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sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22989: Notas de leitura (1418A): A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março 2019:

Queridos amigos,
Não é a primeira vez que aqui se faz referência à investigação deste universitário norte-americano. Este seu trabalho está datado de 1991, contempla uma gama de entrevistas que ele efetuou em 1975 na Guiné-Bissau e recomenda-se vivamente, para quem pretenda estudar aprofundadamente este período da luta armada, os comentários que apresenta na sua bibliografia, extensíssima, ao tempo. Há factos apresentados que investigação posterior, é essa uma das grandes dívidas que temos ao trabalho de Julião Soares Sousa, demonstradamente mitificados: a fundação do PAI em 1956 (quando a sua primeira referência em público surge no início de 1960), a ligação direta entre o PAIGC e o massacre do Pidjiquiti, nunca se provou que os Manjacos sublevados tivessem recebido qualquer influência deste partido. É notório que ainda existe uma forte mitologia, a despeito do trabalho de investigação que põe a nu acontecimentos e situações que foram forjadas ao serviço da hagiografia. Acontece assim em muitos atos fundadores.

Um abraço do
Mário



A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (1)

Beja Santos

“Amílcar Cabral’s, Revolutionary Theory and Practice, A Critical Guide”, por Ronald H. Chilcote, Lynne Rienner Publishers, 1991, é, indiscutivelmente, um dos estudos mais detalhados e bem organizados sobre o pensamento de Amílcar Cabral feito por um investigador estrangeiro. É um documento de referência, Ronald Chilcote é um académico norte-americano detentor de uma apreciável obra de investigação, desde cedo que se interessou pelo império colonial português, já aqui se fez referência a uma outra obra também de consulta obrigatória, a documentação que ele e a sua equipa organizaram sobre as posições assumidas perante a descolonização portuguesa, é um histórico muito bem elaborado para qualquer consultor à escala internacional.

Chilcote trata sempre Amílcar Cabral como um dos mais importantes pensadores do terceiro mundo, resume o seu percurso curricular (Cabral e o contexto histórico), socorre-se das impressões de outros biógrafos como Patrick Chabal, Gérard Chaliand, Basil Davidson, Mário de Andrade ou Joshua Forrest, o mundo universitário de Lisboa, os seus trabalhos como agrónomo e podólogo, a formação da teoria revolucionária, o diplomata, o seu legado; dedica um capítulo à teoria do colonialismo e imperialismo, disseca as considerações de Cabral sobre a situação colonial da Guiné Portuguesa, o estado de desenvolvimento das forças produtivas; a teoria do nacionalismo revolucionário e da libertação nacional, segundo Chilcote, é original em Cabral, este era conhecedor das teses marxistas-leninistas, estava plenamente informado das diferentes correntes do nacionalismo revolucionário emergentes dos anos 1950 para os anos 1960, o seu pensamento levou-o a desenvolver a cultura popular como acompanhante obrigatório da luta de libertação nacional, é nessa observação que ele vai intuir uma teoria de libertação nacional com dados inovadores, num território sem proletariado, a chamada luta de classes forjada pelas correntes marxistas, pertenceria a vanguarda da libertação a uma pequena burguesia que em determinada fase do processo revolucionário teria que decidir um suicídio de classe, optando pela doutrina revolucionária, ou resignando-se a ser um apêndice do neocolonialismo; daí outra vertente do seu pensamento, o que ele considerava ser uma teoria de classe e luta de classes.

Partindo do conceito consagrado de que classe e luta de classes eram em si o resultado do desenvolvimento das forças produtivas em conjugação com o sistema de propriedade dos meios de produção, Cabral questionou se a imensíssima massa humana dependente da agricultura estaria habilitada a tomar como eixo mobilizador a luta de classes quando, como no caso específico da Guiné, o colonizador não possuía terra, nem indústria, era um instrumento dentro de uma colónia-feitoria, assim havia que repensar a conceção de classe e luta de classes, e de novo o líder do PAIGC enfatizava o caráter marginal dessa pequena burguesia e da sua decisão histórica de se mobilizar, ou não, para as transformações revolucionárias; também nesse contexto, Cabral tomava como objeto de estudo as divisões e contradições existentes na sociedade guineense, os grupos étnicos, a essência religiosa, as chefaturas, as alianças ou hostilidades ao poder colonial, as formas primitivas das forças produtivas, a apropriação dos meios de produção e a ausência da luta de classes, daí passando para a importância da agricultura comunitária em oposição aos processos agrários feudais, considerando, no topo de todas estas reflexões a instituição de um modelo socialista que teria como sigla libertadora do jugo colonial “a unidade e a luta”, uma unidade étnica, conjugando os povos guineense e cabo-verdiano; neste processo de análise, Chilcote procede a uma curta síntese, convocando um conjunto de autores que estudaram a realidade socioeconómica da Guiné sobre as alianças que Cabral pôde instituir e o processo ideológico em que organizou a vanguarda revolucionária.

Assim se chega à explanação de como Cabral forjou uma teoria de Estado e desenvolvimento, Chilcote destaca que Cabral não deixou uma teoria consumada, ia-se formando por etapas, nas áreas libertadas foram erguidas escolas, infraestruturas de saúde, armazéns do povo, tudo numa lógica de desenvolvimento autocentrado, montou-se um sistema de justiça popular e esquemas de participação na vida comunitária, logo através da figura dos comités de tabanca. Para solidificar a emergência do Estado, dotou-o de estruturas políticas, caso do Conselho Superior de Luta, em determinada fase considerou que estavam criadas as condições para abalar a presença portuguesa através de uma consulta popular para chegar à independência e aprovação de uma constituição. Observa Chilcote que Cabral dava grande importância à tríade dirigente, à organização militar com as FARP à frente mas custodiadas por comissários políticos. Cabral considerava que o órgão supremo do povo seria a Assembleia Nacional Popular, esta seria a trave-mestra do novo Estado.

Chilcote analisa seguidamente a transição da luta de libertação para a construção do Estado e os problemas postos quanto ao modelo de desenvolvimento, optar pela agricultura, pela descentralização política ou, pelo contrário, enveredar pelo desenvolvimento industrial, concentrar o poder em Bissau, confiar em pleno nos projetos dos doadores. Sabe-se qual o modelo de desenvolvimento centralizador seguido pelos dirigentes do PAIGC e o seu falhanço, as tensões entre guineenses e cabo-verdianos que tiveram o seu desfecho no golpe de 14 de novembro de 1980.

Em jeito de conclusão, o investigador norte-americano resume os tópicos para futuras discussões sobre o pensamento e obra de Cabral, tópicos esses que ele considera os cinco principais em análise: o líder do PAIGC entendia que a luta pela independência da Guiné-Bissau ajudaria a suprimir a História interrompida do país, essa luta contra o colonialismo era o dínamo da História contemporânea, a matriz da identidade do Estado emergente; Cabral tinha uma visão singular de um socialismo, a sua teoria de nacionalismo revolucionário e libertação nacional fazia o entrosamento entre a cultura e a condição económica, acreditava que todo aquele sacrifício e dedicação pela causa da independência induziriam uma nova consciência em todas as linhas do progresso; a teoria da luta de classes das correntes do marxismo ortodoxo não eram por ele consideradas aceitáveis, ele identificou várias classes sociais, refletiu sobre as divisões e contradições existentes na sociedade guineense e nunca se iludiu com a noção de proletariado, reservou o papel de vanguarda para uma pequena burguesia sobre a qual teceu uma terrível consideração: ou se “suicidaria” ou aderiria ao nacionalismo revolucionário, deixou em muitos escritos uma organização de participação e confiava plenamente que o Estado independente iria absorver ou assimilar as novas estruturas das zonas libertadas.

Ronald Chilcote considera que tudo quanto se vier a estudar sobre o pensamento e a ação de Cabral não pode pôr de parte dois factos históricos: ele foi, acima de toda a luta pela libertação na Guiné, o pensador que dotou o novo país de um quadro organizativo e acreditava plenamente que mesmo com a modéstia de recursos a Guiné pudesse caminhar, também com a ajuda internacional, para novas sendas do progresso, com grandes transformações da economia agrícola; Cabral manejou, graças a uma análise independente do marxismo por uma fórmula nova que pretendia imprimir à situação revolucionária que ele sonhava para a Guiné-Bissau, a despeito de certas cedências ao marxismo ortodoxo.

O estudo de Chilcote inclui um importante apêndice e uma bibliografia anotada que merecem ser verificados, o que se fará seguidamente.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22977: Notas de leitura (1418): "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada (2021), por Arsénio Chaves Puim, um caso de grande sensibilidade sociocultural e de amor às suas raízes (Luís Graça ) - Parte III: a influência dos "calafonas"

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21619: Notas de leitura (1328): “Socialismo na Guiné-Bissau: problemas e contradições no PAIGC desde a independência”, na Revista Internacional de Estudos Africanos, N.º 1, Janeiro-Junho 1984 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Março de 2018:

Queridos amigos, 

Desconhecia a publicação (terá tido vida efémera) e li com agrado este artigo de Patrick Chabal [1951 - 2014] onde ele faz a súmula das principais teses com que trabalhou para o seu doutoramento em Cambridge. Impressiona a largueza da análise e a precisão da síntese, o cientista começa por fazer o chamamento dos muitos créditos auferidos pelo PAIGC pelo seu papel como movimento revolucionário e disserta sem habilidades sobre os porquês do falhanço da via socialista na Guiné-Bissau, em total dissonância com a linha de Cabral, os governantes do PAIGC cometeram todos os erros que Cabral previra, e com o falhanço económico encontraram os necessários bodes expiatórios na fratura política. 

Tudo preto no branco, escrito com rigor e numa linguagem viva e desenvolta.

Um abraço do
Mário



Um artigo de Patrick Chabal sobre o socialismo na Guiné-Bissau, 1984

Beja Santos

Quando está a preparar a sua tese de doutoramento sobre o título “Amílcar Cabral as Revolutionary Leader”, apresentada na Universidade de Cambridge, Patrick Chabal procede a uma súmula dos principais assuntos que há a abordar na sua investigação, publica-a sob a forma de artigo denominando-o “Socialismo na Guiné-Bissau: problemas e contradições no PAIGC desde a independência” será dado à estampa na Revista Internacional de Estudos Africanos, N.º 1, Janeiro-Junho 1984.

Quando Chabal visitou a Guiné-Bissau e Cabo-Verde em 1979, sente que na Guiné já se vive uma crise profunda, o país endivida-se a olhos vistos, o descontentamento é indisfarçável, tão indisfarçável como a orfandade de Cabral, os seus continuadores são figuras menores. 

De tudo quanto vê, procura em artigo traçar as linhas gerais para uma discussão aprofundada do socialismo na Guiné-Bissau, começa por analisar o que foi a luta armada, depois a natureza do Estado pós-colonial e mais adiante expõe o significado e as implicações do socialismo na Guiné-Bissau.

Enuncia em primeiro lugar as razões pelas quais o PAIGC foi um movimento nacionalista lusófono que ganhou renome mundial: pela forma como lutou, pelo esforço demonstrado na tentativa de reconstrução política, social e económica nas áreas onde tinha desempenho proeminente; pela condução discreta e autónoma como o líder do PAIGC obtinha apoios no chamado bloco socialista e no mundo ocidental e como tivera sucesso na mobilização das populações rurais intentando mobilizá-las para a atividade política a par do esforço na luta armada. 

Chabal reconhece que o processo de guerra nacionalista fora caldeando o PAIGC para uma organização política tão mobilizadora como a ação militar. O seu esforço de impulsionar uma coesão interétnica, Cabral conseguiu que o PAIGC se mantivesse flexível para com os quadros militares a serem premiados na hierarquia; e observa que Cabral se absteve, tanto quanto possível,  de utilizar uma fraseologia socialista ortodoxa, apoiava-se quase exclusivamente na ideologia pragmática e valorizava a procura de soluções para os problemas sociais, económicos e políticos. 

Quando desapareceu da cena política, em janeiro de 1973, deixara o PAIGC com ideologia e desenvolvida uma notada trama diplomática que excedia de longe a importância da Guiné-Bissau como país. Fora sempre o dínamo da CONCP – Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Africanas, recebia armamento dos soviéticos, mantinha boas relações com a China e tornara público que o PAIGC aderira a uma política muito rigorosa de não alinhamento, Holanda, Escandinávia e o Conselho Mundial das Igrejas foram indispensáveis para o fácil reconhecimento diplomático da Guiné-Bissau antes e depois do 25 de abril.

O Estado pós-colonial nasceu de visíveis contradições: o PAIGC ambicionava expandir a todo o país as estruturas políticas que trazia da luta armada e esbarrou logo com a macrocefalia de Bissau, não dispunha de qualquer experiência de domínio de centros urbanos e não estava clarificada a distinção entre o partido e o Estado, 

Cabral tinha antevisto uma “ideologia socialista indígena” que em muito excedia o PAIGC, era a janela de oportunidade para manter atuantes as populações agrícolas de todo o país, uma parte determinante da Guiné nunca se identificara com o PAIGC, a esperança depositada era num sistema político instituído como poder popular. Isso nunca veio a acontecer, a tal pequena burguesia que se suicidaria no altar da democracia revolucionária não desistiu de abancar prontamente na orgânica estatal. Em Bissau concentrou-se o poder político, a área de decisão e sobretudo a área de indecisão: como incrementar a agricultura e implementar um modelo industrial. E é no novelo destas contradições que começa a ganhar força a extrema fragilidade da integração política da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.

Como observa Chabal, esta política de unidade fora exclusivamente congeminada por Cabral, não há qualquer documento histórico de que este propósito unitário alguma vez tivesse feito o seu caminho, a própria intelectualidade guineense e cabo-verdiana eram contrárias ou, quanto muito, mantinham um estado de ceticismo profundo. 

Lançados em empreendimentos de industrialização que ruíram prontamente pela base, deixando o país financeiramente encalacrado, acirradas as tensões, logo que procurou o inimigo dentro da cidadela, régulos, funcionários leais aos portugueses e a tropa dos Comandos, ia crescendo a atmosfera de intimidação e terror, faltava o arroz, não se estabelecia a ligação entre a cidade e o campo, os projetos constitucionais de Cabo-Verde e da Guiné foram a faísca que espoletou o golpe de Estado.

Até esse golpe de Estado, o PAIGC não obteve resposta, não definiu uma linha clara para um projeto de desenvolvimento económico que acelerasse uma certa autossuficiência alimentar, a classe política vivia ofuscada pelo tal modelo industrial que se lhe afigurava como o farol do progresso. Não houve programa de modernização agrária, não se criou um sistema cooperativo, os Armazéns do Povo tornaram-se a prazo num pesadelo e mais uma fonte de descontentamento. 

1980, o ano do golpe de Estado, devido à incapacidade na prossecução de uma política agrária decente, saldou-se em mais de 50% dos alimentos essenciais a serem importados. Chabal passa em revista esses projetos falhados, desde os automóveis Citroen, passando pelo projeto da fábrica de açúcar do Gambiel, a fábrica de frutos e enlatados de Bolama e o complexo agroindustrial do Cumeré.

O autor debruça-se sobre o aparelho de Estado do PAIGC pós-Cabral. Após a independência, era numeroso o grupo que apostava na industrialização por ser a via mais eficaz para a transformação socialista. Aquela vanguarda não ouviu os representantes dos seus apoiantes rurais, começou a agir fora da realidade, divorciou-se dos camponeses, não conseguiu uma fórmula de coesão entre Bissau e as zonas rurais. Assim se deu o descrédito desse modelo de desenvolvimento socialista que se queria sobrepor aos interesses rurais específicos. 

Chabal reflete sobre o caminho que Cabral intentara seguir dentro dos parâmetros de um sistema político onde houvesse uma elevada coesão. Cabral não tinha ilusões de que o futuro económico do pequeno país dependia de um trabalho penoso, uma vida extremamente difícil na ausência de matérias-primas e de riquezas de subsolo. 

Como se estivesse a denunciar os erros da governação de Luís Cabral, Chabal transcreve uma passagem de uma entrevista que Basil Davidson fizera a Cabral, em que este relevara a sua dedicação absoluta à causa do desenvolvimento e do bem-estar dos campos:

“A abordagem global que nós temos é que todas as decisões estruturais devem ser baseadas nas necessidades e condições dos nossos camponeses. […] Acima de tudo, nós queremos descentralizar tanto quanto for possível. Essa é a razão por que estamos inclinados a pensar que Bissau não continuará a ser a nossa capital no sentido administrativo. […] Acerca da política económica depois da libertação, a prioridade estará no aumento da produção de alimentos. A agricultura está em primeiro lugar. Nós não temos ilusões: a Guiné é um país pequeno e comparativamente pobre. Continuaremos pequenos em tamanho e por um período longo continuaremos pobres”.

Esta era a “linha de Cabral” que não foi posta em prática.

Recorde-se que este artigo se confina a uma análise que vai desde a luta armada até ao golpe de Estado de 14 de novembro de 1980.

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Nota do editor

Último poste da série de 30 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21596: Notas de leitura (1327): "A Caixa de Correio de Nossa Senhora", por António Marujo; Círculo de Leitores e Temas e Debates, Outubro de 2020 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 11 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19575: Notas de leitura (1157): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (4) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,
Se dúvidas subsistissem sobre a importância desta obra antológica elaborada por investigadores do mais alto nível e onde participaram estudiosos de mérito, essa dúvidas dissipam-se com as análises efetuadas na última parte do livro: o significado da diáspora; os fundamentos da etnicidade na turbulência política das últimas décadas; onde e como se impôs o Narco-Estado a partir do momento em que a militarização do regime subalternizou as instituições democráticas e como, em 2014, havia todos os ingredientes para encostar à parede a clique militar, após a vigilância norte-americana.
A instabilidade não passou mas as qualidades do povo, o elevado nível de convivência e a solidez das sociedades rurais indicam que a esperança se mantém de pé.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: de Micro-Estado a Narco-Estado (4) 

Beja Santos 

Concluímos hoje as recensões sobre a obra “Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016, constituída por um acervo de estudos dedicados à memória de Patrick Chabal, falecido em Janeiro de 2014, e que idealizou até ao fim dos seus dias a organização desta análise coletiva com Toby Green. Obra constituída por três partes (fragilidades históricas; manifestações da crise e consequências políticas da crise) convocou nomes importantes da historiografia da Guiné-Bissau no plano internacional como Toby Green, Joshua B. Forrest, Philip J. Havik, entre outros. Doravante, não se poderá ter um grande ecrã das investigações deste tempo sem consultar análises tão pertinentes, algumas delas completamente ausentes nos estudos sobre a história contemporânea da Guiné-Bissau. Veja-se logo o primeiro estudo sobre a diáspora guineense depois do conflito político-militar, recordando as rotas clássicas da diáspora, a presença de guineenses em Portugal e um pouco por toda a Europa, lembrando que na diáspora ganhou relevo certos blogues como Didinho, Doka Internacional e Intelectuais Balantas na Diáspora. Aspeto que o autor considera é a dispersão de estudantes em muitas universidades como Marrocos, Argélia, Nigéria, Rússia, China, Senegal e Brasil. É também referido como vivem os migrantes nos subúrbios de Lisboa, como se processam as relações entre a diáspora e a pátria e dá-se a sugestão para a criação de um fórum entre guineenses em diáspora para promover o desenvolvimento e construir a paz, um lóbi que suporte iniciativas para o desenvolvimento da Guiné-Bissau.

Um outro autor debruça-se sobre a questão étnica e interétnica, a questão étnica não esteve ausente das eleições de 2014, e o exemplo mais claro foi dado pelo PRS – Partido da Renovação Social, que fez campanha sobre a aura da etnia Balanta, mas que não conseguiu sugestionar o eleitorado que preferiu José Mário Vaz. As grandes fraturas hoje existentes no PAIGC não assentam na etnicidade mas sim na concertação de grupos que querem chegar ao poder e manobrar negócios. O autor faz um breve historial da questão étnica do lado da luta armada e da sua exploração do lado colonial, as grandes tensões e confrontos dividirão guineenses e cabo-verdianos, assistir-se-á depois ao vexame dos Balantas, será a interetnicidade a ganhar força durante o conflito político-militar, Kumba Ialá exacerbará a questão étnica e tentará misturá-la com a questão religiosa, sem sucesso pois a convivência religiosa entre guineenses está de pedra e cal. A coligação entre os militares ligados à droga para destituir Raimundo Pereira e Carlos Gomes Júnior e afastar a influência angolana foi uma coligação de interesses devido à traficância de droga, explorando o sentimento de que a CEDEAO não aceitava Angola dentro deste quadro político e geoestratégico.

Num outro ensaio apreciam-se as questões de segurança na Guiné-Bissau no quadro da geopolítica global, são referidos os diferentes atores, as missões de paz das Nações Unidas, o histórico da política externa guineense desde a sua postura não-alinhada, depois da independência, a deslocação para a esfera francesa e a aceitação de pertencer à CEDEAO e a ascensão da instabilidade quando alguns políticos e militares aderiram ao tráfico da cocaína. Têm vindo a falhar as diferentes tentativas da reforma do Estado e das Forças Armadas, Angola fez propostas e pôs dinheiro em cima da mesa, os militares da droga perceberam que ficariam algemados, desencadearam um golpe de Estado. O investigador dá conta das tentativas desenvolvidas a partir da eleição de José Mário Vaz para se chegar a um plano de arranque para o desenvolvimento, foi assim que se criou o plano “Terra Ranka”, que chegou a ter previsto um financiamento superior a um bilião de dólares, a seguir veio a barafunda institucional, os doadores continuam à espera que as entidades guineenses dêem sinais de maturidade.

O impacto do Narco-Estado é matéria de outro estudo onde se parte da consideração que a militarização do regime, logo em 1980, por etapas sucessivas levou à anomia do quadro político por sujeição a uma clique militar que beneficia do trânsito da cocaína e da cumplicidade com o cartel colombiano. O aspeto curioso é que a chegada ao poder de José Mário Vaz era contemporâneo do enfraquecimento dessa clique graças à vigilância norte-americana coroada de êxito com a prisão de Bubo Na Tchuto e a neutralização de António Indjai. Esta instabilidade é acrescida com os acontecimentos do Casamansa, um conflito que precisa de instituições sólidas na Guiné-Bissau para pôr termo ao livre-trânsito de vendedores de águas, traficantes de crianças e mercenários na região.

A conclusão de todo este estudo cabe a Toby Green que resume admiravelmente a passagem da colónia da república independente e a multiplicidade dos conflitos que surgiram e refere os contextos adversos a partir de 1974: crise petrolífera, ascensão e consagração das teses neoliberais, crescentes desigualdades entre o Norte e o Sul à esfera global, passagem de um coletivismo demencial para um liberalismo que favoreceu uma certa clique do regime, a emergência de monocultura do caju, um sistema económico à deriva. Daí a resistência posta pelas sociedades rurais para sobreviverem a um sistema político autodevorador, em que em todas as instituições se cobiçam benefícios da ajuda externa e do financiamento de projetos. Os indicadores de desenvolvimento humano são dos mais baixos do mundo, mas o povo mantém-se admirável, pela sua convivência, pela sua esperança, pela sua energia cultural. Daí poder dizer-se que a construção da nação está em marcha enquanto o Estado faz parte do imaginário coletivo. Talvez a retoma ao princípio da justiça e da igualdade entre todos os povos da Guiné, que fez parte do sonho de Cabral, possa ser a mola de arranque para solidificar as estruturas da colaboração interétnica e estabelecer as novas bases da confiança mútua, dentro de um princípio consciente de aprender com os erros do passado e saber perdoar.
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Notas do editor

Postes anteriores de:

18 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19505: Notas de leitura (1151): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

25 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19526: Notas de leitura (1153): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (2) (Mário Beja Santos)
e
4 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19548: Notas de leitura (1155): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (3) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 8 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19562: Notas de leitura (1156): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (76) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 4 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19548: Notas de leitura (1155): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,
Na sequência das análises que se tem feito a um importante livro que é uma homenagem a um grande investigador, Patrick Chabal, dois autores apreciam as instituições da sociedade rural e a sua proverbial estabilidade que agora estão em mudança graças a vários fatores: a arbitrariedade dos preços do caju, a crescente procura de trabalho no exterior, a ameaça de segurança alimentar (entenda-se o risco e não haver comida para todos, até agora tem havido, a ameaça permanente é a subnutrição).
Outros dois autores dão-nos um quadro bem curioso do pluralismo religioso e da convivência interétnica, que permite a previsão de que não há condições para a presença avassaladora do terrorismo e fundamentalismo islâmico.
Por último, outro autor aborda a descriminação de género, um dos aspetos mais grotescos do incumprimento das promessas de Amílcar Cabral, isto quando a mulher combateu ao lado do homem, destemidamente, na luta de libertação.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: de Micro-Estado a Narco-Estado (3)

Beja Santos

“Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016, é constituído por um acervo de estudos dedicados à memória de Patrick Chabal, falecido em Janeiro de 2014, e que idealizou até ao fim dos seus dias a organização desta obra com Toby Green. Obra constituída por três partes (fragilidades históricas; manifestações da crise e consequências políticas da crise) convocou nomes importantes da historiografia da Guiné-Bissau no plano internacional como Toby Green, Joshua B. Forrest, Philip J. Havik, entre outros.

A introdução e a primeira parte, dedicada às fragilidades históricas, motivaram os dois primeiros textos.
Iniciamos hoje a segunda parte, centrada nas manifestações de crise. Marina Padrão Temudo e Manuel Bivar Abrantes retomam a questão da estabilidade social e do modo de viver rural. Tenha-se em conta o que outros autores já referiram: o caráter suave do Estado da Guiné-Bissau, a sua ineficácia no processo de elaboração de políticas, o seu gradual desfasamento fazer chegar as instâncias do PAIGC à sociedade rural, aos poucos a participação política foi-se restringindo; foram exíguos os investimentos na agricultura, soçobraram as medidas de nacionalização do import/export e a nacionalização das terras não passou de uma utopia. Para estes dois autores as sociedades rurais guineenses foram resilientes, fizeram frente aos desaires do Estado, resistiram às suas prepotências e irresponsabilidades com a política agrícola. Mas o conflito político-militar de 1998-1999 apanhou as sociedades rurais já na monocultura do caju, as deslocações maciças de população desestabilizaram as formas de viver, uma coisa é a pobreza com alimentação e mesmo focos de subnutrição, outra coisa é subitamente as tabancas do interior serem confrontadas com insegurança alimentar. Até recentemente, estes pequenos agricultores e os ponteiros conseguiam uma harmonia precária entre a comida de subsistência e a produção de troca e a exportação, nomeadamente o caju.

Está devidamente estudado que a intervenção colonial não desarticulou, dentro de certos limites, este precário equilíbrio nas sociedades rurais. O amendoim foi o produto de exportação por excelência entre 1846 e 1974. Houve igualmente exportação de arroz para a Europa, que se iniciou na década de 1930, a guerra de libertação inverteu esta tendência. Distinguem-se fundamentalmente os modos de sobrevivência alimentar dos povos animistas (com os Balantas e os Manjacos à cabeça) dos muçulmanos. Seja como for, é na diversidade étnica que se encontram formas complementares destes sistemas de modo de vida que integram cereais, coconote, óleo de palma, arroz, com uma correspondente economia de troca, onde pode entrar carne, pescas, frutos e outros produtos. A guerra de 1998 levou a que mais de 200 mil guineenses urbanos tenham procurado refúgio nos campos, houve que encontrar acolhimento e amortecimento ao choque de providenciar comida em tão grandes quantidades aos refugiados. Os autores abordam o fenómeno das pontas exploradas ao tempo em que houve financiamentos durante o processo de ajustamento estrutural, agravou as desigualdades sociais e criou uma nova elite política e financeira que, de um modo geral não pagou ao Estado os créditos concedidos pelas linhas generosas desse dinheiro vindo do exterior. Os autores fazem uma análise demorada das mudanças sociais que se estão a operar na vida comunitária cuja evidência é a explosão migratória, a perda da autoridade dos mais velhos e o crescente número de casamentos interétnicos. A monocultura do caju está a revelar-se um desastre, os agricultores estão cada vez mais dependentes de compradores que jogam com as baixas cotações do mercado internacional, a Índia está a tornar-se um feroz competidor e o mercado dos cereais é cada vez mais instável. As mudanças em curso estão a reduzir a solidariedade nas comunidades rurais.

Bem curioso é o artigo de Ramon Sarró e de Miguel de Barros sobre a convivência entre credos religiosos, entre crentes monoteístas e animistas. É crescente a presença da religião na esfera pública e o pluralismo de opiniões é uma moeda corrente. Os autores dão como exemplo a povoação de Enxalé onde há 8 diferentes línguas, uma mesquita, uma igreja católica, um templo protestante, neopentecostais e balobeiras, membros do movimento profético Kyang-yang, onde se misturam elementos simbólicos do Islão, da cristandade e da religião Balanta. Eles analisam historicamente o mapa religioso da Guiné-Bissau a partir das etnias, das práticas religiosas, para concluir que até ao presente têm funcionado com sucesso todos os processos de mediação entre convicções religiosas, acentuando que em pleno conflito político militar todos os atores se reuniram fazendo um apelo à paz.

O último artigo é da responsabilidade de Aliou Ly que analisa as relações de género na Guiné-Bissau destacando que todas as promessas de Cabral no campo da promoção da mulher têm sido ignoradas pelos sucessivos poderes, ao longo de 40 anos. A mulher continua marginalizada do sistema político, o seu contributo nas estruturas sociais e económicas está praticamente limitado ao trabalho braçal e a obedecer sem reticências ao homem, estão sub-representadas no sistema educativo, administrativo e nas instituições políticas de todo o tipo. Estuda o impacto da marginalização da mulher na Guiné pós-independente, a despeito de muitas licenciadas que se impõem no mundo dos negócios. As leis contra a discriminação de género não são respeitadas, é notória a resistência masculina como se mantêm inúmeras desigualdades de classe e étnicas que agravam a condição da mulher. Nos primeiros anos da independência ainda se falava nas heroínas como Titina Sila, referindo-se sempre com respeito mulheres como Francisca Pereira ou Carmen Pereira. O autor atribui responsabilidades a este fenómeno discriminatório logo à governação de Luís Cabral, teria começado aqui o círculo vicioso da desigualdade de género e da imposição da ordem masculina. Os homens emigram para os países limítrofes, as mulheres ficam com cada vez mais trabalho na tabanca e na vida familiar. O paradoxo de tudo é que Amílcar Cabral tinha prometido que se construiria um país com igualdade e melhor vida para todos.

O próximo e último artigo centra-se na diáspora guineense depois de 1998, as consequências políticas da crise e o aparecimento do Narco-Estado e Toby Green apresenta as suas conclusões.

(Continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 25 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19526: Notas de leitura (1153): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 1 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19543: Notas de leitura (1154): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (75) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19526: Notas de leitura (1153): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Outubro de 2016:

Queridos amigos,

A questão agrária é a espinha dorsal dos acontecimentos guineenses pós-coloniais. Durante o período da luta armada, Cabral motivara os quadros políticos para um desenvolvimento agrícola descentralizado e na base do respeito popular. No período a seguir à independência investiu-se pouco na agricultura e apostou-se num modelo faraónico agroindustrial, também assente na substituição de importações. Descurou-se a formação agrícola, desapareceram os subsídios, as sociedades rurais ficaram entregues a si próprias.

É essa notável resiliência que o investigador Philip Havik analisa neste livro, que é seguramente o documento histórico-político mais importante de 2016, no que concerne à Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário

Guiné-Bissau: de Micro-Estado a Narco-Estado (2)

Beja Santos

“Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016, é constituído por um acervo de estudos dedicados à memória de Patrick Chabal, falecido em Janeiro de 2014, e que idealizou até ao fim dos seus dias a organização desta obra com Toby Green. Obra constituída por três partes (fragilidades históricas; manifestações da crise e consequências políticas da crise), convocou nomes importantes da historiografia da Guiné-Bissau no plano internacional como Toby Green, Joshua B. Forrest, Philip J. Havik, entre outros.

Compete a Philip Havik, investigador sénior no Instituto de Higiene e Medicina Tropical e professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa uma apreciação em profundidade da economia rural e da sociedade guineense.

No meu livro “História(s) da Guiné-Bissau”, Edições Húmus, 2016, procurei apurar como o PAIGC abordou a questão agrária, antes e depois da independência, e que tratamento político foi dada à chamada “linha de Cabral”, e invoco os trabalhos de Philip Havik nesta área. O PAIGC do tempo de Cabral punha em lugar de topo o desenvolvimento agrícola a par da mobilização rural, da descentralização política e numa perspetiva da melhoria dos níveis de vida das famílias camponesas.

O PAIGC não ignorava que a sua base militante se situava nos campos, mas ascendo ao poder com um pano de fundo de crise económica mundial, as agências internacionais não puderam acompanhar o impulso de modernização. Só no III Congresso é que o PAIGC apresentou uma estratégia para um desenvolvimento equilibrado que incluía programas de formação destinados aos agricultores guineenses. O grande objetivo era obter-se um excedente alimentar, sobretudo em arroz. Isto aconteceu no mesmo ano em que ocorreu uma grave seca. Os centros de extensão agrícola são criados enquanto os Armazéns do Povo e a SOCOMIN eram supostas oferecer crédito à custa da diferença de preços no produtor e no retalho/exportação.

Contrariando vozes autorizadas, o governo lançou-se na construção de um gigantesco complexo agroindustrial destinado ao descasque de arroz. Os investimentos injetados na agricultura, no entanto, eram mínimos. A “linha de Cabral” fora desviada. Com o golpe de Estado de Novembro de 1980 anunciou-se um regresso a essa linha de Cabral. Mas também não se passou das intenções. Philip Havik escreveu, a tal propósito:

“A falta de quadros e de infraestruturas prejudicou seriamente a capacidade do Estado em planear e executar as suas intervenções na agricultura. O conflito então em curso entre as facções populista e tecnocrata, ou seja, entre os militantes rurais formados no mato e os educados na Europa e noutros locais, surge como factor determinante na incapacidade de um aparelho de aparelho de Estado supercentralizado mobilizar os camponeses, que não eram encarados como uma classe”.

Em resultado, deu-se um afastamento dos camponeses face aos decisores políticos instalados em Bissau.

Philip Havik observa que, ao abandonar a sua função mobilizadora, o PAIGC travestiu-se numa classe média burocratizada e mercantil. Os agricultores ficaram progressivamente mais pobres e entregues a si próprios.

No seu ensaio no livro de homenagem a Patrick Chabal, Havik retoma as suas teses de que a produção industrial e a substituição de importações se fez em detrimento do pensamento de Cabral e que a seguir ao golpe de Estado de 1980 as medidas associadas às políticas de ajustamento estrutural deixaram a agricultura periférica. Nunca se encontrou autossuficiência no arroz, a produção de amendoim veio a ser gradualmente substituída pela produção de caju. Enquanto o Estado enfraquecia, as sociedades agrícolas procuravam encontrar soluções graças aos djilas e aos compradores diretos de amendoim e caju. Philip Havik recorda que em meados do século XX o amendoim se apresentava como excelente produto de exportação, criaram-se pontas ou propriedades agrícolas que privilegiavam o amendoim e o coconote.

Quando Nino Vieira ascendeu ao poder e deu luz verde ao plano de ajustamento estrutural veio muito dinheiro para crédito agrícola e que acabou desviado para formar uma classe rica a explorar as novas pontas. Philip Havik observa as grandes questões étnicas do século XX, incluindo a luta de libertação, à luz da resposta das sociedades agrícolas. Mais adiante recorda a organização económica colonial pós o período da pacificação, em que preponderavam as exportações da CUF e as transações da Sociedade Comercial Ultramarina, Barbosa & Comandita, Nunes e Irmãos, Mário Lima, bem como uma série de negócios dirigidos por cabo-verdianos, sírios e libaneses.

O PAIGC trazia um plano de nacionalizações e previa a integração de uma agricultura coletiva a par de uma distribuição estatal onde preponderavam os Armazéns do Povo e a SOCOMIN (integraram a Casa Gouveia, que mesmo durante o período da luta armada conseguiu manter uma gestão apreciável no import/export).

O dado importante deste ensaio de Philip Havik é a forma como ele integra a sua análise a partir do período colonial, destacando a etapa de desenvolvimento em torno de meados do século XX, como conflituaram a linha colonial e pós-colonial, como depois da independência foram permitidas depredações no campo florestal na miragem de bons negócios na venda de madeiras exóticas (é atualmente um dos grandes interesses dos chineses na Guiné-Bissau), e como se manteve a fragilidade da economia rural neste enorme puzzle de conflitos, migração, alterações climáticas e ambientais, falta de apoio à modernização agrícola e em que a reposta óbvia foi os agricultores encontrarem os seus meios de subsistência tanto na economia de troca como na monocultura.

A Guiné-Bissau é correntemente apresentada como um Estado frágil e passadeira de droga, mas à margem dessa cupidez e constituição de uma classe suportada por uma clique militar e política, a economia rural demonstra uma notável capacidade para resistir indiferente à fragilidade das instituições políticas, resiste pela economia informal, com as precárias infraestruturas de educação e saúde e com um 'per capita' dos mais pobres do mundo.

Como observa Philip Havik, a despeito de todos estes constrangimentos, a riqueza e a diversidade dos recursos económicos, sociais e culturais permanece o pilar fundamental da resiliência da sociedade rural e da possível dinâmica guineense.

(Continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 18 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19505: Notas de leitura (1151): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 22 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19516: Notas de leitura (1152): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (74) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15268: Da Suécia com saudade (54): Relendo o livro do prof Patrick Chabal, "Amilcar Cabral: Revolucionary Leadership and People's War" (1983): o PAIGC e a saúde (José Belo)

1. Mensagem de José Belo:

 [ foto atual à direita: José Belo, ex-alf mil inf, CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); atualmente é cap inf ref e vive na Suécia há quase 40 anos; no outono / inverno, costuma "emigrar" para Key West, Florida, EUA, onde a família tem negócios]:


Data: 17 de outubro de 2015 às 13h15

Assunto: Notas de leitura: Patrick Chabal, Professlor de "Lusophone African Studies" [Estudos africanos lusófonos], no King's College]. London, Cambridge University Press, 1983. Parte II: O PAIGC e a saúde (*)


Com o surgir da guerra a necessidade de cuidados médicos aumentou dramaticamente. O PAIGC não podia negligenciar o tratamento dos seus militares.

Cabral desde logo compreendeu que simples hospitais provisórios näo seriam suficientes para tal.
A política então seguida pelo partido procurou desenvolver um sistema sanitário que poderia vir a constituir a base de futuros servicos médicos nacionais no pós-independência. Procurava-se criar uma estrutura que viesse a beneficiar simultaneamente as populações rurais e os militares.

Tornou-se desde logo evidente serem os problemas surgidos com a implantação de um sistema de saúde, mesmo que limitado, muito superiores aos relacionados com os programas de educação. Por exemplo, o pessoal de enfermagem necessita de um treino profissional muito mais demorado e elaborado do que professores escolares ao níível de tabanca.

O equipamento, mesmo que rudimenter, é também essencial e caro.

Em 1964 a assistência sanitária foi criada em cada uma das estruturas locais do PAIGC. De facto, continuou a ser um serviço de características mínimas, com um dos cinco membros dos Comités de Aldeia encarregado desta assistência.

Mas, um tal sistema para ser efectivo tornava necessário uma centralização de meios. O objectivo principal do PAIGC era o de estabelecer locais de tratamento em todos os níveis administrativos do país (região,sector ou tabanca) desenvolvendo métodos efectivos de medicina preventiva nas tabancas.

A magnitude da tarefa é bem demonstrada pelo facto de em 1964 o PAIGC não dispor de um único médico (!). O irmão de Amilcar Cabral, Fernando, que então estudava medicina na Suécia, morreu num acidente de viação no Senegal.



Foto nº 19 > Posto de enfermagem no mato... É impossível identificar e garantir a localização desta foto... tanto podia ser junto à fronteira sul com a Guiné-Conacri como nas matas do Cantanhez... [Legenda original: "A nurse is leaving her staff accommondation on her way to the hospital in the woods in the liberated areas of Guinea Bissau."]

Guiné > PAIGC > s/l> Novembro de 1970 > Uma das fotos do fotógrafo norueguês Knut Andreasson, tiradas por ocasião de um visita de uma delegação sueca (, chefiada pela  deputada social-democrata e antiga presidente do parlamento sueco, Birgitta Dahl; a visita foi à Guiné-Conacri e aos núcleos populacionais controlados pelo PAIGC, as chamadas "áreas libertadas", no período de 6 de novembro a 7 de dezembro de 1970). Algumas destas fotos foram publicadas no livro Guinea-Bissau : rapport om ett land och en befrielserörelse / Knut Andreassen, Birgitta Dahl, Stockholm : Prisma, 1971, 216 pp. [Título traduzido para português: Guiné-Bissau: relatório sobre um país e um movimento de libertação]. (**)

Fonte: Nordic Documentation on the Liberation Struggle on Southern Africa [Com a devida vénia] [Seleção e edição: LG]


A partir de 1971 a situação melhorou consideravelmente com a criação de 9 hospitais (5 no sul, 2 no norte e 2 no leste), oito dos quais sob a contínua chefia de um médico. Estes hospitais dispunham de número suficiente de pessoal de enfermagem apesar de as disponibilidades em equipamentos serem muito limitadas.

Devido aos perigos de bombardeamentos o número de camas hospitalares era reduzido, sendo os pacientes de lá retirados o mais rapidamente possível. Os próprios hospitais mudavam frequentemente de local por razões de segurança.

A existência de 3 hospitais em segurança (!) (2 dentro da República da Guiné, Boké, o principal e junto á fronteira, o outro, Koundara;  e o terceiro em Ziguinchor no Senegal) tornou-se o factor determinante de um eficiente funcionamento hospitalar.

Eram unidades vastas e modernas, bem equipadas (por bem financiadas),dispondo de cirugiões e de outros médicos especialistas.

De acordo com o PAIGC o número de postos sanitários funcionais dentro das áreas libertadas passou de 28 em 1968 a 117 em 1971. Muitos destes postos sanitários eram pequenos e móveis,tratando unicamente os problemas de saúde mais simples. Outros, maiores, sob a direção de um médico, funcionavam como pequenos hospitais, estando mesmo alguns preparados para efectuar cirurgias.

A política de descentralização da assistência sanitária foi reforçada em 1969 com a criação de "Brigadas Móveis de Saúde". Eram formadas de, pelo menos, uma enfermeira e um enfermeiro, que trabalhavam normalmente num hospital ou dispensário do sector,e que tinham como responsabilidade a assistência sanitária a um determinado número de tabancas.

Tinham como objectivos principais a criação de medicina preventiva, melhorar as condições de higiene nas áreas rurais,e de tratar, ou enviar para os hospitais, os casos mais graves. Estavam também encarregados de ensinar o responsável pela saúde da tabanca no uso de medicações simples e de diferentes métodos de higiene.

Este sistema, que faz lembrar o usado então na China pelos chamados "médicos de pés descalços",só começou a ser formado no início dos anos setenta.

Desde logo, Amilcar Cabral compreendeu ser este um dos aspectos fundamentais na futura assistência médica de uma Guiné independente. Escreveu entäo :"Dadas as condições não podemos julgar ter possibilidades de criar hospitais em todos os centros urbanos e, ao mesmo tempo, no interior. É impossível!  Temos antes que criar um sistema de assistência médica móbil disponde de capacidades cirúrgicas".

O PAIGC era dependente de substancial número de médicos estrangeiros voluntários, sendo a maioria cubanos ou de países do leste europeu. A falta de médicos guineenses continua a fazer-se sentir nos nossos dias, tornando necessária a existência de largo número de médicos estrangeiros a trabalhar no país.

Apesar dos resultados obtidos pelo PAIGC no sector da saúde terem sido modestos, tanto em qualidade como em quantidade, foram muito importantes para uma população rural que até ao início da guerra (!) tnha tido poucos benefícios da medicina moderna sob o governo colonial.

Este aspecto mostrou-se desde o início um grande capital político para o PAIGC.

Um abraço. José Belo.

2. Nota do editor > In Memoriam: Patrick Chabal (1951-2014)


Patrick Chabal morreu há um ano e meio, em 16 de janeiro de 2014, de doença de evolução prolongada, com a idade de 62 anos. A sua obra mais conhecida é de facto a biografia (política) de Amílcar Cabral ("Amílcar Cabral: revolutionary leadership and people's war", Cambridge, 1983), mas deixa cerca de 180 obras (entre livros, capítulos de livros e artigos científicos) na área em que era especialista, os estudos africanos, e de que era o decano.

De origem francesa, com formação anglo-saxónica, era um académico reputado, prestigiado e com muitos amigos, entre colegas e alunos, incluindo investigadores de língua portuguesa.

 Esteve várias vezes em Portugal, a última das quais em junho de 2013, escassos meses antes de morrer. Era casado e tinha um filho. Conheci-o em 2008, no âmbito do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de março de 2008). A notícia da sua morte no nosso país só foi conhecida no mundo académico mais ligado aos estudos internacionais (caso do CEI/ISCTE, por exemplo). Infelizmente, e contrariamente a França, Portugal nunca teve, infelizmente, á esquerda e á direita, uma verdadeira diplomacia cultural...

Em 13 de maio de 2011, Chabal participou em Lisboa no ciclo de conferências da Fundação Calouste Gulbenkian, "Próximo Futuro", com o tema "Racionalismo ocidental depois do pós-colonialismo".

Sinopse sobre a conferência e o autor (com a devida à página da FCG):

«Racionalismo ocidental depois do pós-colonialismo»

O futuro do Ocidente está estreitamente ligado ao do mundo não ocidental. As questões ambientais que o mundo enfrenta e o crescimento inexorável do poder económico da China e de outros países asiáticos fazem com que o Ocidente não possa olhar "para o que vem a seguir" da mesma forma que o fazia antes. Mas o desafio é bem mais profundo do que o actual debate sobre o "declínio do Ocidente" sugere. A minha intervenção centrar-se-á no modo como o desafio pós-colonial colocado à perspectiva que o Ocidente tem do mundo e a influência de cidadãos não ocidentais a viver no Ocidente se juntaram para evidenciar os limites daquilo a que posso chamar o racionalismo ocidental - com o que me refiro às teorias que utilizamos para entender e agir sobre o mundo. A incapacidade crescente do pensamento social ocidental para explicar de forma plausível e abordar com êxito algumas das suas questões sociais e económicas, e alguns dos desafios contemporâneos cruciais a nível da política internacional, deixaram a nu a inadequação das ciências sociais do Ocidente à medida que se foram desenvolvendo nos séculos subsequentes ao Iluminismo. Aquilo de que o Ocidente precisa, mas que ainda não aceitou, não é de mais e melhor teoria, mas de uma nova forma de pensar.

Patrick Chabal

Patrick Chabal é francês e estudou em França, nos EUA e na Grã-Bretanha. Fez investigação e deu aulas na Universidade de Cambridge (onde se doutorou em Ciências Políticas) e é actualmente professor no Departamento de História do King's College (Londres). Para além disso, foi professor visitante em Itália, em França, na Suíça, na Índia, em Portugal, na Venezuela e na África do Sul. Está envolvido num projecto a longo prazo em que se conjuga o estudo da cultura na política comparada e a pesquisa da teoria das ciências sociais. Entre as obras que deu à estampa, muitas delas traduzidas para diversas línguas, incluem-se: Amílcar Cabral (1983), Power in Africa (1992), Vozes Moçambicanas: Literatura e Nacionalidade (1994), The Postcolonial Literature of Lusophone Africa (1996), Africa Works: Disorder as Political Instrument (1999), A History of Postcolonial Lusophone Africa (2002), Culture Troubles: Politics and the Interpretation of Meaning (2006), Angola: The Weight of History (2008), Africa: The Politics of Suffering and Smiling (2009). Em 2012, deve sair The End of Conceit: Western Rationality after Postcolonialism.

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Notas do editor:

(**) Vd. poste de 9 de novembro de  2014 > Guiné 63/74 - P13865: Da Suécia com saudade (45): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte VI): Para além de meios de transporte automóvel (camiões e outras viaturas Volvo, Gaz, Unimog, Land Rover, Peugeot, etc.), até uma estação de rádio completa, móvel, foi fornecida ao movimento de Amílcar Cabral, sempre para fins "não-militares"... (José Belo)

domingo, 9 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2621: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (3): Pequeno-almoço no Saltinho, a caminho do Cantanhez




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > 1 de Março de 2008. Saltinho, na Estrada Bissau - Mansoa - Bambadinca-Saltinho - Quebo - Gandembel - Guileje. Paragem no Saltinho, no Clube de Caça, para tomar um segundo pequeno-almoço reforçado. Que a viagem é longa até ao Guileje (chegada prevista às 12h30), no âmbito do programa social do Simpósio Internacional Guiledje Na Rota da Independência da Guiné-Bissau (1) Enquanto se come, pode-se ouvir em silêncio, na margem direita do Rio Corubal, a água que corre nos rápidos do Saltinho. Na volta, quero ver os rápidos de Cusselinta.



Guiné-Bissau > Bissau > 1 de Março de 2008 > Concentração da caravana automóvel por volta das 7h00. A caminho do sul do país. Esperamos chegar a Guileje daqui por 5 horas e meia, com quatro paragens (Saltinho, ponte Balana, Gandembel, Corredor de Guileje).

O Rio Coruabl no Saltinho continua a ser, quarenta anos depois, um deslumbramento. Mesmo na época seca. Vim aqui apenas um ou duas meses, integrado em colunas logísticas que partiam de Bambadinca (Sector L1 / Zona Leste) e traziam os abastecimentos indispensáveis aos nossas tropas e populações estacionadas em Mansambo, Xitole e Saltinho. Em geral, íamos até ao Xitole que depois fazioa chegar os respectivos abastecimentos aos seus vizinhos do Saltinho (que pertenciam já a outro sector, o L5, sediado em Galomaro.


Mercado local, improvisado, antes da Ponte do Saltinho. As populações locais são céleres a reagir às notícias de chegada de turitas... Notícias que agoram chegam num instante, através do telemóvel bem como das rádios e televisões comunitárias....



Paragem no Saltinho às 9h30 para um segundo pequeno reforçado...





O Paulo Santiago, que esteve aqui a comandar o Pel Caç Nat 53, conversa com um diplomata português, o nº 2 da Embaixada de Portugal em Bissau.... Em segundo plano, o o Julião Soares e o Pepito.

Os três Gringos de Guileje nunca tinham andado por aqui, segundo creio...

Estamos no chão fula... Vê-se elas tabancas e as cabeças de gado que agora pastam nas bolanhas... Não há fula que não tenha uma história de colaboração com as autoridades coloniais portuguesas: como polícias administrativos, como milícias, como militares...

Uma imagem pouco usual no meu tempo: uma mulher com dois gémeos... Não sei qual é hoje a prevalência do infanticídio...


A Francisca Quessangue, esposa do Roberto, presidente da Assembleia Geral da AD, é uma doçura de pessoa. E, no entanto, tinha todas as razões para ter ódio no seu coração: o pai foi morto, com três tiros, friamente, por tropas africanas, por se recusar a denunciar os camaradas da guerrilha do PAIGC... Uma tia dela que estava grávida e que assistiu, aterrorizada, a esta cena, escondida por detrás de uma árvore, teve um aborto espontâneo. O pai da Francisca era papel, da região de Bissau. Viveu no mato, onde ela cresceu. Tinha responsabiliddaes políticas, não era combatente. A Francisca estudou enfermagem na ex-União Soviética. Estava num hospital de rectaguarda, na fronteira, aquando do ataque a Guileje. Hoje é enfermeira no Hospital Regional do Gabu. É uma das oradoras do Simpósio. Vai fazer uma comunicação sobre "os aspectos sanitário-logísticos do PAIGC no assalto ao quartel de Guiledje", dia 6 de Março. Ostenta uma T-shirt com uma campanha da Unicef Semana Nacional de Amamentação. Hoje na Guiné-Bissau as jovens mães já não querem dar de mamar aos seus filhos, por razões estéticas...



À entrada do Clube de Caça: A Isabel e a Alice... Em segundo plano, uma jovem cooperante portuguesa, licenciada em Relações Internacionais, conversa com um africano... Adora a Guiné e o seu povo. É natural do concelho de Seixal. Não fixei o seu nome.


O Patrick Chabal foi dar uma volta para ver mais de perto o Corubal, o único verdadeiro rio da Guiné, como defendia o seu biografado, o Amílcar Cabral.

O Coronel Art Ref Nuno Rubim conversa com um antigo milícia ou militar de uma companhia de caçadores, africana... Se bem me lembro, era no Quebo. Talvez a CCAÇ 18.

O António Camilo, algarvio de Lagoa, é com o o Xico Allen um dos campeões das viagens à Guiné. Gosta tanto deste país que cá já construiu uma morança, no Clube de Caça do Saltinho, mesmo em cima do Corubal. Ei-lo aqui à porta de casa. Com o seu amigo Carlos Silva (em primeiro plano).

O Pepito está atento à caravana que vai retomar a marcha... Por detrás da realização do Simpósio Internacional de Guileje há uma logística impressionante, de que os participantes a pouco e pouco se vão dando conta...



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Fevereiro de 2005 > Memorial da CCAÇ 2406 (Os Tigres do Saltinho, 1968/70) (à direita, numa foto do Paulo Santiago) (2); o mesmo memorial, à esquerda, muito mais degradado, em 1 de Março de 2008...

Fotos, vídeo, legendas: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

1. No percurso entre Bissau e Saltinho, não tomei grandes notas. Nem tirei fiotos. A caravana seguia a boa velocidade. Fui em estrada alcatroada, ao longo do Geba, por sítios que não conhecia, com belíssimas bolanhas, sobretudo na região de Mansoa. No meu tempo, esta estrada, a norte do Geba, estava interdita. Para a Zona Leste ia-se de barco, até ao Xime, até Bambadinca, até mesmo a Bafatá...

Noto que as estradas modernas, como em toda a parte, atraiem as populações... Há mais tabancas, com maior risco de acidentes, à beira do caminho. Uma das nossas viaturas passou por cima de um cabrito. Ninguém porém parou. Há um membro do governo na caravana e leva escolta policial. Há também uma deputada, antiga combatente da liberdade da pátria...


Passo pela bolanha de Finete, agora com direito a tabuleta. Passo em Mato Cão e o Rio Geba Estreito ali tão perto... Imagino um comboio de barcos da Casa Gouveia a aparecer na curva do rio... E nós ou o PAIGC, emboscados. Passo ao largo de Bambadinca, sem aparente emoção. Mas tenho um pensamento positivo ao lembrar os velhos camaradas que andaram por aqui comigo...

Cortamos para o sul, mais à frente, perto de Santa Helena, se não me engano...

Não dou conta de passar por Mansambo: do Xitole, retive apenas a fachada de uma mesquita que não existia no meu tempo... Entrevejo as ruínas do Xitole... Passo pelo Rio (seco) de Jagarajá e por Cambesse onde, em 15 de Maio de 1974, teriam morrido os últimos  portugueses em combate, segundo o José Zeferino (3)... A estrada antiga passava ao lado...

2. A viagem vale pelo Saltinho, que revisito, o Rio Corubal, as lavadeiras do Corubal... Mas já não há a tensão dramática que percorria a fiada de palmeirais ao longo do Rio, no tempo da guerra... 

Há também maior desflorestação nesta zona. Os cajueiros são uma praga, na Guiné-Bissau. As bolanhas tendem a ser abandonadas ou a transformar-se em campos de cajueiros... Uma armadilha mortal para os guineenses, para a sua economia, para o seu futuro... O arroz continua a ser a base da alimentação do guineense, de Bissau a Bafatá... Arroz que é importado, em grande parte.
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Notas de L.G.:

(1) Vd. postes anteriores:
8 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2618: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (1): Regresso a Bissau, quatro décadas depois...

9 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2620: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (2): O Hino de Gandembel, recriado pelos Furkuntunda

(2) Vd. poste de 30 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P926: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (3): Saltinho e Contabane

(3) Vd. poste de 27 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2588: Historiografia de uma guerra (3): a última emboscada do PAIGC, na ponte do Rio Jagarajá, em 15 de Maio de 1974 (José Zeferino)