terça-feira, 26 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8169: Notas de leitura (233): Triste vida leva a garça, de Álamo Oliveira (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Abril de 2011:

Queridos amigos,
Parece fazer todo o sentido em tratar Álamo Oliveira como poeta açoriano, toda a sua lírica tem no mundo ilhéu a sua força centrípeta, este poema é digno de constar nos grandes cancioneiros dos maiores poetas portugueses. E há que ter orgulho pela memória e pelos afectos guineenses que ele exalta.

Um abraço do
Mário


Álamo Oliveira, poeta açoriano e nosso camarada da Guiné

Beja Santos

Sobre o romance “Até Hoje (Memória de Cão)”, de Álamo Oliveira (Ulmeiro, 1986) já se fez neste lugar a necessária recensão, está entre a melhor prosa publicada nos anos 80, sobressai a nostalgia de um ilhéu e a sua coragem de se despir até aos escaninhos do íntimo, trata-se de um texto de enorme elevação, lirismo e sofrimento incontido. Não houvera até então nenhum desassombro tão vasto de devastador numa narrativa onde se assume um desencontro trágico em torno de uma relação homossexual. Além destes desabafos íntimos, vazou como poucos na escrita a atmosfera psicológica, os tiques do quotidiano, os acontecimentos inopinados e festivos que interrompiam o marasmo de tempos lodosos. Recordo a descrição da chegada do correio, mal sustive a respiração: “Estão como cabras espantadas, prisioneiros ridículos, inocentes, amantes de cordel, aos saltos, gritinhos tarzânicos. Doentes de alegria explosiva, rapazes com o coração a viajar para o princípio do ser, primitivos os sentidos expostos. Fixam-se no meio da parada, a mão à testa para tapar o sol, a avioneta de voo raso, dois sacos de correio que se despenham e se amparam nos mil dedos que os agarram… As notícias vinham ali ensacadas, cadeadas, atrasadas quase quatro semanas. Vinham alegrias do tempo contado, saudades moídas pela azenha da distância, tristezas em rebanho… Os olhos estão fixos nas mãos do cabo-escriturário que agora é todo quartel de Binta e só aquele tamanho, a mão emocionada metendo a chave no cadeado do saco com a mesma untuosa demora da desfloração”.

Dois anos antes, em 1984, Álamo Oliveira publicara também na Ulmeiro uma compilação de vários livros de poesia com o título “Triste Vida Leva a Garça”. O primeiro livro “áfrika-mim e outras raízes” tem poemas que ele escreveu sobretudo em Brá, Bissau e Binta. Noutro livro intitulado “eu fui ao pico piquei-me”, uma lindíssima colectânea de cantigas soltas estruturadas ao jeito açoriano, consta o belíssimo “cantigas de ter ido à guerra”, por ventura o seu mais belo poema em torno da experiência guineense. É longo, permitam-me alguns excertos, um dia teremos uma biblioteca activa para consulta, será possível ler na íntegra tão belo poema:

Guiné, meu campo de guerra,
Gindungo com que tempero
A alcatra da minha terra…
Vinho de palma não quero.

Antes «cheiro» que me aguarda
Com confeitos e alfenim.
Não fui herói de espingarda,
Não fui cobra de capim.

Noites longas, sem mulher;
Noites de cio em segredo.
- Seja soldado quem quer,
Toda a farda mete medo.
………………………………

Fui soldado. Simplesmente.
Soldado de corpo nu.
Amei África e sua gente…
Muito sumo de caju.

Por isso, canto, em quadra,
A saudade que engatilha
A arma que me desarma:
- África-mim/minha ilha!

Dos companheiros de armas,
Guardo o rosto e afeição.
Soldados com espingardas
Murchas e presas à mão

Para puxar o gatilho
No momento de matar.
Antes, sachavam o milho,
Agora, são de odiar.

Hoje, à distância de anos,
Meia légua do caixão,
Coso, de memória, os panos:
- Meus companheiros quem são?

Pedro e João morreram.
Só dois! Mas que grande sorte!
Só vinte anos viveram
E há quem diga: santa morte
………………………………..

Mãe-negra – África-mim,
Meu postal desilustrado,
Tempo de angústias e capim
Ao meu ombro pendurado.

Quem bem faço por esquecer
Armas, mosquitos, viagem.
África ferrou-me o ser,
Trouxe-a feita tatuagem.

Se da guerra me livrei,
Do seu povo é que não.
Na farda, não me piquei,
Mas trouxe, na minha mão

Ritos de fanado e morte,
Rios mansos que o sol coa,
Luar branco, trovão-forte,
Negro vogando em canoa.

E ainda, em saco da tropa,
Carregado em bandoleira,
Trouxe, do feitiço a copa
Da beleza da palmeira.

Guiné! Guiné! Voz de gente!
Doce de coco e baunilha!
Bem te sinto, no meu ventre,
A pulsar no som da ilha,

Que é de mar, enxofre e lava
Hortênsias e solidão.
Guiné, minha irmã-escrava
Mango caído no chão.

Já me fico por aqui.
A ilha a paz me conceda.
Em África, nunca vi
Um campo de erva azeda.

Hoje, já muito mais velho,
Só a saudade é que apaga
Essa terra – pó vermelho –
Com montes de baga-baga.

Piquei-me, bem sei. Agora,
África-Ilha é este fardo:
Ser cavalo sem espora,
Ser um espinho sem cardo…

E assim termina esta desgarrada plena de feitiço africano. Não conheço nada mais de tão intenso nesta toada nova da poesia luso-guineense, um espinho de saudade pois, como ele soletra a Guiné ficou para muitos como uma irmã-escrava lá nas terras do poeta feitas de enxofre e lava.

Este livro de Álamo de Oliveira passa a fazer parte da biblioteca do blogue.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8153: Notas de leitura (232): O Paparratos, de José Pardete Ferreira (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Dr. Beja Santos

Obrigada por ter trazido ao meu/nosso conhecimento, a sentida beleza da poesia de Álamo Oliveira!

Fiquei maravilhada!

Grande capacidade de transmissão de sentimentos, lembranças, saudade.

Muito obrigada.


Felismina Costa

manuelmaia disse...

Caro Beja Santos,

Obrigado por me teres dado a conhecer ´Alamo Oliveira.
Nele a quadra popular e´, bem tratada onde o rigor da me´trica e´ patenteado.
As palavras brotam-lhe com uma fluidez espantosa.
manuelmaia

Manuel Joaquim disse...

Meu caro camarada Beja Santos

Leio, releio, "trileio" estas quadras. Sinto-me como que mergulhando em cachão revolto formado pelas memórias duma guerra, pelas cores e aromas da terra,pelos espasmos telúricos duma Guiné enfeitiçante, pela dor e pelo prazer de me sentir vivo, pelo espanto e pela serenidade ao enfrentar tal "destino", pela contínua vivência no "fio da navalha" com um sabor agri-doce envolto nas saudades do futuro que poderia ter uma hora, um dia, um mês, um ano e que, afinal, já tem para mim 44 anos.
Maravilhado com a magia da escrita de Álamo de Oliveira, aqui vai um muito obrigado por a teres trazido para aqui.

UM grande abraço