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quarta-feira, 19 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25659: Historiografia da presença portuguesa em África (428): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (7) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
Deu-me grande satisfação reler esta obra, a primeira e única História da Guiné, isto a despeito de algumas sínteses que lamentavelmente não têm merecido a devida ênfase, como as de Alberto Banha de Andrade e José da Silva Horta e Eduardo Costa Dias, por exemplo, isto para já não falar no trabalho de Teixeira da Mota, no âmbito de uma monografia de 1954, que continua a ser um trabalho de referência. João Barreto era um médico tropicalista, com o posto de capitão, trabalhava nos serviços de saúde em Bolama, ao fim de 12 anos de Guiné veio para Lisboa, aqui escreve a sua História da Guiné. Revela dedicação e esforço documental. É evidente que aos olhos de hoje são facilmente detetáveis as lacunas e imprecisões, ainda não havia no seu tempo o vasto reportório das literaturas de viagens, nomeadamente dos séculos XVI e XVII, veio depois ao de cima a documentação constante no Arquivo Histórico Ultramarino sobre o período de Cacheu, mas vê-se que trabalhou afincadamente para nos dar uma imagem diacrónica da nossa presença, nunca escondendo que foi ténue até ao século XIX, que a metrópole para ali mandava o rebotalho social para as praças e presídios, que demorou tempo demais a adaptar a economia findo o comércio negreiro. E mais do que a título de curiosidade, vamos agora conhecer a sua obra de médico em Bolama.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (7)

Mário Beja Santos

Data de 1938 a História da Guiné, 1418-1918, com prefácio do Coronel Leite Magalhães, antigo governador da Guiné. Barreto foi médico do quadro e durante 12 anos fez serviço na Guiné, fizeram dele cidadão honorário bolamense. Médico, com interesses na Antropologia e obras publicadas sobre doenças tropicais, como adiante se falará.

Já estamos sob o regime republicano, é nomeado o Segundo-Tenente Carlos Almeida Pereira, a Guiné mostra entusiasmo pelo novo regime, irá criar-se a Liga Guineense destinada a promover ideais republicanos. Dar-se-ão alterações, decorrentes do que se modificara nos Códigos Civil e Penal, nas relações da Igreja com o Estado, na reforma ortográfica, até no descanso semanal. Ocorre em maio de 1911 uma epidemia de febre amarela, será considerada extinta no mês de julho seguinte. Carlos Pereira revela-se muito ativo, serão derrubadas as muralhas de Bissau, é feito um contrato com uma empresa britânica para a construção da ponte-cais de Bissau em cimento armado, etc.

Mas as sublevações não dão descanso às autoridades de Bolama. Em 1913, Teixeira Pinto inicia campanhas não só na ilha de Bissau, como em Mansoa, Bissorã e Oio. A última fase acontecerá em 1915, uma coluna de operações contra os Papéis de Bissau, acontecimento que dará imensa controvérsia, serão muitas as queixas de gente lesada com os atos de rapina e destruições perpetradas pelas tropas irregulares de Abdul Indjai, a Liga Guineense critica abertamente Teixeira Pinto, será extinta.

O primeiro conflito mundial abala a economia da colónia, inicialmente, pelo adiante será superada a depressão com o aumento de receitas públicas. Uma nota curiosa deixada na obra de Barreto é esta informação: “Convém acentuar que as operações militares dirigidas por Teixeira Pinto não trouxeram grandes encargos ao tesouro, visto que o emprego dos auxiliares indígenas restringiu consideravelmente as despesas, e estas foram pagas em parte pelos espojos tomados às tribos rebeldes, ao contrário do que aconteceu com as outras campanhas anteriores e posteriores.” E, mais adiante, Barreto observa que o fim da Grande Guerra coincidiu com o fim da ocupação completa de todos os territórios da Guiné, estavam criadas as condições para o seu completo desenvolvimento político, social e económico.

Um ponto curioso desta obra é o capítulo exclusivamente dedicado à atividade militar de João Teixeira Pinto na Guiné. Importa reproduzir o que ele escreve:
“A obra de ocupação completa do território realizada por Teixeira Pinto compreende quatro campanhas: a primeira, de abril a agosto de 1913, contra o gentio de Oio; a segunda, de janeiro a abril de 1914, contra os Papéis e Manjacos de Cacheu; a terceira, de maio a julho, contra os Balantas de Mansoa e finalmente a última, contra os Papéis de Bissau, de maio a agosto de 1915.” Tece comentários acerca do estratagema que ele adotou para conhecer a região de Oio e como se socorreu dos auxiliares de Abdul Indjai e da colaboração de Fulas e Mandingas, caso do régulo Mamadu Sissé, dá-nos conta da pacificação de Cacheu e Costa de Baixo, é minucioso no detalhe, incluindo no relato sobre a derrota dos Papéis de Bissau.

Os três últimos capítulos da obra de Barreto são dedicados à administração da Justiça, às missões religiosas e às finanças. Faz o historial da administração da Justiça a partir do século XV, no final de 1876 começa propriamente a autonomia dos serviços judiciais da Guiné, haverá magistrados em Bolama e em Bissau. Em fevereiro de 1930, o território da Guiné foi desdobrado em duas comarcas, diploma não executado; e em 1933, a sede da comarca da Guiné foi transferida de Bolama para Bissau, “baseado no parecer do Conselho Superior Judiciário, dada a circunstância da quase totalidade do movimento judiciário pertencer à cidade de Bissau e à área da sua influência.”

O capítulo sobre as missões religiosas terá dado seguramente trabalho a João Barreto, ele faz a cronologia dos bispos da Ribeira Grande, da atividade da Companhia de Jesus, como se procurou recuperar o espírito missionário depois da Restauração; os primeiros anos da República foram desfavoráveis ao espírito missionário, mas a partir de 1919 o Governo autorizou a fundação de um estabelecimento católico para a formação de pessoal das missões religiosas. A situação só se inverterá a partir da Ditadura Nacional, a ação dita civilizadora das missões será uma realidade.

Depois de escalpelizar as finanças e a fiscalidade da colónia, entende João Barreto pôr uma nota final onde diz que o presente trabalho é o primeiro livro que pretende abranger todo o passado histórico da província da Guiné, “a nossa terceira colónia em extensão territorial e recursos naturais”. Despede-se do leitor resumindo a história política da Guiné onde ele considera haver cinco períodos. No primeiro, abrangendo cerca de dois séculos, vai de 1446 até à Restauração, 1640 – não houve ocupação territorial nem representantes da Autoridade Real, os Rios da Guiné foram considerados como simples anexo e prolongamento da capitania e Governo de Cabo Verde. O período seguinte compreende também perto de dois séculos que decorrem desde a fundação da capitania de Cacheu até 1834, ano em que a administração da colónia foi centralizada em Bissau. O terceiro período vai de 1834 até à constituição do Governo autónoma da Guiné, em 1879. Começa este período com a ação desenvolvida por Honório Pereira Barreto para a ocupação pacífica do território, e caracteriza-se sobretudo pelas grandes tensões com os franceses no Casamansa e com os ingleses em Bolama. O quarto período decorre de 1879 até 1918, é a fase da ocupação militar, sustenta-se uma luta quase permanente em todos os pontos do território, e quase sempre com falta de recursos. E, por último, a época contemporânea já com a pacificação completa do território.

Finda a apreciação da História da Guiné de João Barreto, vamos agora dedicar atenção à sua obra científica, que incide fundamentalmente nas doenças tropicais e no seu contributo para a antropologia.

Rua de São José, na região da Alfândega, em Bissau, na década de 1890, fotografia da época
Imagem da fortaleza de Cacheu, 2005
Monumento aos heróis da pacificação de Canhabaque, imagem retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, fotografia de Francisco Nogueira, Edições Tinta-de-China, 2016, com a devida vénia
Primeiras instalações do Banco Nacional Ultramarino em Bissau
Ações militares-navais de pacificação realizadas pela Marinha na Guiné
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Nota do editor

Último post da série de 12 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25635: Historiografia da presença portuguesa em África (427): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (6) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25635: Historiografia da presença portuguesa em África (427): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (6) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
Interrogo-me amiudadas vezes quais as razões de fundo que levam a que a investigação histórica não tenha produzido, nas últimas décadas, uma História da Guiné, suscetível de suprir as lacunas do trabalho de João Barreto, face a revelações decorrentes de investigações em arquivos nacionais, pelo menos. Sente-se à vista desarmada que a Guiné Portuguesa requer uma investigação multinacional, logo o contexto da Senegâmbia e os impérios e reinos que se depararam ao comércio exercido pelos portugueses entre o Cabo Verde e a Serra Leoa, têm sido sobretudo os historiadores senegaleses quem têm produzido mais investigação, com a qual não convivemos; há, por outro lado, uma história comum entre as ilhas de Cabo Verde e estes pontos da Costa Ocidental Africana não só por causa do tráfico humano mas também pela presença comercial cabo-verdiana e as suas migrações para o que é hoje o Senegal e a sua inserção na administração pública portuguesa, do século XIX até à independência. Continuamos confinados à documentação existente no Arquivo Histórico Ultramarino e em bibliotecas de prestígio, como a da Sociedade de Geografia de Lisboa. Parece-me que chegou o tempo de os lugares universitários que se dedicam a estudos africanos encontrarem um entendimento e a formação de equipas a nível nacional e que daí saiam propostas para investigar em articulação com, pelo menos, Cabo Verde, Senegal e Guiné-Conacri. É neste amplo espaço que ganhará, estou seguro, uma maior clarificação sobre a presença portuguesa na região desde meados do século XV até à independência da Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (6)

Mário Beja Santos

Data de 1938 a História da Guiné, 1418-1918, com prefácio do Coronel Leite Magalhães, antigo Governador da Guiné. Barreto foi médico do quadro e durante 12 anos fez serviço na Guiné, fizeram dele cidadão honorário bolamense. Médico, com interesses na Antropologia e obras publicadas sobre doenças tropicais, como adiante se falará.

Caminha-se para o final do século XIX, depois do desastre de Bolor determinou-se a criação do Governo autónomo da Guiné, naturalmente acompanhada de autonomia administrativa própria de uma província independente, com efetivos militares autónomos e com uma orgânica de serviços públicos. O primeiro governador, Agostinho Coelho, assina tratados relativos à região do Forreá, mas o clima de lutas interétnicas é de enorme gravidade. O aspeto curioso é que as relações entre os portugueses e os Biafadas, até à segunda metade do século XIX, se tinham pautado por tranquilidade e havia bom acolhimento feito a comerciantes portugueses e estrangeiros. A chegada em força dos Fulas trouxe permanentes confrontos, cresce o número de chefes revoltados. As pontas e os lugares de comércio ao longo do Rio Grande de Buba, que eram em grande número, foram desaparecendo, a presença da Força Armada portuguesa era um mero paliativo. Em 1880, iniciou-se a revolta dos Fulas-Pretos contra os senhores do Forreá, estes Fulas-Pretos pediram auxílio a senhores que viviam na Guiné Francesa e também nas margens do rio Geba. Só em 1882, dadas as hostilidades entre os indígenas e Buba é que foi organizada uma coluna que veio a intimidar o régulo Bacar Guidali, este pediu para fazer as pazes, paz de pouca dura; entretanto, começavam as desavenças entre os chefes locais, como escreve Barreto:
“Mamadu Paté, de Bolola, querendo ser régulo do Forreá, declarou guerra a Guidali, com auxílio do chefe Iaiá, de Kadé. Bacar Guidali fugiu para a praça de Buba, diz-se que faleceu envenenado. A defesa do território do falecido régulo foi confiada a seu irmão, Mamadu Paté Coiada. Não podendo, porém, resistir à superioridade numérica dos seus inimigos, Coiada fugiu para o Cantanhez e dali para Bolama, irá estabelecer-se no Gabu. Com a derrota da família Guidali, o régulo Iaiá reforçou a sua soberania no Forreá. No final do ano de 1886, foi assinado em Buba um tratado entre Iaiá, rei do Forreá, Labé, Gabu e Kadé e o nosso governo. Paz temporária.”

O segundo governador foi Pedro Inácio de Gouveia, é um período de sucessivas operações militares: em Jabadá, Nhacra, tabancas da zona de Ziguinchor, entre outras. Criou-se uma alfândega de direção única em Bolama, com delegações em Bissau e Cacheu. O Boletim Oficial passara a ser uma publicação regular a partir de 1880. O terceiro governador, Francisco de Paula Barbosa, foi confrontado com sublevações na região de Geba, com a revolta dos Fulas-Pretos, houve que proceder a campanhas em Geba e Bissau, a hostilidade dos Papéis só terminou em 1892, também tranquilidade de pouca dura.

Barreto descreve a nova organização administrativa da colónia, a nova revolta dos Papéis, em 1894, as primeiras tentativas para a cobrança do imposto de palhota, o regresso da agitação no Forreá, as guerras de Oio e Caió, a chegada de um governador que deixou marca, Júdice Biker, em 1900. E o autor lembra como não foi fácil a delimitação da fronteira luso-francesa, que se prolongou até 1905, e que ficou definitivamente regularizada já nos anos 1930. Outro nome que deixará marca na governação é Oliveira Muzanty, chegado a Bolama em 1906, tempo em que a província foi dividida em um concelho e seis residências: o concelho de Bolama compreendia, além desta ilha, todo o arquipélago de Bijagós e os territórios de Quínara e Cubisseque; as residências eram Cacheu, Farim, Geba, Cacine, Buba e Bissau. Muzanty é confrontado com a sublevação do régulo Biafada do Cuor, com apoio de outros régulos, procurava-se impedir a navegação do Geba e cortar as relações comerciais com Bissau. Esta sublevação levará à constituição de uma força militar como nunca se vira na Guiné, vieram tropas da metrópole e de Moçambique, depois de uma série de combates o régulo Infali Soncó fugiu e o regulado foi oferecido a um colaborador, Abdul Indjai.

Mas houve mais operações militares, Barreto elenca os locais e as forças que repuseram a ordem. Ainda no tempo da monarquia, em 1909, chega novo governador, o Capitão Francelino Pimentel, o seu governo foi pouco acidentado, passou maior parte do tempo em Lisboa, entretanto Portugal mudou de regime. Curiosamente, Francelino Pimentel, nomeado durante a monarquia, logo que teve conhecimento da implantação do regime republicano em Portugal mandou publicar no Boletim Oficial a seguinte proclamação: “Cidadãos! Está proclamada a República em Portugal e seus domínios e vai ser arvorada neste momento solene a Bandeira Nacional, símbolo da Pátria e da conquista das Liberdades Públicas. Saudemos com entusiasmo tão feliz acontecimento e unamo-nos todos pela sua prosperidade. Viva a Pátria! Viva a República! Viva a Liberdade!” Não obstante a estes protestos de fidelidade, o Governo provisório da República nomeou novo governador, Carlos de Almeida Pereira. Será notória a atividade desenvolvida por este, a legislação colonial iria sofrer profundas alterações, isto a despeito de um acontecimento imprevisto ter flagelado a colónia em maio de 1911, uma epidemia de febre amarela. A maior parte dos funcionários públicos abandonou Bolama, só ficaram alguns corajosos e o governador da colónia. A doença foi considerada extinta no mês de julho.

Dá-se a reorganização dos serviços, que Barreto enuncia meticulosamente: nas Obras Públicas, na Agrimensura, nos Correios e Telégrafos, na Instrução Pública, na Agricultura e Pecuária. Época em que se publicou o Regulamente de Circunscrições Civis. A província foi dividida em dois concelhos (Bolama e Bissau) e sete circunscrições administrativas com sedes em Bafatá, Cacheu, Farim, Buba, Cacine e também em Bolama e Bissau.

Mas outros acontecimentos também foram dignos de nota: a demolição da muralha que cercava a vila de Bissau; o contrato com uma empresa britânica para a construção da ponte-cais de Bissau em cimento armado, como escreve Barreto no seu livro editado em 1938, “ainda hoje representa na Guiné a mais importante obra de engenharia e apetrechamento económico”. É nesta governação que o Capitão João Teixeira Pinto iniciou o seu plano de pacificação da colónia, o governador e chefe de Estado-Maior divergiam sobre a escolha de processos para alcançar o objetivo que ambos procuravam.

E chegamos ao derradeiro capítulo desta obra, em finais de dezembro de 1913 era nomeado governador Andrade Sequeira e seguidamente substituído pelo coronel de artilharia Josué de Oliveira Duque, é tempo de conflitos, a Primeira Guerra Mundial teve os seus impactos na Guiné, dão-se as campanhas de Teixeira Pinto, Barreto desenvolve um amplo capítulo sobre as missões religiosas e os serviços públicos, assim chegaremos a 1918, termo da publicação, será esta a matéria do último texto que dedicaremos à primeira e única História da Guiné que foi há poucos anos alvo de uma edição fac-similada, por vontade de um neto de João Barreto, Aires Barreto, com o apoio do historiador Valentino Viegas.

Trata-se da única fotografia que se conhece do médico João Barreto, imagem que me foi amavelmente concedida pelo historiador Valentino Viegas aquando do lançamento o opúsculo que lhe dedicou o seu neto Aires Barreto

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 5 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25606: Historiografia da presença portuguesa em África (426): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (5) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25606: Historiografia da presença portuguesa em África (426): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Dezembro de 2023:

Queridos amigos,
Depois de nos dar a sequência dos acontecimentos por si considerados mais relevantes do que se passou na Guiné no século XVIII e em boa parte no século XIX, e de nos ter facultado a lista dos governadores de Cabo Verde e da Guiné até 1879, João Barreto espraia-se pelo papel desempenhado pela região no tráfico de escravos, tem a vincada preocupação de mostrar como este mercado negreiro era antiquíssimo e tolerado em vários continentes, a que a Europa não escapava, e dá-nos conta que tal comércio poucos benefícios mercantis trouxe à economia local e a Portugal, aponta o dedo à principal potência traficcante, a Inglaterra, e ao comércio praticado em larga escala por Espanha, França e Holanda, e apresenta os dados estatisticos conhecidos. Como aqui já se abordou no blogue, a historiografia referente ao tráfico negreiro no império português tem evoluído muito, é credor de novos olhares e apreciações modificadas. E assim entramos no Governo autónomo da Guiné, João Barreto revela-se incansável a falar das questões do Forreá e das sublevações que irão ultrapassar o século XIX, recordará que Bissau estará permanentemente causticada por ataques dos Papéis até 1915.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (5)

Mário Beja Santos

Data de 1938 a "História da Guiné, 1418-1918", com prefácio do Coronel Leite Magalhães, antigo Governador da Guiné. Barreto foi médico do quadro e durante 12 anos fez serviço na Guiné, fizeram dele cidadão honorário bolamense. Médico, com interesses na Antropologia e obras publicadas sobre doenças tropicais, como adiante se falará.

Concluída a sua apreciação sobre os acontecimentos dominantes do século XVIII, e após nos ter dado a relação dos governadores de Cabo Verde e Guiné até à constituição do Governo autónomo da Guiné, João Barreto aborda o tráfico de escravos na região. Começa por observar que este tráfico, bem como o fenómeno da escravatura, existiu desde os tempos mais remotos da humanidade, os povos islâmicos intensificaram este tráfico, sobretudo na Costa Oriental de África; no Norte de África, os escravos necessários para os trabalhos dos conquistadores árabes provinham uma parte dos povos subjugados e presos de guerra e, outra parte, dos indígenas de raça negra que as caravanas iam comprar na Senegâmbia; os escravos pretos também eram vendidos a comerciante europeus, principalmente italianos, Veneza era um desses expoentes mercantis. O autor observa que as possessões portuguesas de África quase nenhum benefício tiveram deste comércio e dá os seguintes esclarecimentos: “Portugal não produzia os artigos de que os negreiros se utilizavam nas suas transações com os povos africanos: panos de algodão, bugigangas, contas, espelhos, ferro, etc. Era a Inglaterra que tinha por assim dizer o monopólio do fabrico destes artigos, eram os ingleses que maior proveito tiravam do comércio dos negros, sem falar do tráfico que faziam diretamente por conta própria.”

Abordando os escravos saídos da Guiné, e usando os dados do cronista Zurara, João Barreto conclui que nos primeiros oito anos (1441 e 1448) a média dos cativos importados em Portugal não foi além de 116 indivíduos por ano. “Escasseiam elementos de informação sobre as navegações à Costa da Guiné depois do ano de 1448. Sabemos que os indígenas do Senegal se mostravam refratários em entrar em relações com os nossos navegadores e só depois das viagens de Cadamosto e Diogo Gomes, em 1456, é que se resolveram a comerciar com os brancos. A partir de 1461, a exploração da região compreendida entre o Senegal e a Serra Leoa foi entregue aos moradores de Santiago. O número e o valor atribuído aos escravos importados deveriam ser registados no livro do almoxarifado da Ribeira Grande. Estes livros, porém, foram destruídos, escapando apenas os apontamentos relativos aos anos de 1513, 1514 e 1515. Foram enviados para Portugal e Espanha e uma boa parte ficou ao serviço dos cabo-verdianos e uma outra parte foi vendida aos mercadores espanhóis. Pode dizer-se que a escravatura moderna com todas as suas crueldades começou com o século XVI, quando os espanhóis resolveram colonizar as Antilhas, que Colombo acabara de descobrir.”

E, mais adiante, “Podemos concluir que durante o século XVI a média de escravos resgatados na zona da Guiné não foi além de 1500 por ano. Durante a dominação castelhana, o tráfico de escravos tomou considerável incremento. D. Francisco de Moura, antigo Governador de Cabo Verde, calculava em 1622 que só em barcos espanhóis contrabandistas seriam transportados cerca de 3 mil negros na roda do ano. Portugal era dos países que menos lucrava com todo esse tráfico feito de contrabando. A economia e as finanças de Cabo Verde chegaram ao nível mais baixo precisamente numa época que a escravatura atingiu o seu apogeu. Na segunda metade do século XVII, os ingleses encontravam-se instalados nos rios de Gâmbia e Serra Leoa. Nesta última colónia aproveitaram-se das guerras tribais para adquirir serviçais por preços ridículos, visto que os vencidos preferiam entregar-se gratuitamente aos negreiros a serem devorados pelos vencedores antropófagos. Por seu lado, os holandeses, tendo-se apoderados da ilha de Gorêa desde 1617, ficaram com o exclusivo do tráfico da região continental vizinha. E os franceses estabeleciam desde 1635 a Companhia da África Ocidental que, sob diversos nomes e direções, passou a exercer o comércio de escravos em notável escala desde o Cabo Branco até à Serra Leoa. Esta Companhia não só fazia da escravatura o objeto principal da sua atividade, mas até tinha um contrato com o seu Governo para o fornecimento de indígenas às Antilhas francesas e para as tripulações dos navios.”

Neste contexto, Barreto suaviza o papel dos portugueses no tráfico, dá como demonstrado como muito antes da Restauração de 1640 este comércio era liderado por estrangeiros e a atividade nos nossos portos era tão reduzida que os direitos aduaneiros não chegavam para cobrir as modestas despesas da Capitania de Cacheu. Ainda houve um contrato feito pela Nova Espanha com a Companhia de Cacheu e Cabo Verde para o fornecimento de 5 mil serviçais por ano, isto na última década do século XVII, mas a Companhia não pôde satisfazer completamente o serviço, tais e tantas as dificuldades levantadas pelas autoridades eclesiásticas. Nos princípios do século XVIII, segundo a estimativa do gerente da Companhia Francesa do Senegal, não se podiam exportar de Bissau mais de 400 escravos por ano.

Barreto enfatiza o papel primordial que Inglaterra teve neste mercado negreiro, como se processou depois a abolição do tráfico em Portugal, e remata dizendo “Se a escravatura foi um mal, condenável sobretudo nos seus abusos, Portugal teve nele um quinhão pequeno em relação a outros povos coloniais, seja pelo número de cativos de que se utilizou, seja pelos benefícios materiais que auferiu, seja pela forma benévola e paternal com que tratou os seus escravos.” Como aqui já se fez referência, a historiografia portuguesa sobre a escravatura tem tido enormes avanços. Basta lembrar o historiador Arlindo Caldeira e o seu livro "Escravos e Traficantes no Império Português", obra de referência.

E assim chegamos ao Governo autónomo da Guiné, Carta de Lei de 18 de março de 1879, assinam Fontes Pereira de Melo, Serpa Pimentel e Tomaz Ribeiro, determinando: que o território da Guiné Portuguesa formasse uma província independente de qualquer outra; que o seu governo tivesse sede na ilha de Bolama; e estipula vencimentos. Era o Governo autorizado a organizar um batalhão de artilharia e a fazer a aquisição de alguns barcos a vapor, e devia providenciar no sentido de estabelecer comunicações diretas entre a metrópole a nova província ultramarina. Criava-se a organização dos serviços públicos, o governador tinha como auxiliares o Conselho do Governo, a Junta Geral da Província, o Conselho da Província e a Junta de Fazenda Pública. A província da Guiné foi dividida em quatro concelhos: Bolama, Bissau, Cacheu e Buba; foi transferido de Cabo Verde para a Guiné o Batalhão de Caçadores n.º1 que pouco tempo depois provocava um movimento de insubordinação contra o Governador Agostinho Coelho.

E, seguidamente, Barreto centra a sua atenção num sem-número de operações militares e dá-nos conta dos graves acontecimentos do regulado do Forreá.


Trata-se da única fotografia que se conhece do médico João Barreto, imagem que me foi amavelmente concedida pelo historiador Valentino Viegas aquando do lançamento o opúsculo que lhe dedicou o seu neto Aires Barreto
Edifício do Museu da Escravatura e do Tráfico Negreiro em Cacheu, na Guiné-Bissau
Brasão de Fernão Gomes. Livro da Nobreza e Perfeiçam das Armas, de António Godinho, c. de 1516-1528
Comércio transatlântico de escravos (BBC)
Planta da Praça de S. José de Bissau em 1796
Imagem da fortaleza de Cacheu, 2005
Capa do livro de Arlindo Caldeira, Esfera dos Livros, 2013

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 29 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25580: Historiografia da presença portuguesa em África (425): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (4) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25580: Historiografia da presença portuguesa em África (425): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Dezembro de 2023:

Queridos amigos,
Pareceu-me útil fazer uma rápida recapitulação dos conteúdos do livro deste médico goês que depois de 12 anos na Guiné se atirou ao estudo para escrever a primeira e até agora única história do território. Não ilude a presença portuguesa como ténue, destaca a crescente competição de franceses, ingleses e holandeses para se apoderarem das nossas posições na Costa Ocidental africana, e como tiveram sucesso, a tal Senegâmbia que ia teoricamente do Cabo Verde à Serra Leoa ficou confinada a um enclave que depois da Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886 nos empurrou para a ocupação e fixação administrativa, até então os nossos presídios e feitorias situavam-se primordialmente em zonas litorâneas, até Geba. João Barreto esmera-se por explicar a evolução do território entre os séculos XVII até ao século XIX, deixou no livro uma preciosa relação dos capitães e governadores entre o século XV e o século XIX e vamos agora entrar na história do governo autónomo da Guiné, ele levará este estudo até 1918.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (4)

Mário Beja Santos

Data de 1938 a História da Guiné, 1418-1918, com prefácio do Coronel Leite Magalhães, antigo Governador da Guiné. Barreto foi médico do quadro e durante 12 anos fez serviço na Guiné, fizeram dele cidadão honorário bolamense. Médico, com interesses na Antropologia e obras publicadas sobre doenças tropicais, como adiante se falará.

João Barreto terá redigido esta singularíssima obra (é a primeira e única história da Guiné) em Lisboa, depois de 12 anos como facultativo sediado em Bolama, consultou muito livro e investigou, soube organizar a sequência cronológica dos acontecimento desde o reconhecimento da Costa Ocidental Africana, a sucessivas expedições, realça as viagens de Cadamosto e de Diogo Gomes, o arrendamento da Costa da Guiné a Fernando Gomes; como se processou a presença portuguesa, as relações comerciais e a vida das feitorias; a perda de influência portuguesa na Senegâmbia designadamente durante o período filipino; como se tentou reagir depois da Restauração com a fundação da feitoria de Cacheu e com as feitorias do rio de Buba, o peso da concorrência inglesa, francesa e holandesa, que pesou até ao princípio do século XX; descreve detalhadamente a história das três fortalezas de Bissau, a s tentativas francesas para tomar posse de Bissau, como foi tumultuosa a presença portuguesa em Cacheu e Farim, desde finais do século XVII e ao longo de todo o século XVIII; e chegados à terceira fortaleza de Bissau, dissolvida a Companhia do Grão-Pará, criada a terceira Companhia de Cabo Verde e Guiné, vai-se abandonando a nossa presença ao sul do Cacine; é nisto que os ingleses desembarcam em Bolama, é o início de um contencioso que culminará com a sentença arbitral de um presidente dos Estados Unidos.

Estamos agora no início do século XIX, a soberania portuguesa assenta entre os rios de Casamansa e de Bolola, com duas capitanias: em Cacheu e Bissau. São intermináveis as insurreições e submissões na Capitania de Bissau, um capitão foi obrigado a fugir para Geba, outro foi vítima de envenenamento. Para pôr cobro ao estado de coisas, o Governo da metrópole convidou Manuel Pinto de Gouvêa a tomar conta da Capitania de Bissau, parte em fevereiro de 1805 de Lisboa acompanhado de 150 condenados do Limoeiro, na vila da Praia juntaram-se mais 80 criminosos de Cabo Verde, assim se organizou a guarnição militar de Bissau. Não obstante, vão suceder-se as revoltas em Bissau e Cacheu, não se pagavam os vencimentos ou chegavam atrasados. Em 1815, ocorre um novo fator que irá influir na administração política e financeira da Guiné: as primeiras determinações para a abolição do tráfico de escravos. Como observa Barreto, se bem que no território guineense o tráfico de escravos tivesse decrescido consideravelmente, não podiam deixar de se fazer sentir os efeitos desta determinação, diminuiu a atividade comercial e alfandegária, houve exaspero entre os indígenas, habituados a ter na permuta de escravos um meio fácil de adquirir os artigos necessários para a vida.

Como já não bastasse a falta de recursos financeiros, chegam primeiros os reflexos do absolutismo e depois a luta entre D. Pedro e D. Miguel. Estabelece-se um posto militar em Bolama e o proprietário Joaquim António de Matos negoceia a cedência da ilha das Galinhas. Finda a guerra civil, há mudanças na Guiné, o Distrito foi convertido em Comarca, reconheceu-se a necessidade de acabar com a autonomia das duas Capitanias de Cacheu e Bissau, colocou-se a sede da comarca em Bissau. É um novo período turbulento, com lutas políticas violentas, na ascensão do liberalismo. É neste contexto que Honório Pereira Barreto entra no Governo da Guiné, esta personalidade ímpar cursou no Colégio dos Nobres em Lisboa, é contemporâneo da invasão dos franceses no Casamansa, começou por firmar a nossa soberania em diversos pontos da colónia, apresenta-se nos Bijagós, faz acordos na ilha de Bissau, informa sistematicamente as autoridades de quem depende de tudo o quanto se está a passar na região do rio Casamansa, protesta constantemente junto das autoridades francesas.

Começam a ser inquietantes as revoltas dos Papéis, cresce a intranquilidade em Cacheu, Honório Pereira Barreto não desfalece e adquire territórios para a Coroa. Noutros pontos da colónia há sublevações, os Biafadas sublevaram-se no rio Geba, tentaram impedir a navegação pelo rio; em meados do século, unificou-se a administração da província da Guiné, acabou-se com os dois distritos autónomos de Bissau e Cacheu, subordinaram-se as duas praças a um Governo único da Costa da Guiné, em setembro de 1851 é nomeado interinamente como governador o tenente-coronel Alois da Rôlla Dziezaski; novas insubordinações da guarnição de Bissau, uma força francesa domina os soldados revoltosos. Honório Barreto volta aos Bijagós em janeiro de 1856, vem com o intuito de obter a boa amizade dos habitantes da ilha e para combater a influência que os franceses e ingleses iam adquirindo, celebra um tratado de paz com o rei de Orango; no ano seguinte, fez-se uma tentativa para a colonização do Rio Grande de Bolola, com imigrantes cabo-verdianos. Honório Barreto pede exoneração do cargo, grupos de influentes de Bissau pedem-lhe a continuação da sua residência ali, o governador-geral de Cabo Verde nomeia Barreto Governador Interino, irá falecer em abril de 1859 na fortaleza de Bissau.

Prosseguem as insurreições e é neste clima que irá ocorrer o desastre de Bolor, em 30 de dezembro de 1878 foi massacrada na margem direita do rio Bolor uma força militar que para ali tinha ido com o fim de castigar os Felupes de Jufunco. Este massacre deixou em estado de choque a opinião pública metropolitana, pensou-se desde logo em dar autonomia administrativa à Guiné e dotá-la com meios suficientes para completar a ocupação militar. É promulgado o decreto de 8 de março de 1879 e nomeia-se o Coronel Agostinho Pereira como Governador da nova Província. Começava então a história moderna da colónia.

Vindo um pouco atrás, há que juntar mais elementos sobre a questão de Bolama, que se reacendeu em 1834, anos depois os ingleses exercem violências contra os moradores de Bolama e há conflitos com as autoridades de Bissau; em 1860, o Governo britânico proclama a incorporação de Bolama na colónia da Serra Leoa, instala-se um posto inglês na ilha. A diplomacia portuguesa entra em campo e propõe arbitragem internacional, depois de muitas delongas, Inglaterra aceita. O presidente Ulysses Grant profere sentença favorável a Portugal.

Em capítulo separado, João Barreto elenca uma relação nominal dos capitães e governadores que administraram a província, é um quadro exaustivo que começa no século XV e vai até à constituição do Governo autónomo da Guiné (1879), de grande utilidade para estudantes e investigadores. O autor irá agora dar-nos uma síntese sobre o tráfico de escravos na Guiné e os factos predominantes dos primeiros tempos do Governo autónomo da Guiné.


S. Domingos - Tipos de mulheres Felupes
S. Domingos - Tipos de Felupes
Cacine - Tipos de Nalus
Guiné - Tipos de Mancanhas
Cacine - Feiticeiro Nalu

Cinco imagens retiradas do Boletim da Agência Geral das Colónias, fevereiro de 1929, ano 5.º, n.º 44, dedicado à Guiné
Planta da Praça de S. José de Bissau em 1796
Imagem da fortaleza de Cacheu, 2005
Estátua do presidente Ulysses Grant em Bolama, por Manuel Pereira da Silva
Edifício do BNU, depois Hotel do Turismo, hoje uma ruína, Bolama

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 22 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25551: Historiografia da presença portuguesa em África (424): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25551: Historiografia da presença portuguesa em África (424): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Dezembro de 2023:

Queridos amigos,
O período versado neste apontamento, súmula da primeira e única história da Guiné existente corresponde ao período pós-Restauração, a presença portuguesa centrava-se em Cacheu e Bissau, teve companhias majestáticas, foram todas rapidamente ao fundo, fez-se fortaleza em Bissau, a terceira ainda está de pé. Como diz abertamente João Barreto, até ao trabalho admirável de Honório Pereira Barreto, a Guiné está praticamente esquecida, pesa o comércio estrangeiro, os franceses e ingleses afrontam-nos, a França pretendeu mesmo fazer uma fortaleza em Bissau, a Grã-Bretanha queria mais terreno entre a Gâmbia e a Serra Leoa. Barreto relata a verdade dos factos, uma decadência em que a própria tropa era fretada entre criminosos e degredados. Convém não esquecer que a Guiné até ao século XIX vivia primordialmente do comércio do resgate, o mesmo é dizer do negócio da escravatura.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (3)

Mário Beja Santos

Data de 1938 a História da Guiné, 1418-1918, com prefácio do Coronel Leite Magalhães, antigo Governador da Guiné. Barreto foi médico do quadro e durante 12 anos fez serviço na Guiné, fizeram dele cidadão honorário bolamense. Médico, com interesses na Antropologia e obras publicadas sobre doenças tropicais, como adiante se falará.

Este distinto facultativo viveu os últimos anos da sua vida em Lisboa, é praticamente certo e seguro que foi aqui que investigou bastante documentação e consultou ou adquiriu obras de referência. Foi cuidadosíssimo na diacronia, inicia o seu trabalho com o reconhecimento da Costa da Guiné, o processo de colonização de Cabo Verde e o modo de instalação no litoral da Guiné, deu-nos um quadro do domínio filipino e as suas dramáticas consequências, veio depois a resposta de D. João IV, numa tentativa de consolidar o pouco que nos ficara da Senegâmbia; Barreto também nos presenteia com o quadro dos estabelecimentos estrangeiros na envolvente. E assim chegamos à fundação da Capitania de Bissau e ao aparecimento da segunda Companhia de Cacheu.

Refere o autor que por volta de 1685 o porto de Bissau era um centro comercial de relativa importância, para onde começavam a convergir os produtos agrícolas e escravos do interior; a sua pequena população era constituída, além dos indígenas por comerciantes portugueses e alguns estrangeiros. Bissau principiara a formar-se nos fins do século XVI, aqui se fixaram alguns moradores de Cabo Verde, que tinham ao seu serviço um certo número de escravos, os seus serviçais passaram a ser conhecidos pela designação de Grumetes, designação que mais tarde se tornou extensiva a todos os naturais que, convertidos ao cristianismo, tivessem adotado nomes e apelidos portugueses. Não havia em Bissau um representante oficial, embora a população vivesse sob a bandeira portuguesa, e por essa razão os mercadores franceses envidaram esforços para ali construir uma fortaleza, tentativa que foi combatida pelo régulo do chão Papel. Em 1687, as autoridades portuguesas instalaram-se no porto de Bissau com o objetivo de a defender contra as pretensões dos franceses. Encontrou-se um expediente para pagar as obras da fortaleza, criou-se a Companhia de Cacheu e Cabo Verde (recorde-se que a primeira Companhia de Cacheu tivera vida efémera). É um período em que, graças à presença do bispo, Frei Vitoriano da Costa, se estabelece um bom relacionamento com o régulo local, da etnia Papel, que aceitou batizar-se. Bissau passa a ter Capitão-Mor, a Guiné tem duas Capitanias, a de Cacheu e Bissau, na época Bissau fica subordinada a Cacheu. Constrói-se a primeira fortaleza de Bissau e começaram as hostilidades das populações da ilha. Haverá novas tentativas francesas de se apoderarem em Bissau, todas fracassaram, a Companhia de Cacheu e Cabo Verde fracassa, extingue-se a Capitania de Bissau e a fortaleza degrada-se. Vive-se um período de decadência.

É nisto que o Governo de D. José I se interessa pela ocupação do rio Geba, decide-se criação de nova fortaleza em Bissau, o régulo inicialmente mostra-se agradado pela ideia, mas cedo começaram as hostilidades. A resposta de Lisboa foi enviar mais tropa, não faltaram criminosos e indesejáveis. As obras da nova fortaleza custaram muitas vidas, segundo João Barreto mais de mil vidas, vitimadas por doenças locais.

As companhias que iam aparecendo foram todas votadas ao insucesso, depois das de Cacheu, deu-se a dissolução da Companhia do Grão-Pará e Maranhão. E assim, em 1783, decidiu o Governo Central arrendar a cobrança dos rendimentos públicos a uma empresa particular, a Sociedade do Comércio das Ilhas de Cabo Verde. São tempos em que a nossa soberania na Costa da Guiné se circunscreve aos estabelecimentos de Ziguinchor, Cacheu, Farim, Bissau e Geba. Como escreve Barreto, ninguém mais voltara a pensar na ocupação do rio de Bolola, e foi assim que se extinguiu praticamente a nossa influência a Sul de Bissau. Iam-se estabelecendo colónias autónomas, sobretudo de negreiros.

Enquanto na região do Casamansa a França procurava instalar-se, os ingleses, que já tinham presença na Serra Leoa e no rio Gâmbia quiseram apoderar-se de Bolama, em 1792 desembarcou nesta ilha uma estranha expedição composta por 275 ingleses, a pretensão era criar uma colónia agrícola, comprar terrenos, empregar neles serviçais, livremente assalariados. Mas tudo correu mal, primeiro os indígenas de Bolama foram hostis, roubaram e raptaram, a maior parte dos expedicionários resolveram abandonar a empresa e regressar a Inglaterra, ficaram poucos ingleses que foram morrendo aos poucos. Mas a Inglaterra não desistiu de tomar Bolama, o Governo veio a alegar os seus direitos à ilha, fundamentando-se na tentativa da colónia que era dirigida por Philip Beaver e nos contratos feitos por este com os régulos de Canhabaque e Guinala.

Estamos chegados ao século XIX e João Barreto escreve:
“Tínhamos assente definitivamente a soberania entre os rios de Casamansa e de Bolola, com duas capitanias: em Cacheu e Bissau; mas os seus comandantes tinham de sustentar uma luta permanente contra três adversários: os indígenas vizinhos, as dificuldades financeiras e a indisciplina dos comerciantes e dos próprios militares a quem estava confiada a missão de manter a ordem.”

E conta-nos peripécias da pouca abonatória desordem na Capitania de Bissau:
“O Capitão José António Pinto, que tomara conta da Capitania em 4 de maio de 1793, vira-se obrigado a fugir para Geba, por causa da insubordinação dos soldados que o acusavam de violências. Seguiu-se-lhe, em 1799, o Capitão João das Neves Leão e pouco depois António Cardoso Faria, que em 1803 era vítima de um envenenamento. Para acudir ao abandono em que a Praça se encontrava, o Governo da metrópole convidou Manuel Pinto de Gouvêa, que já servira em Cacheu, a tomar conta da Capitania de Bissau.
O novo comandante embarcou em fevereiro de 1805, acompanhado de 150 condenados retirados do Limoeiro de Lisboa, aos quais, na vila da Praia se juntaram mais 80 criminosos de Cabo Verde. Com tais homens foi organizada a guarnição militar de Bissau, porque não havia soldados que se dispusessem a ir voluntariamente suportar as inclemências do clima, com a agravante de não receberem os seus soldos em dia.”


E João Barreto passa em revista uma série de revoltas em Bissau e Cacheu; começaram as restrições num comércio de escravos, minguavam os recursos financeiros, Bissau e Cacheu não ficaram de fora das lutas entre liberais e miguelistas. Vai ser criado um posto em Bolama, dá-se a ocupação da ilha das Galinhas, a Guiné conhece uma restruturação administrativa: implanta-se um regime de Prefeitura e o distrito da Guiné foi convertido a uma comarca, com sede em Bissau. 

É neste contexto de desmotivação, falta de recursos, de um quase total abandono missionário, de rivalidades até entre governadores, que Honório Barreto ascende ao comando, dá-se a invasão dos franceses no Casamansa, o governador natural da Guiné começa a adquirir parcelas que oferece à coroa portuguesa, a revolta dos Papéis é permanente, um presidente norte-americano profere sentença sobre Bolama a nosso favor, e eis que se dá o massacre de uma coluna de operações em 1878, e o Governo Central decretou a autonomia da província da Guiné, torna-se província.
Planta da Praça de S. José de Bissau em 1796
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Nota do editor

Último post da série de 15 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25528: Historiografia da presença portuguesa em África (423): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25528: Historiografia da presença portuguesa em África (423): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Dezembro de 2023:

Queridos amigos,
A narrativa que agora se apresenta corresponde a um período dramático da nossa presença naqueles pontos da costa ocidental africana. O domínio filipino, questão hoje consensual, foi catastrófico para o império ultramarino português e reduziu a presença portuguesa a um enclave, aproximado ao que é hoje a Guiné-Bissau, isto em termos de faixa litoral, a Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, se bem que nos tenha tirado a região do Casamansa, assegurou uma extensão até ao interior, a França acautelou que não tivéssemos acesso ao Futa-Djalon. Em estado de penúria quando se deu a Restauração, D. João IV pretendeu concentrar em Cacheu a área comercial da região, mais tarde cresce a importância de Bissau, mas sempre na presença de concorrentes que pretendiam erradicar a presença portuguesa. Criam-se companhias majestáticas, de pouca duração. É uma época de implantação de praças e praças-feitorias: Cacheu, Farim e Bissau, só mais tarde teremos acesso controlado no rio Geba e no Rio Grande de Buba.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (2)

Mário Beja Santos

Data de 1938 a História da Guiné, 1418-1918, com prefácio do Coronel Leite Magalhães, antigo governador da Guiné. Barreto foi médico do quadro e durante 12 anos fez serviço na Guiné, fizeram dele cidadão honorário bolamense. Médico, com interesses na Antropologia e obras publicadas sobre doenças tropicais, como adiante se falará.

Barreto expõe detalhadamente as consequências do domínio filipino, tanto no império ultramarino português em geral como no caso da costa ocidental africana em particular, a nossa presença na Senegâmbia apagou-se, ficámos reduzidos ao enclave que virá a ser conhecido como Pequena Senegâmbia. A concorrência, designadamente de holandeses, franceses e ingleses, de um lado, e da presença dos comerciantes espanhóis, por outro, deixou os interesses portugueses em estado crítico. No relatório que o Governador de Cabo Verde, D. Francisco de Moura, dirige a Filipe III, em 1622, refere não só a desorganização administrativa com a presença de todo e qualquer concorrente, como acentua como o comércio espanhol agravava a situação financeira das Praças. Calculava D. Francisco de Moura que nessa época deveriam sair da costa africana cerca de 3 mil escravos em três ou quatro naus castelhanas que iam anualmente à Guiné sem tocarem em Santiago, importando em perto de 100 mil cruzados os prejuízos da Fazenda Real em direitos sonegados. Estes comerciantes contrabandistas podiam, por isso, pagar pelos escravos um preço superior àquele que os negociantes moradores de Cabo Verde podiam oferecer, daí a pobreza e decadência dos interesses da região.

A fundação da capitania de Cacheu começa em 1630. Segundo a narrativa de André Álvares de Almada, a atual povoação de Cacheu principiou a formar-se por volta de 1588. É neste contexto que Barreto faz o reconhecimento da importância do Tratado Breve dos Rios da Guiné: a descrição dos Jalofos, o desmembramento do império do Grão-Jalofo, a chefia da família Budumel, a importância de Goreia, onde se encontravam instalados os mercadores ingleses e franceses, o papel dos lançados, o reino de Ale, povoado dos Barbacins, com a povoação de Joale, mais a sul o reino de Barçalo, habitado por Barbacins, Jalofos e Mandingas, e depois o reino de Cantor, que é um reino dos Mandingas entre Casamansa e Geba, os Bijagós, Biafadas e Nalus, e a viagem até à Serra Leoa, obra que culmina com um voto: “Permita Deus que em dias de Sua Majestade, El-Rei D. Filipe, vejamos esta terra povoada de cristãos.”

Passamos agora para o capítulo 4.º, o período que sucede à Restauração de 1640. Barreto volta a recordar que os 60 anos da dominação filipina levaram a Holanda e a Inglaterra a apossar-se do Império português do Oriente, de Ormuz a Malaca, deixando-nos apenas alguns pontos de apoio na costa ocidental da Índia. No Atlântico, os holandeses haviam tomado os fortes de Arguim, Goreia, Mina, S. Tomé, Luanda, Congo e alguns pontos do Brasil. O domínio português na Costa da Guiné, que no reinado de S. Sebastião se estendia desde o Cabo Branco até à Costa da Mina, estava reduzido, em 1640, à estreita faixa compreendida entre os rios de Casamansa e Bolola.

A situação comercial e financeira da Guiné, insista-se, era catastrófica, os mercadores castelhanos e estrangeiros tinham criado a indisciplina e a anarquia, recorde-se que o carregamento de escravos se fazia diretamente da Guiné para a América Espanhola. Para remediar o mal e acudir à quebra de rendimentos, procurou-se estabelecer relações entre a Guiné e o Brasil, desviando para Pernambuco os carregamentos que até ali seguiam de preferência para Antilhas.

O capítulo 5.º marca as iniciativas da Restauração. D. João IV mandou construir a fortaleza de Cacheu, encarregando Gonçalo Gamboa Ayala, que teve carta de Capitão-mor em 16 de julho de 1641. Iria começar a relativa autonomia da Guiné com a construção desta fortaleza, onde se vão sucedendo peripécias de toda a ordem, desde sublevações a ataques dos povos vizinhos. Os interesses espanhóis tudo fizeram para que a fortaleza lhes caísse nas mãos, mas a revolta foi sufocada. Criou-se um imposto especial para os navios que negociavam com as Antilhas, e em 1642 foi franqueado o comércio na Guiné aos cabo-verdianos.

Com o intuito de evangelização, saiu de Portugal a missão composta pelos padres Baltasar Barreira, Manuel Fernandes e dois auxiliares; Fernandes faleceu um mês depois e foi substituído em Santiago pelo padre Manuel de Barros. Segundo informa André Álvares de Almada, por volta de 1590 fazia-se em Cacheu cerca de 700 confissões na época da Quaresma. Vê-se perfeitamente que João Barreto leu a Relação anual das coisas que fizeram os padres da Companhia de Jesus, pelo padre Fernão Guerreiro. A propósito das feitorias no rio de Buba, Barreto refere o escrito Descripção da Guiné, por Francisco de Azevedo Coelho, datado de 1669, observando que se trata de uma das descrições mais antigas sobre os estabelecimentos portugueses no continente africano. Este Francisco de Azevedo Coelho é o mesmo Francisco Lemos Coelho de que noutro espaço já se fez referência, foi estudado por Damião Peres, e é sem dúvida alguma uma das figuras de referência da literatura de viagens do século XVII. Em 1676, foi estabelecida a Companhia de Cacheu, possuía um caráter majestático. Por contrato régio, a Companhia obrigava-se a completar as obras da fortaleza de Cacheu, a contrapartida era adquirir o exclusivo da navegação e comércio da Guiné. Barreto fala seguidamente das insubordinações de régulos contra Cacheu, a praça defendeu-se e os régulos acabaram por pedir a paz.

Entretanto, outros portos da colónia, como Bissau, tomaram certo incremento, ao mesmo tempo que as companhias privilegiadas francesas e inglesas ameaçavam invadir a estreita zona que ainda se conservava na posse de Portugal. E o autor faz um breve resumo da evolução da política de França e Inglaterra na África Ocidental. No caso inglês, Isabel I concedeu autorização para explorar a região situada ao sul do rio Nuno até à Serra Leoa, aqui se formou uma feitoria. Jaime I concedeu carta a uma nova sociedade denominada Os Aventureiros de Londres, estabeleceram-se na foz do rio Gâmbia, mas foi empresa de pouca duração. Achando desocupada a região da Gâmbia, os holandeses, que se encontravam na Goreia, fundaram ali as suas feitorias, de onde foram expulsos pelos ingleses em 1661. A circunstância foi aproveitada pela Companhia Francesa que trato de estabelecer várias sucursais ao longo do rio. Depois do Tratado de Utrecht, a Grã-Bretanha consolidou a posse da Serra Leoa. Em 1758, os ingleses expulsaram os franceses dos fortes de S. Luíz e Goreia. Barreto faz também uma relação sobre as colónias francesas e holandesas, bem como as vicissitudes que impenderam sob o Castelo de Arguim, que andou por várias mãos até ficar na posse da França, em 1724.

Aqui se inicia o capítulo 6.º, onde se destaca a capitania de Bissau. Por volta de 1685, o porto de Bissau era um centro comercial de relativa importância, por onde começavam a convergir os produtos agrícolas e escravos do interior das povoações situadas ao longo do rio Geba e ainda algumas das ilhas dos Bijagós. A Companhia do Senegal mandou empregados para Bissau, tal era a importância dos negócios. Na época formou-se a segunda Companhia de Cacheu com o nome de Companhia de Cacheu e Cabo-Verde. No final do século XVII, surge a primeira fortaleza de Bissau.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 8 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25496: Historiografia da presença portuguesa em África (422): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25496: Historiografia da presença portuguesa em África (422): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Dezembro de 2023:

Queridos amigos,
Curioso pelo convite feito para comparecer na Casa de Goa numa sessão de apresentação de uma obra sobre João Barreto, injustamente esquecida em Portugal e na Guiné-Bissau, resolvi revisitá-la, dou o meu tempo por bem cumprido, este médico goês viveu 12 anos na Guiné onde prestou relevantes serviços na Saúde Pública e na Medicina Tropical deu-lhe para escrever aquela que é a única história da Guiné portuguesa. Como é evidente, as investigações nos últimos 90 anos têm permitido descobertas estimulantes de relatos que valorizavam a literatura de viagem, um conhecimento mais aprofundado quer do período do domínio filipino quer da Restauração, e sobretudo têm saído dos arquivos documentos a que seguramente João Barreto sobre eventos da maior importância, caso da guerra do Forreá, da demarcação de fronteiras, da polémica sobre os procedimentos de João Teixeira Pinto sobre a Liga Guineense, por exemplo. João Barreto dá a Guiné como pacificada em 1918, sabe-se que foi preciso esperar até 1936 para se considerar que tinham acabado as sublevações e hostilidades, isto depois da rendição do régulo de Canhabaque.

Um abraço do
Mário



João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (1)

Mário Beja Santos

Data de 1938 a História da Guiné, 1418-1918, com prefácio do Coronel Leite Magalhães, antigo Governador da Guiné. Barreto foi médico do quadro e durante 12 anos fez serviço na Guiné, fizeram dele cidadão honorário bolamense. Médico, com interesses na Antropologia e obras publicadas sobre doenças tropicais, como adiante se falará.

Justifica a sua investigação pela ausência de trabalhos congéneres, tudo parcelar, focado em pequenos períodos, assim nasceu a História da Guiné que, deploravelmente, não tem concorrente. Ora, como ele observa, “Quem quiser seguir a evolução histórica dessa pequena parcela, que nos ficou do extenso domínio antigo, não pode circunscrever-se aos factos ocorridos dentro das fronteiras atuais da colónia, mas tem de lançar um golpe de vista retrospetivo sobre uma zona mais larga da África Ocidental, desde o Cabo Branco até à Serra Leoa.” Nunca se apurará se andou pelos arquivos, mesmo os existentes em Bolama, mas que consultou bibliografia não há dúvida, fala dos Subsídios para história de Cabo Verde e Guiné, por Sena Barcelos, do Quadro Elementar das Relações Políticas e Diplomáticas de Portugal, pelo Visconde de Santarém e por Rebelo da Silva; leu em profundidade o Tratado Breve dos Rios da Guiné, de André Álvares de Almada, como também a Guiné portuguesa, por Ernesto Vasconcelos, e mesmo o Anuário da Província da Guiné, por Armando Augusto Gonçalves de Morais e Castro, editado em 1925, entre outros. Estudou a doença do sono, foi diretor do laboratório central de análises do hospital civil e militar de Bolama, e deu-se a outros cometimentos, deles se fará referência.
A sua História, que não resistiu às rugas do tempo e à multiplicidade das investigações posteriores, tem, contudo, uma estruturação e um cuidado na investigação que, só por si, justificaria esta revisitação – isto para já não deixar de sugerir uma reedição comentada, também a pensar na Guiné-Bissau que tem no seu ADN cinco séculos de presença portuguesa.

No primeiro capítulo, o autor esboça as primeiras tentativas de atingir a Costa da Guiné até 1462, quando Pedro de Sintra atingiu a Serra Leoa; fala-se do arrendamento da Costa da Guiné feito a Fernão Gomes, este enviou os seus navios para além da Serra Leoa e, em 1471, João de Santarém e Pedro Escobar descobriram a Costa da Mina. No segundo capítulo, aborda-se a decisão papal de conferir aos reis de Portugal a posse das terras descobertas e conquistadas aos infiéis; fora tomada a decisão da anexação do território da Guiné à Capitania de Cabo Verde, houve mesmo uma tentativa de fundação de uma capitania no rio Senegal em 1490; faz-se referência à presença dos lançados, há evangelização falhada, mas, a par disso, dá-se a concessão a Portugal dos direitos do Padroado na costa africana, criou-se o bispado da Ribeira Grande. Passa-se em revista as políticas comerciais de D. Afonso V e D. João II, com D. Manuel I dão-se mudanças radicais, este monarca proíbe totalmente aos cabo-verdianos de enviar navios ao Rios da Guiné, determina impostos aos lançados como, mais tarde, ordenou que todas as fazendas dos cristãos que fossem apanhadas no trato comercial com os negros seriam perdidas para a Coroa.

Barreto, ainda quando está a analisar o período das viagens lança uma explicação para a palavra Guiné, dizendo que deriva do nome de uma povoação indígena fundada por volta do ano 1040, nas margens do Alto Níger, reproduz-se aqui o que ele escreve a tal propósito, não deixa de ser bem interessante:
“Pela sua situação geográfica tornou-se um ponto de passagem concorrido das caravanas que faziam o comércio do Sudão e da África Meridional com os mandingas e árabes do Norte. Conquistou por este facto certa prosperidade e fama. O seu renome propagou-se, por intermédio dos mercadores árabes, para o Norte da África e dali para os países europeus. Tem-se escrito sobre várias formas o nome desta aldeia: Genna, Ghenea, Ginea, Jenni, Genni, Djienné, etc. Em Portugal o vocábulo sofreu pequenas alterações. Na primeira edição da Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné, de Zurara, referem em 1841, por cópia fiel do original existente em Paris, encontramos umas vezes a forma Guinee, com duplo E final, e outras vezes Guinea, Guynea. Na Ásia, de João de Barros, lemos: “(…) Região de Guiné, a que os mesmos mouros chamavam Guinauhá.” No Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco, encontramos períodos como este: “(…) e esta Etiópia corre e se estende a costa do dito rio de Çanaguá até ao Cabo de Boa Esperança (…) e do dito rio até este Cabo são 1340 léguas, a qual por outro nome Guinee chamamos.”

Nos primeiros anos do Descobrimentos portugueses a designação de Guiné compreendia toda a região situada ao Sul do Cabo Bojador; mas depois da descoberta do rio Senegal e confirmadas as distinções geográficas e étnicas marcadas por este rio entre os azenegues e os negros, o vocábulo Guiné serviu para designar especialmente a costa situada ao Sul do Rio.
Veio depois a descoberta da Costa da Mina, que pelas suas vantagens comerciais relegou a um plano secundário a zona da Senegâmbia. Foi então que os reis de Portugal acrescentaram o título de Senhores de Guiné, passando a estabelecer-se uma vaga distinção entre a Guiné Superior e Inferior. Com o tempo cada uma das zonas costeiras foi adquirindo a sua autonomia geográfica e administrativa, perdendo-se a pouco e pouco o sentido do vocábulo Guiné, até que chegámos à situação presente com o golfo da Guiné na zona equatorial e as colónias da Guiné portuguesa e francesa situadas mais ao Norte. Em resumo, a palavra Guiné não chegou a ter um valor geográfico rigorosamente definido. Em Portugal, atribuiu-se ao termo quase sempre o género feminino, mas também se encontra a palavra Guiné com o género masculino. Assim, André Álvares de Almada fala no nosso Guiné e do Guiné. Em geral, o nome próprio Guiné foi empregado desde os primeiros tempos sem ser precedido do artigo definido. A fórmula - a Guiné – com artigo começou a ser empregado com mais frequência no século XIX, e hoje está quase generalizada.”


O autor, ainda neste segundo capítulo, alude a um conjunto de temas, só se quer mencionar que pela sua Bula de 31 de janeiro de 1533, o Papa Clemente VII separou da diocese do Funchal a área de Cabo Verde e Guiné que constituiu um novo bispado. Estamos agora já no terceiro capítulo, a que o autor designa por “Interregno dos monarcas castelhanos”. Ele vai explanar sobre a decadência do império ultramarino português e a perda de toda a Costa da Guiné, com exceção da pequena zona que constitui a atual colónia. É um período de decadência do império ultramarino português em geral e da Costa da Guiné em particular. Não esconde a sua profunda admiração pela descrição da Guiné feita por André Álvares de Almada, em 1594, no Tratado Breve. Desde 1585, os rendimentos reais de África e ilhas adjacentes estavam arrendados por moradores particulares, que pagavam as prestações vencidas diretamente na metrópole, esta situação criou graves dificuldades aos governos das colónias. Deixaram de se fazer reparações nos fortes e de renovar o material de guerra. Segundo o relatório feito por Nicolau de Castilho, governador de Cabo Verde e Guiné, os vencimentos atrasados e as dívidas por pagar em 1614 importavam em 30 mil cruzados, importância astronómica na época.

Ao entrar em Portugal, Filipe II de Espanha ofereceu às Cortes diversos capítulos dando inteira satisfação aos desejos e exigências dos portugueses, mas logo depois da aclamação começou a faltar abertamente às suas promessas. Os alvarás relativos ao comércio da Guiné foram considerados como letra morta. A Grã-Bretanha e a Holanda, como mais adiante França, procuraram firmar a sua influência na África Ocidental.

(continua)

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Cinco imagens retiradas do Boletim da Agência Geral das Colónias, fevereiro de 1929, ano 5.º, n.º 44, dedicado à Guiné
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Nota do editor

Último post da série de 1 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25467: Historiografia da presença portuguesa em África (421): A Guiné e os tempos da Restauração da Independência, por Leite de Magalhães (Mário Beja Santos)