sábado, 7 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14328: Em busca de ...(254): António Medeiros, que esteve em Guidaje, com o Barata e o Clemente (Ana Medeiros)



Foto nº 1... À direita o Barata


Foto nº 2... Da direita para a esquerda, o 1º cabo Clemente e o António Medeiros



1. Mensagem (e fotos) da nossa leitora Ana Medeiros:


De: Anna Kwon

Data: 6 de março de 2015 às 17:13

Assunto: Guidage


Boa tarde,  Sr.,

O meu pai esteve na Guerra Colonial e eu queria enviar-lhe duas ou três fotografias para ver se você saberia onde as pessoas das fotografias se encontram atualmente ou se tem o contacto delas, nunca se sabe,  por isso decidi tentar.

O meu pai chamava-os de Barata e Clemente.

Na primeira fotografia, mais à direita é o Barata.

Na segunda fotografia, o da esquerda é o Clemente e o outro é o meu pai, António Medeiros.

Obrigado pela sua atenção,

Ana Medeiros

2. Comentário de LG:

Querida amiga, é um gesto muito bonito da sua parte querer ajudar o seu pai a reencontrar dois camaradas do tempo da guerra colonial. Fez bem em pensar que não custa tentar. Infelizmente, não vai fácil, da nossa parte, responder ao seu pedido, com sucesso. Faltam-nos elementos importantes para identificar a unidade (batalhão, companhia ou pelotão) a que pertenceu o seu pai. 

Diz-nos que ele passou (ou esteve) em Guidage (ou Guidaje) no norte da Guiné, junto à fronteira com o Senegal. Precisamos de saber em que ano. De qualquer modo, aqui ficam publicadas as duas fotos que nos mandou. Pode ser que algum dos nossos camaradas que nos leem, consigam identificar, com alguma sorte,  os militares em questão. (Mais de 200 mil militares, oriundos do continente e dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, terão passado pelo território da Guiné, no período de 1961 a 1974).

Pelo apelido, Medeiros, a nossa amiga (e portanto o seu pai) será de origem açoriana.  Veja se consegue saber, junto do seu pai, o nº da companhia a que ele pertenceu.  E já agora o posto que ele tinha (soldado, 1º cabo, furriel, alferes...) e a arma a que ele pertencia (infantaria, cavalaria, artilharia, transmissões...). Teremos muito gosto em poder ajudá-la a si e ao nosso camarada António Medeiros para quem desejamos muita saúde e longa vida. 

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Guiné 63/74 - P14327: Notas de leitura (688): O livro de Sofia Branco, "As mulheres e a guerra colonial", apresentado em Lisboa, na A25A, em 4 de março (Parte I): o Movimento Nacional Feminino e o papel das madrinhas de guerra



Vídeo (4' 48'') >  You Tube > Luís Graça 

Mitó [, Maria Antónia Mendes], vocalista do grupo A Naifa, lê um excerto do livro, p. 50 e ss. (o Movimento Nacional Feminino e o papel das madrinhas de guerra). 





Lisboa, Associação 25 de Abril, 4 de março de 2015 > Sessão de lançamento do livro "As Mulheres e a Guerra Colonial"... Na mesa, da esquerda para a direita, (i) Mitó, vocalista de A Naifa; (ii) a escritora Dulce Maria Cardoso; (iii)  a autora, Sofia Branco;  e (iv) a representante da editora, A Esfera dos Livros.


1. Foi apresentado, no passado dia 4 de março, pelas 19h00, na Associação 25 de Abril,  sita na rua da Misericórdia, 95, Lisboa, o livro "As Mulheres e a Guerra Colonial", da autoria de Sofia Branco (Lisboa, A Esfera dos Livros, 2015, 375 pp.).

A mesa era composta só por mulheres: para além da autora (escritora e jornalista, presidente da direção do Sindicato de Jornalistas, natural da Póvoa do Varzim, nascida no pós-25 de abril),  estava a representante da editora (A Esfera do Livro, com sede em Lisboa), a apresentadora do livro, Ducle Maria Cardoso (n 1964, escritora, que viveu a sua infãncia em Angola), e ainda a Mitó, a  jovem e talentosa vocalista do grupo musical A Naifa.

A sala da A25A foi pequena para tanta gente, na sua maioria mulheres, Mas também alguns ex-combatentes, como era o caso do nosso editor Luís Graça ou de camaradas como o Manuel Joaquim ou o Carlos Matos Gomes (que escreveu um inspirado  prefácio para o livro, pp. 9-16, fazendo um paralelismo entre esta obra e o livro pioneiro de Maria Lamas, de 1948, "As Mulheres do Meu País"), e ainda o José Arruda (presidente da direção da ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas).

Tive o prazer de conhecer pessoalmente a esposa do José Arruda. e ainda  o Ludgero Sequeira, ex-fur mil comando da 38ª CCmds (Guiné, 1972/74), e hoje professor universitário  reformado, e que já fez parte dos corpos sociais da ADFA, tendo sido ferido em Guidaje, em maio de 1973. Presente também, na assistência, a Teresa Almeida, membro da nossa Tabanca Grande, antiga bibliotecária da Liga dos Combatentes,  e que,  depois de ter enviuvado em meados de 2013, está a passar - segundo nos confidenciou - por um mau momento no seu local de trabalho, queixando-se de ser vítima de "bullying".



A Maria Alice Carneiro e a Deonilde de Jesus (, esposa do nosso camarada Manuel Joaquim),  são duas das 49 mulheres cujas histórias são contadas no livro de Sofia Branco.  Como escreve a autora, Sofia Branco, logo na introdução, "mães, irmãs, mulheres e namoradas, filhas, amigas, meras desconhecidas... sem combaterem nem pegarem em armas, as mulheres viveram a guerra colonial como se lá estivessem" (p. 21).

Diversas esposas de antigas combatentes que estiveram no TO da Guiné foram também entrevistadas pela Sofia Branco: cite-se, a título exemplificativo, Natércia Salgueiro Maia,  esposa do cap cav Salgueiro Maia, ou Madalena Mira Vaz, esposa do hoje cor paraquedista ref, e escritor, Nuno Mira Vaz, do BCP 12, ou ainda Dulcinea Cerqueira, esposa do nosso camarada Henrique Cerqueira... Há também, pelo menos, duas antigas enfermeiras paraquedistas: Maria do Céu Policarpo e Maria Cristina Justina da Silva (Não sei se passaram pelo TO da Guiné)...

O livro está dividido em 12 capítulos, cada um tendo o título de uma canção da época da guerra colonial... É pena que não tenha um índice remissivo.  Comtinuaremos a falar deste livro que tem como subtítulo: "Mães, filhas, mulheres e namoradas: a retaguarda dos homens na frente de batalha".

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados

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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de março de  2015 > Guiné 63/74 - P14326: Notas de leitura (687): “O Legado de Nhô Filili”, por Luís Urgais, Oficina do Livro, 2012 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 6 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14326: Notas de leitura (687): “O Legado de Nhô Filili”, por Luís Urgais, Oficina do Livro, 2012 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Maio de 2014:

Queridos amigos,
Temos aqui uma surpreendente e atrevida intrusão multicultural, Nhô Filili é um funcionário régio que no último quartel do século XIX irá desafiar leis sociais cabo-verdianas casando com uma escrava guineense.
Luís Urgais está na posse de pleno conhecimento do barro que molda, constrói um romance histórico com muita plausibilidade e pena é que tenha precipitado o final do romance, pondo a galope os acontecimentos que precedem as atividades dos movimentos independentistas.
Uma obra que exalta os valores específicos da cabo-verdianidade e se mostra bem documentada quanto à natureza e importância do comércio negreiro e ao porquê da perda de influência da rota cabo-verdiana no termo da II Guerra Mundial.

Um abraço do
Mário


O Legado de Nhô Filili: Quando a literatura luso-cabo-verdiana se encontra com a Guiné

Beja Santos

“O Legado de Nhô Filili”, por Luís Urgais, Oficina do Livro, 2012, é um romance originalíssimo escrito por alguém que tem aprofundado conhecimento sobre a mestiçagem e a Cabo-verdianidade, trata-se de um registo poderoso de multiculturalidade em tempos da abolição da escravatura. A figura central é João Bento Rodrigues, conhecido por Filili, filho de minhotos, nascido na Ilha do Fogo. Será proprietário e funcionário régio, diretor local das alfândegas, irá afrontar a sociedade do seu tempo casando-se com a escrava Maguika, capturada nas matas da Guiné. É uma história de amor mas é acima de tudo um muito bem organizado romance histórico que tem o seu ponto de partida em 1869 (ano em que a monarquia portuguesa decretou a abolição da escravatura) e o seu termo será o período em que estão a eclodir as independências africanas.

É mesmo um romance histórico no seu figurino mais rigoroso: um cenário plausível, uma atmosfera de viragem, uma estrita compreensão das economias coloniais, um domínio absoluto da vida cabo-verdiana a partir do último quartel do século XIX. Dado o recorte da personalidade de Filili, a trama irrompe na Praia da Bateria, Filili, conhecido no meio local por Nhô Joãzim compra uma escrava ao corretor Abílio. Chama-se Maguika, mas Filili dá-lhe o nome de Guida, Margarida Gomes Fernandes. Guida é de etnia Papel, os tangomaus, intermediários no comércio de escravos, fora capturada por Bijagós, e ali estava. Os afetos prontamente faíscam:
“À medida que o tangomau desagrilhoava os tornozelos da fêmea nova e Filili pousava nela o olhar, estabeleceu-se uma clara empatia entre ambos. Ele quis saber se a sua nova escrava entendia a língua portuguesa ou o crioulo, mas de repente achou-se ridículo, não era suposto o escravo capturado entender o linguajar dos aculturados, e muito menos o do colonizador. Arrependido da observação, como se tivesse acabado de ofender a menina, Filili emudeceu. Mas ela, a quem jamais se ouvira uma palavra, atirou num português claro de sotaque arredondado: - Sou Maguika.”.

Enceta-se um romance em que a escrava fica como que numa aprendizagem de um Pigmalião, esse Filili asceta, cristão devoto e negociante irrepreensível. É esta menina vinda da Guiné que lhe irá dar coragem para enfrentar os negreiros, pôr em prática as normas régias tendentes a restringir e disciplinar o tráfico de escravos nos portos de Cabo Verde. O romance histórico entremeia informação que contextualiza o comércio negreiro ao longo dos séculos com o amadurecimento da relação entre Guida e Filili. Este restringe a sua vida social, deixa de ir aos bailes dos sobrados da elite, há mesmo uma apaixonada, de nome Antonieta, que não desarma. E as peripécias sucedem-se:
Leila, a amante de Filili, que dele estava grávida, viaja com Abílio, pai de Antonieta, o guarda-costas Abel mata-o a pontapé para lhe roubar uma boa maquia e rapta Leita, leva-a pelo caminho dos desfiladeiros em direção às montanhas dos rabelados, era ali que viviam os escravos fugidos em redutos fortificados. E de uma assentada Antonieta teve dois desgostos: após o funeral do pai, abriu o cofre onde este guardava o dinheiro e descobriu que caminhavam para a miséria; e descobriu que Filili andava perdido de amores pela escrava guineense.

A descrição do processo educativo de Guida é um primor de análise em torno dos meandros do que seria uma educação romântica na colónia portuguesa com maior sedimento cultural. Mesmo a incandescência da paixão é pintalgada com cores ténues, expressões contidas:
“À terceira vez que sentiu passos no corredor, a escravinha tomou coragem e, de um salto, saiu da cama. Ao assomar-se à porta do quarto, deu caras com Filili, que caminhava para a frente e para trás, aparentemente insone. Mas, quando ele se voltou e viu o corpo da sua Guida à transparência da camisa de dormir, não aguentou mais e correu para ela, abraçando-a e beijando-a num sufoco. Ela, evidentemente, correspondeu.
Filili era, porventura, o homem de pele mais clara do arquipélago de Cabo Verde e Guida uma das negras mais escurinhas. Mas, no rolar dos corpos, ter-se-ão, de tal modo, misturado um com o outro que ficou sem se saber, exatamente, onde começaria o branco dele e acabaria o negro dela”.

E Filili confronta-se com os costumes da sociedade cabo-verdiana, passa a viajar na companhia de Guida levando consigo o cónego Teixeira, como se o representante o igreja o protegesse da má-língua. Luís Urgais enquadra com mestria os ambientes, as festas, a vida de interior, os protocolos, a vida rural, é um artífice laborioso, bem documentado, que empurra a leitura de uma página para outra. A viagem entre o Fogo e a Brava, num canal onde subitamente estala a tempestade, é de elevada pirotecnia literária. Igualmente contido quando disseca a sociedade feudal cabo-verdiana. E naquele cheiro de uma África com odores de água salgada e vegetação rasteira, o cónego Teixeira casa os dois amantes, um homem caucasiano de pele muito clara, descendente de minhotos, com uma negra da Guiné.

Não há paixão angelical que sempre dure, vão chegar os filhos, entra-se num período de marasmo de secas e de fomes cíclicas. O filho mais velho, de nome Armando Napoleão, ia a filha mais velha, Leonilde Amélia (Titcha), vão revelar-se dois trastes. Somos inseridos nas atmosferas fúnebres, aquela estiagem é interminável, as nascentes secam, o povo está à míngua. O autor exponencia a importância de Joana, a criada que vem dos tempos da infância de Filili e que há-de acompanhar Guida, tem um papel fundamental na narrativa, realçando pelas histórias que conta a força da esperança, a vibração do sonho. Chega-se à República e ao Estado Novo, há jovens cabo-verdianos que partem à busca de uma vida melhor na metrópole. Durante a guerra, o Mindelo iria funcionar como asilo para muitos europeus. O porto de Dakar irá substituir pela importância que no passado tiveram os portos cabo-verdianos. José, o filho dos amores de Leila e Filili, irá ser educado pelo pai e madrasta, é um modelo de virtudes. No envelhecimento, Filili descobre que os filhos mais velhos lapidaram património. Filili desaparece, Guida vai ser repudiada por esses filhos rapazes. No auge da dor, Joana conta uma história exemplar a Guida, exatamente naquela praia em que se tomara de amores por Filili. Está só, mas confia plenamente nesse enteado exemplar. E toda esta história que tem como cenário a evolução de Cabo Verde, este retrato de uma África bela e sedutora, uma verdadeira metáfora da história da mestiçagem biológica e cultural de que Cabo Verde foi exemplo acabado, termina com um pensamento de Guida para o seu Joãzim, ela dá conta de uma borboleta branca que por ali esvoaça, prenúncio de boas novas:
“Olhou o mar diante de si e abriu um sorriso do tamanho do mundo”.

Uma grande surpresa para a lusofonia, esta promessa literária de Luís Urgais.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14312: Notas de leitura (686): “Nós, Enfermeiras Paraquedistas”, coordenação de Rosa Serra e prefácio do Prof Adriano Moreira, Fronteira do Caos, 2014 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14325: Efemérides (183): 5 de março de 1973, Guileje: a morte de um mártir/herói da guerra, o alf mil Vitor Lourenço, da CCAV 8350 (J. Casimiro Carvalho)


Foto nº 1 


Foto nº 2


Foto nº 3 

Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1972 (?) > CCAV 8350 (1972/74) > Festa de anos do J. Casimiro Carvalho (?) (ao fundo)  > Fotos do grupo onde estava o malogrado alf mil Victor Lourenço (morto em 5 de março de 1973). São as únicas fotos que temos deste malogrado camarada (de perfil, assinalado com uma seta) e foram-nos enviadas ontem  pelo J. Casimiro Carvalho.

Fotos: © J. Casimiro Carvalho (2015). Todos os direitos reservados


1. Comentário, de ontem, do José Casimiro Carvalho [ ex-fur mil op esp, da CCAV 8350, “Piratas de Guileje”, (1972/74)], ao poste P14324 (*)

Sou (fui) um dos intervenientes desse triste e doloroso episódio na História da CCAV 8350.

Decidiram reabrir a estrada para o Mejo. Tinham que "capinar", por esse motivo havia que manter a segurança aos trabalhos (eu estava com o meu Grupo emboscado, ali, bem na ZA). De repente ouvi/senti, uma violenta explosão. Fui-me inteirar do sucedido. Deparei com o corpo do malogrado Alferes Lourenço estendido, sem metade da cara, e com as "tripas" expostas (já estou a chorar)...

Que aconteceu ????... obviamente, conjecturas, muitas, só ele poderia explicar o que se passou, o resto são isso mesmo, conjecturas.

No entanto depois de me inteirar "in loco" do sucedido, fiquei com dois ou três "filmes"...

Ao desarmadilhar/desactivar uma granada/armadilha, em que é necessário reintroduzir os dois pernos/cavilha, ao mesmo tempo que se segura a alavanca da granada, pode ter havido uma falha na pressão da mão e ter activado o percutor do fulminante.

«In dúbio», ele deve ter-se apercebido que "algo não estava bem", tinha duas opções, atirar a granada para longe dele, e ferir dezenas de militares e civis, ou naquele nano-segundo optar por segurar... sempre com a 2.ª hipótese, que era, não havia problema "estava tudo bem".

Morreu com esse glorioso alferes... a resposta. Eu penso que ele, ao afastar a granada da cara, estendendo o braço, sem largar a mesma, poderia ter ficado na dúvida do eminente perigo, ou não.

Para mim ele foi/é um Mártir/Herói da guerra. Provavelmente tentou minimizar "os danos colaterais", não pensando em si, e é essa imagem que guardo.

O que se seguiu é digno da "bolinha vermelha", já no Quartel, fui um dos voluntários para pegar no cadáver e transportá-lo/depositá-lo... na Capela. Éramos dois, eu peguei nos braços, outro camarada nas pernas, ao levantar o corpo, o mesmo dividiu-se em dois... Que dor, eu fiquei com a cabeça, os braços e o dorso, o outro camarada, com as pernas e a bacia.

Encostei-me na Capela a chorar e com convulsões, que ainda hoje, transporto comigo.

O meu respeito e a minha memória estão com o "Alferes Lourenço".

Quanto a ser o Último Alferes a morrer, não é verdade. O último foi o Alferes Branco, que o veio substituir, morreu numa patrulha que fez comigo (a primeira que fez), em Gadamael... (**)

Tenho tudo isso gravado na minha cabeça. Nunca me esquecerei dos meus Heróis.

José Carvalho
ex fur mil Op Esp
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 5 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14324: Efemérides (182): 5 de março de 1973, Guileje: a morte de um herói, o alf mil Victor Paulo Vasconcelos Lourenço, da CCAV 8350, natural de Torre de Moncorvo (Hélder Sousa / Manuel Reis)

(**) Alf mil art Artur José de Sousa Branco. da CCAV 8350, morto em combate, em Gadamael, em 4/6/73. Era natural de Lisboa, e está sepultado no cemitério do Alto de São João.

Recorde-se que na tarde de 4 de junho de 1973, em Gadamael, o alf mil Branco sai com um reduzido grupo de combate (12 homens) para fazer um reconhecimento nas imediações do aquartelamento, na antiga pista, a cerca de 1 km do arame farpado. O grupo cai de imediato numa emboscada e só não foi totalmente aniquilado graças à pronta intervenção das tropas paraquedistas (CCP 122/BCP 12, acabada de chegar a Gadamael, na manhã de 3 de junho, sob o comando do cap paraquedista Terras Marques).

Um pelotão, sob o comando do alf paraquedista Francisco Santos, da CCP 122, vai em socorro do grupo do alf mil Branco e ainda consegue resgatar os corpos e os sobreviventes. "Os cadáveres tinham sido selvaticamente baleados, ainda estavam quentes  e os fatos empapados de sangue" (José Moura Calheiros - A última missão, 1.ª ed. Caminhos Romanos: Lisboa, 2010, pp. 527/528).

Além do alf mil Artur José de Sousa Branco, morreram nesta ação os seguintes camaradas, todos eles sold cav da CCAV 8350 (entre parênteses, o concelho da sua naturalidade):

António Mendonça Carvalho Serafim (Cartaxo);
Fernando Alberto Reis Anselmo (Macedo de Cavaleiros);
Joaquim Travessa Martins Faustino (Santarém);
José Inácio Neves (Alcobaça).
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quinta-feira, 5 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14324: Efemérides (182): 5 de março de 1973, Guileje: a morte de um herói, o alf mil Victor Paulo Vasconcelos Lourenço, da CCAV 8350, natural de Torre de Moncorvo (Hélder Sousa / Manuel Reis)

Hélder Sousa, Bissau, c. 1970/72
1. Mensagem do nosso colaborador permanente, Hélder Sousaa, com data de 3 do corrente:

Caros camaradas Editores

Em anexo envio um texto em que pretendo recordar a efeméride da morte do Alf. Lourenço, para mim um verdadeiro herói, ocorrida em 5 de Março de 1973.


É, também, um apertado abraço público, solidário, ao Manuel Reis, amigo do malogrado Lourenço e a quem ainda hoje esta recordação 'mexe' profundamente.

Caso vejam que pode ser publicado, seria bom fazê-lo no dia 5 de Março.


Não tenho fotos a acompanhar mas penso que se pode usar a foto n.º13 do "P11908" do cooperante Carlos Afeito e uma foto do Manuel Reis.

Abraços

Hélder Sousa


2. Efemérides: recordando o dia 5 de março de 1973: Homenagem ao alf mil Victor Paulo Vasconcelos Lourenço... Ou quem é ou o que é um herói ?

por Hélder Sousa


Várias coisas me levaram a fazer este texto.

O factor mais recente foi uma homenagem prestada pelo nosso camarada Armando Faria às vítimas das minas em Cufar em 2 de Março de 1974. Mas já há muito que um outro acontecimento, ocorrido um pouco mais a sul mas cerca de um ano antes, concretamente em 5 de Março de 1973, me tinha impressionado e que várias vezes me assaltava à mente. Refiro-me à morte trágica do Alf. Mil. Lourenço, o último Alferes a morrer na Guiné, segundo uma listagem que já vi publicada, pertencente à CCAV 8350, “Piratas de Guileje”, e que foi uma das 9 baixas mortais que essa Companhia sofreu.

O seu nome foi recordado em placa colocada pelos seus camaradas, dando assim o nome de “Parada Alf. Lourenço” em sua homenagem àquele pedaço de chão, conforme se pode ver na foto n.º 13, da autoria de Carlos Afeitos, ex-cooperante na Guiné entre 2008 e 2012 e que se encontra no “P11908”.





Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Núcleo Museológico Memória de Guiledje > c. 2011 > Memorial à CCAV 8350 (1972/1974) e ao alf mil Lourenço, morto por acidente em 5/3/1973.

De seu nome completo Victor Paulo Vasconcelos Lourenço, era natural de Torre de Moncorvo, está sepultado na Caparica. Foi uma das 9 baixas mortais da companhia também por "Piratas de Guileje" e um dos 75 alferes que perdeu a vida no CTIG.

Foto:  © Carlos Afeitos (2013). Todos os direitos reservados



Um outro factor foi a facilidade com que se denominam ‘heróis’. Hoje em dia, por tudo e por nada, e principalmente por questões relacionadas com o desporto, surgem ‘heróis’ como cogumelos. Pois muito bem, há actos relevantes que fazem com que determinadas pessoas se possam distinguir das demais? Tudo bem! Mas, ‘heróis’? Não serão heróis todos aqueles que no seu dia-a-dia lutam enfrentando as enormes dificuldades que a vida lhes (nos) oferece, para conseguirem ter, quantas vezes, o mínimo?

Às vezes, também, restringindo o ‘heroísmo’ a tempos e a acções de guerra, temos tendência para dar essa classificação a quem foi “muito bom a matar”, deixando de lado aqueles que, como eu entendo ser o caso deste Alferes Lourenço, que em vez de tirar deram literalmente a sua vida em prol de outros. Nos registos, a morte do nosso camarada Lourenço ocorreu por “acidente” e não “em combate”, sendo que isso, para o resultado final, não tem qualquer diferença.

A diferença está, isso sim, nas circunstâncias em que ocorreu.

Esse relato está colocado em comentário que o nosso camarada Manuel Reis publicou no acima referido “P11908” (*).  Em traços gerais, o que sucedeu foi que, aquando duma acção para (re)utilização duma picada entre Guileje e Mejo, verificou-se que num determinado local havia uma granada desarmadilhada mas não em segurança, o que o Alf. Lourenço se preparava para fazer, tendo ele dito ao Manuel Reis, que estava junto dele, que haviam duas em cada trilho e que já tinha colocada a primeira em segurança.

Subitamente a alavanca saltou e naquelas fracções de segundo a decisão que o malogrado Lourenço tomou foi a de proteger os seus camaradas que se encontravam próximos, oferecendo o seu corpo para ‘amortecer’ o impacto da deflagração tendo ficado, em consequência, ‘completamente esventrado’, como indicou o Manuel Reis.

O que o levou a tomar essa decisão? Tanto quanto nos apercebemos do relato do Reis, que se encontrava a um passo, havia mata cerrada na envolvente, havia o seu grupo de combate à frente a montar segurança, havia os capinadores e o Régulo atrás, pelo que atirar a granada para longe, fosse para onde fosse, essa tentativa provocaria, talvez, muito mais ‘estragos’. Mesmo com o seu gesto, para além da morte imediata do Lourenço, ainda se produziram 6 feridos evacuados para o Hospital, entre os quais o Régulo em estado grave.

Volto a interrogar-me: o que teria levado o Lourenço a decidir assim? O sentido da responsabilidade? O sentido do ‘peso’ do comando que determinou a necessidade de proteger os seus homens em detrimento da sua possível segurança? Como conseguiu, naquela fracção de segundo, decidir não seguir o ‘instinto de defesa’ e lançar a granada para longe? Será possível alguma vez responder a estas questões seriamente?

Será que classificar o gesto altruísta (e fatal) do Lourenço de “acto heróico” é injusto?

Para mim, não é injusto! É inteiramente merecido! Que mais poderia ter dado, para além da própria vida?

Por isso aqui deixo a minha comovida homenagem, neste dia do 42º aniversário do seu sacrifício, de modo a que a sua memória e a memória do seu gesto possam ser do conhecimento de mais gente. (**)

E também não quero deixar de dirigir umas palavras ao nosso camarada Manuel Augusto Reis, ‘amigo do peito’ do Lourenço, a quem a sua morte, em si mesma e nas circunstâncias referidas, muito abalou, naquele tempo e que ainda hoje fazem “doer”. Companheiros de quarto, confidentes, com cumplicidades cimentadas nos tempos da Universidade onde idealizavam um País mais igual, mais justo, mais solidário, no qual a guerra estivesse excluída, o Reis sabia da intenção do Lourenço casar quando viesse a Portugal (à Metrópole, como se dizia) nas próximas férias. Não veio!

Também calhou ao Manuel Reis a ingrata tarefa de reunir os haveres do Lourenço e tentar estabelecer o diálogo com a mãe dele, tendo ideia de que era filho único. Se relacionarem a data, Março de 73 e os nomes de Guileje e Gadamael (que, dizem, causam ‘cansaço’ a alguns) pode-se perceber que esses contactos através de cartas não seriam muito ‘eficazes’. Tanto quanto sei, as cartas da mãe eram de revolta e choro e que nunca chegou a ‘aceitar’ a morte do filho, pelo menos nesses tempos.

Portanto, na efeméride deste acontecimento, deixo aqui expresso o meu respeito e admiração no gesto heroico do Alferes Miliciano Víctor Paulo Vasconcelos Lourenço, natural de Torre de Moncorvo e sepultado na Caparica e também o meu abraço solidário ao sobrevivente Manuel Augusto Reis que, cumulativamente, é igualmente merecedor do meu enorme respeito pela forma cordata e paciente como tem ‘aguentado’ todas as odiosas ‘observações’ com que alguns ‘heróis de pacotilha’ o tentaram enlamear.

Honra ao Alferes Lourenço!

Um abraço para toda a Tabanca!

Hélder Sousa
Fur MilTransmissões TSF (Piche e Bissau e 1970/72)



Guiné > Região de Tombali > Guileje > Abril de 1973 > CCAV 8350 (1972/73), Piratas de Guileje > O Alf Mil Reis junto ao monumento erigido à memória do Alf Lourenço, dos "Piratas de Guileje", morto em 5 de março de 1973, na explosão de uma armadilha. Segundo nos conta o J. Casimiro Carvalho, "um dia, o alferes Lourenço, a manusear uma granada duma armadilha , e rodeado de militares - eu estava emboscado com o meu grupo -, a mesma explodiu-lhe na mão, tendo-o morto instantaneamente. Ficou sem meia cabeça e o abdómen aberto. Eu, já no quartel, ao ajudar a pegar no cadáver, este praticamente partiu-se em dois… Que dor!... Chorei como nunca, e isto foi o prenúncio do que nos esperava".

Foto: © Manuel Reis (2009). Todos os direitos reservados

3. Comentário do Manuel Reis [ex-alf mil, CCAV 8350, Guileje, 1972/743] ao poste P11908 (*)


Então aí vai amigo Luís. Já a contei imensas vezes, talvez não o tenha feito no Blogue, e tão pormenorizada. Não vou ocultar qualquer facto, julguem-me como entenderem.

Lourenço era o meu melhor amigo e após a sua perda se tivesse por onde me furtar, em segurança, e com garantia da minha integridade física, adeus, Guiné.

Estava prevista a reabertura da estrada Guileje-Mejo, para posteriormente se reabrir um aquartelamento em Quebo, mais próximo do Cantanhez. A localização do possível aquartelamento já fora por nós visitado, num patrulhamento que Coutinho e Lima comandou. Nesse dia a sorte estava do nosso lado, quando exaustos, descuidámos a proteção. O PAIGC estava no local, mas nunca imaginou que pisássemos aquele terreno, controlado por eles. A maré do rio começou a encher e tivemos de regressar, sem qualquer percalço.

Por volta das 8 da noite, dia 4 de Março, o Lourenço recebe ordem para fazer proteção à reabertura da referida picada ( estava limitada a um pequeno trilho pela imensa mata que a ladeava) no dia 5 de Março, logo que a visibilidade o permitisse.

Como sempre fazíamos, dada a nossa grande intimidade, abordámos a situação da reabertura da estrada e concluímos que aquela picada brevemente se transformaria num campo de minas, o que se veio a concretizar.

Estava de serviço ao aquartelamento, colaborando na limpeza, ajuda na cozinha, recolha de água e qualquer outra tarefa, que se tornasse necessária.

Depois de orientado o serviço,  dei uma saltada à picada que estava a ser reaberta. O trabalho era feito pelos capinadores recrutados na população.

Constatámos os dois que os trabalhos tinham avançado imenso, a que era atribuído à presença, quase permanente, do Coutinho e Lima. Alertei-o para a granada, que estava desarmadilhada, mas não em segurança. Respondeu-me que sabia, cada trilho tinha duas e ele já colocara em segurança a primeira.

Depois de um pequeno bate papo solicitou-me que lhe pegasse na arma e que iria pôr a granada em segurança. Fumava um Português Suave (sem filtro  e pegou na granada para a colocar em segurança. A alavanca saltou e o Lourenço para proteger os outros ficou completamente esventrado.

A situação era complicada e o tempo escasso para decidir. Estava junto dele e o sexto sentido aconselhou-me que a que recuasse um passo (não havia espaço para mais) e me baixasse com a arma dele. Em frente tinha a mata cerrada e o risco de lhe cair junto aos pés era grande. Atirá-la para a frente era arriscado, encontrava-se o seu grupo de combate a montar a segurança. Atirá-la para trás era impensável, lá se encontravam os capinadores e o Régulo que já se encontrava a dois metros de distância de nós.

A situação resumiu-se à morte imediata do Lourenço e à evacuação, para o hospital de 6 capinadores e do Régulo, este em estado grave.

Não cheguei a ver o estado do Lourenço, era fácil deduzir como se encontrava. Fiquei em estado de choque e refugiei-me na messe dos Sargentos.

Com o Lourenço partiu metade de mim. Para agravar todo este estado anímico, nessa hora, fomos visitados por camaradas sediados em Bissau que vinham planificar as obras a realizar no aquartelamento e que acabaram por me melindrar por me encontrarem num estado debilitado e em sofrimento.

Obrigado,  Amigo. Descansa em Paz. Não esquecerei a data trágica de 5 de Março e recordar-te-ei para sempre.

Manuel Reis

_____________________

Notas do editor:

(*) 6 de agosto de  2013 > Guiné 63/74 - P11908: Memória dos lugares (243): Núcleo Museológico Memória de Guileje - Parte II (Carlos Afeitos, ex-cooperante, 2008/2012)

Guiné 63/74 - P14323: Manuscrito(s) (Luís Graça) (48): Foi você que pediu uma Kalash ?



Lisboa > Beira Tejo > Pôr do sol no Atlântico, visto do estuário do Tejo, em Belém, junto ao Museu do Combatente (Forte do Bom Sucesso). 5/11/2011

Foto: © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados




Foi você que pediu uma Kalash ?

Luís Graça



Há uma luz difusa,
mistura de ternura e de saudade,
quando o sol se põe
em Lisboa,
e tudo à volta é a humanidade
que arde.

Impensável o fado da idiossincrasia lusa
sob o céu de chumbo 
de Atenas.
Impensável 
ou improvável,  apenas ?
Porque de pias intenções,
maus pensamentos 
e piores ações está o inferno cheio,
as praças, do Comércio ao Rossio,
e os marcos do correio.

Ah!, o bravo Ulisses, o grego,
o que ele andou p’ra aqui chegar, 
depois de transpostas as colunas de Hércules, 
e fundar 
a mítica cidade atlântica de Olissipo. 
Ah!, a Lisboa,
que os poetas amaram 
e onde nunca foram amados,
do Cesário Verde ao Álvaro de Campos.
Ah!, Lisboa
com as suas casas de muitas cores,
caiadas de branco.

Chora, e não é de medo,
o judeu sefardita, 
a sua desdita,
cristão novo, marrano,
a caminho do degredo:

─  Ai!, a doce luz de Lisboa,
filtrada pelo espelho de água do Tejo,
mais o pôr do sol sobre o Atlântico Norte
que começa no Bugio.
Não sei se estarei cá, p’ró ano,
que a vida e a morte
são jogos de azar e sorte.
Só sei que o que sinto,
é já saudade, 
porque… é arrepio!



No tempo em que a terra era plana,
antes das viagens de circum-navegação,
não podias imaginar o novo mundo
e, lá ao fundo, 
Copacabana,
mais as cataratas de Iguassu,
Darwin e a teoria da evolução,
e o tu-cá-tu-lá de deus com a ciência.
Muito menos a crioula e o seu cretcheu,
o tango,
o flamengo, o fado,
o dundum, a coladera
o samba, a morna, 
o lançado, o tangomau,
o escravo do Cacheu,
e a santa paciência
com que a gente vive, morre e não retorna.

Chama-lhe o que quiseres,
mas tens uma dívida de gratidão,
à Grécia antiga,
ao Homero,
ao Platão,
à bela e pérfida Helena de Troia,
ao ateniense e ao espartano,
aos deuses e deusas do Olimpo…
Que serias tu, sem o Ícaro,
mas também sem boia
nem colete de salvação ?
Que importa, afinal, a nobreza de um povo,
grego, judeu ou lusitano,
se a espada do sacro imperador romano
está suspensa por um fio
sobre a tua cabeça ?!

Em Lisboa, a norte, 
no caminho do São Tiago,
o santo decapitado,
guiando os feros exércitos da Reconquista,
no seu constante vaivém do ir e vir,
à volta da Europa e dos seus picos
de civilização.
E a sul, a autoestrada da globalização
onde cada turista 
tem direito ao seu recuerdo,
um postal ilustrado do futuro 
que seguirá dentro de momentos…
Allah Akbar!, ainda ecoa o último grito 
da batalha de Alcácer Quibir.

Mais a sul, 
as febres palúdicas do Geba e do Corubal,
grau 35 do frio polar,
esmagando os teus ossos;
grau 42 do fogo infernal,
implodindo a tua cabeça.
Viras na curva do rio,
para desceres ao fundo da terra,
verde e vermelha, 
dos pesadelos.


Dos miradouros dos grandes cruzeiros
que demandam o Tejo
não se vê a solidão dos velhos,
à beira rio,
tentando em vão
reacender o pavio
do desejo.
Muito menos os mariscadores
do mar da Palha
onde apodrece a última nau
do caminho marítimo para a Índia.
Ou ainda os moços que partem na frota branca
para os bancos de pesca do bacalhau, 
na Terra Nova,
sete vidas, sete safras,
servindo a velha pátria
em alternativa à guerra de África.

Lisboa, forrada a dourada talha,
estremece,
sob o peso da carruagem
do senhor dom João Quinto.
Dizes adeus a Fernão Mendes Pinto
que parte em viagem 
para o império do sol nascente,
levando consigo os botões, 
as armas de fogo 
e as emoções
dos bárbaros do sul.

 Canta-lhe, Mísia,  aquele fado,
que diz: “Arrefece
a última lava do vulcão
do teu corpo, amor,
mas ainda estremece,
ou não foras tu, velha Lisboa, 
sempre (e)terna,
menina e moça, bajuda, mulher”.

Entardece,
ensandece a cidade,
todas as sextas-feiras treze
do novo milénio.
Valha-nos as cruzes, canhoto,
contra o mau olhado.
E vade retro, Cronos, 
que, depois de devorares os teus filhos,
hás de devorar-te a ti próprio!
E quem tem bula come
carne,
não precisa de engenho e arte,
diz o cristão, velho e relho.
Mas é amarga a ostra,
e mortal a ameijoa
com que os pobres matam a sua fome.

Afogas-te em absinto,
bebida antiga de poeta,
depois de teres mandado cortar
as copas dos pinheiros bravos
por te taparem
a linha perdida do horizonte.
Mas já não há horizonte,
querida,
nem rosas nem cravos,
quebrada que foi a linha da vida.

Sem ajuda do Google Earth, 
à vista desarmada,
encontras aqui o teu lugar,
definitivamente provisório,
provisoriamente definitivo,
porque sabes que é tão irrisório
partir como absurdo ficar,
para quem da vida é fugitivo. 
Sentas-te numa esplanada
na doca de Belém,
com vista de mar:

─ Foi você que pediu uma Kalash ? ─ 
pergunta-te um dos sem-abrigo,
antigos estivadores e fragateiros,
pescadores e marinheiros,
agora tristes desempregados de mesa,
predadores à espera de presa.
Estão ali simplesmente à coca do turista.

 Não, obrigado, amigo,
mas não me faltava a vontade…











 Temos as melhores Kalash da cidade, 
das originais e das contrafeitas…
É só puxar a culatra

e meter uma bala na câmara,
e ficar à escuta...

Não insista!...
Para que haveria eu de querer uma arma,
essa é boa!,
se não tenho licença… para matar?!


Mal por mal, 
protestas contra o autocrata,
metes uma baixa psiquiátrica,
e pedes uma azeitona ou uma tâmara
e um copo… de cicuta,
enquanto o sol se põe em Lisboa!...


Lisboa, beira Tejo, fev 2015




Guiné > Região do Boé > Madina do Boé > CCAÇ 1589/BCAÇ 1894 (Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68). >  Uma Kalash, capturada ao PAIGC...

Foto do álbum fotográfico do nosso camarada Manuel Caldeira Coelho, ex-fur mil trms, CCAÇ 1589 (Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68).

Foto: © Manuel Coelho (2011). Todos os direitos reservados [Edição: LG]

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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de fevereiro de  2015 > Guiné 63/74 - P14308: Manuscrito(s) (Luís Graça) (47): Quem em caça, política, guerra e amores se meter, não sairá quando quiser...

Sobre a Kalash e a Kalashnikovmania, vd. entre outros os postes de:

25 de novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7335: Kalashnikovmania (5): Passados tantos anos sobre a guerra, continuo fã incondicional da G3 (Mário Dias)

17 de janeiro de  2008 > Guiné 63/74 - P2445: Em louvor da G3, no duelo com a AK47 (Mário Dias)

17 de maio de 2005 > Guiné 63/74 - P20: Foi você que pediu uma kalash ? (David Guimarães)

quarta-feira, 4 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14322: Ser solidário (179): "Bambadinca Sta Claro", projeto-piloto na Guiné-Bissau, de uma central híbrida fotovoltaica, leva luz a 8 mil habitantes de Bambadinca. Documentário produzido pela ONG TESE e entrevista da Antena 1 a Sara Dourado



(Reproduzido com a devida vénia...)


1. De acordo com notícia da página da TESE - Associação para o Desenvolvimento,  a Delegação da União Europeia junto da República da Guiné-Bissau e a ONG TESE Sem Fronteiras  inauguraram hoje, dia 4 de março, pelas 09h00, em Bambadinca, o Serviço Comunitário de Energia de Bambadinca (SCEB).

Estava prevista participação do Primeiro-Ministro e de outros membros do Governo da Guiné-Bissau, bem como do Embaixador da União Europeia em Bissau e do Comissário da CEDEAO para Energia e Minas.

"A entrada em serviço do SCEB permitirá aos 8 mil habitantes de Bambadinca ultrapassar os constrangimentos no acesso à electricidade, beneficiando de um abastecimento permanente de energia renovável, garantido por uma inovadora central fotovoltaica híbrida de 312 kW de potência.

"Este é o resultado do programa 'Bambadinca Sta Claro', financiado pela União Europeia, pelo Camões - Instituto da Cooperação e da Língua e pela Agência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial, com o apoio da Direcção-Geral de Energia.

"O projecto foi desenvolvido e executado pela TESE Sem Fronteiras e pelos seus parceiros, a Associação Comunitária de Desenvolvimento de Bambadinca (ACDB), a ONG guineense DIVUTEC e Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

"O SCEB será gerido pela ACDB, que garantirá o fornecimento de electricidade a um preço acessível, assim como um modelo de gestão sustentável, com vista à sua replicação futura noutras localidades da Guiné-Bissau e da sub-região."

Programa da inauguração (Disponível aqui)





2. Programa da  Antena 1 > Portugueses no Mundo > 4 de março de 2015 > Sara Dourado, Bambadinca, Região de Bafatá, Guiné-Bissau > Ficheiro áudio, 7' 22''


"Com um clique e faz-se luz por Bambadinca!", relata Sara Dourado, uma "portuguesa no mundo", em entrevista à Antena 1, a "minha rádio". Por ela fico a saber do trabalho da ONGD TESE e do projeto-piloto, na Guiné-Bissau, de uma central híbrida fotovoltaica  em vias de ser inaugurada, e e pssar a fornecer eletricidade a 6 ou 8 mil pessoas, em Bambadinca...

Hoje, de manhã, na 2ª circular, a caminho do trabalho, ouvi deliciado esta entrevista com esta portuguesa que se deixou encontar pela gente boa de Bambadinca (de maioria mandinga e fula, com núcleos balantas)... Oito mil habitantes, quatro ou cinco vezes mais do que há 45 anos, no meu tempo!

É trabalho de seis anos, se bem percebi, trabalho de gente solidária, muito jovem e qualificada, para quem vão as nossas palmas!... Hoje gostava de estar em Bambadinca para ser testemunha da felicidade dos seus habitantes!... Mesmo não falando, a maior parte,  em português (, o que é pena!),  é uma  delícia ouvi-los em crioulo e ler a felicidade estampada no seu rosto!... Não é preciso muito para os seres humanos serem felizes, na Guiné-Bissau... Basta que sejam donos do seu destino e possam participar na resolução de problemas e na tomada de decisão, relevantes para a melhoria das suas vidas !... Vou querer saber mais sobre o trabalho desta ONGD TESE - Sem Fronteiras... (LG)

Guiné 63/74 - P14321: X Encontro Nacional da Tabanca Grande, Palace Hotel de Monte Real, 18 de Abril de 2015 (4): Já temos 74 inscrições, incluindo 2 dos Açores, e muitas caras novas!


Infografia: Miguel Pessoa (2015)


INSCRITOS PARA O X ENCONTRO NACIONAL DA TABANCA GRANDE - MONTE REAL, 18 DE ABRIL DE 2015 (N=74)

Albano Costa & Maria Eduarda - Guifões / Matosinhos
Alberto Godinho Soares - Maia
António Estácio - Mem Martins / Sintra
António Joao Sampaio & Clara - Leça da Palmeira / Matosinhos
António Maria Silva &  Maria de Lurdes - Lisboa
António Martins de Matos - Lisboa
António Osório, Ana &  Maria da Conceição - V. N. de Gaia
António Santos &  família (6) - Caneças / Odivelas

Carlos Alberto Cruz, Irene & Paulo Jorge - Paço de Arcos / Oeiras
Carlos Vinhal & Dina - Leça da Palmeira / Matosinhos
Coutinho e Lima - Lisboa
David Guimarães & Lígia - Espinho
Eduardo Ferreira Campos - Maia
João Alves Martins & Graça - Lisboa
João Maximiano - Santo Antão / Batalha
João Sacoto & Aida - Lisboa
Joaquim Carlos Peixoto e Margarida - Penafiel
Joaquim Mexia Alves - Monte Real / Leiria
Jorge Canhão & Maria de Lurdes - Oeiras
Jorge Pinto & Ana Maria - Lisboa
Jorge Rosales - Monte Estoril / Cascais
José Almeida e Antónia - (?)
José Barros Rocha - Penafiel
José Casimiro Carvalho - Maia
José Fernando Almeida e Suzel - Óbidos
José Manuel Cancela & Carminda - Penafiel
José Miguel Louro & Maria do Carmo - Lisboa
Juvenal Amado - Fátima / Ourém
Liberal Correia e Maria José - Ponta Delgada (RA Açores)
Lucinda Aranha e José António - Santa Cruz / Torres Vedras
Luís Graça & Alice - Alfragide / Amadora
Luís Moreira - Mem Martins/Sintra
Luís Paulino & Maria da Cruz - Algés / Oeiras
Manuel Fernando Sucio - Vila Real
Manuel Lima Santos & Maria de Fátima - Viseu
Miguel & Giselda Pessoa - Lisboa
Ribeiro Agostinho e Elisabete - Leça da Palmeira/Matosinhos
Ricardo Sousa & Georgina - Lisboa
Rogé Guerreiro - Cascais
Valentim Oliveira, Maria Joaquina, Cyndia & Carina - Viseu

Os Organizadores:

Carlos Vinhal 
Joaquim Mexia Alves
Luís Graça
Miguel Pessoa

Inscrições e esclarecimentos: email carlos.vinhal@gmail.com

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Nota do editor:

Último poste da série 19 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14274: X Encontro Nacional da Tabanca Grande, Palace Hotel de Monte Real, 18 de Abril de 2015 (3): Abertura das inscrições e outras informações complementares

Guiné 63/74 - P14320: Inquérito online: resultados finais (n=112): três em cada quatro reconhece que mudou muito, fisica e/ou psicologicamente


Resultados finais da última sondagem (que decorreu, "on line", de 25/2 a 3/3/2015)


1. Recorde-se a nossa pergunta, de 25 de fevereiro último (*):

Camaradas, será que mudámos assim tanto, física e psicologicamente, ao fim destes 40/50 anos ?... Ao ponto de um irmão e camarada (Manuel Carvalho) não conseguir reconhecer outro irmão e camarada (o Carvalho de Mampatá, o Toni), numa foto de agosto de 1974 ? Vd. poste P14296 (*).

2. Total de respondentes: 112.

Resultados finais da sondagem: "Ao fim destes 40/50 anos, mudei muito, física e psicologicamente " (Resposta múltipla) 

1. Sim, mudei muito > 37 (33%)

2. Mudei muito fisicamemte > 53 (47%)

3. Mudei muito psicologicamente > 39 (35%)

4. Não, não mudei muito > 29 (26%)

5. Não mudei muito fisicamente > 18 (16%)

6. Não mudei muito psicologicamente > 29 (26%)

7. Não sei > 2 (2%)

Votos apurados: 112
Sondagem fechada em 3/3/2015

3. Alguns comentários de camaradas da Tabanca Grande (**)

 (i) Eduardo Santos

Olá caro (s) amigo (s). Em resposta ao vosso inquérito, é evidente que, no meu caso pessoal, a resposta está nos pontos 2 e 3: mudei muito física e psicologicamente. Para o melhor, mas também para o pior.

É a lei normal da vida, o que não impede que ainda hoje sinta uma certa nostalgia desses tempos. Era o auge da vida, convém lembrar. Não concordando politicamente com o Governo de então, limitei-me a cumprir a minha obrigação (imposta) para com o país. Sinto dever cumprido, não fugi como muitos, arrostei com o que foi necessário. Fiz mais de 22 meses na Guiné como 1º cabo entre 1967/69. Conservo com muito orgulho um louvor que me foi outorgado como militar distinto, com um sentido de profissionalismo (era operador cripto) elevado e exemplo a seguir (era da praxe dos louvores de então).

Para todos os meus ex-camaradas um abraço amigo. Eduardo

(ii) Leão Varela

Olá, Amigos e Camaradas: Achei piada a esta sondagem bem como aos comentários complementares...

Oh! Amigo e Camarada Luís Graça, achas que passadas mais de 45 Luas (no meu caso) que não mudei muito?  Claro que mudei... não muito, mas mudei...principalmente fisicamente (o contrário só se tivesse sido "embalsamado" aos 30 anos e agora "ressuscitado").

Contudo, acho que psicologicamente a mudança - até à data - não foi muito acentuada (salvo quanto a uma maior dificuldade em fixar e relembrar-me nomes e fisionomias - o que aliás, diga-se, foi quase desde sempre um defeito muito meu)...pois continuo o mesmo Varela com os seus pontos fracos e fortes mas sempre com os mesmos valores que sempre me pautaram - quer na guerra quer na paz - e que herdei dos meus saudosos pais e que fui adaptando e actualizando a cada momento da minha vida.


(iii) Carlos Milheirão

Acho pertinentes as questões postas. De um modo ou de outro, todos mudámos tanto física como psicológicamente. No que me diz respeito, se não fossem as rugas, as cãs e, como é óbvio, as manchas da velhice, podia considerar-me igual ao outro eu de 1973/74.

Mantenho e tenho mantido ao longo dos anos, as mesmas medidas de roupa. O peso andou sempre nos 65/70 kg. Quanto à parte psicológica, a juventude intelectual ainda por cá mora apesar de ter sofrido algumas (poucas) restrições. Pelo menos assim o penso porque, de vez em quando, ainda gosto de fazer as minhas incursões na noite com alguns amigos. Cantam-se uns fados e bebem-se umas "bazukas".

Abraço a todos os Tabanqueiros, Carlos Milheirão

 (iv) Luís Marcelino

Caríssimo camarada Luís Graça: É com muito prazer que participo na sondagem, para dizer: 4. Não, não mudei muito; 5. Fisicamente também não mudei muito; 6. Não mudei muito psicologicamente

Um abraço, Luis Marcelino

(v) Carlos Vinhal 

Caro Luís:  Quando respondi ao inquérito, fui o segundo a dizer que tinha mudado muito. Folgo por a rapaziada se estar a aproximar do meu ponto de vista. Somo já quase um terço dos respondentes. É que,  se somarmos o aspecto físico com a inevitável alteração psicológica, a verdade andará pelos 80%. Atendamos a que mesmo entre os que cumpriram a sua comissão só em Bissau havia muitos (inexplicavelmente?) apanhados do clima.

28 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14309: Pensamento do dia (21): Por que é que este blogue é tão importante para os ex-combatentes (Torcato Mendonça)... E por que é que eu me sinto tão bem ao pé deles... (Jorge Rosales)

27 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14307: (Ex)citações (263): Eu respondi à sondagem "4. Não, não mudei muito"... Mas acho que mudei, não sei se para melhor, se para pior (Hélder Sousa, ex-fur mil, trms TSF, Piche e Bissau, 1970/72)

Guiné 63/74 - P14319: Os nossos seres, saberes e lazeres (77): A arquitetura de Haia em visita de médico (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Fevereiro de 2015:

Queridos amigos,
Diz o editor e os seus coeditores que dá sempre jeito o registo de viagens, mesmo que as mesmas não incluam savanas, porcos de mato, tarrafo ou macaréu.
Imprevistamente, passei dois dias em Haia, há pelo menos 35 anos que não visitava a cidade. Nas nesgas do programa, captei imagens que vos ofereço. Adoro aquele país, o seu modo de vida, a sua arte, há ali qualquer coisa de saxónico mas suavizado, e há uma alegria de viver, uma bonomia que me lembra os países do Sul. E, acima de tudo, aquele torvelinho de bicicletas...

Um abraço do
Mário


A arquitetura de Haia em visita de médico

Beja Santos

Fui pela primeira vez a Haia em 1978, vinha de Londres depois de um estágio na BBC (TV e rádio), fora o pedido que fizera à administração da RTP, quando recebi o convite para a primeira série de programas que ali fiz sobre defesa do consumidor, intitulada “10 milhões de consumidores”. Contactara entretanto a então a IOCU, hoje Internacional dos Consumidores, tinha nesse tempo sede em Haia, pedi-lhes uma resma de filmes de várias procedências, necessitava de termos de comparação para os filmes a realizar em Portugal. Viajei de Heathrow para Schipool (Amesterdão), à saída apanhei um autocarro para Haia. A impressão que me ficou da cidade foi de resguardo e boa manutenção da arquitetura típica dos Países Baixos Setentrionais, com imensas afinidades, como é óbvio, com a arquitetura flamenga. Meses depois, foi devolver o material fílmico, passei por Haia de raspão anos vindo de Utrecht, continuava a ser a cidade do Governo e do Parlamento, tudo muito cuidado, o que é compreensível se nos recordamos que a Holanda teve a felicidade de não ser afetada pela I Guerra Mundial e na guerra relâmpago de 1940 os alemães concentraram o seu dispositivo destruidor sobre Roterdão, que reduziram a cinzas.

Volto agora em menos de 48 horas para participar numa conferência, venho cheio de curiosidade, já me falaram em prodígios arquitetónicos, vou então arranjar, dê por onde der, uma hora de luz para cirandar entre as lembranças daquele antigo que retive na memória e as audácias e arrojos da moderna Haia, pujante de vida, prazenteira se bem que buliçosa.


Saí do EasyJet Hotel, vou esfomeado mas esta imagem não me escapa até porque aquele raiar vermelho é de pouca dura, daqui a um bocado tudo vai ficar cinzento e assim será até à noite escura. Temos aqui a mistura do antigo e do moderno, caminha para as oito da manhã, está friozinho mas não há chuva, toca a deambular.


Temos aqui a natureza silenciosa no inverno rigoroso, os patos já estão em movimento, o inacreditável é que frente ao parque erguem-se como colmeias os arranha-céus e aqueles edifícios que não se sabe se são escritórios ou de habitação que se espalmam por quarteirões, fascina o arrojado com um toque de antigo, às vezes até parece que anda por ali a mão de Gaudi, vejam só.


Pode gerar atração ou repulsa, mas não nos deixa indiferentes, estão sabiamente implantados, há espaço para a arquitetura, e para as diferentes situações, não esquecer que os peões andam paralelos às bicicletas e outros velocípedes, é timbre da cultura holandesa dar ao pedal, magros, com bom peso ou gorduchos andam à desfilada, constituem uma artéria circular que ao princípio confunde o forasteiro, mas ele habitua-se depressa, a Holanda é a Holanda.


Num outro ângulo apanhei esta mostra de arte pública, fiquei satisfeito, não há paredes grafitadas nem as esculturas estão esmurradas, agora vou para o hotel onde vai começar a conferência, e ainda tenho que meter uma bucha à boca, com este peso ainda caio para o lado desfalecido.


Alto lá, as proporções deste edifício geram harmonia, e até pasmo como todo este quarteirão moderno não tem um só resquício de desumanidade ou desolação, já atravessei algumas ruas com arquitetura vernacular, mas toda esta arte contemporânea embrinca e, pasme-se, não é mastodôntica, apela à escala humana. Basta de festa, agora vou trabalhador.


Acabou o primeiro dia de conferência, um elemento da terra esclareceu-me que ainda tenho luz por cerca de uma hora. É agora ou nunca, enfarpelo-me para resistir aos 4ºC, e vou para a giraldinha, ninguém me agarra até à hora em que regressar para o jantar oferecido pelo Ministério da Saúde da Holanda. É ocioso dizer que ando por aqui ao acaso, o que me cai na rede é peixe, é do que gosto e o que gosto registo para partilhar. Comecei aqui.


Dobrei a esquina e pumba, não me passou pela cabeça brincar com os reflexos, o que aqui se registou foi puro acaso, há horas de sorte para os fotógrafos amadores, e vou já atravessar a rua, há ali outra construção que me está a encher o olho.


Passei por aqui ontem, até captei aquela peça de arte urbana, talvez se recordem. Não me virei ao fundo da rua para ver o efeito desta fachada, gosto muito. Ah, será mesmo possível o que eu estou a ver?


Destes escritórios aqui à volta, não tardam muito, vão sair corretores, informáticos, contabilistas, analistas e tudo o mais de que a civilização precisa, vão transmutar-se em ciclistas, muitos deles, conforme a gravura junta, vão buscar as crianças à creche. As cidades planas e os países planos ditam esta locomoção que se traduz numa maneira de viver pragmática, autónoma, dita a bonomia destes holandeses que têm pouco de germânico mas que também não se aparentam com os mediterrânicos. Parece que têm pouco a esconder, janelas não estão entaipadas, podemos ver o recheio e os movimentos de quem lá vive. E quando calcorreamos as ruas vem à mente a pintura holandesa, com aquela malta bem-disposta, a beber uns copos, tudo suave, sem agressividade. É assim.


Disseram-me aonde estava a Gare Central, apontaram o edifício e comentaram que era um ex-libris da cidade. Não se é ou não é, o que gostei foi do ângulo, e como tenho mais de uma hora por minha conta antes de partir para o aeroporto, vou mostrar-vos as coisas antigas de que gostei com as últimas imagens do moderno que mais me cativou.


Dá para ver perfeitamente o antigo entalado no moderno, não provoca escândalo.


A moral protestante transparece nestas linhas austeras, não se mostra ao público o interior da casa, haja o luxo que houver. O puritanismo é para se ver e recomenda-se.





Aqui ficam imagens de diferentes épocas, andei a saltitar entre a velha Flandres e esta alegria de viver dos burgueses com boas habitações em Haia, Arte Nova, Arte Deco e a arte aparentada entre as guerras. Dá para regalar a vista, consola ver esta construção bem tratada.


Ponto final na viagem a Haia e a este registo de arquitetura, a Gare Central está ali à esquina, depois encafuo-me num comboio, vou meia hora a ver pólderes e saio diretamente no aeroporto e daqui regresso a Lisboa. Espero que tenham gostado como eu tanto gostei de ter imprevistamente voltado a Haia e captado tais e tantas diferenças numa cidade que não visitava há mais de três décadas. É este um dos sais da vida.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14155: Os nossos seres, saberes e lazeres (76): O vício da pesca desportiva à linha (Juvenal Amado)