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sábado, 12 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27009: In memoriam (556): Texto de homenagem, de Santos Narciso, a José Henrique Álamo Oliveira (1945-2025), escritor, romancista, poeta, autor e ensaiador de teatro (José Câmara, ex-Fur Mil Inf)

1. Mensagem do nosso amigo e camarada de armas, José Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 11 de Julho de 2025, ainda a propósito do falecimento de Álamo Oliveira:

Faleceu no dia 5 de Julho o escritor, romancista, poeta, autor e ensaiador de teatro José Henrique Álamo Oliveira, natural do Raminho, Angra do Heroísmo. Tinha 80 anos de idade. O Álamo Oliveira fez a sua comissão de serviço militar na então Província Ultramarina da Guiné, se bem julgo saber no período 1969/1971.

Durante parte da sua comissão o Álamo Oliveira esteve de serviço na Rádio em Bissau, cujas transmissões chegavam aos quatro cantos da Guiné e que eram dos melhores passatempos para os militares que então serviram na Guiné.

Numa nota pessoal tive o prazer de conviver com o Álamo Oliveira durante alguns dias, quando ele em representação da Diretora das Comunidades do Governo Regional dos Açores, se deslocou aos EUA para a homenagem que então foi feita ao imigrante Alfred Luís, também este um escritor de renome. Jamais esquecerei a sua afabilidade e compreensão para comigo nessa referia homenagem.

As minhas condolências.
Descansa em Paz companheiro e amigo.

Álamo Oliveira (com a devida vénia ao autor da foto)

Devidamente autorizado pelo Sr. Santos Narciso, ex-Alferes Miliciano na Guiné, a quem agradeço, publico esta tocante homenagem ao Álamo Oliveira, que comungo.

Morreu Álamo Oliveira. 80 anos. Raminho de seu nascimento sempre no coração, verdadeira alma terceirense e espírito açoriano e universal. Homem da Palavra escrita nas suas múltiplas vertentes, do teatro à poesia, do conto ao romance, da crónica ao ensaio. Tristes pela sua partida, não ficamos mais pobres, pois a herança cultural e literária que nos deixa, é de uma riqueza que atravessará os tempos.

José Henrique Álamo Oliveira, que conheci nos tempos em que estudamos no Seminário de Angra, ele mais velho três anos, foi um arauto incansável da divulgação da cultura na sua terra, e a sua obra, os seus projectos e os seus sucessos falam por si.

Hoje é apenas dia de fazer silêncio respeitoso e de pensar que cada página que escreveu é como um mar desbravado: a palavra corre, contorna, salta em comparações inesperadas como cascatas, detém-se na adjectivação imprevista, ora doce, ora agressiva, incisiva e inquietante e espraia-se no à-vontade de quem da mesma farinha consegue fazer o pão mais saboroso e cobiçado ou o bolo mais amargo e difícil de digerir.

Agora, na outra dimensão da vida, ele verá certamente como “A Catedral estava linda”; encontrar-se-á com o “Sábio da Miragaia” ou desvendará segredos da “Marta, A Verdadeira”, ouvindo ainda “Murmúrios com Vinho de Missa”.

Neste abraço para o tempo sem limites, que este meu Amigo descanse em paz. E para sua família, sentidos pêsames.

_____________

Nota do editor

Vd. post de 8 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P26995: In memoriam (555): José Henrique Álamo Oliveira (1945-2025), poeta açoriamo e nosso camarada da Guiné (Mário Beja Santos)

terça-feira, 8 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P26995: In memoriam (555): José Henrique Álamo Oliveira (1945-2025), poeta açoriamo e nosso camarada da Guiné (Mário Beja Santos)

I N  M E M O R I A M

José Henrique Álamo Oliveira
Raminho, 2 de maio de 1945 - Angra do Heroísmo, 5 de julho de 2025

********************

Lembrar um originalíssimo autor da literatura da Guerra Colonial da Guiné

Mário Beja Santos

Em 2009, uma hecatombe devastou-me a vida, perdi uma filha com 32 anos. Agarrei-me à escrita com unhas e dentes, procurei pôr em prática um projeto altamente trabalhoso, durante praticamente dois anos procurei identificar o que se tinha escrito sobre a guerra na Guiné, repertoriei largas dezenas de autores, o mais difícil eram as edições de autor que escapavam às bibliotecas e livrarias. 

O projeto foi dado como concluído no fim do outono de 2011, o meu livro "Adeus, até ao meu regresso" (a literatura dos e sobre os combatentes da guerra da Guiné) foi dada a estampa no início de 2012 pela Âncora Editora. Encontrei três autores açorianos de grande valor: José Martins Garcia, Cristóvão de Aguiar e Álamo Oliveira.

Chocado com a morte deste último, um artista polivalente (romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, diretor teatral, pintor), curvo-me aqui respeitosamente em sua memória e lembro o seu romance "Até Hoje (Memória de Cão)" publicado pela Ulmeiro em 1986, porventura a sua única incursão novelística pela Guiné.

Livro de uma enorme coragem, capaz de se despir no seu íntimo, um texto de um sofrimento incontido, mas entrosado no lirismo, do princípio ao fim. Talvez autobiográfico, estamos no cais da Rocha do Conde de Óbidos, e aquele João açoriano só pensa nas suas origens e suas gentes:
“Vinha do lado Norte mais alto e ventoso, os campos rasos e verdes, casas a brilhar de cal, pequenas, baixas, conchas perdidas na ilha perdida. Passar a infância embrulhado no cheiro saboroso que o suor empresta às pessoas ao tempo, às coisas. Eram perfumes silvestres – muita bonina, conteiras, saias do norte, quase bedum de esperma, queijo.”

Nos fundos do porão do Uíge escreve os seus primeiros aerogramas, João vem em rendição individual, um dia é enviado para Binta, é nomeado padeiro. Que o leitor se aperceba que a coragem do autor é escrever algo que parecia impensável, um romance de guerra nimbado pelo amor homossexual. Primeiro, o encontro com alguém que se tornará inesquecível luminescência pela vida fora:

“O rapaz está agora à sua frente, grande como ele, tronco a brilhar de óleo suado, a pele lisa como cetim, os calções curtíssimos a realçar o corpo rijo. Tem o rosto oval, assim como, modigliano, boca desenhada a rigor, lábios fortes e molhados, caídos à vontade. São os olhos castanhos que se fixam em João, protegidos por duas grandes pestanas. Chamo-me Fernando.”

É assim que nasce uma cumplicidade que irá desembocar num desencontro trágico. Álamo Oliveira não esquecerá a guerra e as circunstâncias do quotidiano da mesma, com minas e emboscadas, álcool e solidão, e nunca li uma chegada do correio como a que ele escreveu:

“Estão como cabras espantadas, prisioneiros ridículos, inocentes, amantes de cordel, aos saltos, gritinhos tarzânicos. Doentes de alegria explosiva, rapazes com o coração a viajar para o princípio do ser, primitivos os sentidos expostos. Fixam-se no meio da parada, a mão à testa para tapar o sol, a avioneta de voo raso, dois sacos de correio que se despenham e se amparam nos mil dedos que os agarram… As notícias vinham ali ensacadas, cadeadas, atrasadas quase quatro semanas. Vinham alegrias do tempo contado, saudades moídas pela azenha da distância, tristezas em rebanho… Os olhos estão fixos nas mãos do cabo-escriturário que agora é todo o quartel de Binta e só aquele tamanho, a mão emocionada metendo a chave no cadeado do saco com a mesma untuosa memória da desfloração.”

E chegará o dia em que uma lancha de desembarque médio irá buscar toda a tropa a Binta, o regresso é no mesmo Uige. João e Fernando vão ver Música no Coração no Tivoli e depois vão dormir numa pensão no Rossio:

“No quarto número treze o amor ficara do tamanho da cidade e coubera inteiro numa pequena cama de ferro, pintada de esmalte branco. Não há sinais de proibição, códigos de viagem, espartilhos no coração. Os seus olhos brilham e dormem.”

João vai regressar à ilha, Fernando promete escrever, só que as suas cartas nunca obterão resposta. Tudo está diferente quando chega ao seu destino, porque ele é quem está diferente. “Poucos meses depois, sem grandes pré-avisos, João despediu-se da família e… emigrou. Até hoje.”

Romance de um invulgar diapasão lírico, com todo o desassombro em que a homossexualidade é narrada desafetadamente, mas com afeto faiscante. Álamo Oliveira recebeu com este romance um dos prémios da sua carreira. Foi também poeta. Dois anos antes de "Até Hoje (Memória de Cão)", ele publicara uma compilação de vários livros de poesia com o título "Triste Vida Leva a Garça".

Recordo do seu primeiro livro intitulado "Áfrika-mim e Outras Raízes" versejará:

“Dos companheiros de armas, / Guardo o rosto e afeição. / Soldados com espingardas / Murchas e presas à mão / Para puxar o gatilho / No momento de matar. / Antes, sachavam o milho, / Agora, são de odiar.”

E mais adiante:

“Mãe-negra-África-mim, / Meu postal desilustrado, / Tempo de angústias e capim / Ao meu ombro pendurado. / Quem bem faço por esquecer / Armas, mosquitos, viagem. / África ferrou-me o ser, / Trouxe-a feita tatuagem. / Se da guerra me livrei, / Do seu povo é que não / Ritos de fanado e morte, / Rios mansos que o sol coa, / Luar branco, trovão-corte, / Negro vogando em canoa. / E ainda, em saco da tropa, / Carregado em bandoleira, / Trouxe do feitiço a copa, / Da beleza da palmeira. / Guiné! Guiné! Voz de gente / Doce do coco e baunilha! / Bem te sinto, no meu ventre, / A pulsar no som da ilha.”

Uma toada poética como espinha de saudade, uma irmã-escrava lá nas terras do poeta feitas de enxofre e lava, conteiras e o mar à volta.

Perdemos José Martins Garcia, Cristóvão de Aguiar e agora Álamo Oliveira, os três legaram-nos literatura fulgente sobre a Guiné. Muitíssimo obrigado aos três, pelo que fizeram neste legado de literatura luso-guineense.
_____________

Nota do editor

Último post da série de 6 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P26990: In memoriam (554): Apolinário Pereira Teixeira (1950-2025): natural de Fermentões, Guimarães, antigo autarca, ex-fur mil, 2ª CART / BART 6520, "Os Mais de Nova Sintar" (1972/74) (Carlos Barros)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20545: Notas de leitura (1254): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (40) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Era inaceitável não se fazer uma referência, ligeira que fosse, a quem escreveu poesia durante e depois da comissão. É a dimensão literária mais pobre que temos, mas há um ponto intrigante, a meu ver muito pouco explorado no blogue: a poesia popular. Reconheço que não se pode inventariar estes livrinhos que circulam nalgumas reuniões anuais, atribui-se pouca importância para a explicação histórica, é muito pessoal mas, reconheça-se, de grande pendor afetivo, deixo à vossa consideração a hipótese de se procurar tentar fazer um levantamento, não tenho nenhuma receita.
Para se olhar ao espelho com o bardo do BCAV 490 só me ocorre, pela máquina poética, Álamo Oliveira, o poema escolhido parece-me gracioso, um açoriano carregado de saudades da Guiné.
Que eu saiba, Álamo Oliveira não regressou ao tema.

Um abraço do
Mário



Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (40)

Beja Santos

“Foi ferido um Furriel
ao pé da enfermaria.
A 489 com coragem
novamente se distinguia.

Como é de calcular,
ainda existe grande bando
e a 18 de Abril o Comando
eles vieram atacar.
Granadas começaram a jogar,
caindo muitas fora do quartel.
O nosso amigo Joel
grande susto apanhou
porque quando uma rebentou
foi ferido um Furriel.

Tudo se levantou
quando na caserna uma caiu
a mala do barbeiro se partiu,
mas ninguém se magoou.
Para as viaturas tudo abalou
onde perigo não havia.
Mas neste momento se ouvia
o Furriel Mortágua aos gemidos,
foi ferido pelos bandidos
ao pé da enfermaria.

Na 487 rebentaram
umas minas há tempos atrasados.
Ficaram alguns colegas atordoados,
mas todos recuperaram.
O Pardal foi dos que ficaram
estendidos na folhagem.
Contra o grupo selvagem
luta-se sem pena nem dó
por isso entrou em Sulucó
a 489 com coragem.

Avançando uns carreiros,
ao local preciso chegaram,
o acampamento cercaram,
desorientando os bandoleiros.
Cá de trás com os morteiros
muito fogo se fazia,
neste momento a Companhia
arrancou com os seus pelotões
e apanhando armas e munições
novamente se distinguia.”

********************

Enquanto decorrem estas refregas, cuide-se de saber se há livros de poesia dedicados à Guiné, ou com afinidades. Armor Pires Mota chegou a ser galardoado com o prémio Camilo Pessanha pelo seu livro "Baga-Baga". Há, em pequenas edições, outras obras de poesia popular. Um dia recebi de um antigo soldado, António Veríssimo, da CCAÇ 2402, um livro de perfeita rima métrica, detive-me num poema muito singelo, afetuoso, senti-o quase como padrão da poesia popular de toda a guerra da Guiné, veja-se esta “Carta P’rá Família”:

“Boa saúde a todos desejo
E que a vida vos corra bem
Eu não sei se mais vos vejo
Ou se pereço aqui, na terra de ninguém

Estou ótimo graças a Deus
Vou vivendo no meio da guerra
Esperando voltar para os meus
Para a paz da minha terra

Corre carta, corre carta
Sai daqui, vai embora
Leva a meus pais esta farta Saudade que eu sinto agora

Voa carta, carta voa
Segue sempre em frente
E quando chegares a Lisboa
Vai ter com a minha gente

Segue carta o teu caminho
Leva beijinhos e saudades também
Diz lá no meu cantinho
Que aqui mal! Eu estou bem”

********************

Álamo Oliveira


Como é óbvio, não há condições mínimas para se proceder a um inventário desta poesia popular, encontrámo-la casualmente, tal como eu tive a dita de encontrar em casa de alfarrábios esta obra do bardo do BCAV 490.
Mas há outros atrevimentos poéticos, um deles merece citação pelo que é e de quem é. “Triste vida leva a garça”, por Álamo Oliveira, Ulmeiro, 1984, precede uma obra já aqui referenciada, Até Hoje (Memória de Cão), também da Ulmeiro, 1986. Álamo Oliveira andou por Binta, honremos o bardo falando da poesia de Álamo Oliveira, aqui ficam extratos do seu poema “cantigas de ter ido à guerra não p’ra matar ou morrer – pico, soldado – mais nada”, com ressaibos açorianos, não se pode desmentir o sangue:


“Guiné, meu campo de guerra,
Gindungo com que tempero
A alcatra da minha terra…
Vinho de palma não quero.

Antes ‘cheiro’ que me aguarda
Com confeitos e alfenim.
Não fui herói de espingarda,
Não fui cobra de capim.

Noites longas, sem mulher;
Noites de cio em segredo.
- Seja soldado quem quer,
Toda a farda mete medo.
(…)
Foi mau. Foi duro. Foi reles.
(Hoje é só bruma passada).
Ó terra de curtir peles,
Mochila cheia de nada.

De resto, quem não recorda
O pavor que nos lançou
O Mastigas numa corda
No dia em que se enforcou?

Fui soldado. Simplesmente.
Soldado de corpo nu.
Amei África e sua gente…
Muito sumo de caju.

Por isso, canto, em quadra
A saudade que engatilha
A arma que me desarma:
- África-mim/minha ilha!

Dos companheiros de armas,
Guardo o rosto e afeição.
Soldados com espingardas
Murchas e presas à mão

Para puxar o gatilho
No momento de matar.
Antes, sachavam o milho,
Agora, são de odiar.

Hoje, à distância de anos,
Meia légua do caixão,
Coso, de memória, os panos:
- Meus companheiros quem são?
(…)
Que eu quis de África o chão,
O lugar e a madrugada;
Amei o seu povo sem pão…
Eu fui soldado – mais nada.

Ansumane, meu amigo,
Ainda estás na mesquita?
Sonho, às vezes, contigo,
Teu olhar mago me fita.

De toga, África te veja,
Verde-oiro bordado à mão,
Curvado – Alá te proteja! –,
Nas rezas do Alcorão.

Num só Deus me comprometo,
De um só Deus te não arranco.
O teu é negro de preto,
O meu é alvo de branco.
(…)
Terras de Binta, Mansoa,
Safim, Bissau, Jumbembem,
E outros nomes que, em boa
Verdade, não me lembro bem.

Lá no fundo da picada,
Vejo avançar para mim,
Negra balanta gingada
Com um molhe de capim.

Carrega o filho às costas,
Seios caídos de fora,
Mãe-negra, em quem apostas
O teu futuro agora?

Que eu vi cacheus e gebas
Caminharem com a maré,
Mas, por mais rios que bebas,
Não terás teu candomblé.
(…)
Mãe-negra – África-mim,
Meu postal desilustrado,
Tempo de angústia e capim
Ao meu ombro pendurado.

Que bem faço por esquecer
Armas, mosquitos, viagem.
África ferrou-me o ser,
Trouxe-a feita tatuagem.

Se da guerra me livrei,
Do seu povo é que não.
Na farda, não me piquei,
Mas trouxe, na minha mão

Ritos de fanado e morte,
Rios mansos que o sol coa,
Luar branco, trovão-forte,
Negro vogando em canoa.
(…)
Guiné! Guiné! Voz de gente!
Doce de coco e baunilha!
Bem te sinto, no meu ventre,
A pulsar no som da ilha,

Que é de mar, enxofre e lava
Hortênsias e solidão.
Guiné, minha irmã-escrava,
Mango caído no chão.”

Por aqui fiquemos, não posso escusar dizer que esta desgarrada com marca de água açoriana me impressiona profundamente, é toada nova de poesia de sabor luso-guineense, um espinho de saudade, ele é porta-estandarte dessa Guiné que ficou para muitos como uma irmã-escrava lá nas terras do poeta feitas de enxofre e lava.

(continua)

____________

Notas do editor:

Poste anterior de 3 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20523: Notas de leitura (1252): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (39) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 6 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20534: Notas de leitura (1253): Um relato que se vai aprimorando de edição para edição: Liberdade ou Evasão, por António Lobato (1) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 26 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8169: Notas de leitura (233): Triste vida leva a garça, de Álamo Oliveira (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Abril de 2011:

Queridos amigos,
Parece fazer todo o sentido em tratar Álamo Oliveira como poeta açoriano, toda a sua lírica tem no mundo ilhéu a sua força centrípeta, este poema é digno de constar nos grandes cancioneiros dos maiores poetas portugueses. E há que ter orgulho pela memória e pelos afectos guineenses que ele exalta.

Um abraço do
Mário



Álamo Oliveira, poeta açoriano e nosso camarada da Guiné

Beja Santos

Sobre o romance “Até Hoje (Memória de Cão)”, de Álamo Oliveira (Ulmeiro, 1986) já se fez neste lugar a necessária recensão, está entre a melhor prosa publicada nos anos 80, sobressai a nostalgia de um ilhéu e a sua coragem de se despir até aos escaninhos do íntimo, trata-se de um texto de enorme elevação, lirismo e sofrimento incontido. Não houvera até então nenhum desassombro tão vasto de devastador numa narrativa onde se assume um desencontro trágico em torno de uma relação homossexual. Além destes desabafos íntimos, vazou como poucos na escrita a atmosfera psicológica, os tiques do quotidiano, os acontecimentos inopinados e festivos que interrompiam o marasmo de tempos lodosos. Recordo a descrição da chegada do correio, mal sustive a respiração: “Estão como cabras espantadas, prisioneiros ridículos, inocentes, amantes de cordel, aos saltos, gritinhos tarzânicos. Doentes de alegria explosiva, rapazes com o coração a viajar para o princípio do ser, primitivos os sentidos expostos. Fixam-se no meio da parada, a mão à testa para tapar o sol, a avioneta de voo raso, dois sacos de correio que se despenham e se amparam nos mil dedos que os agarram… As notícias vinham ali ensacadas, cadeadas, atrasadas quase quatro semanas. Vinham alegrias do tempo contado, saudades moídas pela azenha da distância, tristezas em rebanho… Os olhos estão fixos nas mãos do cabo-escriturário que agora é todo quartel de Binta e só aquele tamanho, a mão emocionada metendo a chave no cadeado do saco com a mesma untuosa demora da desfloração”.

Dois anos antes, em 1984, Álamo Oliveira publicara também na Ulmeiro uma compilação de vários livros de poesia com o título “Triste Vida Leva a Garça”. O primeiro livro “áfrika-mim e outras raízes” tem poemas que ele escreveu sobretudo em Brá, Bissau e Binta. Noutro livro intitulado “eu fui ao pico piquei-me”, uma lindíssima colectânea de cantigas soltas estruturadas ao jeito açoriano, consta o belíssimo “cantigas de ter ido à guerra”, por ventura o seu mais belo poema em torno da experiência guineense. É longo, permitam-me alguns excertos, um dia teremos uma biblioteca activa para consulta, será possível ler na íntegra tão belo poema:

Guiné, meu campo de guerra,
Gindungo com que tempero
A alcatra da minha terra…
Vinho de palma não quero.

Antes «cheiro» que me aguarda
Com confeitos e alfenim.
Não fui herói de espingarda,
Não fui cobra de capim.

Noites longas, sem mulher;
Noites de cio em segredo.
- Seja soldado quem quer,
Toda a farda mete medo.
………………………………

Fui soldado. Simplesmente.
Soldado de corpo nu.
Amei África e sua gente…
Muito sumo de caju.

Por isso, canto, em quadra,
A saudade que engatilha
A arma que me desarma:
- África-mim/minha ilha!

Dos companheiros de armas,
Guardo o rosto e afeição.
Soldados com espingardas
Murchas e presas à mão

Para puxar o gatilho
No momento de matar.
Antes, sachavam o milho,
Agora, são de odiar.

Hoje, à distância de anos,
Meia légua do caixão,
Coso, de memória, os panos:
- Meus companheiros quem são?

Pedro e João morreram.
Só dois! Mas que grande sorte!
Só vinte anos viveram
E há quem diga: santa morte

………………………………..

Mãe-negra – África-mim,
Meu postal desilustrado,
Tempo de angústias e capim
Ao meu ombro pendurado.

Quem bem faço por esquecer
Armas, mosquitos, viagem.
África ferrou-me o ser,
Trouxe-a feita tatuagem.

Se da guerra me livrei,
Do seu povo é que não.
Na farda, não me piquei,
Mas trouxe, na minha mão

Ritos de fanado e morte,
Rios mansos que o sol coa,
Luar branco, trovão-forte,
Negro vogando em canoa.

E ainda, em saco da tropa,
Carregado em bandoleira,
Trouxe, do feitiço a copa
Da beleza da palmeira.

Guiné! Guiné! Voz de gente!
Doce de coco e baunilha!
Bem te sinto, no meu ventre,
A pulsar no som da ilha,

Que é de mar, enxofre e lava
Hortênsias e solidão.
Guiné, minha irmã-escrava
Mango caído no chão.

Já me fico por aqui.
A ilha a paz me conceda.
Em África, nunca vi
Um campo de erva azeda.

Hoje, já muito mais velho,
Só a saudade é que apaga
Essa terra – pó vermelho –
Com montes de baga-baga.

Piquei-me, bem sei. Agora,
África-Ilha é este fardo:
Ser cavalo sem espora,
Ser um espinho sem cardo…

E assim termina esta desgarrada plena de feitiço africano. Não conheço nada mais de tão intenso nesta toada nova da poesia luso-guineense, um espinho de saudade pois, como ele soletra a Guiné ficou para muitos como uma irmã-escrava lá nas terras do poeta feitas de enxofre e lava.

Este livro de Álamo de Oliveira passa a fazer parte da biblioteca do blogue.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8153: Notas de leitura (232): O Paparratos, de José Pardete Ferreira (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6268: Bibliografia de uma guerra (56): A Propósito de Até Hoje (Memória de Cão) (José Brás)

1. Mensagem de José Brás* (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com com data de 20 de Abril de 2010:

A Propósito de Álamo de Oliveira
"Até Hoje (Memória de Cão)"**


A MEMÓRIA DO RIO

A leitura do poste de Beja Santos... trouxe-me à memória (de homem) baldões que dei e dou e damos todos pela vida fora.

Diz-se que o rio não passa nunca duas vezes no mesmo sítio, e a mim me parece ignorância de quem não leu Lavoisier e nem alcança um suspiro de pensamento sobre as voltas que água dá nos seus múltiplos estados, de líquido a gasoso se evapora, ou a sólido se congela; se eleva nos ares quando o calor a faz passar do líquido ao vapor, ou se sublimada directamente do gelo e dispensando a fusão; de vapor a líquido de novo, se arrefece o suficiente para condensar, pesar mais que o ar que a sustinha antes, caindo sobre as encostas, engrossando e voltando, quem sabe, ao mesmo rio onde tinha corrido já, antes das passas sofridas no entretanto.

E quem fala de água, fala de gente, por mais que se diga que história não se repete.

Li o que escreveu o Mário sobre o livro do Álamo, abriu-se-me a curiosidade de uma leitura, como quem volta a sítio em que já esteve antes, tentando confirmar que nunca o lugar é o mesmo em cada volta, na medida do cenário, nas falas das gentes, nos cheiros, nos sons, nas crenças.

Li cruzado mas li de novo.

Quase garanto que não foram as mesmas emoções que vivi agora na passagem desta água já nadada em tempos, desconfirmando o que eu creio sobre o correr dos rios.

O prazer de voltar ao mergulho e de sentir na pele de dentro o fresco das imagens e as palavras com que Álamo as constrói, foi outro talvez, maior, acho eu, do que da primeira vez.

A guerra. A gente da guerra. As imagens que se vêm da gente na e da guerra e as que não se vêm, as que é necessário inventar para que se vejam, tão reais como as outras, porque ser homem, ser gente, não é apenas um corpo, um gesto, um léxico habitual, a respiração, o desejo.

Ser gente é um entendimento muito mais fundo e só quem tem escafandro para mergulhar lhe pode captar as nuances, a multiplicidade dos sonhos, a contracção do ser que a superfície reprime.

O RIO CORRE SEMPRE MUITAS VEZES NO MESMO LEITO

Na sua abordagem ao livro do Álamo de Oliveira, o Mário fez-me recuar no tempo.
Quer dizer, levou o rio às mesmas margens.

Eu explico!

Em 1985 ou 86, acabara eu o "Vindimas no Capim", alguns amigos diziam que a coisa estava gira, a mim me parecia isso algumas vezes e, outras, o contrário, interrogando-me sobre se não estaria parvo na pretensão.
Tanto me disseram que me atrevi a duas ou três editoras, "sim, espere alguns meses para analisarmos, depois lhe diremos alguma coisa". Vocês sabem como é.

Na imprensa tomei conhecimento de um concurso literário da Câmara Municipal do Seixal para autores inéditos e... zás, lá vai a candidatura, cumprindo o regulamento em tudo o que ele dizia.

Passou o tempo do limite para o anúncio dos resultados, esperei um mês ou mais, telefonei e de lá me disseram que ainda não havia decisão, que telefonasse mais tarde.

Novo tempo de espera, e espera não quer dizer aqui, esperança, mas apenas espera mesmo, pelo anúncio da decisão do júri.
Novo telefonema e dizem-me que o vencedor tinha sido... Álamo de Oliveira.

Retorqui um "como?", estranhando, porque o concurso era para autores inéditos e Álamo não o era.

"Pois, tem razão, tem de falar com o júri"... "não tenho nada. O dono do concurso é o Município...", "pois é, mas o júri teimou durante muito tempo, dividido entre este livro e um outro e acabou por decidir. O Município tem dificuldades para anular a decisão sem perturbação do objectivo mais alto do concurso. Mas diga, qual era o seu título?" "o meu título é o Vindimas no Capim". "Pois! Não posso deixar de dizer-lhe que o seu título foi à final e dividiu o júri muito para além do tempo regulamentado, daí o atraso. Se quiser fale com os elementos que são fulano, sicrano e beltrano".

Hesitei no receio da figura de parvo que poderia fazer, importunando gente tão importante. Como conhecia um de o ler, ganhei coragem e chamei, tendo ele dito mais ou menos o seguinte:

- o júri era composto por ele, pelo sicrano professor de literatura na Universidade Clássica de Lisboa e conterrâneo do vencedor, e um beltrano que nunca compareceu às reuniões senão para assinar a acta final e receber honorários.

Disse-me mais! Que ele, fulano, achava o meu livro o mais indicado para o prémio, independentemente da questão do inédito, mas que a divisão havia sido interrompida pela comparência final do faltoso que se inclinou para a argumentação do professor.

Que falasse também com o académico, já agora, para entender o porquê da decisão.
E foi o que fiz, esclarecendo, primeiro que o senhor foi muito simpático, que me disse que também havia gostado do Vindimas no Capim, mas que achara que apesar de Álamo não ser inédito, tinha muito valor e que tal valor ainda não lhe havia sido ainda reconhecido pelo que lhe pareceu justa a reparação.

O que é que podia eu dizer contra esta franqueza?
Calei remoendo o azar e desistindo do protesto.
Li o livro vencedor e gostei, acabando mesmo por concordar com o senhor professor.

E ainda bem que não ganhei o prémio do Município do Seixal!
Ainda bem... porque O RIO CORRE SEMPRE MUITAS VEZES NO MESMO LEITO.

Nas negas das editoras, aconselhou-me uma amiga a concorrer ao prémio revelação da APE, concorri e... ganhei, afinal concurso mais importante (se há concursos importantes) que me abriu as portas das editoras.

Diz-se que guardado está o bocado para quem o há-de comer!
Diz-se que deus escreve direito por linhas tortas!
Acho é que deus pôs o rio direito correndo em torto leito.
Ou foi ao contrário?

Na verdade, voltando a ler o Álamo de Oliveira por incumbência involuntária do Mário, ainda hoje me parece que o júri agiu certinho no Seixal.

José Brás
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6253: O povo e o município de Moura homenagearam, no passado dia 10, os seus 29 mortos na guerra colonial (Parte II) (Luís Graça / José Brás)

(**) Vd. poste de 18 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6181: Notas de leitura (95): Até Hoje (Memória de Cão), de Álamo Oliveira (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 14 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5646: Bibliografia de uma guerra (55): Armados Para a Paz, de Albino Silva

domingo, 18 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6181: Notas de leitura (95): Até Hoje (Memória de Cão), de Álamo Oliveira (Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2010:

Queridos amigos,
A aventura continua, acabo de receber livros emprestados sobre obras de Amândio César, Alexandre Barbosa e Francisco Valoura. Chegou mesmo, pelas mãos do Manuel Joaquim um livro do Luís Rosa “Depois da Guerra”, edição de autor (1990) que muito provavelmente é a primeira versão de “Memórias dos Dias sem Fim”. Vamos ver.

Continuo a apelar a que não se esqueçam de me indicar títulos respeitantes a edições dos anos 90.

Um abraço do
Mário


O medo dos fantasmas é que nos aguenta aqui

Beja Santos

Álamo Oliveira (1945) é romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, director teatral, pintor. “Até Hoje (Memória de Cão)”, publicado pela Ulmeiro, em 1986, será porventura a sua única incursão ficcionista pela Guiné. É um livro assombroso e singular. Só poderia ter sido escrito por um ilhéu e um homem de coragem, capaz de se despir do seu íntimo, num texto de enorme elevação, lirismo e sofrimento incontido.

Tudo começa na Rocha Conde de Óbidos, naquele cais de Alcântara João só pensa na ilha e suas gentes: “Vinha do lado norte mais alto e ventoso, os campos rasos e verdes, casas a brilhar de cal, pequenas, baixas, conchas perdidas na ilha perdida. Passara a infância embrulhado no cheiro saboroso que o suor empresta às pessoas ao tempo, às coisas. Eram perfumes silvestres – muita bonina, conteiras, faias do norte, quase bedum de esperma, queijo”. Daquele atlântico trazia memórias de vacas, burro e cão, cataclismos vulcânicos, uma infância em se andava descalço e limpo. Agora era o 127 e partia para a Guiné. Tem dias para sulcar os mares a pensar no pão duro da sua criação, a bordo do Uíge. Praticara jogos de guerra no Monte Brasil em emboscadas na estrada do mato, na sua ilha verde, rodeado de vacas pacíficas. Tinha 21 anos, não chegara a comprometer-se com a Isabel, partiu para a tropa, andou a saltar, a marchar e a rastejar, aprendeu a dar tiros de coice Mauser. Nos fundos do porão do Uíge escreve os seus primeiros aerogramas, regista num caderno os seus estados de alma. As recordações desfilam, é menino e moço, aprende os frémitos do sexo e as masturbações colectivas.

Chega o alvorecer em que se avista África, uma massa verde, pequeninas ilhas, pássaros irreconhecíveis. O Uíge entra numa enseada que não é. João Machado vem em rendição individual, pertence ao contingente daqueles que substituem doentes, estropiados, desaparecidos e mortos: “Estão ali como peças sobresselentes, parafusos, panelas, agulhas, culatras, e mesmo corações, alvos, cabeças e, quem sabe, almas”.

A bordo de uma Berliet, atravessa Bissau a caminho do Quartel de Adidos, é uma paisagem nua, alguém lhe fala nos baga-baga, João nunca viu tantos rostos tensos. De novo a memória esvoaça para a ilha, para os inhames e café-cevada, a matança do porco, depois o discurso do capitão Gandra trá-lo à realidade. Cá fora do refeitório, uma fila interminável de negros, quase só crianças, as barrigas entumecidas pela fome, aguardam os restos da sopa. Ouve-se a cólera do capitão Gandra: “Cabo-dia, manda formar estas cavalgaduras imediatamente. As cavalgaduras formaram. Seguiu-se um silêncio que África inteira ouviu. As boas vindas estavam dadas”. Nos Adidos, aqueles soldados em repouso só pensam em salvar a pele. João quer resistir, o seu coração está na sua freguesia. Até que um dia é mandado para Binta, até teve o luxo de ir de helicóptero, iam evacuar uma negra grávida, a criança estava atravessada.

Binta não o comoveu, aparecia-lhe como lugar sem história, três casas de colonos já fugidos à guerra, quatro barracões de mancarra e uma tabanca de balantas e mandingas. Nomearam-no padeiro. Devagar, a sensualidade começa a tomar conta do relato de Álamo Oliveira: “O rapaz está agora à sua frente, grande como ele, tronco a brilhar de óleo suado, a pele lisa como cetim, os calções curtíssimos a realçar o corpo rijo. Tem o rosto oval, assim como mondligliano, boca desenhada a rigor, lábios fortes e molhados, o nariz regular, o queixo chaveta e cabelos muito castanhos e lisos, fartos, caídos à vontade. São os olhos castanhos que se fixam em João, protegidos por duas grandes pestanas. Chamo-me Fernando”.

Assim começa uma relação, uma cumplicidade, um encontro destinado a um desencontro trágico. São homens sós, Fernando vai ser abandonado pela mulher que lhe deixa a filha em casa dos pais. Isabel ainda escreve a João, é uma ânsia de tudo querer dizer, João sente o doce sossego da ilha, mas a aparição de Fernando está a pôr-lhe os sentimentos numa estrada de verdade. Em Binta, o cansaço é gelatinoso, fala-se desenfastiadamente do que se passa naqueles locais onde à noite se ouvem os rebentamentos, ali perto, em Guidage, há alguns perigos, e do outro lado, na mata do Oio, reside uma ameaça permanente. É na bebida que a guarnição entorpece o tédio daquele tempo lodoso. João confia-se cada vez mais a Fernando, o tempo passa e o afecto de ambos anda à deriva, João retrai-se, não se sente capaz de assumir o que lhe vai no coração.

Depois Binta é atacada e Zé Domingos mortalmente atingido, ficara no cais, completamente perdido de bêbedo. A atmosfera psicológica lança os soldados no marasmo, há gente completamente ensimesmada. É o caso do Mastigas que se fez pêndulo de silêncio, adorador dos grandes vazios. João continua a preencher o seu caderno. A chegada do correio é um acontecimento avassalador, como Álamo Oliveira descreve: “Estão como cabras espantadas, prisioneiros ridículos, inocentes, amantes de cordel, aos saltos, gritinhos tarzânicos. Doentes de alegria explosiva, rapazes com o coração a viajar para o princípio do ser, primitivos os sentidos expostos. Fixam-se no meio da parada, a mão à testa para tapar o sol, a avioneta de voo raso, dois sacos de correio que se despenham e se amparam nos mil dedos que os agarram... As notícias vinham ali ensacadas, cadeadas, atrasadas quase quatro semanas. Vinham alegrias de tempo contado, saudades moídas pela azenha da distância, tristezas em rebanho... Os olhos estão fixos nas mãos do cabo-escriturário que agora é todo o quartel de Binta e só aquele tamanho, a mão emocionado metendo a chave no cadeado do saco com a mesma untuosa demora da desfloração”.

Com o andar do tempos, o álcool vai tomando conta de tudo e todos. Isabel casou com um imigrante, fartou de tanto silêncio, quem vive na ilha está pronto a partir para a América, mesmo que o amor venha depois. Depois o Mastiga suicida-se: “O tiro isolou-se como um deus chateado no seu claustro de silêncio. Na cama do fundo, o Mastiga está deitado desafiando a pontaria de todas as armas do mundo. Vão falar-lhe dessa indiferença, dessa coragem deitada, do tiro isolado e único. E a boca estoira-se-lhes num grito imenso de pavor. O Mastiga atravessara a cabeça com uma bala de G-3. Parecia uma flor vermelha, desfolhada sobre a almofada muito branca e aflita”.

Chegou a hora de uma LDM ir buscar toda a tropa a Binta, de novo embarca no mesmo Uíge que o trouxera, até Alcântara. João e Fernando vão ver “Música no Coração” no Tivoli e depois vão dormir numa pensão no Rossio: “No quarto número treze o amor ficara do tamanho da cidade e coubera inteiro numa pequena cama de ferro, pintada de esmalte branco. Não há sinais de proibição, códigos de viagem, espartilhos no coração. Os seus olhos brilham e dormem”. João vai regressar à ilha, Fernando promete escrever, só que as suas cartas nunca obterão resposta. Tudo está diferente quando ali chega, porque ele é que está diferente. “Poucos meses depois, sem grandes pré-avisos, João despediu-se da família e... emigrou. Até hoje”

É uma obra de grande inspiração lírica, com todo o desassombro a homossexualidade é narrada com afecto e desafectadamente. E não deixa de impressionar o peso esmagador da ilha, omnipresente em João e na tragédia de tanto encontro e desencontro. Para que conste.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6170: Notas de leitura (94): Crónica dos dias levantados da guerra, com os horrores de Goya e tudo (Beja Santos)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5604: Notas de leitura (49): Os Anos da Guerra, de João de Melo (3): Competência e Destino Guiné (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Dezembro de 2009:

Meus queridos amigos,
Que 2010 vos traga os maiores sucessos, com saúde e muitas andanças no blogue. Regresso 2.ª feira, agora só penso nos projectos do próximo ano, bem gostaria de ter coragem para voltar à Guiné.

Um abraço e a muita estima do
Mário


OS ANOS DA GUERRA:
ALGUNS OLHARES SOBRE A LITERATURA DA GUERRA DA GUINÉ (3)


Beja Santos

Recordatória

“Os Anos da Guerra”, com organização do escritor João de Melo, editados por Publicações Dom Quixote em 1988, que igualmente reeditou a obra em 1998, constitui o primeiro esforço sério para mostrar ao grande público, sob a forma de antologia, os prosadores marcados pela Guerra Colonial. Nas duas edições anteriores, referimos alguns aspectos essenciais do ensaio de João de Melo sobre o impacto da Guerra Colonial nas literaturas de língua portuguesa e apresentámos alguns parágrafos dos escritores Filipe Leandro Martins e Álvaro Guerra acerca dos preparativos (recruta, especialidade, formação de batalhão, etc.). Os dois últimos textos destes preparativos saíram da pena de dois escritores açorianos, José Martins Garcia e Álamo Oliveira. José Martins Garcia, já falecido, nasceu na Ilha do Pico em 1941, e em 1966, sendo professor do ensino secundário na Horta, foi chamado ao serviço militar, tendo embarcado para a Guiné como oficial de transmissões. Foi Leitor de Português em França, entre 1968 e 1971, e professor de Literatura Portuguesa, durante quatro anos numa universidade americana e mais tarde na Universidade dos Açores. É autor de obras incontornáveis sobre a guerra como Katafaraum É Uma Nação (1974) e Lugar de Massacre (1975). Álamo Oliveira nasceu na Ilha Terceira, em 1945. Prestou serviço militar na Guiné entre 1967 e 1969. Poeta, dramaturgo, encenador e animador cultural é autor daquele que será porventura o livro mais anárquico e libertário que se escreveu sobre a guerra da Guiné, Até Hoje (Memória de Cão), em 1987.


Competência

“O soldado-cadete Ramalho pousou no alferes dois olhos surpreendidos. E ficou de boca meio aberta, como alguém que nunca tivesse pensado no assunto.

- Um homem – prosseguiu o alferes – não se bai abaixo por causa de um arranhão no pé. Você nunca compreendeu isso?

O soldado-cadete Ramalho escarrou para o lado.

- Que é que isso quer dizer? – bramiu o pequeno alferes. – Quer que lhe ensine a ter maneiras?...

- Agora? – inquiriu o outro, com os olhos reduzidos a duas frestas.

- O rapaz tem razão – comentou Gwlyx. – o meu alferes teve muitos meses para lhe ensinar o que quis... e agora... francamente quando ele diz que tem um pé partido...

- Qual partido, qual carapuça! Toca alinhar!

Alinharam, mal barbeados, cobertos de pó, estourados, os soldados-cadetes, “doutores” do primeiro pelotão da primeira companhia. E iniciaram a marcha de regresso ao acampamento, com o soldato-cadete Ramalho na retaguarda, apoiado ao ombro do Gwlyx, e com a arma em bandoleira, mas no ombro esquerdo. Alguns metros andados, o Ramalho declarou ao camarada que sentia latejar o pé.

- Que chatice! – confidenciou – Tens de dizer a essa besta que eu não dou nem mais um passo.

O Gwlyx abandonou o Ramalho na berma da estrada e foi retransmitir a mensagem ao alferes, mas suprimindo o vocábulo “besta”. Veio o alferes em pessoa observar o queixoso, começando por declarar:

- Tenho um horário, percebe? Tenho ordens a cumprir, percebe? Tenho de regressar com o meu pelotão à hora exacta, percebe? E o senhor está a atrasar a marcha. Faça um esforço e marche como os outros.”

“Avançaram. Há muito que terminara a refeição da tarde e o acampamento preparava-se para resistir aos ataques nocturnos que o inimigo não deixaria de desencadear. Circulavam terríveis boatos quanto à ferocidade do inimigo: viria pela calada, iludiria as sentinelas inexperientes, destruiria as barracas, faria prisioneiros e mortos simulados. Diziam os soldados-cadetes melhor informados que, em tais circunstâncias o melhor era ser-se imediatamente morto. O inimigo deixava os mortos no solo e estes teriam apenas a maçada de reconstruírem as barracas; quanto aos prisioneiros, tinham de acompanhar o inimigo até um problemático acampamento, às vezes situado a muitos quilómetros de distância. Depois de um dia esgotante, mais valia a morte simulada.

- Afinal, quem é o inimigo? – interrogou o Ramalho.

E encontrou forças para rir, enquanto o médico Tww lhe arrancava, enfim, a bota.

- São cadetes de outras companhias – explicou o médico – que não gramam a companhia dos “doutores”. Vão gozar que nem pretos, quando nos deitarem as barracas abaixo.”

José Martins Garcia


Destino: Guiné

“Era pela ilha que João se deixava escorregar, a memória atada a todos os tempos, lugares, pessoas, sonhos intemporais.
Ilha redonda ou pão de milho, hóstia desconsagrada de franja roída, suas gentes voltadas para o mar – o deus do pão e da aventura e também do medo e da saudade. João vinha do lado norte mais alto e ventoso, os campos rasos e verdes, casas a brilhar de cal, pequenas, baixas, conchas perdidas na ilha perdida.”

“Cento e vinte e sete!, o nosso capitão chama-te.” A memória partida, o horror do nome em número, um vago 127 dependurado ao pescoço na chapa picotada pelo diâmetro a quebrar em caso de morte e poder, enfim, ter direito ao nome. “O nosso capitão chama-te!”, os olhos que se abrem num despertar de insónias. Lisboa é já uma mancha sem telhados. O sol mais freco pela brisa. O mar, manso que nem um são-bernardo, tece ondas pequeninas como Penélope em seu tapete líquido de azul e infinito. E João, perdido naquele barco enorme, no meio de mil duzentos e cinquenta e três homens, lá ia a caminhjo da guerra como se fosse voluntário dela. Destino: Guiné.


Álamo Oliveira

A partir de agora vamos entrar no palco da guerra. Na Guiné, iremos partilhar esperança, sofrimento, sede e afectos com Álvaro Guerra, Urbano Bettencourt, José Luís Farinha e José Martins Garcia.

(Continua)

Cheguei a Mafra na tarde de 11 de Novembro de 1967. Abriu-se uma porta monumental e um cabo quarteleiro perguntou-me: “A menina não sabe que vem para a tropa, aqui não há cabelo comprido?”. Fiquei embuchado, tivera a preocupação de cortar o cabelo na véspera e bem rente. Foi assim que eu fui praxado, voltei ao barbeiro, parecia que me estava a desparasitar. Deram-me um capacete, um capote, uma espingarda e uma baioneta, mais uma mochila, assinei um papel em que receberia como pré 17 tostões por dia. Percorri pela primeira vez os corredores do Convento, perguntei a mim próprio porque é que tinham nomes das campanhas de África e dos locais em que combatemos na Primeira Guerra Mundial. É, infelizmente, a única fotografia que guardo dessa recruta. Ao meu lado, está o Paulo Gustavo Simões da Costa, meu compadre, é padrinho da minha filha Joana. Lamento ter esquecido o nome dos outros dois. Oxalá o Paulo Raposo me possa ajudar. Encontrei esta fotografia na selecção do material que estou a organizar para o meu livro “A Viagem do Tangomau”.

Foto e legenda: © Mário Beja Santos (2009). Direitos reservados.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5600: Notas de leitura (48): Os Anos da Guerra, de João de Melo (2): Os preparativos e Sinfonia para uma guerra (Beja Santos)

terça-feira, 12 de julho de 2005

Guiné 63/74 - P106: Bibliografia de uma guerra (2)

Notas enviadas por Jorge Santos:


TÍTULO: Memórias de um Prisioneiro de Guerra
AUTOR: António Júlio Rosa
EDITORA: Campo das Letras, Porto.
ANO: 2003


RESUMO: O autor pertenceu à Companhia Independente de Artilharia 1743, aquartelada em Tite, desde Dezembro de 1967 (agregada ao Batalhão de Artilharia 1914). Foi prisioneiro do PAIGC, desde Fevereiro de 1968 até Dezembro de 1970.

O autor refere-se à atitude de um regime que um dia o obrigou a lutar numa guerra que lhe tirou a liberdade. No livro conta a história de três anos de cativeiro vividos na Guiné-Conacri, transmitindo as experiências, o sofrimento e os factos vividos.

São relatos contados na primeira pessoa de momentos que, pela sua intensidade, ficaram para sempre guardados na sua memória. É a história de um jovem que, como tantos outros, um dia se viu numa terra distante e desconhecida com um simples objectivo: lutar.


TÍTULO: Os Dias da Guerra
ORGANIZADORES: José Manuel Lages e José Silva Ferreira
EDITORA: Externato Infante D. Henrique
ANO: 1995


RESUMO: Relatos de elementos da Companhia de Caçadores 2645 que desenvolveu a sua actividade na Guiné entre Fevereiro de 1969 e Dezembro de 1970.

Ultrapassando o frio e simples relato das operações militares, colige factos que marcaram mais ou menos profundamente os elementos que os sentiram, tanto mais que, em conjunto, passaram momentos de sacrifício, de angústia, de desânimo que, declaradamente, terão levado muitas vezes os seus autores ao próprio desprezo pela vida.

Registo de vivências, medos, mas também de momentos de cooperação com as populações locais, na melhoria do seu nível de vida. Inclui, ainda, exemplos de literatura de guerra retirados de correspondência entre os militares e as famílias ou as namoradas e termina com um texto sobre o Anexo Militar de Lisboa.


TÍTULO: Até Hoje (Memória de Cão)
AUTOR: Álamo de Oliveira
EDITORA: Ulmeiro
ANO: 1986

RESUMO: Excertos do livro: "Hoje, comi salsichas com arroz. Recebi um aerograma dos velhotes. Gritei que estava farto desta porcaria e o capitão mandou-me pró caralho. A tropa é mesmo uma merda! (…)

"Nome no placard, com as maiúsculas possíveis na lista pequena de mobilizados: SOLD. 127 – MACHADO, JOÃO DE S; o número primeiro, que na tropa é assim e depois Machado – machado de não cortar -, João. Iria para a Guiné em rendição individual. Estava ali, preto no branco, a ordem do poder absoluto.

"Apenas sentiu o sangue esquentar-lhe a cabeça, as pernas a quebrar pelos joelhos. Aguentou-se.

"Os mais entendidos diziam que a rendição individual era bom. Não se é operacional tanto tempo. Substitui-se o ferido, o desaparecido, o morto – um destino mórbido. É entrar vivo para o caixão que vagou. Mudar o número por outro".