“A montante do trabalho etnográfico, esta investigação propus analisar os filmes realizados durante a guerra em tabancas das zonas libertadas, entre as quais o Unal foi escolhido como arquétipo (…) Este livro é sobre as imagens produzidas no decorrer da luta da Libertação da Guiné-Bissau e particularmente sobre os filmes documentais.
Genericamente, estes filmes mostram como o PAIGC desenvolvia uma ação militar eficaz contra o exército colonial português enquanto construía uma nova sociedade, nas zonas libertadas, precursora da nação por vir. Enquanto instrumento de Luta, o cinema tinha por missão primeira construir uma memória documental e, em última instância, um arquivo; isto é, o que deveria ser dito no futuro sobre o presente quando este se tornasse passado (…)
Esta investigação é movida pela vontade de compreender como uma imagem provoca outra, dispositivo fundamental da linguagem cinematográfica. Concretamente, como as sucessivas crises e a instabilidade política procederam uma Luta de Libertação particularmente promissora que assegurava estar a ser construída uma auspiciosa sociedade nas zonas libertadas. Para tal, importa considerar quem é que, antes e depois da independência, reclamou o poder de construir todas estas representações, quer as de sucesso, quer as de fracasso. Trata-se de debater a legitimidade e a autoridade que os processos históricos adquirem quando se tornam visualmente percetíveis”.
A autora quis ir mais longe, trabalhou em Unal, bastião do PAIGC, obteve inúmeros testemunhos.
“Com estes testemunhos, levei a cabo um exercício de contrastes com as narrativas fílmicas, de forma a aceder a outras narrativas, em particular as ligadas à cosmologia, enquanto arena de resistência política, cultural e militar. Através deste exercício, examinei como a história da Luta da Libertação tem sido instrumentalizada para legitimar ou confirmar versões dos acontecimentos que carecem de discussão”.
Dando primazia ao quadro colonial e à luta pela independência, Catarina Laranjeiro dá-nos uma síntese da presença portuguesa, a alvorada dos movimentos emancipalistas, o crescente predomínio do PAIGC na Luta de Libertação, é indiscutível que leu algumas das obras mais relevantes, isto sempre num quadro convencional em que infelizmente cai a generalidade dos historiadores, nem uma palavra sobre o hiato que vai entre o início da guerra e a chegada de Spínola, é o tal buraco que só será preenchido quando os doutos investigadores se lembrarem que existem arquivos da Defesa Nacional e do Ultramar que, no caso vertente, superam o que possa constar no Arquivo Salazar ou documentação existente noutros arquivos idóneos, como a documentação de Amílcar Cabral na Fundação Mário Soares e Maria Barroso. Paciência, melhores tempos virão.
A autora destaca, e reconheçamos vem a propósito, o papel dos Balantas na guerrilha, o papel das mulheres na Luta, a questão animista com a qual Cabral contundia com cuidado, tratando-a por “liquidação progressiva dos restos de mentalidade tribal”, ele suponha que a cultura da Luta superasse o sistema religioso da grande maioria da população guineense, devota a espíritos que em crioulo se designam de Irãs, reconheça-se que a autora prima no campo da inovação das investigações trazendo para a mesa da discussão estas forças religiosas que não vão aparecer na filmografia propagandística que percorreu mundo.
Ainda dentro desta síntese histórica, a autora dá-nos um quadro sumário sobre a violência política pós-independência, as propostas ideológicas de Cabral para a descentralização e para a participação das populações vão sendo sucessivamente ignoradas, as populações rurais acabaram entregues à sua sorte, viraram as costas aos comités das tabancas, isto enquanto o país avançava para o colapso económico e a miséria recrudescia, dá-se o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, é a separação da Guiné de Cabo Verde, não abranda o clima de violência política, vai ser retomada a questão Balanta, que terá o seu ponto alto nas execuções de Paulo Correia e outros, temos seguidamente o conflito político-militar, e a autora anota bem que “Finda a Luta de Libertação, a rebeldia e a resistência da população guineense deixaram de ser valorizadas quer pelas vanguardas políticas que apoiaram o PAIGC, quer pelo próprio partido”.
Gradualmente, o farol revolucionário que era atribuído à Guiné-Bissau apagou-se e a Guiné foi incluída nos circuitos do narcotráfico e tratada até hoje como um Estado falhado.
A segunda vertente do trabalho de Catarina Laranjeiro é da interpretação das imagens, como hoje se vê aquele passado, imagens muitas vezes encenadas, muito ao gosto do que via ser passado para emocionar as plateias, sobretudo aquelas que apoiavam a luta anticolonial, a autora revela-se bem conhecedora da história das imagens e do seu desempenho e o papel do mito, os seus significados sociais, a nossa perceção pelo visual, a dupla temporalidade da imagem e da memória, a representação das cenas de combate ou daquela atividade humilde de transportar à cabeça munições ou alimentos, mostrar esses anónimos como figurantes do entusiasmo da luta.
E essa representação cénica até pode vir a incluir as imagens dos encontros entre as tropas portuguesas e o PAIGC, as iniciais revelando um misto de desconfiança e acanhamento, posturas rígidas, mesmo quando alguns dos protagonistas conversam com o semblante ameno, os outros em expetativa, mesmo fugindo com o olhar à objetiva.
Esta reflexão sobre a imagem é uma inovação nos estudos, abre a porta ao questionamento do que se pretendia passar para o exterior e vir a utilizar o interior como apêndice histórico. E daí o mergulho que a autora procede no Cinema de Libertação na Guiné-Bissau, indo mesmo aos acervos existentes no INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, onde se guardam imagens da administração colonial, buscando a sua utilidade:
“O grande propósito destas imagens era promover, na sociedade metropolitana, sensações de proximidade e pertença, tornando próxima e aparentemente segura uma guerra que acontecia numa terra que, supostamente, lhe pertencia”.
Em contrapartida, o PAIGC criava a sua máquina de propaganda, dava a sugestão das atrocidades cometidas pelo Exército Português, desvelavam-se as infraestruturas nas zonas libertadas, afluíram à Guiné cineastas estrangeiros, vieram nomeadamente da Argélia, Suécia e Cuba.
A autora resume a principal filmografia e interroga-nos sobre o que se mostrava externa e internamente: a construção de um Estado por vir. Vale a pena ter em consideração os comentários tecidos pela autora.
(continua)
Amílcar Cabral
Casal de combatentes
Preparação do canhão
Três imagens retiradas de Os esboços da nação guineense em Madina Boé (1968), de José Massip
Um dos primeiros cineastas guineenses, Sana Na N’hada, fotografia é retirada do Jornal O Democrata, Guiné-Bissau, com a devida vénia
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Nota do editor
Último poste da série de 20 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24775: Notas de leitura (1626):"Portugueses em África, Uma Breve História, Da Conquista de Ceuta à Descolonização", por Pedro Rabaçal; Marcador Editora (Editorial Presença), 2017 (Mário Beja Santos)