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Luta felupe, de Augusto Trigo. Painel que se encontra(va) numa parede de um restaurante/café, completamente em ruínas. O painel foi restaurado, digitalmente, pelo Rui Fernandes. Foto de Rui Fernandes, cedida ao nosso amigo Pepito e aqui reproduzida com a devida vénia. (O Rui integra a nossa Tabanca Grande, desde Janeiro de 2008).
Augusto Fausto Rodrigues Trigo nasceu em Bolama, a 17 de Outubro de 1938. Órfão de pai em 1945, veio com mais dois dos seus irmãos para Portugal. A mãe ficou na Guiné, com o filho mais novo.
Esteve na Casa Pia até aos 19 anos (1957). Aí começou a revelar e a desenvolver o seu talento artístico. O seu primeiro emprego foi como pintor de publicidade. Regressa à Guiné para rever a mãe e os irmãos. Trabalha como desenhador cartográfico. Nos momentos livres, desenha e pinta (a óleo e a aguarela). Em 1964 realiza a sua primeira exposição de pintura. O Governo da província faz-lhe encomendas... O quadro, cuja imagem reproduzimos acima, data de 1961... Ainda viveu na Guiné-Bissau, a seguir à independência, tendo dirigido o Departamento de Artesanato Nacional, mas regressou definitivcamente a Portugal, em Setembro de 1979. É hoje um conhecido ilustrador e consagrado autor de Banda Desenhada (em parceria com o argumentista Jorge Magalhães). Para saber mais, clicar aqui.
Foto: ©
Rui Fernandes / AD - Acção para o Desenvolvimento (2008). Direitos reservados
1. Pré-publicação de excertos do próximo livro do nosso amigo e camarada Mário Beja Santos,
Mulher Grande. Trata-se da terceira parte do Capº III (*):
Mulher Grande > III > A Guiné em chamas ou o “Tubabo Tiló”
por Mário Beja Santos
[III. 4] Décimo segundo solilóquio
O tempo esfriou, chuvisca, aproveito para ir ao Google ver o que aconteceu em S. Domingos, naquele dia 21 de Julho de 1961. Coisa estranha, parece que a luta armada só começou em Janeiro de 1963, com o ataque a Tite, desencadeado pelo PAIGC. No entanto, aos farrapos, fala-se da formação de rebeldes no Senegal, de um Movimento para a Libertação da Guiné, nalguns documentos fala-se mesmo da FLING. Imprimo tudo, algumas respostas podem ser encontradas nas entrelinhas.
Afinal, a FLING fora alimentada pelas autoridades de Dakar, tinha um projecto exclusivamente guineense, não queria o envolvimento dos cabo-verdianos. Noutro documento encontro referências à fuga de quadros, vejo mesmo o nome de Rafael Barbosa ligado à FLING, surpreende-me, pois o seu nome também aparece associado ao PAIGC.
No último almoço em casa da Benedita vi a emoção com que ela falou na degradação das relações com as novas autoridades senegalesas do Casamansa. Falámos na missão da Christine Garnier, ela ter-se-á encontrado com
Senghor que mandou uma mensagem para Salazar apelando-lhe a um quadro de pequenas concessões imediatas e sugerindo-lhe um plano de transmissão de poderes com a duração de 20 anos. O que quer que tenha acontecido, Salazar, que recebeu Benjamim Pinto Bull em S. Bento, recusou qualquer modalidade de negociação. Segundo a Benedita, 15 a 20 dias antes do ataque atribuído à FLING apareceu o administrador do Casamansa em S. Domingos. Encontrou-se em privado com o Albano, ele partiu para Bissau com uma mensagem e entregou-a ao Governador. Soube-se mais tarde que foi uma derradeira tentativa para a negociação.
Dou comigo a pensar como certos protagonistas secundários têm às vezes entre mãos responsabilidades que podem levar à mudança da História. A acreditar-se no relato da Benedita, o Albano tinha consciência que se estava a dançar à beira do abismo. Seria muito interessante saber-se como Bissau transmitia para Lisboa a versão das hostilidades iminentes.
Estou a entusiasmar-me por um pedaço da história da Guiné que eu ignorava completamente. Mas o que mais me surpreendeu foram as respostas que me deram quando telefonei, por sugestão da Benedita, para um administrador e dois chefes de posto do tempo, bem como dois coronéis na reserva, alferes na Guiné em 1961. Foram muito cordatos ao telefone, ninguém se lembrava do nome dos rebeldes, aonde se situava o seu acampamento, embora se tenha falado que estava dentro do Casamansa ou em Kolda, nunca tinham ouvido falar na FLING ou no Movimento para a Libertação da Guiné.
Porque será que estes homens não querem falar? Pondo imediatamente de parte a hipótese de uma conspiração de silêncio, somos levados a pensar que ninguém acreditava que dois países independentes à volta da Guiné portuguesa iam ficar quietos, sem explorar o descontentamento existente nas várias linhas de independentistas guineenses. E não menos curioso é como esta sucessão de episódios não consta na história da Guiné-Bissau.
Mais recordações da Benedita (décimo segundo trabalho de casa)
Haverá o direito de eu estar a arrogar-me a um papel importante nos acontecimentos do ataque a S. Domingos? Tenho a consciência que a memória não me atraiçoa. Aí uns dez dias antes do ataque o Albano soube que ia haver um desfile contra Portugal, em Ziguinchor. Aquelas informações eram vitais, ele não podia ir nem ninguém da administração.
Vendo-o tão preocupado, sem saber o que fazer, tomei uma decisão sem hesitar: “Albano, eu vou, não se preocupe, toda a gente me trata bem em Ziguinchor, diga-me exactamente o que pretende saber”. Ele ainda tentou dissuadir-me, mas acabou por me dar razão. Ao amanhecer do dia previsto do desfile, parti com o chefe da central eléctrica de S. Domingos, pretextei uma indisponibilidade do Albano, referi que tinha umas compras urgentes, ao princípio da tarde estaríamos de regresso.
Em Ziguinchor, notava-se à vista desarmada um clima de grande tensão, as pessoas procuravam não falar comigo, ou respondiam-me com monossílabos. Estive na farmácia, no escritório de Hugues Lemaire, depois comprei tecidos a um mercador ambulante. Na farmácia, o farmacêutico que era claramente contra a presença portuguesa, perguntou-me por
Monsieur le Commandant, senti-me bem tratada.
O desfile anti-português estava praticamente no fim, via papéis a convocar para a manifestação espalhados pelo chão, resolvi não apanhar nenhum. Na loja de um djila, senti que ele me estava a fazer perguntas acintosas, do tipo “o que é que eu pensava se ele abrisse um magasin em S. Domingos”, respondi que ficaria encantada. Hugues Lemaire recebeu-me imediatamente e advertiu-me: “O Albano que se organize e se defenda. O melhor seria vocês abandonarem já S. Domingos, eles vão atacar em breve”.
A mulher dele deu-me uma pistola e Hugues Lemaire precisou as últimas instruções: “Não posso escrever nada, a partir de agora, se souberem que estou a passar informações estamos perdidos. Estão a ser preparados 200 homens nas granjas de Tibelor, perto dos serviços de agricultura de Ziguinchor”. Ainda fui comprar umas conservas, livros e revistas.
Foi no carro que o Augusto, o chefe da central eléctrica, me mostrou os panfletos que tinham sido distribuídos na manifestação do tipo um capitalista gordo com charuto na boca às costas de um nativo, um cipaio com uma palmatória na mão a maltratar um indígena com as correntes nos pés e de mão estendida. Um dos panfletos falava na luta para expulsar os portugueses, admitindo se necessário recorrer à destruição de vidas. O Augusto disse-me: “Senhora, as coisas estão muito feias, eles têm espingardas e granadas”. Seguimos imediatamente para S. Domingos, o Albano não escondeu o seu alívio quando ali cheguei. Ouviu-me, escreveu uma longa mensagem, o secretário seguiu imediatamente para Bissau.
Antes do ataque a S. Domingos, em 21 de Julho de 1961
Pela primeira vez na minha vida, eu sentia-me no centro de uma agitação política que não entendia, onde não participava directamente, olhava, ouvia os comentários do Albano, lançaram-me avisos em Ziguinchor, mas como não via guerra nem era evidente qualquer hostilidade, continuei a viver sem alterar nada.
Enviaram de Bissau um novo secretário e um novo aspirante para S. Domingos, logo percebi que era para dar mais tempo ao Albano, libertá-lo das tarefas administrativas, os acontecimentos do Senegal e o espectro da guerra ocupavam-no cada vez mais. Nós estávamos preocupados com o que tinha acontecido em Angola, começava-se a pensar que íamos ser brutalmente atacados, até mesmo chacinados.
A mexer nos meus papéis, nas coisas que juntei nos últimos dias, tenho aqui registada a chegada de um homem que só nos deu dores de cabeça, Aventino Guerreiro, um aventureiro que chegou a S. Domingos com uma proposta de instalar um negócio de óleo de palma, queria que o Albano lhe concedesse mão-de-obra gratuita. Claro que o Albano recusou e pô-lo fora do gabinete.
Este Aventino Guerreiro só no ano de 1961 apresentou 15 queixas contra o Albano. Ele devia ter muitos apoios em Bissau, deve tê-los sugestionado com um conto do vigário, qualquer coisa como montar um sistema de informações ao longo de toda a fronteira, o pretexto seria a compra de mancarra, seria aí, durante as transacções, que se obteriam informações.
Um dia, vínhamos nós de Bissau, o Albano contou-me tudo no carro, como publicamente se manifestara contra este embuste, se Bissau queria boas informações, se queria confirmar e ampliar as informações que a PIDE oferecia, deviam estar atentos ao que ele escrevia, sobretudo às informações que ele recolhia em Ziguinchor.
O Albano tudo fazia para manter excelentes relações com os colegas do Casamansa. Ele sabia, desde 1960, que as relações iam ficar tensas, esforçou-se por fazer convites oficiais às novas autoridades senegalesas, recebemo-los em nossa casa, notámos da parte deles que não queriam muita intimidade, sentia-se no ar que em breve se iria chegar à ruptura. O Albano estava a sofrer muito, tinha recebido um telegrama a anunciar que a mãe estava a morrer, decidiu não vir a Portugal com tudo o que se estava a passar ali à volta.
Pode parecer contraditório, mas eu estava a receber novas alegrias. Fui admitida como professora no ano lectivo de 1960-1961, ninguém mais concorreu para S. Domingos. Comecei a juntar dinheiro, pois o ordenado de professora ia inteirinho para Lisboa, aproveitando o direito à transferência. Adorei ensinar, ver aquelas crianças que por vezes faziam quilómetros a pé a mostrar entusiasmo com a tabuada, começavam a soletrar e meses depois assistia àquele milagre das palavras serem ditas, mesmo aos solavancos.
É de repente que começo a sentir o desânimo do Albano por causa da indiferença de Bissau face aos seus avisos. Aquela indiferença deitava-o por terra. Já na festa da independência do Senegal ficara ao lado de um oficial reformado do exército francês que se mostrou muito glacial comigo. Perguntei ao meu amigo Hugues Lemaire o que levava aquele senhor a ser tão pouco gentil comigo e ele disse-me sem papas na língua: “Benedicte, tu não acreditas no que te andamos a dizer, tu jantaste ao lado do oficial que anda a treinar os rebeldes guineenses aqui no Senegal”. Fiquei sem saliva, olhei-o sem poder articular uma palavra. Hugues Lemaire também já avisara o Albano que Senghor queria marcar posição antes de
Sekou Touré, iria apoiar insurreições no Norte da Guiné com rebeldes da nossa província. Senghor era a favor de uma Guiné para os guineenses, não apreciava os cabo-verdianos. Senghor dizia abertamente que o futuro desta nova Guiné independente iria ficar sob a sua custódia.
Vão seguir-se dias de tensão, nunca mais na minha vida tive uma espera tão dolorosa, inquietante, como aquela. Sentimos que muita gente estava a partir, até mesmo gente da população local deixou de vir a S. Domingos. Os comerciantes de Bissau, do Cacheu, de Bissorã ou Bula, nunca mais apareceram. O silêncio nocturno era horrível, nunca mais se ouviu um batuque, acabaram as fogueiras, as cerimónias e festas dos Felupes ou dos Manjacos. Eu procurava resistir dando aulas mas sentia também a falta de muitos alunos.
Estávamos todos à espera, num enervamento horrível. Chegara entretanto um contingente de tropa que ficou a viver dentro da povoação, e não muito longe de nós. Começava o nosso relacionamento com a tropa, que não foi nada feliz. Na noite de 21 de Julho, estávamos deitados quando se ouviram tiros, um deles partiu um vidro do nosso quarto. Como uma mola, saltámos da cama e rastejámos para a porta, punha-se assim termo a todos aqueles meses de expectativa.
Há quem diga que quando morremos a nossa vida passa no nosso cérebro como um filme acelerado, já me disseram que vemos e pensamos aquilo que mais no impressionou na existência. Pois eu sei que vou ouvir nesse momentos a voz do Albano gritar-me ao ouvido, plena de exaltação: “Benedita, eles já aqui estão!”.
(Continua)
[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]
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Nota de L.G.:
(*) Vd. último poste desta série > 4 de Fevereiro de 2010 >
Guiné 63/74 - P5758: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (3): Dois anos maravilhosos: S. Domingos, Varela, Ziguinchor, antes da guerra...