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segunda-feira, 19 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26816: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (40): Quem não arrisca, não petisca

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá  O Rio Geba... Estreito (do Xime para montante),  c. 1970, no tempo seco... O rio era navegável de Bissau até Bafatá!... Mas normalmente, as embarcações (civis, os " barcos- turras") iam até Bambadinca... As LDG ficavam pelo Xime, mas chegavam a Bambadinca, pelo menos até a 1968... Dois pontos vulneráveis do percurso eram a Ponta Varela (na margem esquerda do Rio, entre a Foz do Corubal/Ponta do Inglês e o Xime), e o Mato Cão (entre o Xime e Bambadinca, no troço serpenteante do Geba Estreito).

Guiné > Zona leste > Região de  Bafatá > Bambadinca >  Tasca do Zé Maria > Um dos nossos poucos luxos no mato... Os famosos lagostins do Rio Geba Estreito... Da direita para a esquerda, três camaradas da CCAÇ 12 (1969/71) : o Humberto Reis, o Tony Levezinho e o José António G. Rodrigues (já falecido).  A foto terá sido tirada por mim (LG).

Fotos do álbum do Humberto Reis, ex-fur mil op esp (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Fotos: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Contos com mural ao fundo >  Quem não arrisca,  não petisca

por Luís Graça

No teu tempo de Guiné era raro comer-se peixe nas messes e ranchos da tropa. A não ser em conservas (cavala, atum, sardinha...). A indústria conserveira sempre se deu bem com as guerras. Depois da indústria de guerra, claro...

Peixe fresco ?!... Nem vê-lo. Peixe ?!...  Só se fosse alguma pescada congelada, chegada na véspera ou no próprio dia, vinda de Bissau, na avioneta, a DO-27.

 A maldita pescada marmota rançosa! ... A saber a fénico.

Sim, de vez em quando, recordavas tu, os "caixeiros" (como tu chamavas aos "intendentes", os homens da Intendência) lembravam-se dos desgraçados que passavam fome no mato, mandavam-lhes algumas caixas de "frescos" (ovos, legumes, fruta, congelados...). Nunca ou  raramente carne, a não ser frango de aviário. E muito menos peixe, com tanto mar e rio ali à volta de Bissau!...(E se havia peixe naqueles grandes rios ou braços de mar, do Cacheu ao Cacine, do rio Corubal ao rio Grande de Buba, sem esquecer o ubérrimo estuário do Geba, o rio Mansoa, e até o rio Undunduma, cujo destacamento era vital para a defesa da estrada Xime-Bambadinca!).

 Porca miséria!

Nunca ninguém se revoltava. Isso é que era surpreendente. Era mais fácil haver um levantamento de rancho num quartel da metrópole do que algures no mato, na Guiné. 

O soldado português aceitava estóica e resignadamente, não a "fome" (o que podia ser mal interpretado pela hierarquia militar, como um ato de indisciplina ou insubordinação e, para mais,  em tempo de guerra,  passível até de ser um crime de lesa-pátria) mas a pobreza franciscana das ementas dos vagomestres, tão coitados e pobres como nós.

− Fome, camarada ?!

− Sim, vais-me dizer que não!?

Nunca passaste fome, não senhor. Fome propriamente dita, não, graças a Deus. No rancho, havia sempre pão e vinho sobre a mesa... E mais a sopa e algum conduto, como na casa pobrezinha mas honrada dos teus pais.  

Nunca passaste fome, não, senhor,  desde que  houvesse pão e vinho e latas de conserva, salpicão  ou chouriços enviados de casa pelo correio,o SPM, o Serviço Postal Militar. Vinho ? De preferência,  cerveja... Mesmo que gastasses o "patacão" todo do mês em  "bazucas", a garrafa de cerveja de 0,6l.

Na mesma avioneta vinha o correio, que era tão ou mais sagrado que "o pão nosso de cada dia". Claro, que não faltassem a farinha e o fermento para o padeiro fazer o milagre da multiplicação do "casqueiro"...

-- Não sei o que seria de nós sem casqueiro nem correio!

O pão e as notícias, molhadas e  quentes, da longínqua terra natal (estamos a falar de 4 mil km de distância, cinco dias de viagem de barco, 3 horas e tal de avião), ajudavam a suportar melhor o pesadelo daqueles dias e noites sem fim.

− Pesadelo ?!...

− Podes crer!... Prisão, desterro, sem culpa formada. 

 Culpa ?!... Só se fosse por seres filho de pais portugueses...

Ao fim daqueles meses todos em que se reforçaram os laços de camaradagem,  havia já um certo espírito de corpo que te impedia de seres do "contra"...

− Do contra ?! 

− Pior: dissolvente!... Mais do que subversivo...

O pide de Bafatá adorava o termo. Subversivo era o turra, dissolvente era  a tropa que o não combatia e aniquilava, que acampava no mato, que não acreditava na vitória...  Deixava depois  no ar a insinuação de que o Spínola e a sua "entourage"  (o pide era filho de "imigras" e fluente em francês ) estavam a criar um clima "dissolvente" no seio das Forças Armadas e da população da província, suscetível de criar brechas na muralha da coesão do "todo nacional". Sobretudo com essa mania da "psico"...

 Qual psico, qual carapuça! ... Então um tipo,  investido de autoridade, um cipaio, um chefe de posto, um administrador de circunscrição, um agente da Polícia Internacional e Defesa do Estado, como eu, já não podia dar um tabefe num preto, "turra",  sem que o gajo ou um primo dele  não fosse logo a correr a Bissau fazer queixinhas ao Caco Baldé ?!...

Pois claro, "para uma Guiné melhor"!... Que para pior já bastava assim!... 

Encontraste-o ocasionalmente no café do Teófilo... Duas vezes ou três vezes,  se tanto...Não parecia ter sentido de humor... E, se o tivesse, nunca poderia ter sido pide...De qualquer modo, confessas, não lhe deste grande troco, e detestavas ver alguns dos teus amigos a "acamaradar" com ele...  Intrigava-te vê-lo ali, no café de um homem que se dizia ter sido desterrado no final dos 20 por atentar contra a segurança do Estado...

A primeira vez que o viste, tinha levado porrada num rusga noturna, lá no bairro da Rocha, em Bafatá...Mas ficaste sem saber por que é que um gajo (que ele disse que era "turra" ou "suspeito") lhe dera uma valente dentada no nariz ou numa orelha...

Mas voltando ao "casqueiro nosso de cada dia"..

− Os gajos do PAIGC − ironizava o "ranger" − podiam combater de barriga vazia (ou com um punhado de arroz cozido no bucho)... Mas não o Zé Soldado, o  "tuga", que antes de sair para o mato,  aí às três ou quatro da madrugada, já levava no bucho meio "casqueiro",  a sair, quente,  do forno,  com  marmelada,  e uma meia de leite (em pó) ou uma caneca de café de chicória.

E lançavas tu mais lenha para a fogueira:

− ...Marmelada que fazia uma sede do caraças!... Claro que, ao fim da manhã, já tinha despejado os dois cantis de água que levava à cintura... E num deles já tinha mijado... Era o cantil SOS...Mais valia, numa aflição, o próprio mijo com desinfetante do que a água preta da bolanha (sabe-se lá até se não estaria envenenada!)... 

O "ranger" era um dos teus companheiros de mesa. Acabaras de o conhecer, num dos almoços-convívios da Tabanca da Linha. Associava-se, assim, à conversa que tu e a malta à tua volta haviam  entabulado sobre o sempre presente e momentoso problema dos comes e bebes da tropa no TO da Guiné.

Não gostaste da maneira, um bocado desabrida e sobretudo despropositada,  como se referia à "tropa-macaca" que estaria mal preparada para "vencer e convencer" naquele difícil teatro de operações... Mas tinhas que lhe dar razão: aquela guerra deveria ter sido feita pela "elite da tropa,  rangers, comandos e parafusos" ( sic).

Este encontro deve ter ocorrido por volta de 2014, ainda o saudoso "régulo" Jorge Rosales era vivo... Confessou-te, o "ranger", que tinha sido um dos primeiros do curso de operações especiais em Lamego. Mas de nada lhe valera a alta classificação que tirara: acabou por ir  "parar com os cornos" (sic) à "maldita Guiné das bolanhas, dos mosquitos, do Cabral e da Maria Turra"...

Devia usar a mesma linguagem desbragada de há 40 e tal anos atrás. Tu e ele não se conheceram lá,   ele era "mais antigo, o que na tropa era um posto". Do tempo do Schulz.  Mas ambos, tu e ele,  tinham passado pelo Leste. 

O "ranger" era de uma companhia açoriana ou madeirense (não fixaste esse pormenor),  com alguns graduados continentais, como ele. E também eram pau para toda a obra, aqueles desgraçados dos ilhéus. Madeirenses e  açorianos sempre foram maltratados pelos senhores da guerra, que eram continentais...

O "petisco", nessa quinta feira, ao almoço, nesse já longínquo ano de 2014,  era magnífico, um regalo para os olhos, o palato e até o olfato: um divinal arroz de marisco, com generosa presença de lavagante... E tudo, vinho e sobremesa incluídos, pela módica quantia de 15 euros... Estava-se ainda em tempo de crise, mas ela, como sempre,  não era para todos. Como acontece, afinal,  em todas as crises.  

Ainda te lembravas do  nome do restaurante (e casa de chá!), "Oitavos", ali na estrada do Guincho, com uma vista privilegiada sobre o Atlântico. Na altura, só abria para grupos e em ocasiões especiais. O "régulo" Rosales, antigo salesiano, "menino da Linha", tinha um bom capital de relações sociais... E lá descobria estes "retiros fora de portas"... Aliás, como ele amava a vida e prezava a camaradagem, o Rosales!

À boa maneira portuguesa, tu, o "ranger" e os demais convivas, à volta da mesa, continuaram a comer e a falar de comida. Na tropa, na Guiné. E da fome e da sede, mais do que da guerra propriamente dita. 

Infelizmente não havia no grupo nenhum antigo vagomestre que pudesse falar, com melhor conhecimento de causa, dos problemas de abastecimento e de alimentação durante a guerra. 

Mas vieram ao de cima algumas recordações, "umas boas, outras más", desse tempo e dos lugares de que tu e ele  ainda se lembravam.  

  Eh, pá, o peixe que havia era da bolanha!  − gritou alguém do outro lado da mesa. − A gente chamava-lhe o peixe nharro. E até nem era mau.

Lembravas-te, sim, de algum peixe que os teus soldados apanhavam (muitas vezes com granadas deso, ofensivas) e que eram parecidos com o bardo, de pele escamuda, verde-escura, e que achavas repulsivos, habituado à sardinha, ao chicharro, ao robalo do mar do Cerro, a sul das Berlengas.  

E, no início, confessas,  nem sabias distinguir bem onde começava e acabava uma bolanhas  (também nunca tinhas visto  um campo de arroz na tua terra, só searas de trigo!), tal o emaranhado de rios, rias, riachos, braços de mar, tarrafos, mangais, palmeirais,  trilhos, picadas...

Achavas que conhecias bem o rio Geba, Estreito, o Xaianga, entre o Xime e e Bafatá, em especial na zona de Bambadinca, onde havia um porto fluvial. Mas não conhecias. Patrulhaste as duas margens lodosas, e de contornos indefinidos. Montaste segurança à navegação fluvial e emboscadas aos "turras" na margem direita, perto do Mato Cão. Às horas mais desencontradas...que as marés eram quem regulava  o trânsito fluvial.

No tempo das chuvas, o Geba e os seus afluentes eram uma massa pastosa, barrenta,  outrora infestada de crocodilos (garantiam-te os teus soldados fulas, os mais velhos, o que em África queria dizer  mais sábios e respeitados).

Quando "cambavas" o rio, eles não se viam, os "alfaiates". Mas tu tinhas muito respeitinho  por  aquelas águas onde quem lá caísse, nunca mais voltava à superfície, jurava o barqueiro da canoa comprida  que levava dez homens armados, uma secção, de cada vez para a bolanha de Finete. Mas ai deles  se fossem apanhados pelo macaréu... 

O macaréu fazia-se anunciar ao longe,   pelo ruído, o tropel de uma manada de cavalos, e sobretudo pela forma, a de uma onda com o aspecto de rolo compressor... Era como um pequeno tsunami. 

Já no caso do "barco-turra",  que tinha "as quotas em dia pagas no cais do Pijiguiti ao Partido", sempre achaste  estranho que o "patrão" mandasse apitar três vezes no regresso a Bissau, em noite clara de luar e em plena maré cheia... Claro que era um sinal de código.  Mas às vezes o "barco- turra" lá calhava ser atacado, por engano ou não, na Ponta Varela ou no Mato Cão...  Dizia a voz do povo que, afinal,  "não tinha as quotas em dia"... Ou então era o comandante de bigrupo,  emboscado numa das margens, que estava bêbado....

Não eras, tens de reconhecer, um grande aventureiro, nunca darias á  Pátria um bom explorador  como o Serpa Pinto ou o Roberto Ivens. Muito menos um bom soldado como o Mouzinho de Albuquerque. E seguramente não querias ser um herói... Menos ainda um herói morto. Aquela guerra, a Guiné, a Casa Gouveia, o BNU, não, não valiam o teu cadáver.

− Devias ter passado por Penude... Uma escola de virtudes!... 

− Penude ?!...

− Centro de Operações Especiais, nos arredores de Lamego!...Mas aquilo era só para gajos de barba rija!...

Aparte as provocações do "ranger", também pensavas que sim, nem tu nem ninguém da "tropa-macaca" vinha bem preparado para aquele terreno, aquele clima, aquela guerra... E muito menos para passar fome e sede.

E foste buscar o exemplo de Nhabijões onde estiveste destacado quinze dias. Paradigmático. A população, sem ser abertamente hostil à nossa tropa, tinha  "parentes no mato".  E recebia-os em casa, como tu receberias o teu pai, a tua mãe, os teus irmãos, os teus tios e primos, se estivesses no lugar deles... Mesmo correndo riscos... 

Foi construído um grande reordenamento com 300 moranças,  cercada de arame farpado. Um dos maiores, senão o maior da Guiné. Com  escola, posto sanitário, lavadouros, fontanário, mercado, mesquita ... No Vietname, chamavam-lhe, em 1962,  "aldeias estratégicas"... Falharam. Na Spinolândia, foram um sucesso!... E um desaire para o PAIGC, tens de concordar.

Todavia, era  completamente impossível, técnica, humana e militarmente falando, controlar aqueles milhares de almas,  vigiar as saídas e as entradas da população que ia trabalhar na bolanhas, ou caçar ou pescar ou apanhar  lenha. 

Os idiotas do batalhão, lá nos mapas deles, puseram um pionés de cabeça  cor de rosa, querendo dizer que era "população (pop) sob duplo controlo"... O Zé Soldado não entendia patavina  daquela conversa do "mandjor":

− Quer-se então dizer que de dia a pop é nossa, e à noite é deles ?!...

O "tuga" podia ser básico mas não era estúpido:

− Olhavas para um balanta, e depois ?! Eram todos turras!...

− ... E tresandavam a vinho de palma ainda a fermentar no garrafão!... Só o cheiro dava logo volta às tripas de um gajo!− sentenciava o "ranger",  categórico.

− Não sejas tão primário,  para não dizer racista... Havia balantas entre as nossas tropas e alguns, coitados, pagaram bem caro, com a vida, a sua colaboração com os "tugas"!

− Pois é, apostaram no cavalo errado, a guerra é uma lotaria...

− Estás a ser cruel!...

− Além disso, andavas fardado e armado, como eu, éramos todos iguais, tropa do exército português... Quem vê fardas, não vê corações...

− ... exército colonial-fascista, ainda por cima!

− Fica sabendo que nunca ouvi isso da boca daquela gente... Só da sacana da "Maria Turra"!...De qualquer modo, nunca conheci esse tal reordenamento de Nhabijões 
− esclareceu o "ranger" (que, segundo te disse, tinha sido promotor imobiliário no Algarve, depois da tropa).

Tu, no escasso tempo em lá estiveste, em Nhabijões, nunca conseguiste ganhar a confiança daqueles balantas e alguns mandingas para poder observá-los, acompanhá-los no seu quotidiano, aprender alguns termos da sua língua...

−  Quais tempos livres ?! Estavas vinte e quatro  horas de serviço, sete dias por semana!.. Não havia folgas no destacamento...

E depois aquilo era um depósito de básicos,  "cacimbados", malucos, convalescentes,  "desenfiados", aleijados ou de gajos com porradas que ninguém queria ter nos seus pelotões. 

Era a escória  do batalhão que te mandavam de reforço ao teu grupo de combate,  já de si desfalcadíssimo. O alferes ia dormir em cama fofa em Bambadinca, tu aguentava os cavalos.  

 O que farias com aquela maltosa toda, que mal sabia manejar uma arma, em caso de ataque ?!

Era uma força  simbólica que estava ali a guardar a bandeira nacional! ... Guardar ?!...

O major, que temia  a ira do Spínola (e Nhabijões era uma das suas "meninas bonitas"), resumia a questão da soberania nacional à bandeira verde-rubra das quinas a flutuar por cima da cabeça dura dos balantas... E daqueles pobres diabos,  que defendiam o "fortim'" (como outrora defenderiam o "quadrado"...), à entrada do reordenamento, e que só pensavam no panelão que lhes traziam  nesse dia, para o almoço:

− Será esparguete com cavala... ou cavala com esparguete ?

 − De resto, podíamos ser todos apanhados a mão, essa é que é essa!... 

Dormiam nos postos de sentinela ou então desatavam aos berros às tantas da noite porque tinham visto turras no arame farpado... 

Não havia luz elétrica... E o vento fazia  tilintar as garrafas de cerveja atadas em cachos no arame farpado... Ou às vezes eram os animais selvagens ou até os próprios cães da população que pregavam cagaços ao pessoal... Por razões de segurança também não havia campos de minas nos reordenamentos. Por isso era fácil os "gajos" entrarem por ali adentro, sorrateiros, armados...

 − Os "gajos"...?!

 − Sim, quem havia de ser ?!... Os "turras"!

 Obviamente que isso nunca aconteceria,  um ataque direto ao destacamento  que, de resto, mais parecia um daqueles fortes dos filmes do faroeste,  feitos com troncos de árvores que as buldózeres haviam arrancado nas terraplanagens... Enfim, o PAIGC não estava interessado  em que a população sofresse retaliações por parte das NT nem muito menos alienar o  indispensável apoio dos "seus balantas"...

− Nunca se atreveram, no meu tempo, a atacar ou flagelar o destacamento (que, de resto, era um alvo fácil)... Nem no dia de Natal nem no Ano Novo (estávamos de prevenção)...

Sim, é verdade, mas no dia 13 de janeiro de 1971, puseram-te duas valentes minas anticarro à saída do destacamento,  sabendo, pelas rotinas da malta,  que às 11h00, religiosamente,  iria lá passar o Unimog (o "burrinho") para  buscar a comida do almoço a Bambadinca!...

Dois presentes envenenados, um morto, uma porrada de feridos graves, duas viaturas destruídas, o piquete destroçado...

− Um ano e tal depois, o meu antigo  grupo de combate limpou o sebo ao Mário Mendes, um dos gajos que pôs as minas.

− Também era o nosso lema, "Cá se fazem, cá se pagam!" − arrematou o "ranger".

... A Guiné, vistas de cima, de avião, parecia um paraíso... Quando foste uma vez a Bissau, de avioneta,  ficaste deslumbrado, com todos aqueles braços de mar, rios, rias, canais, lalas, bolanhas, água, ouriques, florestas cerradas... Mas, não,  aquela não era a tua terra. Nem o verde dos teus pinhais, nem a areia branca das tuas praias.... E havia demasiadas armas espalhadas ao redor. E, seguramente, nenhuma delas estava em boas mãos.

Hoje tens pena de não podido circular livremente por Nhabijões e  e outras tabancas balantas em redor (como Mero, Santa Helena, Fá Balanta...) até à grande e bela bolanha de Samba Silate,  um símbolo trágico daquela guerra... Toda aquela população, que escapara ao cerco da tropa, acabará por fugir para o mato, nos anos de chumbo de 1963, diziam-te os teus soldados...

Do rio Geba, só te lembras de comer lagostins... Nunca te tinha passado pelo "estreito", o lagostim do rio, embora na tua terra houvesse bom marisco (lagosta, lavagante, santola, sapateira, navalheira,..., mesmo que a lagosta já fosse a 7$50, diretamente do pescador, no cais acostável de Paimogo ou do Porto das Barcas, e o tamboril se deitasse fora, por não ter valor comercial!)...

Era, em Bambadinca, na tasca do Zé Maria, um branco, comerciante, que cultivava algum mistério. O "alfero Cabral" gostava dele e dava-lhe corda. Passava sempre por lá para beber o último copo, e ganhar balanço  até Fá Mandinga...

Dizia-se que o Zé Maria "estava feito com os turras!"... Era a habitual suspeita dos militares em relação aos poucos comerciantes brancos que restavam no mato, e que precisavam, para sobreviver, tanto dos favores da tropa como do PAIGC.  

Nunca conseguiste ( nem sequer procurasse ) ganhar a confiança dele, mesmo sendo cliente da tasca, mistura de loja e bar com ar decadente, junto ao porto fluvial de Bambadinca. Claro que o tipo fazia-se pagar bem pelo petisco, 50 pesos o quilo o lagostim cozido (com muito piripiri), fora a cerveja. Nunca soubeste quem era a cozinheira ou o cozinheiro.  E muito menos quantos pesos pagava ele ao mariscador...

A população do mato  "cambava" o rio Geba, quase nas barbas da tropa,   e ia ao Zé Maria abastecer-se : tabaco, redes mosquiteiras, panos, petróleo, fósforos, sal, cachaça... 

Também vendia vacas, ao que parece... À tropa. 

Mais acima,  a meia encosta, perto do morro onde ficava o quartel e posto administrativo de Bambadinca (a escola, a capela, o depósito de água, a missão católica, etc.) havia a loja do Rendeiro que era, soubeste mais tarde, cinquenta anos depois, "informador da Pide". 

Tinha a cabeça a prémio, por traição ao PAIGC. Fizera-se passar, no início da guerra, em setembro de 1963, por simpatizante do partido de Amílcar Cabral... E escrevera uma carta ao "senhor engenheiro" a jurar fidelidade e lealdade... Afinal, era casado com uma guineense. E a sua terra era a dos seus filhos... Escolhas difíceis, quando se é apanhado por uma guerra.

 Quiseram-no levar a Conacri para o "beija-mão"... Acabou por fintá-los, em Dacar... E dar preciosas informações à tropa, no regresso, m Bissau... Nunca lhe perdoaram o embuste de se fazer passar por simpatizante do Partido, só para salvar a pele... Teve que trocar Porto Gole por Bambadinca, por razões de segurança... Tê-lo-iam fuzilado, sem apelo nem agravo, se o voltassem a agarrar...

Era casado com uma mandinga, a Auá,  e tinha um rancho de filhos.

Em suma, ambos jogavam com um pau de dois bicos, tanto o Zé Maria como o Rendeiro. Havia ainda um terceiro branco, ou cabo-verdiano, que pertencia à Casa Gouveia... Ia à missa, e irá escutar e anotar, mais tarde, as famigeradas homilías do capelão Puim... 

Aqueles homens estavam entalados, não tinham grande margem de manobra e sabiam que nunca teriam futuro com o fim da guerra...

Em todas as guerras, os comerciantes procuram tirar o melhor partido da situação-limite que é a guerra... Afinal, a tropa precisa de comer...

Não te lembras de ter comido peixe na casa do Rendeiro. A galinha ou o caldo de chabéu era, invariavelmnete, o melhor petisco  que ele podia oferecer a alguns dos seus convidados, os "milicianos" de Bambadinca...

Não sabes se alguma vez convidou o comando do Batalhão  de Bambadinca, o tenente-coronel e os dois majores, além dos capitães... É muito pouco ou nada provável. Sentia-se mais à vontade com "os senhores alferes e furriéis" da companhia africana, que a si próprios se intitulavam "nharros de 1ª classe" (sendo os seus soldados,  guineenses, de 2ª classe)... E era a companhia  que podia defender Bambadinca em caso de ataque. E salvar a sua casa e a sua família. Isto, se não andasse na "porrada", no mato.  

No intervalo, entre as frequentes saídas para o mato, os soldados viviam nas tabancas em redor, com as suas famílias, a de cima e a de baixo, a G3 e as cartucheiras e as granadas de mão sempre à mão de semear... Os graduados dormiam (às vezes) no quartel, sobranceiro á  grande bolanha de Bambadinca (em mandinga, a "cova do lagarto").

O Rendeiro tinha uma ampla morança, com telhado de chapa de zinco, logradouro e estaleiro de materiais, mesmo junto ao arame farpado. Não estava  livre de ser surpreendido à noite pelos "turras", em caso de ataque.  A mãe dos seus filhos (e também a belíssima cozinheira do caldo de chabéu) nunca te fora apresentada.  Nem a ti nem a ninguém.

Era um homem nervoso, seco de carnes, magro de cara e corpo, marcado pela malária, e "cafrealizado", que se enterrara naquelas terra palúdicas  muito jovem, com 17 anos, fugindo da miséria da sua terra, ali para as bandas da ria de Aveiro... Tinha uma camioneta a cair aos bocados que era alugada  de vez em quando à tropa  para fazer colunas logísticas a Mansambo, Xitole, Saltinho, Galomaro... Ele e os demais comerciantes da região viviam também destes "biscates" da tropa... Sempre entrava em casa mais algum patacão.

Dizem que terá tido "manga de problemas" a seguir ao 25 de Abril, e que inclusive teria estado  na iminência de ser linchado... Terá sido a tropa que o salvou... 

− Quem não arrisca, não petisca... − comentou o "ranger",  já no final da  conversa.

Como querendo dizer: a vida não é de quem a perde, é de quem  arrisca,  ou sabe arriscar, pondo-a em jogo... Como na lerpa. E "quem não arrisca, menino, não petisca"... 

Como o pobre armador da tua terra, que foi nove vezes à Mauritânia pescar goraz... Fez uma fortuna... Levava batatas para os sarauís da Frente Polisário. Havia um acordo tácito. Em troca, deixavam-no pescar mesmo junto à costa... Na 10ª viagem, quis encher o barco até ao teto, era "uma pescaria só para os camaradas da companha", "iam ficar todos ricos, com o melhor goraz do mundo". E depois, arrumava as botas e vendia o barco...

Arriscou, pela 10ª vez... Uma "roquetada" atingiu a casa das máquinas, houve uma morto (o motorista) e vários feridos... Teve de cortar as redes e zarpar com a máxima velocidade... Conseguiu chegar a Peniche, depois de socorrido no Algarve. Nunca mais foi pescador nem armador,  muito menos homem. Um dia contou-te a sua história, trágica... Estava bêbedo que nem um cacho... Uma ruina humana.

E tu lembravas-te, também,  de outros armadores, da tua terra, ribeirinha, fronteira ao Mar do Cerro, e que noutros mares, os do Norte de África,  trocaram o peixe pela droga... E desgraçaram-se. A eles, aos seus filhos, à sua comunidade. 

E lembravas-te, ainda, do sacana do  "Vermelhinha", que na Guiné esfolava os "incautos", no dia de "São Patacão", com  a lenga-lenga do "ganha esta, perda esta, ganha esta"...  E a malta ficava com os olhos em bico e sem... "patacão". Também esteve à beira de levar um enxerto de porrada, quando alguém descobriu que ele fazia batota com as cartas...

− Quem não arrisca, não petisca... − voltou  a dizer-te o "ranger", no último aceno de despedida, já à saída, à porta do restaurante.

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Nota do editor:

Úlltimo poste da série > 17 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26696: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (39): a Páscoa de antigamente

quarta-feira, 12 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26576: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (37): O silêncio do rio Xaianga




Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > O Rio Geba, o estreito (do Xime para montante) e o largo (do Xime para jusante)... c. 1970, no tempo seco... O rio era navegável de Bissau até Bafatá!... Os cartógrafos portugueses chamava-lhe Xaianga, ao Geba Estreito. Normalmente, as embarcações civis, os "barcos turras", iam até Bambadinca... As LDG ficavam pelo Xime, mas também chegaram a Bambadinca, pelo menos até a 1968... Dois pontos vulneráveis do percurso eram a Ponta Varela (na margem esquerda do Rio, entre a Foz do Corubal/Ponta do Inglês e o Xime), e o Mato Cão (entre o Xime e Bambadinca, no troço serpenteante do Geba Estreito ou Xaianga)... Era o maior rio da Guiné-Bissau: rio de planície, com cerca de 550 km de comprimento, caudaloso na época das chuvas (de abril a outubro), nasce a cerca de 40 km a nororeste da cidade de Koundara, região de Boqué, na Guiné-Conacri, corre para Norte, penetra no Senegal, para logo fazer uma longa curva para o Sul, receber as águas do rio Bidigor e desaguar em Bissau; o  seu principal afluente é o Rio Corubal

Foto do álbum do Humberto Reis, ex-fur mil op esp (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)


Foto (e legepnda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O silêncio do rio Xaianga

por Luís Graça


− Ah!, se pudéssemos identificar, selecionar, decompor e voltar a juntar o melhor de cada povo, teríamos o melhor da humanidade!... Teríamos a humanidade perfeita!...

− Não sou assim tão otimista e utópico como o vosso Amílcar Cabral... Aliás gostava de reconhecer esse "homem novo" guineense, que foi prometido nas Colinas do Boé − respondeste tu, com afabilidade e sem ironia, ao teu interlocutor, um antigo comissário político do PAIGC, da última geração dos "combatentes da liberdade da pátria".

O comissário político era, explicou-te ele, o padre ou o pastor, conduzindo um rebanho de crentes sobre o qual tem o poder de punir e perdoar. Retiveste essa metáfora sem, todavia, lhe pedir para exemplificar. Mas tencionavas mais tarde perguntar-lhe o que é que o comissário político fazia nas FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo).

Achaste piada ele ter-te dito, com candura, que agora era um "ex-tudo"...

− Ex-tudo ?...

− Sim, ex-combatente da liberdade da pátria, ex-comissário político, ex-militante do PAIGC, ex-católico, ex-marido...

Só não era ex-pai, porque continuava a amar muito os seus filhos, e não eram poucos, de várias relações...

E estavas tu ali, na terra dele, agora "libertada" (uma metáfora: livre das "velhas algemas do colonialismo", rapidamente substituídas por outras, de outros "ismos"...).

Estavas tu ali, não como um "antigo inimigo" nem como um "simples turista" ( o tal "estúpido em férias" que sabe pouco ou nada do "paraíso" que lhe caiu na rifa....) mas como um "amigo" do "povo guineense"...Mesmo que amigo e povo fossem conceitos nem sempre fáceis de definir ou entender.

Aproveitavas também a ocasião para "fazer as pazes" com o passado. Antes de mais, contigo próprio, que foras "obrigado a comprar a guerra que te quiseram vender"... Como não eras livre, nem mercenário, não pudeste negociar nada, muito menos o preço.

Eras "amigo da Guiné, agora Guiné-Bissau", mas não confundias o "povo" com a sua "elite dirigente", que começou por ser, em 1974, os "novos senhores da guerra". 

Tinhas relutância, por exemplo, em apertar a mão de alguns daqueles homens, novos e antigos senhores da guerra, como o 'Nino' Vieira, que regressava ao poder depois de uma sangrenta guerra civil (a de 1998/99) e de um exílio mais ou menos dourado. E de outros ainda mais sinistros como o Quemo Mané, o Mamadu Injai, o Inocêncio Cani e outros de "segunda linha", que, felizmente para ti,  já tinham ido parar aos quintos  do "inferno dos combatentes"...

Acabarias por o conhecer pessoalmente, ao 'Nino' Vieira, uns dias depois, numa receção no "palácio presidencial"... Para todos os efeitos, era uma figura institucional, o presidente da república, eleito, pensavas tu em voz alta na iminência de o teres de cumprimentar... Um ano depois, em 2009, era miseravelmente morto. E rapidamente esquecido. 

Estranho país aquele onde facilmente se passava de herói a vilão. Nada, de resto, que tu não soubesses já, a começar pelo teu país, e a sua história recente.

Ainda tinhas dificuldade em definir o teu estatuto naquela terra a que chamavas "verde-rubra", não obstante a ambivalência das cores que eram também as cores da bandeira dos "tugas", lembrava-te o Tó Brandão, com quem começaste a simpatizar por ser um tipo "porreiro, bonacheirão, ingénuo". Falava-te do passado, sem azedume, embora às vezes com uma pontinha de ironia. ( Ou seria uma mistura de tristeza e de culpa ?!)

Não achaste a terra assim tão "verde-rubra" como há quarenta anos atrás. Nessa altura, quando desembarcaste de um velho cargueiro colonial, já era a época das chuvas. E o capim começava a crescer como os velhos campos de trigo da tua terra. Nunca gostaste da Guiné no tempo seco, tempo das queimadas e das grandes operações militares, tempo da sede e da insolação, tempo da desidratação e da exaustão, física e emocional...

Voltavas lá, quarenta anos depois, em março de 2008. Havia no ar uma aridez de deserto. O Saara ali tão longe e tão perto. 
 
Há terras que ficam na memória das nossas geografias emocionais, pelos cheiros, os sabores, os sons,  as cores... A Guiné era uma delas...

− A guerra já acabou para ti há muito − comentou o teu convidado, com.ar sério.

Ele falava corretamente o português, com aquela doçura acrioulada que te encantava. E gabava-se de ter andado no liceu Honório Barreto, "ainda seu antepassado remoto pelo lado materno".

− E para ti, não ?!...A guerra  ainda não acabou  ?! − interpelaste-o, mas respeitaste o silêncio,
que se  seguiu. Um silêncio algo embaraçoso e magoado,  mas que falava por si.

Por entre dentes, terá dito qualquer coisa em crioulo que não entendeste bem mas que poderia traduzir -se por um velho provérbio universal, o tempo é o cruel coveiro das das nossas ilusões de juventude.

Quem era, afinal,  esse teu cicerone, que se oferecera para mostrar as velhas ruas e casas de estilo colonial, poeirentas e esburacadas, de "Bissau Bedju", cujo traçado em linhas paralelas e perpendiculares, ainda retinhas, se bem que vagamente, na memória ?

O António Brandão ("Tó para os tugas"...) tinha-te sido apresentado por um amigo comum, português,  ligado à cooperação, conhecido ativista contra a guerra colonial, e incondicional admirador do Amílcar Cabral, embora agora mais crítico em relação aos seus "fracos herdeiros"...

A sua obsessão, em Bissau, era encontrar um "mãos limpas", isto é, um dirigente   ( dos poucos que já restavam vivos)  que não estivesse direta ou indiretamente ligado ao "narcotráfico". A sua deceção ia aumentando por aqueles dias, à medida que as suas "fontes secretas" iam confirmando as suas "suspeitas":

− Eh!, pá, até o fulano tal..., imagina!... 

Referia-me a um dos últimos comandantes do PAIGG que ainda gozava de um algum crédito entre os "amigos estrangeiros"...

Tu e ele eram participantes do Simpósio Internacional de Guileje, que se realizava em Bissau, com uma visita de fim de semana ao "mítico Cantanhez". Estava-se em março de 2008. A iniciativa não era partidária, nascera da sociedade civil e propunha-se também juntar os antigos combatentes de um lado e do outro.

O Tó Brandão era não um "típico guineense". Para já, provinha da uma família cristã, mestiça, de Bafatá.

− Grumete do Geba!− esclareceu ele.

Tal como o Amílcar, que também não era um "típico guineense".

− Mais branco do que muito branco.

Era um "mundo crioulo" que te intrigava e fascinava ao mesmo tempo, aquela mistura de cores, sabores, línguas, saberes, fenótipos, florestas, tarrafes, bolanhas,  rios, braços de mar....mas também ódios e amores.

Tinhas dificuldade em perceber (e penetrar em) aquele sistema de relações de parentesco e de poder, em que os machos e os "mais velhos" dominavam, e as próprias religiões monoteístas e proselitistas,  o cristianismo e o islamismo, não se davam mal de todo com a idiossincrasia animista... 

Não sem surpresa, deste conta que  o Tó era profundamente supersticioso e ainda usava alguns dos amuletos do tempo da guerrilha.

Por delicadeza (ou receio de melindre) não lhe quiseste fazer perguntas sobre as origens da família, embora a tua curiosidade fosse alguma.

Acabou por ser ele a falar-te dos seus antepassados. Tinha um bisavô algarvio, de Portimão ou Faro, não sabia ao certo... Contar-te-ia ele, já para o final da refeição.

Depois de um emocionalmente penoso, para ti, "passeio turístico" até à marginal e à zona portuária, descendo a antiga e 
tua conhecida avenida da República (avenida Amílcar Cabral,  a partir de 1975), nada como um almoço de pitche-patche (caldo de ostras) e de frango de chabéu, bem regado com umas "superbocks"...

O "tasco" era de um antigo soldado da manutenção militar. A esposa, cabo-verdiana, era uma cozinheira de mão cheia. O seu pitche-patche era talvez o melhor da cidade, garantia-te o Tó, que era um bom garfo e um melhor copo. 

À segunda "super", o Tó Brandão já estava a tratar-te por ermon. Sem constrangimento da tua parte. O tratamento por tu, da tua parte,  não o vias como um velho tique do paternalismo colonial, mas como uma forma de facilitar a comunicação entre dois antigos combatentes, para mais lusófonos. E sem qualquer veleidade "luso-tropicalista", do teu lado, mesmo sendo tu mais velho que ele uma boa meia dúzia de anos!

Percebeste (pelo que ele deu a entender durante o almoço) que gostava de poder mandar estudar um dos seus filhos em Portugal.

− Em medicina!

Nunca tinha conseguido sequer uma bolsa de estudo para o estrangeiro, o que achaste estranho, pertencendo ele (ou tendo pertencido até 1980) á 
nomenclatura do PAIGC.

Disseste-lhe que na altura não estava fácil entrar nas faculdades de medicina, cujas notas eram escandalosamente altíssimas... E que havia poucas vagas para os PALOP... E, a título de consolo, alertaste-o para o risco de "perder o filho": os médicos não voltavam â Guiné, ou seja, à procedência, para vir trabalhar em "condições heróicas", isto é,  miseráveis... Conhecias muitos casos. E, se regressavam, eram mal aproveitados. Lembravas-te de um que fizera o curso na China. De regresso ao país,  não acharam melhor colocação para ele do que o de tradutor-intérprete ... 

O Brandão era crítico do regime do 'Nino' Vieira, então no poder.

− Matou o Cabral pela segunda vez!

Segundo apuraste da longa conversa desse dia, que se prolongou pela tarde dentro, o Brandão já era guerrilheiro no início dos anos 70.

− Na frente do Xitole. Em 1972, ia fazer 19 anos. 

− Por um triz (ou melhor,  talvez por um ano de diferença), não nos cruzámos nos matos do Xime e do Xitole! Tu de Kalash, eu de G3 em punho.

Andara pela "barraca" da Mina / Fiofioli, já em 1972... Depois da morte de Mário Mendes, em meados desse ano, o PAIGC concentrou a maior parte das suas forças na Zona Oeste, no Norte, para atacar Guidaje, como manobra de diversão. E no Sul, para cercar e "aniquilar" Guileje...

− Havia a crença de que se Guileje caísse, a guerra estava ganha... Disse-o Cabral, antes de morrer...

As "áreas libertadas" da bacia hidrográfica do Corubal ficaram vulneráveis, à mercê dos "raides punitivos" da tropa portuguesa...O PAIGC ficou desfalcado e os "tugas" voltam a entrar na mata do Fiofioli, três anos depois da Op Lança Afiada. O Brandão fora entretanto  para a barraca de Hermancono, no Senegal. Nunca mais voltaria ao Leste.

Turra, foi o que eu fui... Turra, como vocês diziam...

−  Turra dum cabrão!... E insultávamo-nos uns aos outros, na mata, quando nos encontrávamo-nos, aos tiros.

−  E falávamos a mesma língua!

− Estranho, diria um observador estrangeiro, que nos estivesse a espreitar por detrás de um bissilão!

−  E, afinal, éramos todos do mesmo clube, uns do Benfica, o maior da época, mas também do Sporting,  um ou outro do Belenenses, e até do Porto .

−  Do Belenenses ?!

−  Sim, por causa do Matateu!

−  Ah!, o Matateu, mas esse já não era do nosso tempo... Não estarás a confundir com o Eusébio ?!... 

Afinal, tu é que não estavas a dar conta da importância  do futebol na génese e desenvolvimento da luta pela independência...

−  Tivemos vários futebolistas na luta, do Lino Correia ao Bobo Queita.. E o próprio Amílcar Cabral, dizem que chegou a prestar provas no Benfica. Sabias ?

 −  A sério ?!...Não se pode ignorar a bola... Ainda vi hoje uns quantos  djubis, á saída do hotel, com a camisola do Ronaldo!...

−  E então diz-me lá por que razão andámos a guerrear este tempo todo ?

−  Tó, o homem grande de Lisboa, primeiro o Salazar, e depois o Caetano, não se entenderam com o Cabral... Foi pena.

−  Talvez o Spínola tivesse conseguido, se o Cabral não tivesse sido morto.

Contrariamente à maioria dos combatentes, militantes e simpatizantes do PAIGc , o Brandão não atribuía a morte de Cabral ao Spínola nem aos "tugas".

Julgavas que ele não disse isso só para te agradar ... Veladamente,  deu-te a entender que o 'Nino' Vieira, o primo Osvaldo Vieira e o Sékou Touré teriam as "mãos sujas de sangue". Mas o 'Nino'  ainda estava vivo e não longe do restaurante, pelo que o Tó não queria aprofundar o assunto que o incomodava... Deduziste o que ele te queria dizer:  sabiam do complô,  nada fizeram para o neutralizar e provavelmente também eram cúmplices...

Não resististe a querer saber algo mais sobre a infância e a adolescência do Brandão, depois de, conversa puxa conversa, de terem chegado à conclusão de que tinham andado ambos pelos mesmos sítios, embora em anos diferentes. 

 Mandaste vir mais cerveja para destaramelar a  língua...

−  Como é que chegaste afinal a comissário político, um cargo mais importante do que comandante de bigrupo ?  −  quiseste tu saber...

Ele preferia falar da origem da família... Sobre o bisavô, desterrado para Cabo Verde, ele disse-te que sabia pouco, ou o que a mãe lhe contara,  ainda em pequeno, quando sonhou que ele "ainda viria a ser seria padre e talvez até bispo"...

Era cabo-verdiana e muito devota a Nossa Senhora de Fátima.

 −  Uma santa pelo que aturou ao meu pai... E, claro, como boa africana,  também consultava os búzios...

O Brandão nunca tinha estado em Portugal mas sabia muitas coisas da história e da geografia, do tempo da escola, sobre a terra do bisavô,  "o Algarve, que fora dos mouros", isto é, "dos africanos"...

A senhora, Nha Luana,  tinha medo de morrer ainda nova e de levar para o  outro mundo os segredos da história da família do lado paterno. Achava que tinha obrigação de transmitir essas memórias aos filhos mais letrados, que eram também os mais novos... Ela e o filho eram muito chegados, para não dizer cúmplices...                                                                                                       
Assim, o o nosso homem sabia que o bisavô (de que já não se lembrava o nome, nem nunca vira nenhuma foto)  fora deportado para a ilha do Fogo. Alegadamente por se ter amotinado no navio de guerra a cuja guarnição pertencia. Teria chegado a Cabo Verde por volta de 1895, "no tempo dos reis" (pelas tuas contas).

O Brandão não sabia explicar o que se passara a bordo, a memória da família não chegava a tanto pormenor, mas parece que o marinheiro-fogueiro já tinha nessa época "ideias republicanas". 

À melhor oportunidade teria fugido da ilha onde lhe fora fixada residência. Numa leva de contratados para São Tomé, para as roças de cacau, acabou por seguir a bordo num vapor que fazia escala em Bolama (capital da Guiné a partir de 1879, acrescentaste tu).

Não ia de todo clandestino, terá beneficiado da cumplicidade  de um conterrâneo (ou antigo camarada da marinha de guerra) que o escondeu num beliche. A viagem, de resto, não era longe. 

Com a falta de "colonos brancos", não foi difícil arranjar trabalho na loja de um antigo deportado, ali estabelecido como comerciante e que  também tinha uma ponta na extremidade sul da ilha.

Nos primeiros tempos ficou afastado da vila de Bolama (só cidade a partir de 1913),  à frente de  destilaria de aguardente de cana. Os seus conhecimentos de fogueiro da marinha foram-lhe úteis.

Acabou por casar com uma bijagó de Bubaque  educada nas missões católicas. A mulher grande deu-lhe um bando de filhos, fora os que arranjou noutras moranças e camas. Parece que mais tarde dedicou-se à marinhagem num barco a vapor que fazia a cabotagem entre Bissau, Bolama e Bubaque. Acabou por trazer a família para Bissau e depois para o presídio do Geba.

O avô do Brandão vamos  encontrá-lo  a combater ao lado do capitão  Teixeira Pinto, do tenente Sousa Guerra e do Abdul Injai, comandante das tropas irregulares, na campanha contra os papéis e os grumetes da ilha de Bissau, em meados de 1915.

− Esse avô terá salvo a vida do capitão-diabo, quando este foi ferido. Contou-me a minha mãe, que ainda não era nascida. 

Louvado por feitos em combate, acabou por seguir a carreira militar e chegar ao posto de sargento, no final da I Grande Guerra.  

O pai do Brandão, por sua vez, foi soldado em Bolama, numa companhia de caçadores indígenas no início dos anos 40.  Terá estado em Angola (ou Macau, já não podes precisar de memória), durante a II Guerra Mundial, como expedicionário.  Esteve tentado a lá ficar mas as saudades da família (já era casado, e com filhos)  eram muitas.

Quando voltou, foi trabalhar para a Casa Gouveia, em Bafatá, vilória que, graças ao florescente comércio da mancarra, já há muito havia suplantado a decadente Geba e todas as demais terra do Leste.

−  Nasci em Bafatá, onde é hoje o bairro da Rocha...

E é aqui, por volta de 1953, que começar a história de vida do António Brandão...

− Brandão ?!...

−  Sim, apelido do meu padrinho de batismo: era ponteiro em Bambadinca e parente da minha mãe, cabo-verdiana. 

Era um colono respeitado, nacionalista, cuja casa o Amílcar Cabral frequentava  nos escassos anos em que trabalhara na Guiné como engenheiro agrónomo.

− E a esposa do Cabral, que era branca, chegou a pegar-me ao colo, contou-me a minha mãe.

Toda a gente se conhecia na Guiné nos anos 50. E a mãe do António tinha sido  empregada da família Brandão. Também ela educada nas missões católicas, em Bambadinca. 

Foi graças aos missionários católicos, italianos, de Bafatá,  que o Tó conseguiu fazer mais do que a 4ª classe.

−  Mandaram-me para o liceu de Bissau. Não havia mais nenhum.

Era um rapaz inteligente, vivaço mas humilde. Devem ter pensado que daria um bom padre. Feito o quinto  ano (e ainda antes do sétimo) , tencionavam mandá-lo para Roma, para aprender latim e grego aprofundar a  filosofia e iniciar a teologia.

−  Estava entusiasmado... Ia conhecer o Papa! E, claro, as belas romanas...

Os pais (e sobretudo a mãe)  viram com bons olhos esta benção do céu.  Tinha os irmãos mais velhos em Bissau, não seria difícil a adaptação.

Mas Deus põe e o homem dispõe...

***

− E isso da JAAC, a Juventude Africana Amílcar Cabral, foi a sério ? − perguntaste tu.

Explicou-te que inicialmente fora uma "brincadeira de putos" mas depois levada longe demais até ao ponto de não-retorno.  

Andar na Mocidade Portuguesa era uma "seca", o que ele queria eram as farras, as "mininas", os bailaricos com os gira-discos (uma novidade e um luxo nessa época), na casa uns dos outros, os mais abastados, e sobretudo longe do olhar dos professores e dos "nossos mais velhos"...

Em 1968, tinha o Brandão quinze anos e completava, com sucesso, o quinto ano. O Amílcar Cabral gozava de muito prestígio, "a nível internacional e até nacional".

−  Tinha derrotado o Schulz!

Ele pronunciava "Schultz". E a resposta, como já ouviras a outros guineenses, é que este governador e comandante dos "tugas" não era português mas "alemão" (sic).

−  A prova é que o Spínola veio tomar conta do lugar dele. O Salazar tinha pressa em acabar a guerra...

−  Pressa ? −  comentaste tu. −  Ele achava que ainda iria a tempo de ver a História e os Aliados do Ocidente dar-lhe razão! 

A libertação dos "tarrafalistas", entre eles o histórico Rafael Barbosa, muito popular em Bissau, gerou um clima de euforia (mas também de desconforto e desconfiança) entre militantes e simpatizantes do PAIGC.

Continuou a haver infiltrações da PIDE nas células estudantis e nos bairros populares de Bissau.  Alguns venderam-se por um "prato de bianda", garantiu-te o Brandão. 

 Claro que às tantas o Tó começou a faltar às aulas e a comprometer-se com alguns rapazes e raparigas que, viria mais tarde a saber, pertenciam à célula clandestina da JAAC no liceu.

Por influência do grupo, nas horas vagas já estava a distribuir papéis e a participar em reuniões , mais ou menos clandestinas, em se que falava dos problemas estudantis e dos progressos da luta do PAIGC... 

Começaram a catalogá-lo como "simpatizante" e às tantas já tinha, sem saber como nem porquê, a "chapa do Partido"... De repente, deu-se conta de que não estava nada interessado em pegar numa Kalash e ir para o mato combater a tropa dos "tugas" onde tinha amigos, sobretudo guineenses e cabo-verdianos (!).

É verdade que, naquele tempo, não tinha inimigos, só não gostava dos fulas que eram cipaios da administração do Guerra Ribeiro, e que serviam para dar porrada ao pessoal que entrava em Bafatá descalço!... Mas isso não era razão bastante para andarem a matar-se uns aos outros...  Tinha, de resto, amigos de várias etnias na escola primária.

Alguns colegas do liceu começaram, entretanto,  a ser chamados para a tropa. O medo instalou-se.  Um ou outro  mais afoito acabou por ir parar a Dacar e juntar-se ao PAIGC.

Em 1969 as coisas começaram a dar para o torto. Uma das "mininas" do grupo, aluna do liceu, foi detida pela PIDE... E deu à língua. Houve prisões. O Brandão teve que "passar à clandestinidade".

A mãe e os irmãos mais velhos e os missionários católicos do PIME tinham em Bissau os seus "espiões" de modo a não deixar o Tó "pôr o  pé em ramo verde".

Não chegou a fazer o 7º ano. Começou a fazer "trabalho político" com uma miúda que depois viria, mais tarde, a ser a mãe dos seus dois primeiros filhos. Viviam no Cupelon de Baixo, paredes meias com o quartel-geral, em Santa Luzia.

O controleiro da célula do bairro cedo se apercebeu de quão valioso e promissor era o "miúdo". Foi o próprio Amílcar Cabral quem fez questão, depois de saber da sua história, em recebê-lo em Conacri.  E foi ele quem o entrevistou para pôr a prova as qualidades do novo membro do Partido, antes de o mandar para Cuba, mesmo sem o "batismo de fogo"...

− Tinha lá os balantas, os homens do mato,  para matar e morrer − comentaste tu com indisfarçável ironia. 

 Instintivamente o Amílcar Cabral − disseste tu para os teus botões − procurava poupar os melhores dos seus futuros quadros.

Foi para Cuba sem deixar rasto, sem se despedir da mãe e dos irmãos. Ela nunca lhe perdoou, até quase à hora da morte.  Apesar de conhecer o Amílcar, que tinha ascendência cabo-verdiana, e era mais novo quatro anos, ela não gostava dele.  Estava convencida, mesmo sem fundamento,  de que tinham sido "eles", os tipos do PAIGC,  que haviam raptado e morto o marido na fronteira do Senegal, ainda antes do início da guerra.

***
−  E Cuba ?

−  Bem, na altura, eu ia de olhos tapados, comprei tudo o que me quiseram vender. E também acreditei piamente na sinceridade dos internacionalistas cubanos... Vim depois a saber que, muitos deles, coitados, faziam pela vida, tal como eu... A guerra era um modo de vida.

Não quis falar muito mais,  do tempo da luta.  Participou na Op Amilcar Cabral. Só não quis dizer onde, no Norte ou no Sul. Estás mais inclinado para Guidaje. 

Também já era tarde e "amanhã é dia de trabalho"...Pediu-te para levares uma pequena "encomenda" para Lisboa... E até lá ainda se encontrariam no hotel onde decorria o simpósio.

Cruzando esta com conversas ulteriores, ficaste a saber que o António Brandão não tinha estudado mais. Ia-se inscrever no 7º ano, quando teve de fugir.

Agora com 55 anos já "não tinha cabeça". A vida política não o interessava mais. Estava "triste" com o rumo que as coisas seguiram no seu país. "Ingénuo" (o termo era dele), pensava que, depois da independência, por um simples toque de magia, iriam abrir-se, de par em par, as portas do progresso, da liberdade e da justiça. 

Não estava arrependido pelos anos que andou no mato, na luta pela independência da sua terra. Mas tinha agora algum pudor e muita reserva em falar desse tempo. Os mais novos não mostravam gratidão pelo sacrifício de seus pais. Por outro lado, recebia uma miserável  pensão (que chegava ao seu bolso, tarde e a más horas). O Governo tratava mal os antigos combatentes. 

Temia a velhice, apesar da sua família extensa e solidária onde, apesar de tudo, não havia memória  de se passar fome. Mesmo quando o pai desaparecera... Temia as doenças da velhice.

Trabalhava numa ONGD, estrangeira, uma "grande empresa", de um pais europeu. (Por razões obvias, não vais aqui identificá-la.)

Mas nunca se sabia até quando "eles" continuavam a apostar  na Guiné-Bissau. Os golpes de Estado, a droga, a instabilidade política, o peso dos militares, a corrupção, etc., não ajudavam a promover a imagem do país que continuava no fundo da tabela...

Era já tarde quando voltaste ao Hotel 24 de Setembro. Os dias ali eram curtos. E à noite não havia iluminação pública. Bissau parecia uma cidade sitiada, em quase total "black out".  Recorria-se ao gerador, os particulares, os hotéis, os restaurantes.

Foste a pensar na história do Tó Brandão. Nem sequer sabias o nome de guerra dele. Não acreditavas em tudo o que ele te contara. Davas o devido desconto. Mas, no essencial, parecia ser uma história verosímil, incluindo a perseguição aos "colaboracionistas", aos "cães dos colonialistas",  ainda antes da partida do último soldado português.

Era uma "grumete", dividido por duas culturas, dois amores, dois mundos (mesmo que nunca tivesse  chegado a conhecer Portugal, tinha um secreto amor às raízes do bisavô , bem como a Cabo Verde, terra da mãe, que ele, apesar de tudo, não conhecia...)

Ao menos estava vivo, tinha sobrevivido a alguns momentos dramáticos da história recente do seu país ... Se tivesse ido para os comandos africanos, por exemplo,  hoje estaria morto como dezenas e dezenas de graduados do célebre batalhão que o Spínola criara... Teve lá amigos seus. Disse-te os nomes (que não fixaste). Teve amigos de um lado e do outro, o que ainda era mais dilacerante.

Triste episódio, esse, que manchara o regime de Luís Cabral...

−  Triste episódio ? 

Talvez um dia arranjasse alguém que lhe escrevesse as suas memória. Não era dado a escrever. Preferia falar. Mas não ali, na terra dele.

−  Um dia, Tó... Talvez em Lisboa, não  ?!

Sorriu.

***

Tu e ele ficaram amigos. Houve ali, pelo menos, empatia entre os dois. Cumplicidade.  Mantiveram contacto mais ou menos regular por email e pelo WhatsApp.  Nos últimos anos mais esporadicamente. Foste sabendo dele,  até à pandemia. Deixaste de ter notícias dele por essa altura, que foi fatídica para todo o mundo. E a ONGD onde ele trabalhava também passou por muitas dificuldades.

Entretanto a mãe já tinha morrido  em Cabo Verde, com 90 e tal anos (ela seria de 1920). O Brandão tivera um filho a estudar em Bragança, na Escola Superior Agrária. Terá viajado para o Brasil e acabaste por  perder o seu contacto.  

Tal como o pai, o Tó Brandão terá desaparecido por volta de 2020/21. Sem deixar rasto. Acontecimentos estranhos naquela terra. Podem as pessoas desaparecer sem deixar rasto ? 

Nunca mais lá voltaste, à Guiné-Bissau. Os rios da Guiné não falam, mas são caudalosos e lamacentos no tempo das chuvas. Aliás, não são rios, são braços de mar. Tentaculares, como os do lolvo. Lembravas-te, no Mato Cão, o estranho silêncio do rio Xaianga, seguido do poderoso macaréu,  na maré-cheia, que assustava homens e bichos.

Perguntaras-lhe um dia  se ele tinha inimigos...

− Mas quem os não tem hoje na Guiné-Bissau ?

Sabias que a mãe tinha regressado a Cabo Verde, depois do golpe de Estado de 'Nino' Vieira. A família dispersara-se: houve irmãos que emigraram para Cabo Verde, Portugal e Holanda; outros dois ficaram em Bissau, um trabalhava nos Armazéns do Povo (no mesmo edifício da antiga Casa Gouveia); outro teria montado um negócio por conta própria.

Enquanto o Brandão  estava "bem relacionado"  (chegara a diretor-geral de qualquer coisa...), a vida não piorara... Mas terá caído em desgraça nos anos 80. Nunca te contou pormenores. Valeu-lhe a ONGD para quem foi trabalhar na área da educação ambiental e como intérprete: era poliglota, falava português, francês, espanhol e, claro, crioulo. Era fluente em fula, entendia o papel, o balanta e o mandinga. 

O estranho desaparecimento do pai (no rio Xaianga, ele dizia Caianga) foi outra história intrigante que ele só te contaria no último dia da tua estadia em Bissau, em março de 2008, umas horas antes de apanhares o avião para Lisboa.

Procurara-te para se despedir e concretizar o pedido algo insólito que te fizera uns dias antes: se levavas, na bagagem de porão,  um saco de cola para o irmão que vivia perto de Lisboa, na margem sul. 

Esse irmão tinha um filho que ia pedir a mão de uma "minina" a um patrício. Era da tradição oferecer noz de cola para o futuro sogro.

Não tiveste lata de dizer que não.  Por precaução, pediste-lhe  que te mostrasses as nozes de cola que iam no saco, que fingiste nunca ter visto no teu tempo... (Era coisa que os teus soldados andavam sempre a mascar: no mato, eliminavam ou mitigavam a sensação de fome e de fadiga, garantiam-te eles; provaste mas não te habituaste ao seu sabor acridoce e sobretudo adstringente, que te aumentava a sede.)

Em relação ao pai, empregado da Casa Gouveia...

− Nunca quis morder a mão a quem lhe dava a bianda.

Queria o Tó dizer: era fiel à Casa e aos portugueses que lhe davam o pão. Tinha uma boa posição, sabia ler e escrever, tinha carta de condução, uma camioneta distribuída. Não ganhava mal. Fazia a campanha da mancarra, percorrendo todo o leste. 

Ainda não havia guerra,  apenas umas "escaramuças" junto à fronteira do Senegal,  na região do Cacheu,  "coisa da gente manjaca". Ele só lidava com fulas e mandingas do leste, e uma ou outra tabanca balanta. Batia o leste de Sare Bacar a Gabu, do Xime ao Saltinho, de Galomaro a Pirada. Os fulas eram seus amigos. Dos mandingas não tinha a mesma opinião. Alguns começavam a ser aliciados pelo PAIGC (aliás, ainda era o PAI, Partido Africano para a Independência).

Não se sabia o que acontecera em pormenor. Desta vez ia sozinho, sem ajudante habitual que terá ficado doente de paludismo em Bafatá. A camioneta apareceu abandonada, numa curva do rio  Xaianga (ou Caianga, como se dizia então, em 2008), quando ia caminho de Paunca e Sare Bacar na zona fronteiriça. Não havia sinais de violência. Teria sido raptado ou morto sem deixar rasto ? 

A Casa Gouveia, se mandou investigar o caso, nunca comunicou à família as conclusões. O corpo nunca apareceu, não se fez o choro. Houve quem dissesse que ele tinha fugido para o Senegal com um saco de patacão, outros, seus inimigos dentro da Gouveia, insinuavam  que, à semelhança do Luís Cabral, tinha "ido no mato" (passado à clandestinidade)... O que era tudo mentira. Para mais ele tinha ainda alguns filhos pequenos a quem era preciso ajudar a criar.

A mãe do Tó nunca se conformou com o silêncio da Casa Gouveia, tão pesado como o do rio Xaianga (o maior da Guiné, que percorria três territórios),  mas não pôde fazer nada. Eles eram poderosos, donos da Guiné. O filho mais velho também trabalhava lá. 

A história que se contava na família (teria o Tó 8 ou 9 anos) é que o pai ter-se-ia  sentido mal quando ia a conduzir, tinha saído para apanhar ar e acabara por cair ao rio. A verdade é que o corpo nunca apareceu. 

A Gouveia terá abafado o caso. Não se sabe se a PIDE investigou. O irmão mais velho teve de substituir o pai no sustento da família.  A mãe e os irmãos mais velhos passaram a ser ainda mais hostis ao partido do Amílcar Cabral, que nessa altura andava já a fazer trabalho de sapa nas tabancas e a sabotar algumas infraestruturas (postes telefónicos, etc.),

Passados uns anos a mãe do Tó vai passar por outro grande desgosto: o filho, o António,  decide "entrar na luta" (sic),   quando estava destinado a ser padre...

Quando o PAIGC se sentou à mesa do Estado, em Bissau, em 1974,  já só havia sobras... Quem as apanhou foram os primeiros a chegar a Bissau. Ele fora dos últimos... Ficaria na tropa por mais uns anos até ao golpe de Estado do 'Nino' Vieira, que lançou uma onda de veneno e  ódio contra os cabo-verdianos e os mestiços... 

Aos 36 anos arrumou as botas, a farda e a kalash. E entrou numa nova vida. Foi professor, foi agente comercial, andou na campanha do caju, etc. Até finalmente conhecer a ONGD que lhe deu a mão.  

Era uma daquelas ONGD com generoso financiamento estrangeiro (e, mais tarde, da CEE), que preenchia, em muitos setores (saúde, educação, cultura, agricultura, ambiente, etc.) as funções que o frágil (e quase inexistente) aparelho de Estado guineense não conseguia cumprir. 

Viajava bastante, pela Guiné (regiões de Cacheu,Bafatá e Tombali, onde a ONGD tinham projetos).

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− E agora, António ?

Bebeu mais uma golada de cerveja, pigarreou, deixou passar mais uns tantos segundos e disse-te mais ou menos isto, num longo monólogo, à laia de confissão:

−  Só tenho que me queixar das decisões que não fui eu a tomar. As que os outros tomaram por mim. 

Não quis particularizar, mas estava, se calhar, a referir-se a família, à mãe (que era uma mulher "poderosa, dominadora"), aos irmãos mais velhos, aos missionários , aos colegas de liceu que já eram paigêcistas e que o empurraram para a luta armada. E, claro, ao próprio Amílcar Cabral que foi para ele o pai que "ele nunca tivera", o seu herói, o seu ídolo... Nunca mais o voltaria a ver desde   que, em 1969,  o mandou para formação em Cuba. Terá chorado como ninguém a sua morte, em 1973.

Confessou-te (ou deu a entender) que, no seio do Partido (como ele ainda dizia), chegou a sentir-se, por  vezes, discriminado por ser "mais branco do que preto".  Quem disse que na cúpula do PAIGC não havia racismo ?

Não quis entrar en grandes detalhes sobre a sua vida no mato, nas "áreas libertadas". Como comissário político", depois de vir de Cuba, teve que mostrar que era tão ou mais "cabra-matchu" do que os "mais velhos". Teve que dar o exemplo aos outros: ser frugal, casto, disciplinado e disciplinador, respeitar as bajudas, defender a população...Tinha que garantir a "pureza ideológica", os valores do Partido... Sobretudo tinha que se impor pelo exemplo. Havia conflitos com os "mais velhos", e sobretudo com os mandingas.

− Conflitos ?... Entre camaradas ?...

Sem concretizar, o Brandão referia-se aos "pequenos abusos", os privilégios dos comandantes: vinho de palma, "água de Lisboa", bajudas para dormir, "bianda com mafé", relógio de pulso, amuletos, saco-cama, medicamentos, cigarros, guarda-costas.... 

Percebeste o ele que queria dizer, por meias palavras. 

Havia quem andasse na luta há muitos anos. Desde o princípio e, com sorte, estava vivo. Um jovem, de 19/20/21 anos,  só por ter estudos e ser comissário político, não ia mudar aquelas "cabeças duras"...

 Havia o culto do "cabra-matchu", denunciado aliás nos discursos do Amílcar Cabral. Mas o líder histórico não andava com eles no mato. Muitos nunca o tinham visto em carne e osso, só em fotografia. Conacri ficava longe. Tal como as Colinas do Boé.

Sobre os ajustes de contas com os "cães dos colonialistas", a seguir à independência, não quis falar. A expressão era usada pelo Cabral para se referir aos fulas e outros "colaboracionistas"...  O assunto incomodava-o visivelmente, e tu não insististe. Era delicado demais para uma conversa entre antigos inimigos, logo nos primeiros tempos em que se conheciam.

Ainda houve tempo de ir ao cais do Pijiguiti para dar um último adeus e ouvir o silêncio do Geba, que ali já era estuário,  barrento, misturando-se com as águas azuis do Atlântico. O Xaianga, o Geba Estreito, era a montante, a partir do Xime... Um enorme braço de água que serpenteava pela Guiné e os seus dois países vizinhos... 

Tiveste pena de não poder parar no Mato Cão, no regresso da viagem ao Cantanhez, e aguardar a chegada do macaréu, quando aquela gigantesca serpente de água irrompe pelas margens lodosas, na maré-alta, com o seu rugido de meter medo... 

Que diriam aquelas margens se pudessem falar dos silêncios e dos macaréus dos últimos 500 anos de História ?

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