quarta-feira, 4 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14319: Os nossos seres, saberes e lazeres (77): A arquitetura de Haia em visita de médico (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Fevereiro de 2015:

Queridos amigos,
Diz o editor e os seus coeditores que dá sempre jeito o registo de viagens, mesmo que as mesmas não incluam savanas, porcos de mato, tarrafo ou macaréu.
Imprevistamente, passei dois dias em Haia, há pelo menos 35 anos que não visitava a cidade. Nas nesgas do programa, captei imagens que vos ofereço. Adoro aquele país, o seu modo de vida, a sua arte, há ali qualquer coisa de saxónico mas suavizado, e há uma alegria de viver, uma bonomia que me lembra os países do Sul. E, acima de tudo, aquele torvelinho de bicicletas...

Um abraço do
Mário


A arquitetura de Haia em visita de médico

Beja Santos

Fui pela primeira vez a Haia em 1978, vinha de Londres depois de um estágio na BBC (TV e rádio), fora o pedido que fizera à administração da RTP, quando recebi o convite para a primeira série de programas que ali fiz sobre defesa do consumidor, intitulada “10 milhões de consumidores”. Contactara entretanto a então a IOCU, hoje Internacional dos Consumidores, tinha nesse tempo sede em Haia, pedi-lhes uma resma de filmes de várias procedências, necessitava de termos de comparação para os filmes a realizar em Portugal. Viajei de Heathrow para Schipool (Amesterdão), à saída apanhei um autocarro para Haia. A impressão que me ficou da cidade foi de resguardo e boa manutenção da arquitetura típica dos Países Baixos Setentrionais, com imensas afinidades, como é óbvio, com a arquitetura flamenga. Meses depois, foi devolver o material fílmico, passei por Haia de raspão anos vindo de Utrecht, continuava a ser a cidade do Governo e do Parlamento, tudo muito cuidado, o que é compreensível se nos recordamos que a Holanda teve a felicidade de não ser afetada pela I Guerra Mundial e na guerra relâmpago de 1940 os alemães concentraram o seu dispositivo destruidor sobre Roterdão, que reduziram a cinzas.

Volto agora em menos de 48 horas para participar numa conferência, venho cheio de curiosidade, já me falaram em prodígios arquitetónicos, vou então arranjar, dê por onde der, uma hora de luz para cirandar entre as lembranças daquele antigo que retive na memória e as audácias e arrojos da moderna Haia, pujante de vida, prazenteira se bem que buliçosa.


Saí do EasyJet Hotel, vou esfomeado mas esta imagem não me escapa até porque aquele raiar vermelho é de pouca dura, daqui a um bocado tudo vai ficar cinzento e assim será até à noite escura. Temos aqui a mistura do antigo e do moderno, caminha para as oito da manhã, está friozinho mas não há chuva, toca a deambular.


Temos aqui a natureza silenciosa no inverno rigoroso, os patos já estão em movimento, o inacreditável é que frente ao parque erguem-se como colmeias os arranha-céus e aqueles edifícios que não se sabe se são escritórios ou de habitação que se espalmam por quarteirões, fascina o arrojado com um toque de antigo, às vezes até parece que anda por ali a mão de Gaudi, vejam só.


Pode gerar atração ou repulsa, mas não nos deixa indiferentes, estão sabiamente implantados, há espaço para a arquitetura, e para as diferentes situações, não esquecer que os peões andam paralelos às bicicletas e outros velocípedes, é timbre da cultura holandesa dar ao pedal, magros, com bom peso ou gorduchos andam à desfilada, constituem uma artéria circular que ao princípio confunde o forasteiro, mas ele habitua-se depressa, a Holanda é a Holanda.


Num outro ângulo apanhei esta mostra de arte pública, fiquei satisfeito, não há paredes grafitadas nem as esculturas estão esmurradas, agora vou para o hotel onde vai começar a conferência, e ainda tenho que meter uma bucha à boca, com este peso ainda caio para o lado desfalecido.


Alto lá, as proporções deste edifício geram harmonia, e até pasmo como todo este quarteirão moderno não tem um só resquício de desumanidade ou desolação, já atravessei algumas ruas com arquitetura vernacular, mas toda esta arte contemporânea embrinca e, pasme-se, não é mastodôntica, apela à escala humana. Basta de festa, agora vou trabalhador.


Acabou o primeiro dia de conferência, um elemento da terra esclareceu-me que ainda tenho luz por cerca de uma hora. É agora ou nunca, enfarpelo-me para resistir aos 4ºC, e vou para a giraldinha, ninguém me agarra até à hora em que regressar para o jantar oferecido pelo Ministério da Saúde da Holanda. É ocioso dizer que ando por aqui ao acaso, o que me cai na rede é peixe, é do que gosto e o que gosto registo para partilhar. Comecei aqui.


Dobrei a esquina e pumba, não me passou pela cabeça brincar com os reflexos, o que aqui se registou foi puro acaso, há horas de sorte para os fotógrafos amadores, e vou já atravessar a rua, há ali outra construção que me está a encher o olho.


Passei por aqui ontem, até captei aquela peça de arte urbana, talvez se recordem. Não me virei ao fundo da rua para ver o efeito desta fachada, gosto muito. Ah, será mesmo possível o que eu estou a ver?


Destes escritórios aqui à volta, não tardam muito, vão sair corretores, informáticos, contabilistas, analistas e tudo o mais de que a civilização precisa, vão transmutar-se em ciclistas, muitos deles, conforme a gravura junta, vão buscar as crianças à creche. As cidades planas e os países planos ditam esta locomoção que se traduz numa maneira de viver pragmática, autónoma, dita a bonomia destes holandeses que têm pouco de germânico mas que também não se aparentam com os mediterrânicos. Parece que têm pouco a esconder, janelas não estão entaipadas, podemos ver o recheio e os movimentos de quem lá vive. E quando calcorreamos as ruas vem à mente a pintura holandesa, com aquela malta bem-disposta, a beber uns copos, tudo suave, sem agressividade. É assim.


Disseram-me aonde estava a Gare Central, apontaram o edifício e comentaram que era um ex-libris da cidade. Não se é ou não é, o que gostei foi do ângulo, e como tenho mais de uma hora por minha conta antes de partir para o aeroporto, vou mostrar-vos as coisas antigas de que gostei com as últimas imagens do moderno que mais me cativou.


Dá para ver perfeitamente o antigo entalado no moderno, não provoca escândalo.


A moral protestante transparece nestas linhas austeras, não se mostra ao público o interior da casa, haja o luxo que houver. O puritanismo é para se ver e recomenda-se.





Aqui ficam imagens de diferentes épocas, andei a saltitar entre a velha Flandres e esta alegria de viver dos burgueses com boas habitações em Haia, Arte Nova, Arte Deco e a arte aparentada entre as guerras. Dá para regalar a vista, consola ver esta construção bem tratada.


Ponto final na viagem a Haia e a este registo de arquitetura, a Gare Central está ali à esquina, depois encafuo-me num comboio, vou meia hora a ver pólderes e saio diretamente no aeroporto e daqui regresso a Lisboa. Espero que tenham gostado como eu tanto gostei de ter imprevistamente voltado a Haia e captado tais e tantas diferenças numa cidade que não visitava há mais de três décadas. É este um dos sais da vida.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14155: Os nossos seres, saberes e lazeres (76): O vício da pesca desportiva à linha (Juvenal Amado)

1 comentário:

Luís Graça disse...

Obrigado, Mário, pelo teu papel de ciceroneador em Haia... Já lá estive há muitos anos (c. 1990), também com pouco tempo para descobrir a cidade e os seus recantos...

Acho que os portugueses têm um velho fascínio pelos Países Baixos, pela velha Flandres (que eu não sei exatamente onde começa e acaba), e claro, no meu caso, mais pela pintura do que pela arquitetura...

Este fascínio já vem muito de trás, muito antes do Ramalho Ortigão... Na história, fomos aliados e inimigos... também ajustamos as nossas contas... por causa da estupidez e cupidez das nossas elites dirigentes...

E uma boa parte da elite holandesa também tem uma costela portuguesa, cristã nova...

Aquele céu de chumbo, é que me deixa deprimido!.

Se lá voltares, à Holanda, há coisas a não perder: por exemplo, a Sinagoga Portuguesa de Amsterdão, a "esnoga" (séc. XVII) e o museu da ciência e da medicina (em Leidein, a Coimbra holandesa, onde estudou o nosso Ribeiro Sanches, o nosso grande médico do séc. XVIII)...

A nossa velha Europa continua a ser fascinante... apesar da sua decadência.