todos vós”...


Dia 12.05.2018, sábado - Eleições: Ninguém gosta de perder, nem que seja jogar a feijões.


Dia de eleições antecipadas aqui em Timor Leste. A campanha eleitoral decorreu com dignidade, apenas com alguns pequenos incidentes e escaramuças, como em todo lado. 

Com o apelo ao voto vindo de todos os quadrantes religiosos, sociais e políticos adivinha-se uma participação massiva. Vamos a ver como ficará composto o puzle da Assembleia Nacional. Mas bem me parece que quem vencer vai ter que procurar alianças, pois não acredito que, seja quem for, tenha maioria absoluta. Que vença o melhor e que governe bem, é o anseio genuíno desta gente. E que, por falta de governo, Timor Leste não seja privado de programas e ações de desenvolvimento e apoios que muita gente, sobretudo os mais necessitados, estão à espera.

E, já agora, que os futuros governantes, para além das suas competências, tenham aprendido com outros governos que se criticam, cá dentro ou lá fora, a não cometerem os mesmos erros de governação. Este povo bem merece. Todos nós assim desejamos. Que os vencedores sejam suficientemente humildes para pedirem a colaboração dos outros. Que os que perderam sejam suficientemente solidários para participarem e ajudarem na governação. Nem que seja uma “geringonça à portuguesa”.



Dia 13.052018, domingo - Engano!...


Afinal enganei-me. Esta eleições tiveram uma participação massiva, a maior de sempre, e deram a maioria absoluta ao AMP (Aliança de Mudança para o Progresso) liderada pelos antigos presidentes Xanana Gusmão, Taur Mtan Ruak, e Naimori Buckar, presidente do novo partido Kunto.

O Gaspar, homem muito entendido nestas andanças, diz que “até que enfim alguém tem a coragem de dizer as verdades que têm estado ocultas".

Quanto a mim que nada tenho a ver com as eleições em Timor (pelo menos por enquanto), mais uma vez me enganei nas previsões, pelo que peço imensa desculpa. Vai haver governo sem geringonça nenhuma, cumprindo a vontade do voto popular que é quem mais ordena. Governe quem governar, que façam um bom trabalho em prol do desenvolvimento e do bem estar deste povo.




Dia 14.05.2018, segunda feira  - “ Que grande galo!...”


É um galo do caraças!... Logo cedinho, bate três vezes as asas, enche bem de ar o peito...e aí vai: Có-có-ró-có-có!.... Desafia os outros todos da redondeza, que em resposta cantam também alternadamente. Mas a ele ninguém o bate! “O nosso galo é bom cantor!”

Este galináceo veio das altas montanhas de Liquiçá, trazido pelo Abílio, o construtor da nossa escola em Boebau. Creio que não veio para aqui para ser cantor, mas sim para ser imolado e comido. E, se não fora eu, com certeza que já não estaria na terra dos vivos. 

Quando vim a saber que estava pronto para ser sacrificado, pedi com fervor para não ser morto, pelo menos enquanto eu aqui estiver. Fui atendido e por isso cá temos o nosso galo cada manhã, despertando-nos e dando graças pelo dia que aí vem. Não falha. E eu até já acho que ele faz isso para me agradecer a vida.

E no meio de tanta cantoria, há um descontrole inexplicável. Há galos que já cantam a qualquer hora do dia, não sei se enganados por alguém. Até o cantar dos galos já não é o que era. Talvez a luz artificial os confunda e já não saibam onde acaba a noite e começa o dia. Mas o nosso galo continua fiel. Que grande galo!...


Dia 15.052018, terça feira  - “Tenho medo...”


É a primeira vez que ouço esta expressão ao Eustáquio. E por isso quis saber mais sobre o seu temor. Então é assim. O Gaspar, muito atarefado com as lides de registos do terreno da Escola de São Francisco em Boebau e com o registo Da ASTILMB e da escola que lhe pertence, tem vindo a insistir que precisa urgentemente de ir a Liquiçá e a Boebau para serem assinados os documentos necessários para a legalização. 

Por várias razões, a mais plausível é ter estado a decorrer a campanha eleitoral, esta ida ainda não foi concretizada. Ontem, já passados dois dias das eleições, pensava o Gaspar poder viajar até às montanhas, e de novo insistia com o generoso irmão, porque o tempo aperta, porque assim, porque assado. Foi quando o irmão Eustáquio desabafou e disse: 

“Tenho medo!...”

“Tens medo de quê?”, perguntou o Gaspar.

E então veio a explicação mais compreensível do mundo, que nos deixou sem palavras. Desde há uns tempos que grassa por Timor e sobretudo nas cidades e arredores pequenos grupos aqui chamados Rama Ambon  (também conhecidos pelos grupos da fisga) que, ao entardecer ou já de noite, se escondem onde podem e atacam os transeuntes que lhes interessam,  lançando um tipo de setas com intenção de ferir e de matar. 

Já não são os primeiros que têm de ser assistidos no Hospital Guido Valadares, em Dli. Conta-se até que ainda há pouco, um jovem atingido na zona do coração, ao lhe retirarem a seta do crime, se esvaziou em sangue acabando por morrer. O Eustáquio tem medo que, dois dias depois do ato eleitoral, haja pelos caminhos que têm de percorrer alguns grupos destes que se queiram vingar dos resultados obtidos.

Claro que não houve resposta. Simplesmente silêncio e aceitação. A viagem será feita quando houver condições de confiança e segurança.

Mas hoje, dia 15 pelas 12 horas, dei-me conta do movimento de preparação das bagagens e do “motor”. Estava decidido que iriam partir até Liquiçá, seguindo logo que possível para Boebau. Boa viagem amigos, e que Deus vos acompanhe...

Nota: Agora percebo porque é que nunca me deixam sair sozinho ao escurecer ou durante a noite. Tenho realmente verdadeiros amigos.


Dia 17.05.2018, quinta feira - A miscigenação


Quem andar à procura de um rosto verdadeiramente timorense vai ter bastantes dificuldades em encontrá-lo. Aqui como em qualquer outra parte do mundo, as influências da globalização fazem-se sentir também na caracterização sobretudo das faces. 

A miscigenação é um fenómeno comum. E é com facilidade que nos cruzamos todos os dias, pelo menos nas cidades, com os rostos mais diversos: brancos, negros, mestiços; portugueses, chineses, australianos, angolanos, cubanos, indonésios, japoneses, etc... 

Neste momento Timor é uma amálgama de raças e de rostos com a maior diversidade possível. A tendência para o rosto asiático, devidamente colorida em café chocolate, é a mais notada. Mas nas montanhas, onde as influências são menos notadas, ainda há rostos que indiciam o verdadeiro retrato de um timorense do leste, possível de encontrar também nos timorenses do oeste, na parte ocidental da ilha.

Seja como for, não consigo imaginar o verdadeiro rosto timorense sem o sorriso aberto, carregado de simpatia, respeito e hospitalidade. Tudo o mais vem de outros lados, doutros países, de outros continentes com virtudes e defeitos que, em policromia e sincronia, fazem deste país uma terra encantadora e com um futuro promissor. Basta que nos aceitemos e respeitemos uns aos outros. Não sou defensor da “raça pura”, mas aprecio o que é genuíno.


Ausência e Presença


Ainda sou do tempo (década de 50) em que partir para um país longínquo como a Índia, Timor, Argentina, Brasil, etc) era considerado como o último adeus. Lembro-me da partida e da despedida da família do Tio Augusto para a Argentina nos começos dos anos cinquenta. Chorava-se de um lado e do outro porque se pensava que nunca mais nos iríamos ver. Ausência para sempre!...

Sessenta a setenta anos passados, eis que tudo se altera. As viagens aéreas, as facilidades de deslocação, os novos meios de comunicação, os facebooks, os emails, os whatsapps, os telemóveis, e tudo o mais criaram pontes de união, contactos, presenças constantes nas nossas vidas. 

Hoje em dia as distâncias não metem medo a ninguém. De manhã em Singapura, à noite em Lisboa. O que é agora ausência, torna-se mais tarde presença. Ou então podemos dizer que não há ausência nem presença, porque embora opostas, ambas estão sempre presentes. São imanentes.

E começo a pensar em coisas do outro mundo, da outra vida. Será que já estamos antecipando a experiência? Será que quando deixarmos este corpo que nos suporta a nossa presença é uma presença ausente, mas que nem por isso será menos importante na vivência da nossa outra vida? Não me incomoda nada se assim for. E então se essa vida futura for o cumprimento da promessa e o ponto de chegada, a plenitude da vida cristã, melhor ainda. Assim o creio e espero.


(Continua)

(Seleção, alguns dos substítulos, revisão / fixação de texto, negritos: LG)
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