Guiné > Zona leste > Região de Bafatá O Rio Geba... Estreito (do Xime para montante), c. 1970, no tempo seco... O rio era navegável de Bissau até Bafatá!... Mas normalmente, as embarcações (civis, os " barcos- turras") iam até Bambadinca... As LDG ficavam pelo Xime, mas chegavam a Bambadinca, pelo menos até a 1968... Dois pontos vulneráveis do percurso eram a Ponta Varela (na margem esquerda do Rio, entre a Foz do Corubal/Ponta do Inglês e o Xime), e o Mato Cão (entre o Xime e Bambadinca, no troço serpenteante do Geba Estreito).
Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Bambadinca > Tasca do Zé Maria > Um dos nossos poucos luxos no mato... Os famosos lagostins do Rio Geba Estreito... Da direita para a esquerda, três camaradas da CCAÇ 12 (1969/71) : o Humberto Reis, o Tony Levezinho e o José António G. Rodrigues (já falecido). A foto terá sido tirada por mim (LG).
Fotos do álbum do Humberto Reis, ex-fur mil op esp (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
Fotos: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Contos com mural ao fundo > Quem não arrisca, não petisca
por Luís Graça
No teu tempo de Guiné era raro comer-se peixe nas messes e ranchos da tropa. A não ser em conservas (cavala, atum, sardinha...). A indústria conserveira sempre se deu bem com as guerras. Depois da indústria de guerra, claro...
Peixe fresco ?!... Nem vê-lo. Peixe ?!... Só se fosse alguma pescada congelada, chegada na véspera ou no próprio dia, vinda de Bissau, na avioneta, a DO-27.
− A maldita pescada marmota rançosa! ... A saber a fénico.
Sim, de vez em quando, recordavas tu, os "caixeiros" (como tu chamavas aos "intendentes", os homens da Intendência) lembravam-se dos desgraçados que passavam fome no mato, mandavam-lhes algumas caixas de "frescos" (ovos, legumes, fruta, congelados...). Nunca ou raramente carne, a não ser frango de aviário. E muito menos peixe, com tanto mar e rio ali à volta de Bissau!...(E se havia peixe naqueles grandes rios ou braços de mar, do Cacheu ao Cacine, do rio Corubal ao rio Grande de Buba, sem esquecer o ubérrimo estuário do Geba, o rio Mansoa, e até o rio Undunduma, cujo destacamento era vital para a defesa da estrada Xime-Bambadinca!).
− Porca miséria!
Nunca ninguém se revoltava. Isso é que era surpreendente. Era mais fácil haver um levantamento de rancho num quartel da metrópole do que algures no mato, na Guiné.
O soldado português aceitava estóica e resignadamente, não a "fome" (o que podia ser mal interpretado pela hierarquia militar, como um ato de indisciplina ou insubordinação e, para mais, em tempo de guerra, passível até de ser um crime de lesa-pátria) mas a pobreza franciscana das ementas dos vagomestres, tão coitados e pobres como nós.
− Fome, camarada ?!
− Sim, vais-me dizer que não!?
Nunca passaste fome, não senhor. Fome propriamente dita, não, graças a Deus. No rancho, havia sempre pão e vinho sobre a mesa... E mais a sopa e algum conduto, como na casa pobrezinha mas honrada dos teus pais.
Nunca passaste fome, não, senhor, desde que houvesse pão e vinho e latas de conserva, salpicão ou chouriços enviados de casa pelo correio,o SPM, o Serviço Postal Militar. Vinho ? De preferência, cerveja... Mesmo que gastasses o "patacão" todo do mês em "bazucas", a garrafa de cerveja de 0,6l.
Na mesma avioneta vinha o correio, que era tão ou mais sagrado que "o pão nosso de cada dia". Claro, que não faltassem a farinha e o fermento para o padeiro fazer o milagre da multiplicação do "casqueiro"...
-- Não sei o que seria de nós sem casqueiro nem correio!
O pão e as notícias, molhadas e quentes, da longínqua terra natal (estamos a falar de 4 mil km de distância, cinco dias de viagem de barco, 3 horas e tal de avião), ajudavam a suportar melhor o pesadelo daqueles dias e noites sem fim.
− Pesadelo ?!...
− Podes crer!... Prisão, desterro, sem culpa formada.
− Culpa ?!... Só se fosse por seres filho de pais portugueses...
Ao fim daqueles meses todos em que se reforçaram os laços de camaradagem, havia já um certo espírito de corpo que te impedia de seres do "contra"...
− Do contra ?!
− Pior: dissolvente!... Mais do que subversivo...
O pide de Bafatá adorava o termo. Subversivo era o turra, dissolvente era a tropa que o não combatia e aniquilava, que acampava no mato, que não acreditava na vitória... Deixava depois no ar a insinuação de que o Spínola e a sua "entourage" (o pide era filho de "imigras" e fluente em francês ) estavam a criar um clima "dissolvente" no seio das Forças Armadas e da população da província, suscetível de criar brechas na muralha da coesão do "todo nacional". Sobretudo com essa mania da "psico"...
− Qual psico, qual carapuça! ... Então um tipo, investido de autoridade, um cipaio, um chefe de posto, um administrador de circunscrição, um agente da Polícia Internacional e Defesa do Estado, como eu, já não podia dar um tabefe num preto, "turra", sem que o gajo ou um primo dele não fosse logo a correr a Bissau fazer queixinhas ao Caco Baldé ?!...
Pois claro, "para uma Guiné melhor"!... Que para pior já bastava assim!...
Encontraste-o ocasionalmente no café do Teófilo... Duas vezes ou três vezes, se tanto...Não parecia ter sentido de humor... E, se o tivesse, nunca poderia ter sido pide...De qualquer modo, confessas, não lhe deste grande troco, e detestavas ver alguns dos teus amigos a "acamaradar" com ele... Intrigava-te vê-lo ali, no café de um homem que se dizia ter sido desterrado no final dos 20 por atentar contra a segurança do Estado...
A primeira vez que o viste, tinha levado porrada num rusga noturna, lá no bairro da Rocha, em Bafatá...Mas ficaste sem saber por que é que um gajo (que ele disse que era "turra" ou "suspeito") lhe dera uma valente dentada no nariz ou numa orelha...
Mas voltando ao "casqueiro nosso de cada dia"..
− Os gajos do PAIGC − ironizava o "ranger" − podiam combater de barriga vazia (ou com um punhado de arroz cozido no bucho)... Mas não o Zé Soldado, o "tuga", que antes de sair para o mato, aí às três ou quatro da madrugada, já levava no bucho meio "casqueiro", a sair, quente, do forno, com marmelada, e uma meia de leite (em pó) ou uma caneca de café de chicória.
E lançavas tu mais lenha para a fogueira:
− ...Marmelada que fazia uma sede do caraças!... Claro que, ao fim da manhã, já tinha despejado os dois cantis de água que levava à cintura... E num deles já tinha mijado... Era o cantil SOS...Mais valia, numa aflição, o próprio mijo com desinfetante do que a água preta da bolanha (sabe-se lá até se não estaria envenenada!)...
O "ranger" era um dos teus companheiros de mesa. Acabaras de o conhecer, num dos almoços-convívios da Tabanca da Linha. Associava-se, assim, à conversa que tu e a malta à tua volta haviam entabulado sobre o sempre presente e momentoso problema dos comes e bebes da tropa no TO da Guiné.
Não gostaste da maneira, um bocado desabrida e sobretudo despropositada, como se referia à "tropa-macaca" que estaria mal preparada para "vencer e convencer" naquele difícil teatro de operações... Mas tinhas que lhe dar razão: aquela guerra deveria ter sido feita pela "elite da tropa, rangers, comandos e parafusos" ( sic).
Este encontro deve ter ocorrido por volta de 2014, ainda o saudoso "régulo" Jorge Rosales era vivo... Confessou-te, o "ranger", que tinha sido um dos primeiros do curso de operações especiais em Lamego. Mas de nada lhe valera a alta classificação que tirara: acabou por ir "parar com os cornos" (sic) à "maldita Guiné das bolanhas, dos mosquitos, do Cabral e da Maria Turra"...
Devia usar a mesma linguagem desbragada de há 40 e tal anos atrás. Tu e ele não se conheceram lá, ele era "mais antigo, o que na tropa era um posto". Do tempo do Schulz. Mas ambos, tu e ele, tinham passado pelo Leste.
O "ranger" era de uma companhia açoriana ou madeirense (não fixaste esse pormenor), com alguns graduados continentais, como ele. E também eram pau para toda a obra, aqueles desgraçados dos ilhéus. Madeirenses e açorianos sempre foram maltratados pelos senhores da guerra, que eram continentais...
O "petisco", nessa quinta feira, ao almoço, nesse já longínquo ano de 2014, era magnífico, um regalo para os olhos, o palato e até o olfato: um divinal arroz de marisco, com generosa presença de lavagante... E tudo, vinho e sobremesa incluídos, pela módica quantia de 15 euros... Estava-se ainda em tempo de crise, mas ela, como sempre, não era para todos. Como acontece, afinal, em todas as crises.
Ainda te lembravas do nome do restaurante (e casa de chá!), "Oitavos", ali na estrada do Guincho, com uma vista privilegiada sobre o Atlântico. Na altura, só abria para grupos e em ocasiões especiais. O "régulo" Rosales, antigo salesiano, "menino da Linha", tinha um bom capital de relações sociais... E lá descobria estes "retiros fora de portas"... Aliás, como ele amava a vida e prezava a camaradagem, o Rosales!
À boa maneira portuguesa, tu, o "ranger" e os demais convivas, à volta da mesa, continuaram a comer e a falar de comida. Na tropa, na Guiné. E da fome e da sede, mais do que da guerra propriamente dita.
Infelizmente não havia no grupo nenhum antigo vagomestre que pudesse falar, com melhor conhecimento de causa, dos problemas de abastecimento e de alimentação durante a guerra.
Mas vieram ao de cima algumas recordações, "umas boas, outras más", desse tempo e dos lugares de que tu e ele ainda se lembravam.
− Eh, pá, o peixe que havia era da bolanha! − gritou alguém do outro lado da mesa. − A gente chamava-lhe o peixe nharro. E até nem era mau.
Lembravas-te, sim, de algum peixe que os teus soldados apanhavam (muitas vezes com granadas deso, ofensivas) e que eram parecidos com o bardo, de pele escamuda, verde-escura, e que achavas repulsivos, habituado à sardinha, ao chicharro, ao robalo do mar do Cerro, a sul das Berlengas.
E, no início, confessas, nem sabias distinguir bem onde começava e acabava uma bolanhas (também nunca tinhas visto um campo de arroz na tua terra, só searas de trigo!), tal o emaranhado de rios, rias, riachos, braços de mar, tarrafos, mangais, palmeirais, trilhos, picadas...
Achavas que conhecias bem o rio Geba, Estreito, o Xaianga, entre o Xime e e Bafatá, em especial na zona de Bambadinca, onde havia um porto fluvial. Mas não conhecias. Patrulhaste as duas margens lodosas, e de contornos indefinidos. Montaste segurança à navegação fluvial e emboscadas aos "turras" na margem direita, perto do Mato Cão. Às horas mais desencontradas...que as marés eram quem regulava o trânsito fluvial.
No tempo das chuvas, o Geba e os seus afluentes eram uma massa pastosa, barrenta, outrora infestada de crocodilos (garantiam-te os teus soldados fulas, os mais velhos, o que em África queria dizer mais sábios e respeitados).
Quando "cambavas" o rio, eles não se viam, os "alfaiates". Mas tu tinhas muito respeitinho por aquelas águas onde quem lá caísse, nunca mais voltava à superfície, jurava o barqueiro da canoa comprida que levava dez homens armados, uma secção, de cada vez para a bolanha de Finete. Mas ai deles se fossem apanhados pelo macaréu...
O macaréu fazia-se anunciar ao longe, pelo ruído, o tropel de uma manada de cavalos, e sobretudo pela forma, a de uma onda com o aspecto de rolo compressor... Era como um pequeno tsunami.
Já no caso do "barco-turra", que tinha "as quotas em dia pagas no cais do Pijiguiti ao Partido", sempre achaste estranho que o "patrão" mandasse apitar três vezes no regresso a Bissau, em noite clara de luar e em plena maré cheia... Claro que era um sinal de código. Mas às vezes o "barco- turra" lá calhava ser atacado, por engano ou não, na Ponta Varela ou no Mato Cão... Dizia a voz do povo que, afinal, "não tinha as quotas em dia"... Ou então era o comandante de bigrupo, emboscado numa das margens, que estava bêbado....
Não eras, tens de reconhecer, um grande aventureiro, nunca darias á Pátria um bom explorador como o Serpa Pinto ou o Roberto Ivens. Muito menos um bom soldado como o Mouzinho de Albuquerque. E seguramente não querias ser um herói... Menos ainda um herói morto. Aquela guerra, a Guiné, a Casa Gouveia, o BNU, não, não valiam o teu cadáver.
− Devias ter passado por Penude... Uma escola de virtudes!...
− Penude ?!...
− Centro de Operações Especiais, nos arredores de Lamego!...Mas aquilo era só para gajos de barba rija!...
Aparte as provocações do "ranger", também pensavas que sim, nem tu nem ninguém da "tropa-macaca" vinha bem preparado para aquele terreno, aquele clima, aquela guerra... E muito menos para passar fome e sede.
E foste buscar o exemplo de Nhabijões onde estiveste destacado quinze dias. Paradigmático. A população, sem ser abertamente hostil à nossa tropa, tinha "parentes no mato". E recebia-os em casa, como tu receberias o teu pai, a tua mãe, os teus irmãos, os teus tios e primos, se estivesses no lugar deles... Mesmo correndo riscos...
Foi construído um grande reordenamento com 300 moranças, cercada de arame farpado. Um dos maiores, senão o maior da Guiné. Com escola, posto sanitário, lavadouros, fontanário, mercado, mesquita ... No Vietname, chamavam-lhe, em 1962, "aldeias estratégicas"... Falharam. Na Spinolândia, foram um sucesso!... E um desaire para o PAIGC, tens de concordar.
Todavia, era completamente impossível, técnica, humana e militarmente falando, controlar aqueles milhares de almas, vigiar as saídas e as entradas da população que ia trabalhar na bolanhas, ou caçar ou pescar ou apanhar lenha.
Os idiotas do batalhão, lá nos mapas deles, puseram um pionés de cabeça cor de rosa, querendo dizer que era "população (pop) sob duplo controlo"... O Zé Soldado não entendia patavina daquela conversa do "mandjor":
− Quer-se então dizer que de dia a pop é nossa, e à noite é deles ?!...
O "tuga" podia ser básico mas não era estúpido:
− Olhavas para um balanta, e depois ?! Eram todos turras!...
− ... E tresandavam a vinho de palma ainda a fermentar no garrafão!... Só o cheiro dava logo volta às tripas de um gajo!− sentenciava o "ranger", categórico.
− Não sejas tão primário, para não dizer racista... Havia balantas entre as nossas tropas e alguns, coitados, pagaram bem caro, com a vida, a sua colaboração com os "tugas"!
− Pois é, apostaram no cavalo errado, a guerra é uma lotaria...
− Estás a ser cruel!...
− Além disso, andavas fardado e armado, como eu, éramos todos iguais, tropa do exército português... Quem vê fardas, não vê corações...
− ... exército colonial-fascista, ainda por cima!
− Fica sabendo que nunca ouvi isso da boca daquela gente... Só da sacana da "Maria Turra"!...De qualquer modo, nunca conheci esse tal reordenamento de Nhabijões − esclareceu o "ranger" (que, segundo te disse, tinha sido promotor imobiliário no Algarve, depois da tropa).
Tu, no escasso tempo em lá estiveste, em Nhabijões, nunca conseguiste ganhar a confiança daqueles balantas e alguns mandingas para poder observá-los, acompanhá-los no seu quotidiano, aprender alguns termos da sua língua...
− Quais tempos livres ?! Estavas vinte e quatro horas de serviço, sete dias por semana!.. Não havia folgas no destacamento...
E depois aquilo era um depósito de básicos, "cacimbados", malucos, convalescentes, "desenfiados", aleijados ou de gajos com porradas que ninguém queria ter nos seus pelotões.
Era a escória do batalhão que te mandavam de reforço ao teu grupo de combate, já de si desfalcadíssimo. O alferes ia dormir em cama fofa em Bambadinca, tu aguentava os cavalos.
− O que farias com aquela maltosa toda, que mal sabia manejar uma arma, em caso de ataque ?!
Era uma força simbólica que estava ali a guardar a bandeira nacional! ... Guardar ?!...
O major, que temia a ira do Spínola (e Nhabijões era uma das suas "meninas bonitas"), resumia a questão da soberania nacional à bandeira verde-rubra das quinas a flutuar por cima da cabeça dura dos balantas... E daqueles pobres diabos, que defendiam o "fortim'" (como outrora defenderiam o "quadrado"...), à entrada do reordenamento, e que só pensavam no panelão que lhes traziam nesse dia, para o almoço:
− Será esparguete com cavala... ou cavala com esparguete ?
− De resto, podíamos ser todos apanhados a mão, essa é que é essa!...
Dormiam nos postos de sentinela ou então desatavam aos berros às tantas da noite porque tinham visto turras no arame farpado...
Não havia luz elétrica... E o vento fazia tilintar as garrafas de cerveja atadas em cachos no arame farpado... Ou às vezes eram os animais selvagens ou até os próprios cães da população que pregavam cagaços ao pessoal... Por razões de segurança também não havia campos de minas nos reordenamentos. Por isso era fácil os "gajos" entrarem por ali adentro, sorrateiros, armados...
− Os "gajos"...?!
− Sim, quem havia de ser ?!... Os "turras"!
Obviamente que isso nunca aconteceria, um ataque direto ao destacamento que, de resto, mais parecia um daqueles fortes dos filmes do faroeste, feitos com troncos de árvores que as buldózeres haviam arrancado nas terraplanagens... Enfim, o PAIGC não estava interessado em que a população sofresse retaliações por parte das NT nem muito menos alienar o indispensável apoio dos "seus balantas"...
− Nunca se atreveram, no meu tempo, a atacar ou flagelar o destacamento (que, de resto, era um alvo fácil)... Nem no dia de Natal nem no Ano Novo (estávamos de prevenção)...
Sim, é verdade, mas no dia 13 de janeiro de 1971, puseram-te duas valentes minas anticarro à saída do destacamento, sabendo, pelas rotinas da malta, que às 11h00, religiosamente, iria lá passar o Unimog (o "burrinho") para buscar a comida do almoço a Bambadinca!...
Dois presentes envenenados, um morto, uma porrada de feridos graves, duas viaturas destruídas, o piquete destroçado...
− Um ano e tal depois, o meu antigo grupo de combate limpou o sebo ao Mário Mendes, um dos gajos que pôs as minas.
− Também era o nosso lema, "Cá se fazem, cá se pagam!" − arrematou o "ranger".
... A Guiné, vistas de cima, de avião, parecia um paraíso... Quando foste uma vez a Bissau, de avioneta, ficaste deslumbrado, com todos aqueles braços de mar, rios, rias, canais, lalas, bolanhas, água, ouriques, florestas cerradas... Mas, não, aquela não era a tua terra. Nem o verde dos teus pinhais, nem a areia branca das tuas praias.... E havia demasiadas armas espalhadas ao redor. E, seguramente, nenhuma delas estava em boas mãos.
Hoje tens pena de não podido circular livremente por Nhabijões e e outras tabancas balantas em redor (como Mero, Santa Helena, Fá Balanta...) até à grande e bela bolanha de Samba Silate, um símbolo trágico daquela guerra... Toda aquela população, que escapara ao cerco da tropa, acabará por fugir para o mato, nos anos de chumbo de 1963, diziam-te os teus soldados...
Do rio Geba, só te lembras de comer lagostins... Nunca te tinha passado pelo "estreito", o lagostim do rio, embora na tua terra houvesse bom marisco (lagosta, lavagante, santola, sapateira, navalheira,..., mesmo que a lagosta já fosse a 7$50, diretamente do pescador, no cais acostável de Paimogo ou do Porto das Barcas, e o tamboril se deitasse fora, por não ter valor comercial!)...
Era, em Bambadinca, na tasca do Zé Maria, um branco, comerciante, que cultivava algum mistério. O "alfero Cabral" gostava dele e dava-lhe corda. Passava sempre por lá para beber o último copo, e ganhar balanço até Fá Mandinga...
Dizia-se que o Zé Maria "estava feito com os turras!"... Era a habitual suspeita dos militares em relação aos poucos comerciantes brancos que restavam no mato, e que precisavam, para sobreviver, tanto dos favores da tropa como do PAIGC.
Nunca conseguiste ( nem sequer procurasse ) ganhar a confiança dele, mesmo sendo cliente da tasca, mistura de loja e bar com ar decadente, junto ao porto fluvial de Bambadinca. Claro que o tipo fazia-se pagar bem pelo petisco, 50 pesos o quilo o lagostim cozido (com muito piripiri), fora a cerveja. Nunca soubeste quem era a cozinheira ou o cozinheiro. E muito menos quantos pesos pagava ele ao mariscador...
A população do mato "cambava" o rio Geba, quase nas barbas da tropa, e ia ao Zé Maria abastecer-se : tabaco, redes mosquiteiras, panos, petróleo, fósforos, sal, cachaça...
Também vendia vacas, ao que parece... À tropa.
Mais acima, a meia encosta, perto do morro onde ficava o quartel e posto administrativo de Bambadinca (a escola, a capela, o depósito de água, a missão católica, etc.) havia a loja do Rendeiro que era, soubeste mais tarde, cinquenta anos depois, "informador da Pide".
Tinha a cabeça a prémio, por traição ao PAIGC. Fizera-se passar, no início da guerra, em setembro de 1963, por simpatizante do partido de Amílcar Cabral... E escrevera uma carta ao "senhor engenheiro" a jurar fidelidade e lealdade... Afinal, era casado com uma guineense. E a sua terra era a dos seus filhos... Escolhas difíceis, quando se é apanhado por uma guerra.
Quiseram-no levar a Conacri para o "beija-mão"... Acabou por fintá-los, em Dacar... E dar preciosas informações à tropa, no regresso, m Bissau... Nunca lhe perdoaram o embuste de se fazer passar por simpatizante do Partido, só para salvar a pele... Teve que trocar Porto Gole por Bambadinca, por razões de segurança... Tê-lo-iam fuzilado, sem apelo nem agravo, se o voltassem a agarrar...
Era casado com uma mandinga, a Auá, e tinha um rancho de filhos.
Em suma, ambos jogavam com um pau de dois bicos, tanto o Zé Maria como o Rendeiro. Havia ainda um terceiro branco, ou cabo-verdiano, que pertencia à Casa Gouveia... Ia à missa, e irá escutar e anotar, mais tarde, as famigeradas homilías do capelão Puim...
Aqueles homens estavam entalados, não tinham grande margem de manobra e sabiam que nunca teriam futuro com o fim da guerra...
Em todas as guerras, os comerciantes procuram tirar o melhor partido da situação-limite que é a guerra... Afinal, a tropa precisa de comer...
Não te lembras de ter comido peixe na casa do Rendeiro. A galinha ou o caldo de chabéu era, invariavelmnete, o melhor petisco que ele podia oferecer a alguns dos seus convidados, os "milicianos" de Bambadinca...
Não sabes se alguma vez convidou o comando do Batalhão de Bambadinca, o tenente-coronel e os dois majores, além dos capitães... É muito pouco ou nada provável. Sentia-se mais à vontade com "os senhores alferes e furriéis" da companhia africana, que a si próprios se intitulavam "nharros de 1ª classe" (sendo os seus soldados, guineenses, de 2ª classe)... E era a companhia que podia defender Bambadinca em caso de ataque. E salvar a sua casa e a sua família. Isto, se não andasse na "porrada", no mato.
No intervalo, entre as frequentes saídas para o mato, os soldados viviam nas tabancas em redor, com as suas famílias, a de cima e a de baixo, a G3 e as cartucheiras e as granadas de mão sempre à mão de semear... Os graduados dormiam (às vezes) no quartel, sobranceiro á grande bolanha de Bambadinca (em mandinga, a "cova do lagarto").
O Rendeiro tinha uma ampla morança, com telhado de chapa de zinco, logradouro e estaleiro de materiais, mesmo junto ao arame farpado. Não estava livre de ser surpreendido à noite pelos "turras", em caso de ataque. A mãe dos seus filhos (e também a belíssima cozinheira do caldo de chabéu) nunca te fora apresentada. Nem a ti nem a ninguém.
Era um homem nervoso, seco de carnes, magro de cara e corpo, marcado pela malária, e "cafrealizado", que se enterrara naquelas terra palúdicas muito jovem, com 17 anos, fugindo da miséria da sua terra, ali para as bandas da ria de Aveiro... Tinha uma camioneta a cair aos bocados que era alugada de vez em quando à tropa para fazer colunas logísticas a Mansambo, Xitole, Saltinho, Galomaro... Ele e os demais comerciantes da região viviam também destes "biscates" da tropa... Sempre entrava em casa mais algum patacão.
Dizem que terá tido "manga de problemas" a seguir ao 25 de Abril, e que inclusive teria estado na iminência de ser linchado... Terá sido a tropa que o salvou...
− Quem não arrisca, não petisca... − comentou o "ranger", já no final da conversa.
Como querendo dizer: a vida não é de quem a perde, é de quem arrisca, ou sabe arriscar, pondo-a em jogo... Como na lerpa. E "quem não arrisca, menino, não petisca"...
Como o pobre armador da tua terra, que foi nove vezes à Mauritânia pescar goraz... Fez uma fortuna... Levava batatas para os sarauís da Frente Polisário. Havia um acordo tácito. Em troca, deixavam-no pescar mesmo junto à costa... Na 10ª viagem, quis encher o barco até ao teto, era "uma pescaria só para os camaradas da companha", "iam ficar todos ricos, com o melhor goraz do mundo". E depois, arrumava as botas e vendia o barco...
Arriscou, pela 10ª vez... Uma "roquetada" atingiu a casa das máquinas, houve uma morto (o motorista) e vários feridos... Teve de cortar as redes e zarpar com a máxima velocidade... Conseguiu chegar a Peniche, depois de socorrido no Algarve. Nunca mais foi pescador nem armador, muito menos homem. Um dia contou-te a sua história, trágica... Estava bêbedo que nem um cacho... Uma ruina humana.
E tu lembravas-te, também, de outros armadores, da tua terra, ribeirinha, fronteira ao Mar do Cerro, e que noutros mares, os do Norte de África, trocaram o peixe pela droga... E desgraçaram-se. A eles, aos seus filhos, à sua comunidade.
E lembravas-te, ainda, do sacana do "Vermelhinha", que na Guiné esfolava os "incautos", no dia de "São Patacão", com a lenga-lenga do "ganha esta, perda esta, ganha esta"... E a malta ficava com os olhos em bico e sem... "patacão". Também esteve à beira de levar um enxerto de porrada, quando alguém descobriu que ele fazia batota com as cartas...
− Quem não arrisca, não petisca... − voltou a dizer-te o "ranger", no último aceno de despedida, já à saída, à porta do restaurante.
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Nota do editor:
Úlltimo poste da série > 17 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26696: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (39): a Páscoa de antigamente