Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 27 de outubro de 2023
Guiné 61/74 - P24799: Notas de leitura (1628): "Dos Sonhos e das Imagens, A Guerra de Libertação na Guiné-Bissau", por Catarina Laranjeiro; Outro Modo Cooperativa Cultural, 2021 (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2022:
Queridos amigos,
Há aspetos surpreendentes na investigação de Catarina Laranjeiro, logo a releitura a que procede de toda a filmografia durante a Luta e o que se tentou fazer no pós-independência, as mensagens produzidas para uso externo e interno, o que revelavam e o que ocultavam. Cabral contava com um novo sistema educativo que fosse gradualmente reduzido à insignificância o animismo (e estou levado a crer que essa nova cultura iria paralisar a influência do islamismo). As coisas não aconteceram assim como a autora mostra no seu trabalho de campo em Unal. Um olhar inovador que faz cruzar a etnografia com o conhecimento histórico, é uma obra que merece ser apreciada.
Um abraço do
Mário
A construção e a desconstrução das imagens sobre a Guerra de Libertação da Guiné-Bissau (2)
Mário Beja Santos
O livro Dos Sonhos e das Imagens, A Guerra de Libertação na Guiné-Bissau, por Catarina Laranjeiro, Outro Modo Cooperativa Cultural, 2021, baseia-se na tese de doutoramento da autora, é um misto de inventário historiográfico, análise sociocultural da imagem e trabalho etnográfico que a autora realizou em Unal, no Sul da Guiné, entre setembro de 2015 e abril de 2016, aqui voltou entre setembro de 2019 e fevereiro de 2020.
A investigadora esclarece:
“A montante do trabalho etnográfico, esta investigação propôs analisar os filmes realizados durante a guerra em tabancas das zonas libertadas, entre as quais o Unal foi escolhido como arquétipo (…) Este livro é sobre as imagens produzidas no decorrer da luta da Libertação da Guiné-Bissau e particularmente sobre os filmes documentais. Genericamente, estes filmes mostram como o PAIGC desenvolvia uma ação militar eficaz contra o exército colonial português enquanto construía uma nova sociedade, nas zonas libertadas, precursora da nação por vir. Enquanto instrumento de Luta, o cinema tinha por missão primeira construir uma memória documental e, em última instância, um arquivo; isto é, o que deveria ser dito no futuro sobre o presente quando este se tornasse passado (…) Esta investigação é movida pela vontade de compreender como uma imagem provoca outra, dispositivo fundamental da linguagem cinematográfica. Concretamente, como as sucessivas crises e a instabilidade política procederam uma Luta de Libertação particularmente promissora que assegurava estar a ser construída uma auspiciosa sociedade nas zonas libertadas. Para tal, importa considerar quem é que, antes e depois da independência, reclamou o poder de construir todas estas representações, quer as de sucesso, quer as de fracasso. Trata-se de debater a legitimidade e a autoridade que os processos históricos adquirem quando se tornam visualmente percetíveis”.
Já se discorreu sobre a síntese histórica da Luta da Libertação, apresentou-se uma análise pós-colonial das imagens, enfatizando o papel do cinema e dos documentários propagandísticos. Eram obras destinadas a mostrar como se combatia e se consolidava o novo Estado, tornava-se obrigatório que se vissem crianças nas escolas, hospitais a funcionar, estas imagens deviam ser tratadas com o expoente de uma nova cultura, assim se estavam a preparar profissionais de saúde graças aos países amigos, até se mostrava imagens de uma farmácia, seguramente para cativar gente do primeiro mundo. Era, para consumo interno, imagem de o “por vir”, estava em construção uma nova cidade nas zonas libertadas. Catarina Laranjeiro questiona a natureza de todas estas encenações e extrai exemplos de vários filmes. Recorda, por exemplo, que há imagens que sugerem que estava um sistema económico a ser implementado que permitia à população das zonas libertadas aceder a bens de primeira necessidade. “São ocultadas todas as formas de resistência ao sistema económico colonial vigente, sendo que, ao longo destes filmes, a ineficiência da colonização portuguesa surge sempre para descrever a ausência de estruturas como escolas ou hospitais, ou de quadros como professores, enfermeiras ou médicos. É, assim, implícito que o problema não era o colonialismo por si, mas uma penetração incompleta de um estado colonial ineficaz na sociedade tradicional, o que, ironicamente, corrobora que a missão europeia havia ficado incompleta. Subjacente, fica a ideia de que competia agora ao apoio internacional terminá-la”.
São, insista-se, imagens que pretendem propagar os sinais de uma nova cultura e a autora observa:
“Em contraponto, nunca são mostradas imagens de queimaduras a serem tratadas com óleo de palma e folhas de farroba piladas, terapêutica partilhada naquele contexto, que, segundo os dados empíricos recolhidos no decorrer do meu trabalho de campo, eram um recurso bastante comum. Acrescento que, reconhecendo o amplo contributo dos médicos cubanos, os antigos combatentes que entrevistei enfatizavam que houve um enorme envolvimento dos curandeiros locais no apoio às vítimas de guerra, nunca devidamente reconhecido. Estes especialistas foram remetidos para o fora-de-campo das imagens; ao serem exclusivamente documentados as formas e os saberes dos doadores internacionais, apenas estes foram considerados válidos”.
A autora vai mais longe e interroga as línguas em que se fala nestes filmes, a língua dominante é o português, o pai fundador do PAIGC nunca hesitou qual seria a futura língua oficial do novo Estado. É um extenso e inovador olhar sobre o discurso do poder, a representação das mulheres, a centralidade política de Amílcar Cabral, ele era o único dirigente a conceder entrevistas. Igualmente a autora observa que em todos os filmes estão presentes treinos e formações militares, era importante que se soubesse que havia disciplina militar, aulas de ginástica, gente uniformizada, jamais se concede imagem às religiões tradicionais, o próprio Cabral era cuidadoso nos seus discursos, com subtileza pedia aos professores para combater a ignorância e os medos, apelando mesmo: “A maior libertação que podem dar à nossa terra é libertar o povo do medo. Para libertar o nosso povo do medo temos de o libertar da ignorância. Por isso é que o trabalho de professores é o trabalho de vanguarda”.
Seria esse trabalho a forma mais eficaz de combater as crenças no Poilão sagrado, nas intempéries naturais, os curandeiros, os Irãs, os amuletos. Chegada a independência, criada uma nova elite, prometido até um Instituto Nacional de Cinema (que não dispunha de verbas) realizaram-se imagens em que Amílcar Cabral continuava a estar muito presente, aliás o único filme terminado intitula-se O Regresso de Cabral, é o documentário das cerimónias fúnebres durante a transladação do seu corpo de Conacri para Bissau. Esta filmografia irá ser proibida por Nino Vieira, argumentando que se tratava de um instrumento de propaganda de um regime anterior. E depois entrou-se numa era de conspirações (inventadas ou não), na Guiné-Bissau imergiram inimigos internos sob múltiplos disfarces, eram encenações para travar descontentamentos ou marcar a exemplaridade do poder do ditador.
A autora está agora em trabalho de campo em Unal, faz a apresentação do lugar, chegou a hora das entrevistas, houve recriminações de gente desapontada, eu estava a ler este trabalho da Catarina Laranjeiro e ocorreu-me a tese de doutoramento de Tina Kramer, na Universidade Humboldt de Berlim sobre a reconciliação (ou não) dos antigos combatentes guineenses, depoimentos pungentes de gente que até confessava a sua humilhação por agora trabalhar para guineenses que tinham combatido ao lado dos portugueses e que recebiam reformas, tese de doutoramento que deploravelmente não está traduzida para português. Aquele povo do Unal exigiu ter escola, construíram-na, cuidam do professor, a região, confrontada com a inércia do Estado dá as respostas que pode. E muito interessante é a sua abordagem que vai dos discursos fílmicos às memórias vernaculares, é então que fica claro que as forças animistas têm um papel preponderante não só no Sul do país como em todas as outras regiões da Guiné-Bissau.
E chegou a hora das considerações finais, àquelas imagens fílmicas eram inventadas e idealizadas para o exterior e presumiam-se ter valor catequético no interior.
“As imagens produzidas no decorrer da Luta revelam muito sobre o tempo presente. Mais precisamente permitem-nos compreender o paradigma político que hoje rotula de falhado o Estado guineense. Os homens e mulheres que viviam nas zonas libertadas não foram meras marionetas manobradas por ideologias ou legados históricos, isto é, não foram apenas personagens que integraram estes filmes. Todos e todas foram atores sociais conscientes que construíram as suas próprias ficções em torno da Luta (…) A população da Guiné-Bissau não pode ser lida como um todo homogéneo. Para a grande maioria dos combatentes desta guerra, o Estado-nação moderno era uma abstração. Nos últimos anos, tem havido uma tentativa notória de atribuir uma maior visibilidade à memória da Guerra Colonial. É hoje consensual que as guerras coloniais contribuíram para extenuar o regime ditatorial português e a ideologia imperial em que este se alicerçava. Os dados encontrados sugerem que, tal como as identidades, as memórias, e as modernidades, também a descolonização deve ser conjugada no plural”.
Esta descolonização não deixa nenhum ator de fora, nem os antigos combatentes portugueses nem o povo guineense em geral.
Pela sua abordagem original, uma obra que se recomenda pelo novo sentido da História que a acompanha.
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Nota do editor
Último poste da série de 23 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24784: Notas de leitura (1627): "Dos Sonhos e das Imagens, A Guerra de Libertação na Guiné-Bissau", por Catarina Laranjeiro; Outro Modo Cooperativa Cultural, 2021 (1) (Mário Beja Santos)
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9 comentários:
"Cabral contava com um novo sistema educativo que fosse gradualmente reduzido à insignificância o animismo (e estou levado a crer que essa nova cultura iria paralisar a influência do islamismo)."
Seria isso que Cabral sonhava? Reduzir o animismo e o Islamismo?
Se assim fosse, definitivamente, Cabral nao tinha nada de africano.
Não0 entendo bem se é Beja Santos ou a autora do filme, que deixa esta observação sobre Cabral.
De tantas coisas que já se leram sobre Cabral...!
O youtubor Paulo Cacela foi fazer um vídeo na Casa de Amílcar Cabral, em Bafatá.
Toda a antiga zona histórica/colonial de Bafatá está ao abandono, com dezenas de casas a cair e apenas uma que faz de Casa Museu de Amílcar Cabral está em estado razoável.
A Casa Museu apresenta umas fotografias nas paredes, uma biblioteca simplória, uma mesa e uma cama do Amílcar Cabral e pouco mais, com um rapaz a tomar conta/cicerone a atender quem apareça.
Toda aquela zona de Bafatá está a abandonada, mas tinha de aparecer algo de à portuguesa. Pois, estavam duas jovens a descansar junto ao Geba vestidas de azul de enfermeiras.
Eram enfermeiras que voluntariamente se ofereceram para trabalhar em Bafatá e nas tabancas da zona tão carenciadas de cuidados médicos.
Estavam sozinhas sem ninguém a vista num local que até os "ladrões" e animais selvagens têm desinteresse em visitar.
Só visto.
Saúde da boa
Valdemar Queiroz
Ainda não li o livro nem vi o filme da Catarina Laranjeira. Também lidei pouco com os balantas do sector L1, que nos eram "hostis". A minha "afetividade" ia para os fulas com quem, ao longo de 22 meses, fiz "a guerra e a paz". E arrisquei a vida também para defender o seu "chão": caímos nas mesmas minas, emboscadas,flagelações...
Nunca tive preconceitos em relação a sua cultura e religião, embora houvesse coisas, nos seus "usos e costumes", que me chocavam profundamente como o fanado feminino e o casamento forçado..., dois tabus em que o Cabral nunca tocou nem com pinças...
A cultura balanta conhecia-a mal, mas no inicio da guerra, com leituras apressadas, achava piada ao mito do "bom selvagem" e da "sociedade tendencialmente igualitária" dos balantas que tanto fascinou o Cabral, os missionários católicos italianos e, agora, os nossos jovens investigadores sociais...
A verdade é que os balantas foram mal tratados tanto por um lado com o por outro... Mas quando se fala da "guerra colonial" na Guiné, tende-se a esquecer, ignorar ou escamotear que tá bem foi uma "guerra civil"... No final da guerra (ou pelo menos no fim do mandato de Spinola) havia 13 mil guineenses em armas, do lado da potência colonialguma, contra.no máximo 6 mil "libertadores da Patria"...
Eu sei que de um lado e do outro houve "casos de recrutamento" forçado. E na época a guerra era um "modo de vida"...
Cuidado, portanto, com as análises simplistas... Já aqui de resto temos abordado alguns outros "mitos da propaganda" do PAIGC como a vida nas "zonas libertadas"... Infelizmente falta-nos duas coisas que são essenciais em investigação social: saturação da informação e triangulação das fontes...
E o mesmo se pode dizer da "propaganda" do lado das autoridades portuguesas... (Mas vale a pena discutir se uma era mais "descarada" do que a outra?)
Para os combatentes de um lado e do outro é sempre difícil ter que ser sujeito às "provas do contraditório"... Afinal, "todos fomos heróis"...
Quando visitei a Guiné-Bissau quase meio século após a proclamação da independência e constatando o estado de sub-desenvolvimento das regiões do interior (vilas e aldeias) e de outras informações e imagens que nos vão chegando, e, o estado algo caótico da capital, urbanístico, social e político, tão ao arrepio dos propósitos da luta de libertação, das suas doutrinas, presentes nos discursos e escritos de Amílcar Cabral e nos filmes de propaganda do PAIGC, que convenceram muita gente, entre guineenses e atores internacionais, sou levado a interrogar-me da validade desses projetos e doutrinas! Ocorre-me a frase do Evangelho: "pelos seus frutos conhecereis a árvore".
Uma outra frase me ocorre para contestar as mentiras em que foram urdidas essas narrativas enganadoras, de efeitos perversos até ao presente: "E conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará".
Pois é, Luís Graça, pois, pois Joaquim Luís Fernandes... E mais não digo, não vá levar ainda uma sacholada na cabeça.
ABRAÇO,
António Graça de Abreu
Dos 54 países do Continente Africano, apenas Marrocos que sempre foi um Reino independente e a Libéria formada por afro-americanos, todos tiveram administração colonial, tornando-se independentes em média à 60 anos.
Praticamente todos aqueles países tiveram conflitos antes e depois da independência, havendo em cada um desenvolvimento em conformidade com a riqueza e a política de verdades e mentiras de cada país.
Valdemar Queiroz
Caro Valdemar,
Marrocos foi uma colónia espanhola, a norte, com capital em Tetuão (uma cidade sem graça nenhuma), e francesa em grande parte do restante território. A designação oficial para estas colónias era "protetorado", mas elas de facto eram colónias. De fora ficava a cidade de Tânger, que tinha um estatuto especial, a que poderíamos chamar cidade-estado mais ou menos independente. As fortificações portuguesas na costa marroquina, tais como Arzila e Mazagão, por seu lado, não configuraram uma colonização, porque os portugueses não penetraram para o interior. A única tentativa portuguesa de colonizar Marrocos deu muito mau resultado, como se sabe, com a estrondosa derrota de Alcácer Quibir. Já agora, lembro-me do curioso diálogo que tive com alguns marroquinos sobre esta batalha, cuja importância eles desvalorizavam, dizendo que tinha sido uma batalha qualquer entre muitas outras...
O único país africano que nunca foi colonizado foi a Etiópia, pese embora a tentativa da sua conquista por parte da Itália fascista de Mussolini, que fracassou. A destruição de uma ponte portuguesa sobre o Rio Nilo Azul, por parte dos etíopes, terá sido determinante para travar o avanço italiano.
Certo, meu caro Fernando Ribeiro
Como a Etiópia não aparecia na lista que consultei não me lembrei de incluir como um país africano que nunca foi colonizado quer a nível histórico/religioso 'terra do Prestes João' quer a nível económico/escravatura, embora houvesse as intenções imperiais do populista Mussolini.
Quanto ao Marrocos, julgo que verdadeiramente o Sultão sempre esteve a "reinar", mesmo sendo colónia com a Espanha e a França a governar, e daí a minha confusão.
Saúde da boa
Valdemar Queiroz
António (Graça dce Abreu, já que Antónios há ou houve muitos...);
"Sacholada na cabeça" ?!...A expressão é forte, mas percebo a tua ironia... Não te inibas de dar a tua opinião, dentro do letra e do espírito do nosso "livro de estilo"... Um alfabravo. Luís
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