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Queridos amigos,
Não é a primeira vez que aqui se faz referência à investigação deste universitário norte-americano. Este seu trabalho está datado de 1991, contempla uma gama de entrevistas que ele efetuou em 1975 na Guiné-Bissau e recomenda-se vivamente, para quem pretenda estudar aprofundadamente este período da luta armada, os comentários que apresenta na sua bibliografia, extensíssima, ao tempo. Há factos apresentados que investigação posterior, é essa uma das grandes dívidas que temos ao trabalho de Julião Soares Sousa, demonstradamente mitificados: a fundação do PAI em 1956 (quando a sua primeira referência em público surge no início de 1960), a ligação direta entre o PAIGC e o massacre do Pidjiquiti, nunca se provou que os Manjacos sublevados tivessem recebido qualquer influência deste partido. É notório que ainda existe uma forte mitologia, a despeito do trabalho de investigação que põe a nu acontecimentos e situações que foram forjadas ao serviço da hagiografia. Acontece assim em muitos atos fundadores.
Um abraço do
Mário
A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (1)
Beja Santos
“Amílcar Cabral’s, Revolutionary Theory and Practice, A Critical Guide”, por Ronald H. Chilcote, Lynne Rienner Publishers, 1991, é, indiscutivelmente, um dos estudos mais detalhados e bem organizados sobre o pensamento de Amílcar Cabral feito por um investigador estrangeiro. É um documento de referência, Ronald Chilcote é um académico norte-americano detentor de uma apreciável obra de investigação, desde cedo que se interessou pelo império colonial português, já aqui se fez referência a uma outra obra também de consulta obrigatória, a documentação que ele e a sua equipa organizaram sobre as posições assumidas perante a descolonização portuguesa, é um histórico muito bem elaborado para qualquer consultor à escala internacional.
Chilcote trata sempre Amílcar Cabral como um dos mais importantes pensadores do terceiro mundo, resume o seu percurso curricular (Cabral e o contexto histórico), socorre-se das impressões de outros biógrafos como Patrick Chabal, Gérard Chaliand, Basil Davidson, Mário de Andrade ou Joshua Forrest, o mundo universitário de Lisboa, os seus trabalhos como agrónomo e podólogo, a formação da teoria revolucionária, o diplomata, o seu legado; dedica um capítulo à teoria do colonialismo e imperialismo, disseca as considerações de Cabral sobre a situação colonial da Guiné Portuguesa, o estado de desenvolvimento das forças produtivas; a teoria do nacionalismo revolucionário e da libertação nacional, segundo Chilcote, é original em Cabral, este era conhecedor das teses marxistas-leninistas, estava plenamente informado das diferentes correntes do nacionalismo revolucionário emergentes dos anos 1950 para os anos 1960, o seu pensamento levou-o a desenvolver a cultura popular como acompanhante obrigatório da luta de libertação nacional, é nessa observação que ele vai intuir uma teoria de libertação nacional com dados inovadores, num território sem proletariado, a chamada luta de classes forjada pelas correntes marxistas, pertenceria a vanguarda da libertação a uma pequena burguesia que em determinada fase do processo revolucionário teria que decidir um suicídio de classe, optando pela doutrina revolucionária, ou resignando-se a ser um apêndice do neocolonialismo; daí outra vertente do seu pensamento, o que ele considerava ser uma teoria de classe e luta de classes.
Partindo do conceito consagrado de que classe e luta de classes eram em si o resultado do desenvolvimento das forças produtivas em conjugação com o sistema de propriedade dos meios de produção, Cabral questionou se a imensíssima massa humana dependente da agricultura estaria habilitada a tomar como eixo mobilizador a luta de classes quando, como no caso específico da Guiné, o colonizador não possuía terra, nem indústria, era um instrumento dentro de uma colónia-feitoria, assim havia que repensar a conceção de classe e luta de classes, e de novo o líder do PAIGC enfatizava o caráter marginal dessa pequena burguesia e da sua decisão histórica de se mobilizar, ou não, para as transformações revolucionárias; também nesse contexto, Cabral tomava como objeto de estudo as divisões e contradições existentes na sociedade guineense, os grupos étnicos, a essência religiosa, as chefaturas, as alianças ou hostilidades ao poder colonial, as formas primitivas das forças produtivas, a apropriação dos meios de produção e a ausência da luta de classes, daí passando para a importância da agricultura comunitária em oposição aos processos agrários feudais, considerando, no topo de todas estas reflexões a instituição de um modelo socialista que teria como sigla libertadora do jugo colonial “a unidade e a luta”, uma unidade étnica, conjugando os povos guineense e cabo-verdiano; neste processo de análise, Chilcote procede a uma curta síntese, convocando um conjunto de autores que estudaram a realidade socioeconómica da Guiné sobre as alianças que Cabral pôde instituir e o processo ideológico em que organizou a vanguarda revolucionária.
Assim se chega à explanação de como Cabral forjou uma teoria de Estado e desenvolvimento, Chilcote destaca que Cabral não deixou uma teoria consumada, ia-se formando por etapas, nas áreas libertadas foram erguidas escolas, infraestruturas de saúde, armazéns do povo, tudo numa lógica de desenvolvimento autocentrado, montou-se um sistema de justiça popular e esquemas de participação na vida comunitária, logo através da figura dos comités de tabanca. Para solidificar a emergência do Estado, dotou-o de estruturas políticas, caso do Conselho Superior de Luta, em determinada fase considerou que estavam criadas as condições para abalar a presença portuguesa através de uma consulta popular para chegar à independência e aprovação de uma constituição. Observa Chilcote que Cabral dava grande importância à tríade dirigente, à organização militar com as FARP à frente mas custodiadas por comissários políticos. Cabral considerava que o órgão supremo do povo seria a Assembleia Nacional Popular, esta seria a trave-mestra do novo Estado.
Chilcote analisa seguidamente a transição da luta de libertação para a construção do Estado e os problemas postos quanto ao modelo de desenvolvimento, optar pela agricultura, pela descentralização política ou, pelo contrário, enveredar pelo desenvolvimento industrial, concentrar o poder em Bissau, confiar em pleno nos projetos dos doadores. Sabe-se qual o modelo de desenvolvimento centralizador seguido pelos dirigentes do PAIGC e o seu falhanço, as tensões entre guineenses e cabo-verdianos que tiveram o seu desfecho no golpe de 14 de novembro de 1980.
Em jeito de conclusão, o investigador norte-americano resume os tópicos para futuras discussões sobre o pensamento e obra de Cabral, tópicos esses que ele considera os cinco principais em análise: o líder do PAIGC entendia que a luta pela independência da Guiné-Bissau ajudaria a suprimir a História interrompida do país, essa luta contra o colonialismo era o dínamo da História contemporânea, a matriz da identidade do Estado emergente; Cabral tinha uma visão singular de um socialismo, a sua teoria de nacionalismo revolucionário e libertação nacional fazia o entrosamento entre a cultura e a condição económica, acreditava que todo aquele sacrifício e dedicação pela causa da independência induziriam uma nova consciência em todas as linhas do progresso; a teoria da luta de classes das correntes do marxismo ortodoxo não eram por ele consideradas aceitáveis, ele identificou várias classes sociais, refletiu sobre as divisões e contradições existentes na sociedade guineense e nunca se iludiu com a noção de proletariado, reservou o papel de vanguarda para uma pequena burguesia sobre a qual teceu uma terrível consideração: ou se “suicidaria” ou aderiria ao nacionalismo revolucionário, deixou em muitos escritos uma organização de participação e confiava plenamente que o Estado independente iria absorver ou assimilar as novas estruturas das zonas libertadas.
Ronald Chilcote considera que tudo quanto se vier a estudar sobre o pensamento e a ação de Cabral não pode pôr de parte dois factos históricos: ele foi, acima de toda a luta pela libertação na Guiné, o pensador que dotou o novo país de um quadro organizativo e acreditava plenamente que mesmo com a modéstia de recursos a Guiné pudesse caminhar, também com a ajuda internacional, para novas sendas do progresso, com grandes transformações da economia agrícola; Cabral manejou, graças a uma análise independente do marxismo por uma fórmula nova que pretendia imprimir à situação revolucionária que ele sonhava para a Guiné-Bissau, a despeito de certas cedências ao marxismo ortodoxo.
O estudo de Chilcote inclui um importante apêndice e uma bibliografia anotada que merecem ser verificados, o que se fará seguidamente.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 8 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22977: Notas de leitura (1418): "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada (2021), por Arsénio Chaves Puim, um caso de grande sensibilidade sociocultural e de amor às suas raízes (Luís Graça ) - Parte III: a influência dos "calafonas"