1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Dezembro de 2023:
Queridos amigos,
Depois de nos dar a sequência dos acontecimentos por si considerados mais relevantes do que se passou na Guiné no século XVIII e em boa parte no século XIX, e de nos ter facultado a lista dos governadores de Cabo Verde e da Guiné até 1879, João Barreto espraia-se pelo papel desempenhado pela região no tráfico de escravos, tem a vincada preocupação de mostrar como este mercado negreiro era antiquíssimo e tolerado em vários continentes, a que a Europa não escapava, e dá-nos conta que tal comércio poucos benefícios mercantis trouxe à economia local e a Portugal, aponta o dedo à principal potência traficcante, a Inglaterra, e ao comércio praticado em larga escala por Espanha, França e Holanda, e apresenta os dados estatisticos conhecidos. Como aqui já se abordou no blogue, a historiografia referente ao tráfico negreiro no império português tem evoluído muito, é credor de novos olhares e apreciações modificadas. E assim entramos no Governo autónomo da Guiné, João Barreto revela-se incansável a falar das questões do Forreá e das sublevações que irão ultrapassar o século XIX, recordará que Bissau estará permanentemente causticada por ataques dos Papéis até 1915.
Um abraço do
Mário
João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (5)
Mário Beja Santos
Data de 1938 a "História da Guiné, 1418-1918", com prefácio do Coronel Leite Magalhães, antigo Governador da Guiné. Barreto foi médico do quadro e durante 12 anos fez serviço na Guiné, fizeram dele cidadão honorário bolamense. Médico, com interesses na Antropologia e obras publicadas sobre doenças tropicais, como adiante se falará.
Concluída a sua apreciação sobre os acontecimentos dominantes do século XVIII, e após nos ter dado a relação dos governadores de Cabo Verde e Guiné até à constituição do Governo autónomo da Guiné, João Barreto aborda o tráfico de escravos na região. Começa por observar que este tráfico, bem como o fenómeno da escravatura, existiu desde os tempos mais remotos da humanidade, os povos islâmicos intensificaram este tráfico, sobretudo na Costa Oriental de África; no Norte de África, os escravos necessários para os trabalhos dos conquistadores árabes provinham uma parte dos povos subjugados e presos de guerra e, outra parte, dos indígenas de raça negra que as caravanas iam comprar na Senegâmbia; os escravos pretos também eram vendidos a comerciante europeus, principalmente italianos, Veneza era um desses expoentes mercantis. O autor observa que as possessões portuguesas de África quase nenhum benefício tiveram deste comércio e dá os seguintes esclarecimentos: “Portugal não produzia os artigos de que os negreiros se utilizavam nas suas transações com os povos africanos: panos de algodão, bugigangas, contas, espelhos, ferro, etc. Era a Inglaterra que tinha por assim dizer o monopólio do fabrico destes artigos, eram os ingleses que maior proveito tiravam do comércio dos negros, sem falar do tráfico que faziam diretamente por conta própria.”
Abordando os escravos saídos da Guiné, e usando os dados do cronista Zurara, João Barreto conclui que nos primeiros oito anos (1441 e 1448) a média dos cativos importados em Portugal não foi além de 116 indivíduos por ano. “Escasseiam elementos de informação sobre as navegações à Costa da Guiné depois do ano de 1448. Sabemos que os indígenas do Senegal se mostravam refratários em entrar em relações com os nossos navegadores e só depois das viagens de Cadamosto e Diogo Gomes, em 1456, é que se resolveram a comerciar com os brancos. A partir de 1461, a exploração da região compreendida entre o Senegal e a Serra Leoa foi entregue aos moradores de Santiago. O número e o valor atribuído aos escravos importados deveriam ser registados no livro do almoxarifado da Ribeira Grande. Estes livros, porém, foram destruídos, escapando apenas os apontamentos relativos aos anos de 1513, 1514 e 1515. Foram enviados para Portugal e Espanha e uma boa parte ficou ao serviço dos cabo-verdianos e uma outra parte foi vendida aos mercadores espanhóis. Pode dizer-se que a escravatura moderna com todas as suas crueldades começou com o século XVI, quando os espanhóis resolveram colonizar as Antilhas, que Colombo acabara de descobrir.”
E, mais adiante, “Podemos concluir que durante o século XVI a média de escravos resgatados na zona da Guiné não foi além de 1500 por ano. Durante a dominação castelhana, o tráfico de escravos tomou considerável incremento. D. Francisco de Moura, antigo Governador de Cabo Verde, calculava em 1622 que só em barcos espanhóis contrabandistas seriam transportados cerca de 3 mil negros na roda do ano. Portugal era dos países que menos lucrava com todo esse tráfico feito de contrabando. A economia e as finanças de Cabo Verde chegaram ao nível mais baixo precisamente numa época que a escravatura atingiu o seu apogeu. Na segunda metade do século XVII, os ingleses encontravam-se instalados nos rios de Gâmbia e Serra Leoa. Nesta última colónia aproveitaram-se das guerras tribais para adquirir serviçais por preços ridículos, visto que os vencidos preferiam entregar-se gratuitamente aos negreiros a serem devorados pelos vencedores antropófagos. Por seu lado, os holandeses, tendo-se apoderados da ilha de Gorêa desde 1617, ficaram com o exclusivo do tráfico da região continental vizinha. E os franceses estabeleciam desde 1635 a Companhia da África Ocidental que, sob diversos nomes e direções, passou a exercer o comércio de escravos em notável escala desde o Cabo Branco até à Serra Leoa. Esta Companhia não só fazia da escravatura o objeto principal da sua atividade, mas até tinha um contrato com o seu Governo para o fornecimento de indígenas às Antilhas francesas e para as tripulações dos navios.”
Neste contexto, Barreto suaviza o papel dos portugueses no tráfico, dá como demonstrado como muito antes da Restauração de 1640 este comércio era liderado por estrangeiros e a atividade nos nossos portos era tão reduzida que os direitos aduaneiros não chegavam para cobrir as modestas despesas da Capitania de Cacheu. Ainda houve um contrato feito pela Nova Espanha com a Companhia de Cacheu e Cabo Verde para o fornecimento de 5 mil serviçais por ano, isto na última década do século XVII, mas a Companhia não pôde satisfazer completamente o serviço, tais e tantas as dificuldades levantadas pelas autoridades eclesiásticas. Nos princípios do século XVIII, segundo a estimativa do gerente da Companhia Francesa do Senegal, não se podiam exportar de Bissau mais de 400 escravos por ano.
Barreto enfatiza o papel primordial que Inglaterra teve neste mercado negreiro, como se processou depois a abolição do tráfico em Portugal, e remata dizendo “Se a escravatura foi um mal, condenável sobretudo nos seus abusos, Portugal teve nele um quinhão pequeno em relação a outros povos coloniais, seja pelo número de cativos de que se utilizou, seja pelos benefícios materiais que auferiu, seja pela forma benévola e paternal com que tratou os seus escravos.” Como aqui já se fez referência, a historiografia portuguesa sobre a escravatura tem tido enormes avanços. Basta lembrar o historiador Arlindo Caldeira e o seu livro "Escravos e Traficantes no Império Português", obra de referência.
E assim chegamos ao Governo autónomo da Guiné, Carta de Lei de 18 de março de 1879, assinam Fontes Pereira de Melo, Serpa Pimentel e Tomaz Ribeiro, determinando: que o território da Guiné Portuguesa formasse uma província independente de qualquer outra; que o seu governo tivesse sede na ilha de Bolama; e estipula vencimentos. Era o Governo autorizado a organizar um batalhão de artilharia e a fazer a aquisição de alguns barcos a vapor, e devia providenciar no sentido de estabelecer comunicações diretas entre a metrópole a nova província ultramarina. Criava-se a organização dos serviços públicos, o governador tinha como auxiliares o Conselho do Governo, a Junta Geral da Província, o Conselho da Província e a Junta de Fazenda Pública. A província da Guiné foi dividida em quatro concelhos: Bolama, Bissau, Cacheu e Buba; foi transferido de Cabo Verde para a Guiné o Batalhão de Caçadores n.º1 que pouco tempo depois provocava um movimento de insubordinação contra o Governador Agostinho Coelho.
E, seguidamente, Barreto centra a sua atenção num sem-número de operações militares e dá-nos conta dos graves acontecimentos do regulado do Forreá.
Trata-se da única fotografia que se conhece do médico João Barreto, imagem que me foi amavelmente concedida pelo historiador Valentino Viegas aquando do lançamento o opúsculo que lhe dedicou o seu neto Aires Barreto
Edifício do Museu da Escravatura e do Tráfico Negreiro em Cacheu, na Guiné-Bissau
Brasão de Fernão Gomes. Livro da Nobreza e Perfeiçam das Armas, de António Godinho, c. de 1516-1528
Comércio transatlântico de escravos (BBC)
Planta da Praça de S. José de Bissau em 1796
Imagem da fortaleza de Cacheu, 2005
Capa do livro de Arlindo Caldeira, Esfera dos Livros, 2013
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 29 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25580: Historiografia da presença portuguesa em África (425): João Vicente Sant’Ana Barreto, o primeiro historiador da Guiné portuguesa (4) (Mário Beja Santos)
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