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terça-feira, 26 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26195: Manuscrito(s) (Luís Graça) (262): Porto Santo e a África aqui tão perto - Parte VI: Casa Colombo - Museu de Porto e dos Descobrimentos Portugueses



Região Autónoma da Madeira > Porto Santo > Vila Baleira > 4 de outubro de 2024 > Mural de Cristóvão Colombo, pintado a spray no edifício da Câmara Municipal do Porto Santo, da autoria de artista de arte urbana Mr. Dheo, natural do Porto e com obra espalhada por mais de dezena e meia de cidades de todo o mundo.



Região Autónoma da Madeira > Porto Santo > Vila Baleira > 4 de outubro de 2024 > Casa Colombo - Museu de Porto Santo e dos Descobrimentos Portugueses


Região Autónoma da Madeira > Porto Santo > Vila Baleira > 4 de outubro de 2024 > Casa Colombo - Museu de Porto Santo e dos Descobrimentos Portugueses






Madeira > Porto Santo > Vila Baleira > Casa Colombo - Museu da Madeira e dos Descobrimentos Portugueses > 4 de outubro de 2024 > A Odisseia dos Mares > Painel sobre o Tratado de Tordesilhas


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2024). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Casa Colombo - Museu de Porto Santo e dos Descobrimentos Portugueses


1. Pois é... já lá vai o tempo em que os dois então poderosos vizinhos ibéricos pegavam no globo terrestre e, qual  "melancia", cortavam-no ao meio.. E toma lá, dá cá... A gente sabe como é que acabou a história: sobrou para nós, "os últimos soldados do império"... 

Foi isso que eu pensei quando em 4 de outubro me pus a ler estes painéis sobre a "Odisseia dos Mares", no Museu de Porto Santo, na Vila Baleira... Aliás, Casa Colombo - Museu de Porto Santo e dos Descobrimentos Portugueses...

Pois é, o Fernando Medina, o anterior presidente da Câmara Municipal de Lisboa,  queria criar na cidade um Museu dos Descobrimentos. É preciso distrair os turistas quando nos vêm "visitar" e deixar cá uns euritos... Que a cidade, em boa verdade, em matéria  de museus e monumentos nacionais e outras "atrações turísticas", não pode competir, nem de longe nem de perto com as rivais (Londres, Paris, Madrid, Roma, Amesterdão, Berlim....). (A culpa, dizem, foi do terramoto de 1755 que tudo levou, mais a beatice e a incultura  da maior parte dos nossos reis e rainhas que nunca foram grandes nem exigentes colecionadores de arte, muito menos profana.)

Caiu-lhe o Carmo e a Trindade em cima, ao pobre do Medina: "seu saudosista, seu imperialista, seu esclavagista, seu negreiro, seu colonialista, seu racista, seu filho daquele e daquela"... Enfim, quem tem ideias que não sejam "politicamente corretas", como esta pouco ortodoxa do "Museu dos Descobrimentos", está sujeito a levar  no "toutiço" dos historiadores, dos curadores de museus, dos dirigentes de associações de afro-descendentes, dos jornalistas, e por aí fora, sem esquecer os novos censores das redes sociais...

Mas os madeirenses (incluindo os porto-santenses) não deixaram cair a ideia em saco roto...e logo em 2023 decidiram, sem complexos,  remodelar e ampliar o museu local de Porto Santo, inaugurada em 1989 e reestruturado em 2004, passando a Casa-Museu Cristóvão Colombo,  a chamar-se Casa Colombo - Museu de Porto Santo e dos Descobrimentos Portugueses.

Afinal, foi aqui (e em Ceuta) que tudo começou...Para o bem e para o mal, para a glória e para a perdição...(Em boa verdade, o que seríamos nós, Luís Vaz de Camões, enquanto povo, se toda a gente tivesse dado ouvidos ao teu  "homem do Restelo" ?!...)

Pensando bem, até  já havia um núcleo museológico, baseado na casa onde, segundo a tradição,  o  descobridor do "Novo Mundo" viveu e casou com uma das filhas do capitão donatário da ilha, o Bartolomeu Perestrelo, filho de mercadores italianos. (Eu sempre o tratei, ao Colombo,  por idiota por  ter chamados "índios" aos desgraçados que foram "descobertos" para começarem logo a ser "dizimados"; e idiota por se ter enganado na leitura das cartas  de navegação e pensado que tinha chegado às "Índias"; se, calhar, mais do que idiota, mas isso é outra história, outra conversa,...).

A Casa Colombo - Museu do Porto Santo e dos Descobrimentos Portugueses apresenta uma nova museografia (nunca conheci a anterior), tendo  sido enriquecida com novos conteúdos e recheios, estes fruto da  doação mecenática de obras de oficinas nacionais e europeias (Alemanha, Espanha, Flandres, França), africanas, asiáticas e sul-americanas.

Do interessante espólio entretanto adquirido destacam-se peças que vão desde o século IV até ao século XVIII (tais como pratos, taças, travessas, terrinas, vasos, garrafa, bilha, azulejos, elmo, imagens devocionais em escultura e pintura, mobiliário, gravuras, mapas e moedas),  enfim, obras executadas nos mais diversos materiais com o porcelanas, faianças, cobres, marfins, madeiras exóticas, tartaruga, madrepérola, ferro, etc.. 

Em suma, é um pequeno grande espaço de cultura, de memória e de aprendizagem, que vale uma visita,e que aconselho  a quem, dos nossos amigos e camaradas, for passar uns dias à "Ilha Dourada". Os antigos combatentes têm acesso gratuito à Casa Colombo... 


PS - Contrariamente ao que aprendemos, nos anos 50, na escolinha primária do livro único, a ilha de Porto Santo não foi "descoberta" em 1420 pelos portugueses João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrelo, mas sim "reconhecida" por eles... Já vinha assinalada pela cartografia castelhana por volta de 1385. E em 1417 navegadores castelhanos tinham passado pela ilha (desabitada).... 

Vinte e seis anos depois, em 1446, os portugueses chegavam à Costa da Guiné... Podemos dizer, isso, sim, sem euforia (muito menos com arrogância) mas com orgulho, que foram os nossos antepassados quem abriu a grande autoestrada marítima que deu "novos mundos ao Mundo", unindo terras, ilhas,  mares, continentes, povos e civilizações... E tudo começou há mais de 600 anos... Porto Santo é, pois, uma referência emblemática, incontornável...

Como todas as odisseias humanas, reais ou míticas ou mitificadas (como a de Ulisses), a nossa "odisseia dos mares", os nossos "Descobrimentos", também tiveram efeitos perversos, é bom não esquecê-lo... Mas assumamos tudo isso, de maneira crítica, frontal  e...descomplexada!

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sábado, 23 de novembro de 2024

Guiné61/74 - P26184: Notas de leitura (1748): "A pesca à baleia na ilha de Santa Maria e Açores", do nosso camarada e amigo Arsénio Puim: "rendido e comovido" (Luís Graça) - Parte II

 



Capa do livro de Arsénio Chaves Puim, "A Pesca â Baleia na Ilha de Santa Maria e Açores" (Ponta Delgada: Letras Lavadas Edições, 2024, il., 160 pp. (Fotografia da capa_ Porto do Castelo e Encosta do Farol Gonçalo Velho, Arquivo Fotográfico de Max Frix Elisabeth)


1. Estamos a publicar algumas notas leitura do último livro do nosso amigo e camarada Arsénio Puim (*), que, "noutra incarnação", foi alferes graduado capelão, na antiga Guiné Portuguesa, na CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72)... Não chegou a acabar a comissão porque os senhores da guerra consideraram-no "persona non grata" no território, sendo expulso em meados de 1971. (**)

Voltou aos Açores. Continuou a exercer o múnus espiritual durante mais uns anos, fez enfermagem, casou, foi pai, é agora avô, continua igual a ele próprio, um grande açoriano e ainda um melhor ser humano.

A "nota introdutória" que ele escreveu para este seu último livro (edição revista, aumentada e melhorada do livro de 2001, "A pesca da baleia na ilha de Santa Maria"), diz muito sobre o amor a sua terra e às suas gentes. 

Nós que, quando putos e continentais, nunca conhecemos o alvoroço e a excitação da baleação no arquipélapo dos Açores (nem vimos baleias ao vivo), somos agora remetidos, ao ler o Puim, para esses tempos da sua infància, adolescència e juventude quando o seu "chão", a freguesia, Santo Espírito, e a sua terra natal, Calheta, eram o centro da atividade desta atividade (que, no séc. XX durou ainda cerca de 4 dezenas de anos, até 1985). 

Puim fala da sua gente, pobre e insular, e da sua luta pelo "pão nosso de cada dia".  Ele fala-nos de algumas centenas de marienses baleeiros (e conta-nos histórias de um punhado deles), a maioria dos  quais do seu sítio,  Santo Espírito... Ilhéus (a que há de acrescentar mais alguns, de Cabo Verde, Graciosa, São Miguel ,Pico, Faial...), "homens humildes e afoitos que, numa luta dura e perigosa, quase corpo a corpo, com o maior mamífero da Terra, ganhavam dignamente o pão de cada dia para e para os seus" (pág. 27)... E " dois deles tombaram no exercício desta atividade, ainda primeira fase da baleação " (o remador mareensee António Puim,  e o mestre cabo-verdiano Henrique  da Veiga, em 1897 e em 1901, respetivamente).

Lembra ainda o autor, neste prólogo (que a seguir se transcreve na íntegra, com a devida vénia), que "a pesca à baleia em Santa Maria, como nas restantes ilhas açorians, nunca enverdou por processos intensivos e exterminadores deste cetáceo, adotados noutros pontos do globo" (pág.23)... Pelo contrário, era um atividade de economia de subsistência, sazonal, costeira e artesanal, "em pequenos barcos de propulsão a remos e à vela, por regra com o arpão e a lança de arremesso manual, o que, necessariamente, manteve as capturas em níveis moderados e o equilíbrio biológico desta espécie" (pág. 24).

A baleação teve, naturalmente,  impacto económico e social na ilha (como no resto dos Açores),  criando riqueza e emprego, direta e indiretamente (vd. cap. 4, pp. 99-120). 

De 1937 a 1966, foram capturados, na ilha de Santa Maria, 841 cachalotes, ou sejam, 5,6% do total das capturas no arquipélago (=14929), produzindo um pouco mais de 1,9 milhões de quilos de óleo, ou seja, 3,7%  do total dos Açores (=51,2 milhões de quilos).
O valor do õleo, em escudos,  na ilha de Santa,  totalizou 7 milhões , ou seja, 3,2% de um total de c.  219,3 mil contos (sem atualizaçáo dos valores com base nas taxas de variação do IPC - Índice de Preços no Consumidor). (Fonte: Puim, 2024, pág. 109; em relação à produção de óleo e ao seu valor monetário, os dados são omissos ou incompletos para os anos de 1938, 1939, 1945 e 1946).

Mas há outros aspetos, para além dos socioeconómicos, que devem merecer a atenção do leitor, e que abordaremos em próxima nota. Por exemplo:

"Ainda hoje lembro a angústia,  silenciosa, da minha Mãe (igual à de outras mães e esposas) sempre que os botes largavam do  porto do Castelo  para o alto mar à caça da baleia, até que entrassem  novamente em casa - às vezes a altas horas  da noite -  os seus dois filhos baleeiros" (pág. 103).

 

















Fonte:  Excertos de  Arsénio Chaves Puim, "A Pesca â Baleia na Ilha de Santa Maria e Açores" (Ponta Delgada: Letras Lavadas Edições, 20123, il., 160 pp., preço de capa: c. 18 euros), pp. 21-26.

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 22 de novembro de 2024> Guiné 61/74 - P26180: Notas de leitura (1746): "A pesca à baleia na ilha de Santa Maria e Açores", do nosso camarada e amigo Arsénio Puim: "rendido e comovido" (Luís Graça) - Parte I

(**) Vd. poste de 8 de maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22181: Os nossos capelães (16): Arsénio Puim, vítima da ira de César por mor de Deus e da sua consciência de cristão e português (Luís Graça, "O Baluarte de Santa Maria", maio de 2021)

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26157: Casos: A verdade sobre... (49): Os "djubis" da CART 11 e da CCAÇ 12, que foram soldados... (Luís Graça)



Umaru Baldé (c. 1953- c.2004, Bambadinca, meados de 1970
Foto: Benjamim Durães (2010)



Umaru Baldé (c. 1953-c. 2004), recruta do CIM Contuboel,
 c. março de 1969 

Foto: Valdemar Queiroz (2014)


1. Resposta do editor LG ao Valdemar Queiroz (*): 

Valdemar, obrigado pela tua preciosa "lembrança"... Reconheço estes putos ou pelo menos três, os que pertenceram à CCAÇ 12, e que fizeram a guerra comigo (*)...

Quanto ao Umaru Baldé (c. 1953- c. 2004), o "menino de sua mãe", tens aqui  duas fotos dele (uma é do teu álbum, o recruta Baldé, no CIM de Contuboel, com cara e corpo de "djubi"; a outra, um ano mais tarde,  de meados de 1970, tirada em Bambadinca, já com o BART 2917).

Vamos pô-lo a nascer por volta de 1953 para salvar a "honra do convento", isto é, para que a NT não sejam acusadas de recrutar crianças para a guerra, como acontecia com o PAIGC...

Soldado do recrutamento local, nº 82115869, o Umaru tirou a recruta   (com a CART 11) e a especialidade (com a CCAÇ 12), no CIM de Contuboel (um um um "oásis de paz", como eu lhe chamei, em junho de 1969). 

Foi exímio apontador de morteiro 60, soldado arvorado e depois 1º cabo at inf  da CCAÇ 2590 /  CCAÇ 12 (1969-1972), no 4º Gr Comb,  3ª secção [comandada inicialmente pelo fur mil 11941567 António Fernando R. Marques: DFA, vive hoje em Cascais, empresário reformado, membro da nossa Tabanca Grande].

O Umaru Baldé, que era de Dembataco (ou Demba Taco),  cresceu com a guerra: Demba Taco pertencia ao subsetor do Xime, um dos primeiros a conhecer a crueldade da guerra.  Foi recrutado em 12/3/1969,  como ele conta em carta pungente que te escreveu, trinta anos depois, já a viver na Amadora. 

Tirou a recruta no CIM Contuboel e fez o juramento de bandeira em Bissau, em cerimónia a que assistiu o gen Spínola.  Em junho e julho de 1969 fez a especialidade, já com os graduados da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 como instrutores... Juntos formamos companhia e fizemos a IAO.  Em 18 de julho de 1969 ficámos à ordem do comando do sector L1, e fomos colocados em Bambadinca.  Seis dias depois tivemos o batismo de fogo em Madina Xaquili, que será abandonada, dois meses e tal depois, em outubro.

O Umaru Baldé fez a guerra  entre meados de 1969 e 1972,  foi depois colocado, nesse ano,  em Santa Luzia, Bissau, no quartel do Serviço de Transmissões, onde ficou até ao fim da guerra.  (Julgo que depois de ter sido ferido em combate, ainda na CCAÇ 12, que entretanto passará a unidade de quadrícula, colocada no Xime em março de 1973.)

Conheceu, em mais de metade da sua vida, a amargura e a solidão do exílio. Não sei se chegou a ter mulher e filhos.  Percorreu meia África, em busca de liberdade e seguranças. Veio a morrer, aos 50 anos,  em Portugal, no "terminal da morte", que era então o, hoje  já extinto,  Hospital do Barro, Torres Vedras (onde também, por ironia do destino,  viria a morrer Luís Cabral, uns anos depois, em 2009).

O "puto" Umaru,  como sempre o tratámos, contou apenas com o apoio e a ajuda de alguns dos seus antigos camaradas de armas, "tugas",  da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, mas também da CART 11 (como tu, Valdemar Queiroz,  e outros). 

Não posso confirmar, com rigor, o ano em que nasceu e o ano em que morreu. Nunca mais o vi desde que regressei a casa em 17 de março de 1971. Tenho uma foto com e com o Zé Carlos.

 

Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > Fevereiro de 1970 >  Região do Xime >   1º  Grupo de Combate, comandado pelo Alf Mil Inf Op Esp Francisco Moreira, no decurso da Op Boga Destemida, uma operação sangrenta...  A CCAÇ 12, que integrava a "nova força africana" (que era a menina dos olhos de Spínola) foi uma subunidade de intervenção, duramente usada e abusada pelo comando dos BCAÇ 2852 (1968/70) e BART 2917 (1970/72) 


Foto: © Arlindo Roda (2010). Todos os direitos reservados 
[Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



2. Aproveito para retomar aqui, com algumas alterações,  um comentário meu que já tem 18 anos sobre  "a lista dos Baldés" da CCAÇ 2590 / 12, e que publicitei, em 2006 (**), depois de ponderar os prós e os contras: eram 100 os "Baldés", que foram integrados na CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), em Contuboel... Muito poucos deles estariam ainda vivos nessa altura. E hoje já não estará nenhum.

Na altura, podia parecer fastidiosa, inútil, irrelevante... a minha lista de Baldés...    Mais: até imprudente, podendo pôr em risco a liberdade e a segurança dos nossos antigos camaradas guineenses,  os sobreviventes, os que ainda estariam vivos (como, por exemplo, o José Carlos Ussumane Baldé, o único 1º cabo que existia no meu tempo).

Não pensava o mesmo , em 2006: podia ter (ou vir a ter) algum interesse documental, historiográfico, eu sei lá... Podia facilitar a pesquisa de informação, de testemunhos, de depoimentos...E quanto a ajustes de contas, infelizmente já tinham sido feitos sob o regime de Luís Cabral...

Entendia que era um pequeno, modestíssimo, gesto de elementar justiça para com aqueles guineenses que lutaram ao nosso lado, que fizeram parte da CCAÇ 12 e, portanto, da 'nova força africana'  com que sonhou Spínola e que tanto atemorizou o PAIGC (eles e não apenas a "tropa especial", com destaque para os Comandos Africanos).

Infelizmente, uma grande parte deles (quantos, exactamente?) já não estariam vivos em 2006. Uns tinham sido fuzilados, como o Abibo Jau, logo em 1975, outros andaram fugidos, a maior parte terá morrido de morte natural, que a sua esperança de vida era muito menor que a nossa, em 1969...

Eu estava à vontade para publicar essa lista: sempre critiquei a africanização da guerra da Guiné, embora longe de imaginar que, no dia seguinte à nossa retirada, começasse a caça aos "traidores", aos "contra-revolucionários", aos "mercenários", aos "colaboracionistas", aos "cães dos colonialistas", aos "cachorros dos tugas"...

Eu já não estava lá, em agosto de 1974, quando foi extinta a CCAÇ 12 e as demais subunidades da "nova força africana" (incluindo a CCAÇ 11, herdeira da CART 11). E, confesso que, desde que cheguei, em março de 1971, e até ao final da década de 70, pus uma tranca à porta da "memória da guerra". E só no princípio de 1980, comecei a tentar "exorcizar os fantasmas da guerra colonial" (sic) (uma expressão minha, que paga direitos de autor...).

Em 1969, ainda estava vivo o Amílcar Cabral e eu, na metrópole,  admirava-o, em abstrato,  intelectualmente, pelo pouco tinha lido dele (náo tenho pejo em admito-lo hoje). 

Achava que na Guiné, depois da independência, "abadá a guerra e feita a paz", tudo seria diferente, e não aconteceriam os ajustes de contas que se verificaram noutras revoluções ou guerras civis, na Rússia, na China, na Espanha franquista, na França depois da libertação, na Argélia, em Cuba, etc. Pobre de mim, ingénuo...

Mas, por outro lado, também fui cúmplice da integração destes "putos" no nosso exército: mesmo sendo  da especialidade de armas pesadas, e não fazendo  parte formal, organicamente,  de nenhum dos quatro grupos de combate da CCAÇ 12, acabei como vulgar atirador de infantaria, já que a companhia não tinha instalações a defender e  era de intervenção ("uma companhia de nharros, carne de canhão", rosnávamos nós, entre os dentes, sempre que saíamos para o mato...).

Participei, por isso, em muitas das operações em que estes participaram, fui testemunha da sua coragem e do seu medo, dormi com eles nas mais diversas situações, incluindo nas suas tabancas, transportámos às costas os nossos feridos e os nossos mortos... 

Foram meus camaradas, em suma.

Alguns (ou até bastantes) vieram das milícias, a maior parte já tinha alguma experiência de combate. E quanto à sua origem geográfica, os nossos camaradas guineenses da CCAÇ 12 (originalmente, CCAÇ 2590), eram oriundos do chão fula e em especial dos regulados do Xime, Corubal, Badora e Cossé, com exceção de um mancanhe, escolarizado,  oriundo de Bissau (que se fartou de levar "porradas", por ser "reguila" e "indisciplinado").

“Todos falam português mas poucos sabem ler e escrever", lê-se na história da CCAÇ 12. (O que só era verdade 21 meses depois de os termos conhecido e instruído em Contuboel, em junho e julho de 1969: nunca tiveram tempo sequer de ter aulas regimentais, o português que aprenderam, a falar e a escrever foi connosco.)

Foram incorporados no Exército como "voluntários" (sic), acrescentou o escriba (fui que escrevi a "história da unidade"), para branquear a insustentável (historicamente falando) situação dos jovens fulas, condenados a aliarem-se aos tugas e a pagarem a fatura do "colaboracionismo" no dia a seguir à nossa partida... 

Mas devo acrescentar: mal ou bem, a tropa e a guerra acabaram por ser um "modo de vida" para muitos deles... Teria o Umaru Baldé alguma alternativa ? Seguramente que não. O Salazar, o Tomás, o Caetano queriam-nos,  a todos,  heróis ou... mortos!
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Notas do editor:

(*) Ultimo poste da série : 14 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26153: Casos: A verdade sobre... (48): Os "djubis" da CART 11 e da CCAÇ 12, que foram soldados... (Valdemar Queiroz)

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26145: Fauna e flora (24): O "catchu-caldeirão", uma espécie de tecelão muito abundante na Guiné, faz os ninhos em colónas barulhentas, em geral em árvores de grande porte e em arbustos junbtio aos cursos de água






Fonte: Guia das aves comuns da Guiné Bissau / Miguel Lecoq... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Monte - Desenvolvimento Alentejo Central, ACE ; Guiné-Bissau : Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau, 2017, p. 61. 

Ilustração de © PF - Pedro Fernandes, ) (Com a devida vénia...)

Acrescente-se que este é um notável trabalho, financiada pela União Europeia e pelo Camões, Instituto da Cooperação e da Língua através do projecto Gestão Sustentável dos Recursos Florestais no Parque Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu.




Guiné-Bissau > Região de Biombo > Quinhamel >Porto-cais > 10 de novembro de 2024 > Restaurante do ti Aníbal > "Música, e cantares dos donos do lugar, os 'catchus'. Que também já foram em outro tempos servidos à mesa"...



Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Já identificámos quem é a ave,  a espécie,  que o Patrício Ribeiro chama "catchu" (em crioulo) (*), e que faz estes ninhos, uma obra-prima de arquitetura, e tecelagem, ninhos esses que enfeitavan e continuam felizmente a enfeitar muitas árvores pela Guiné fora, em geral de grande porte. Viam-se às centenas no nosso tempo, ao fimd a tarde, em bandos ruidosos.

Catchu-caldeirão (crioulo)

Nome científico: Ploceus cucullatus

Outras designações: 

  • Cacho-caldeirão (português),
  • Unke (balanta),
  • Djatchiquidau (fula)

Descrição:

(i) comprimento: 17 cm (O da imagem acima é um macho reprodutor):

(ii) muito comum na maior parte dos habitats terrestres, incluindo tabancas e cidades;

(iii) esta espécie de tecelão é uma das aves mais abundantes do país, observando-se em bandos com dezenas ou centenas de indivíduos;

(iv) nidifica em colónias barulhentas que podem ter centenas de ninhos, geralmente em grandes árvores;

(v) as fêmeas (e os machos em plumagem não reprodutora) são castanho-esverdeadas e amareladas na barriga e no peito;

(vi) limenta-se de sementes (incluindo do arroz de pampam e de bolanha) e de insetos.

Fonte: Guia das Aves Comuns da Guiné (s/l, Monte - Desenvolvimento Alentejo Central, ACE e Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau, 2017), pág. 61.

Para saber mais: vd. Ebird > Cacho-caldeirão (collaris) / Ploceus cucullatus collaris (em português)

2, Diz o Valdemar Queiroz, em comentário ao poste P26140 (*)

Em crioulo da Guiné não há palavras começadas com a letra "C" e todas as vogais são ditas como vogais abertas.

Em crioulo katchu quer dizer passarinho e pasaru quer dizer pássaro.

Não sei se katchu quererá também dizer, primitivamente, um cacho de.... passarinhos.

Mas como exemplo não parece: katchu riba di ñ kasa = passarinho no telhado da minha casa.

Valdemar Queiroz


segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26139: Roteiro dos museus e outros lugares de memória e cultura, abertos (ou a abrir) ao "antigo combatente" (3): Com a medida "Acesso 52", já podemos levar a família, incluindo filhos e netos, a visitar gratuitamente os museus, monumentos e palácios nacionais, pelo menos uma vez por semana ao longo de todo o ano








Peniche > 15 de agosto de 2024 > Fortaleza de Peniche, hoje Museu Nacional da Resistêrncia e Liberdade... Um dos museus, monumentos e palácios tutelados pelo Ministério da Cultura,  abrangido pela medida "Acesso 52", e a  cuja entrada gratuito passou a beneficiar o antigo combatente e a sua família.


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2024). Todos os direitos reservados [Edição : Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


I. A partir do passado dia 1 de agosto, os antigos combatentes jã podem levar a família, incluindo filhos e netos, a visitar gratuitamente os museus, monumentos e palácios nacionais, pelo menos uma vez por semana ao longo de todo o ano... 

Infelizmente há mais semanas por ano (=52) do que museus e monumentos nacionais (sob tutela do Ministério da Cultura)  a visitar "à borla" (=37). Mas aproveitemos, até para melhorar as nossas estatísticas de consumos culturais que, no conjunto da União Europeia, não são famosas...

Com a devida vénia, do Portal República Portuguesa > XXIV Governo, destacamos:

Notícias > 2024-08-01 às 11h13 > Novo regime de gratuitidade em museus e monumentos

Os portugueses e residentes em Portugal passam a poder visitar;

(i) 37 museus, monumentos e palácios do Ministério da Cultura no Continente, 

(ii) gratuitamente;

(iii) 52 dias por ano;

(iv) a qualquer dia da semana. 

Até agora a gratuitidade estava limitada aos domingos e feriados.

A decisão da Ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, que entrou em vigor a 1 de agosto de 2024, permite também que cada pessoa visite mais de um museu ou monumento num dos 52 dias de gratuitidade.

O processo é simples: 

(v) à entrada em cada museu ou monumento, cada visitante deve apresentar numa das bilheteiras – uma primeira vez para registo – o seu Cartão de Cidadão e indicar o seu número de contribuinte;

(vi) quando entrar novamente num museu ou monumento, deverá dirigir-se à bilheteira e voltar a apresentar o seu Cartão de Cidadão para lhe ser descontado o dia no cômputo dos 52 dias de acesso gratuito.

Garantir o acesso à cultura é uma medida estruturante do Programa da Cultura do Governo.

II. Ainda segundo a mesma fonte (o portal do Governo), os portugueses e residentes em território nacional podem visitar em qualquer dia da semana, gratuitamente, os museus, monumentos e palácios que se seguem:

  • Convento de Cristo, em Tomar.
  • Fortaleza de Sagres, em Vila do Bispo.
  • Mosteiro de Alcobaça, em Alcobaça.
  • Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha.
  • Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa.
  • Museu de Alberto Sampaio e extensão no Palacete de Santiago, em Guimarães.
  • Museu de Arte Popular, em Lisboa.
  • Museu de Lamego, em Lamego.
  • Museu José Malhoa, nas Caldas da Rainha.
  • Museu Nacional da Música, em Mafra.
  • Museu Nacional da Resistência e da Liberdade, em Peniche.
  • Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa.
  • Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa.
  • Museu Nacional de Arte Contemporânea — Museu do Chiado, em Lisboa.
  • Museu Nacional de Conímbriga, em Condeixa -a -Nova.
  • Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa.
  • Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra.
  • Museu Nacional de Soares dos Reis e Casa-Museu Fernando de Castro, no Porto.
  • Museu Nacional do Azulejo, em Lisboa.
  • Museu Nacional do Teatro e da Dança, em Lisboa.
  • Museu Nacional do Traje, em Lisboa.
  • Museu Nacional dos Coches e Picadeiro Real, em Lisboa.
  • Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo e Igreja das Mercês, em Évora.
  • Museu Nacional Grão Vasco, em Viseu.
  • Museu Rainha D. Leonor e extensão na Igreja de Santo Amaro, em Beja.
  • Paço dos Duques, Castelo de Guimarães e Igreja de São Miguel do Castelo, em Guimarães.
  • Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa.
  • Palácio Nacional de Mafra, em Mafra.
  • Panteão Nacional, em Lisboa.
  • Torre de Belém, em Lisboa.
  • Museu D. Diogo de Sousa, em Braga.
  • Museu dos Biscainhos, em Braga.
  • Museu da Terra de Miranda, em Miranda do Douro.
  • Museu do Abade de Baçal, em Bragança.
  • Museu Dr. Joaquim Manso, na Nazaré.
  • Museu da Cerâmica, em Caldas da Rainha.
  • Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, em Lisboa.

III. Quais destes museus e monumentos nacionais são mais visitados ?

Com a pandemia, perdemos naturalmente visitantes:

De cerca de 5,1 milhões  de visitantes (em 2017) passámos para de 1,3 milhões (em 2020 2 2021), uma quebra brutal de  mais de 70%.

Em 2023, já se atingiu quase os 3,7 milhões. Os cinco equipamentos culturais mais visitados (nenhum deles museu) foram (em números redondos, em milhares; entreparêntesis, a localização):

1º Mosteiro dos Jerónimos (Lisboa) > 965,5
2º Fortaleza de Sagres (Sagres, Vila do Bispo)> 427,8
3º Castelo de Guimarães (Guimarães)> 387,6 
4º Paço dos Duques de Bragança (Guimarães) > 387,2
5º Mosteiro da Batalha (Batalha) > 366,8


Dos museus nacionais (MN) e outros museus (M), os mais cinco mais visitados foram (em números redondos, em milhares):

1º MN Azulejo (Lisboa) > 276,2
2º MN Coches  (Lisboa )> 226,2
3º MN Arte Antiga  (Lisboa) > 107,2
4º MN Conímbriga (Condeixa-A-Velha) > 97,1
5º M Alberto Sampaio (Guimarães) > 85,5


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Nota do editor:


Vd. também postes de:


quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26119: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (35): Nunca digas "coragem!", ao ouvido de quem está a morrer e sabe que vai morrer



Contos com mural ao fundo (35) > Nunca digas "coragem!", ao ouvido de quem está a morrer e sabe que vai morrer


por Luís Graça (*)


Estiveste no seu leito de morte. Um fatal cancro dos pulmões, porventura curável nos nossos dias, roubara-lhe a vida, há uns trinta anos atrás. Teria hoje  os seus 80 e tal,  se fosse vivo. Morreu jovem, demasiado jovem.

Era um dos teus heróis da adolescência. Tinha lentamente recuperado a alegria de viver, depois de uma grave crise que ele próprio qualificara de “existencial”.

A origem dessa crise remontaria, pelo menos, a setembro de 1967,  altura em que ele regressara da Guiné, onde havia conhecido a “guerra, pura e dura”.

Era um dos teus amigos, da época  da tua adolescência (que em vão quiseste prolongar: acabou aos 18 anos quando viste o  teu nome na lista do recenseamento militar, no edital camarário). 

Dele, o Doc, guardarás para sempre uma grande saudade, não obstante as vidas de ambas, cruzadas como tantas outras, se terem separado no final da década de 1960.

Nessa altura foste tu para a tropa e estava ele  a retomar, a custo, em Coimbra, os seus estudos de medicina que a vida militar viera interromper abrupta e dramaticamente. 

A imagem mais dolorosa que guardas dele, é a da cama de ferro, de um  anexo de um hospital, em Lisboa, num quarto, minúsculo, ao fundo de um corredor sombrio. Sem janelas. Sozinho como um cão, anichado em posição fetal, a escassas… 48 horas de exalar o seu último suspiro... Como virás a saber mais tarde, pela… telefonista de serviço. Pode ser cruel, mas era assim nesse tempo.

Reconheceu-te só pela voz. Não se moveu nem um centímetro. Estava lúcido, mas já em grande sofrimento, e sob o efeito de drogas.  Só lhe sussurraste, ao ouvido,  um tímido “Olá, Doc”. E acrescentaste, estúpida e desastradamente: 

− Coragem!

As suas únicas (e últimas) palavras, roucas, cavernosas,  inumanas, soaram-te a despedida, irremediável, brutal, sem retorno. Sentiste-as como um punhal cravado no teu peito. Guardaste-as para o resto da tua vida: 

 Ruizinho (tratava-te sempre por Ruizinho), vai-te embora, vai-te embora!

Nunca saberás se era uma súplica, uma ordem ou um grito, uma explosão abafada  de raiva, revolta e impotência!

Trinta anos depois, não te envergonhas de o dizer, essas palavras, as últimas, as únicas, que ele terá proferido, no seu leito de morte, como um urso agonisante na sua toca de hibernação, ainda hoje te martelam a cabeça. E tens pesadelos ao reviver esse momento único.

Sentiste um enorme  sufoco por ver a morte triunfar, impante, sobre a vida, e ao mesmo tempo vergonha  por teres sido incapaz de lhe tocar!... Como se ele já fosse cadáver!... 

Por pudor ou medo atávico da morte, não conseguiste sequer tocar-lhe. Mostrar empatia. Pegar-lhe na mão. Dizer-lhe a palavra  certa, humana,  de consolo, de conforto, de carinho. Não, só uma tímida,  inócua, cobarde,  desastrada palavra, completamente deslocada naquele momento e lugar:

− Coragem! 

Mais tarde, talvez para tranquilizar a tua consciência e não sentir o peso da tua fraqueza e sentimento de culpa, irias interrogar-te sobre o significado que ainda poderia ter o teu gesto de compaixão, no momento mais pungente e solitário da vida de um ser humano… Que é quando agoniza, lúcido mas a sofrer, longe do mundo, já muito longe daqueles que o amaram e que ele amou!...

Em boa verdade, ele não tinha ninguém à sua cabeceira, a não ser talvez o invisível e impávido anjo da morte... Morreria dois dias depois, “sozinho como um cão” (uma expressão que ele próprio usava, nos seus aerogramas, para falar da sua condição de combatente na guerra da Guiné, em 1965/67).  

Morreria sozinho como um cão, aos 48 anos, longe da família, de que, aliás, só restava a irmã, e os sobrinhos que mal o conheciam. Não tinha filhos. Nem ninguém que o tivesse amado como ele merecia.

Tiveste um ataque de choro, convulsivo, enquanto saiste dali, confuso, quase aos trambolhões, daquele corredor estreito e sombrio do anexo hospitalar, sufocado, em busca do ar fresco do pequeno jardim, rodeado de gigantescos ciprestes, sinistros, apontados para o céu, e que circundavam o pavilhão, conhecido como o “terminal da morte”.

Recuando há muitos anos atrás, vêm-te à cabeça as cenas do seu regresso da Guiné. Tu eras o único amigo de que ele se lembrava. Ou melhor, tu eras talvez o único amigo que ele ainda não queria esquecer (pensavas tu, lisonjeado).

Tinha regressado da guerra em 1967, no final do  verão que iria marcar, ironicamente, o fim, político, do homem, o Salazar,  que o mandara defender a Pátria, a milhares de quilómetros de casa. 

Tinha regressado da Guiné e não avisara ninguém da família. Nem sequer a namorada, a Xana. Muito menos os amigos, poucos, que vinham do tempo do liceu e do grupo de teatro amador, como era o teu caso. E tu, seguramente, eras o mais novo.

De facto, nem sequer se dignara escrever-te, a ti,  que eras o seu correspondente e de certo modo confidente. Trocavam correio  enquanto ele esteve na Guiné. E no grupo de teatro fizeste todos os papéis: secretário, produtor, moço de recados, ponto, aderecista,  datilógrafo, figurante, aprendiz de ator, colador de cartazes… De resto, eram amigos e vizinhos de bairro, se bem que tu fosses mais novo do que ele uns bons seis  anos.

Sabias que ele era um pessoa “difícil”, frequentemente “imprevisível e desconcertante”, "irascível e às vezes duro e até cruel, se não mesmo desumano e ingrato”, como escreverá um dos seus "amigos, admiradores mas  críticos", no jornal da cidade, na notícia necrológica. 

Sim, o Doc era bipolar (como a maioria dos seres humanos).  Era uma pessoa de extremos, daí o facto de nunca  ter tido muitos amigos. Mesmo assim, houve gente decente da  terra, que compareceu ao seu funeral, que seria organizado pela sua irmã, professora universitária. 

Não tinha ninguém à sua espera, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa,  nessa manhã de setembro de 1967. De resto, vinha sozinho, como te explicará ele mais tarde. Tu ainda não percebias nada de tropa, mas ficaste a saber, pelos aerogramas que trocavam, que ele era de “rendição individual”: 

− Vim sozinho e regressarei sozinho, no caso  de não lerpar... 

− Lerpar? !... 

− Morrer, Ruizinho, morrer !− explicar-te-á ele, no aerograma seguinte... − Quem vai à guerra, está sujeito a lerpar!... É um jogo de sorte e azar.

E, como tal, não havia regressado no navio com os seus camaradas da última companhia onde estivera, no sul da Guiné, os quais, sendo mais novos, ainda ficaram a cumprir calendário. Ou, como ele te dizia, com sarcasmo, “a cumprir o resto da pena de desterro”.  

Tanto quanto te apercebeste, o Doc tinha receio que a família e a malta do teatro lhe quisessem fazer uma surpresa, indo esperá-lo no cais de desembarque. Seria a última coisa que ele iria aceitar, “a última cena, grotesca, da tragicomédia da tropa e da guerra”. 

Curioso, sendo um “homem do teatro”, tinha um enorme pudor em manifestar em público as suas emoções e sentimentos. Aliás, ele não era propriamente ator mas encenador (e também dramaturgo: escreveu, pelo menos, uma peça para o grupo).  Em boa verdade, tu nunca o viras representar, no palco do teatro (nem no palco da vida). 

Ficaria trancado em casa nos primeiros dias, sem querer ver ninguém. Tu e a Xana terão sido as primeiras pessoas da terra, fora do círculo familiar, que ele condescendeu em receber depois do regresso.  

Para a namorada, seria aliás o fim de um relacionamento que já antes tinha tudo para não dar certo.  Julgas até que ela foi a primeira vítima da sua rutura com o passado.  

Segundo te contou depois a irmã do Doc (a dra. Mena, que tu tratavas com deferência por ser bastante mais velha do que tu e já formada), terão tido uma discussão violenta, acabando tudo entre eles nessa tarde. Para grande desgosto da mãe, que via na Xana a menina prendada, a Cinderela, a alma gémea do seu filho. 

Os inimigos do Doc respiraram fundo, com a notícia do rompimento do impossível namoro entre "a Bela e o Monstro" (sic). (A Xana era um rapariga cobiçada pela sua beleza, talvez a rapariga mais bonita da cidade; acabaste por perder-lhe o rasto, na voragem do tempo.) 

O Doc desabafou contigo, explicando-te que estava a fazer um “cura de sono”… Na altura, em 1967, não havia psiquiatras e psicólogos como há hoje, e tu, na ingenuidade dos teus verdes anos, nem sequer puseste a hipótese de ele estar a passar  por uma “crise de depressão”.  

Na época, não se falava de "saúde mental", falava-se de loucura e de manicómios. E muito menos ainda de “stress pós-traumático de guerra”, nem tu imaginavas sequer o que fosse essa estranha entidade clínica…

− Só as mulheres é que têm depressão pós-parto – dizia o pai dele,  que nestas coisas tinha sempre um certo ar de sobranceria e fazia questão de emitir a opinião arrogante e definitiva do "catedrático da universidade da vida".

As relações pai-filho também não eram as melhores. Aliás, nunca tinham sido boas. Contrariamente à mãe, o pai só lhe terá dito, à chegada, bruto, curto, feio e seco:

 Olá, filho, sê bem vindo… Finalmente, em casa! 

Eram os dois parecidos, pai e filho, em  muita coisa, mas chocavam-se quando, por exemplo, discutiam a “guerra do ultramar” (como dizia o pai) ou a “guerra colonial” (como preferia chamar-lhe o filho). Uma questão terminológica ("mais do que semântica, conceptual!") que lhe punha os cabelos em pé, ao ponto de um dia  o Doc ter arremessado ao  chão  a toalha com a louça posta na mesa  para o jantar.

Mesmo se tivesse “cunhas” (o que não era o caso), o pai nunca  se humilharia perante ninguém para interceder pelo filho, livrando-o do ultramar ou, pelo menos, da Guiné… E depois a tropa e a guerra iriam "fazer dele um homem", como fora o seu caso, que  combatera os alemães, os "boches", em Moçambique na I Grande Guerra.

− Ruizinho, não me leves a mal, mas  não ouças o tonto do meu Velho…

Quando ele desembarcou, a única coisa que ele queria, era chegar a casa, não ver ninguém, não estar com ninguém, fechar as cortinas, enfiar-se na cama… E acrescentou algo que te chocou e perturbou profundamente: 

− Sabes que mais?… Tenho asco a tudo o que é humano! 

Não alcançaste  o que ele queria dizer com aquela estranha expressão. Mas ele insistia que precisava de dormir um “sono reparador”:

− … Dormir um dia inteiro, como um porco, uma semana, um mês… Porventura, um ano ou até o resto da vida… 

Queria poder hibernar o resto da vida. "Como um urso" (sic). Esquecer. Esquecer a tropa, a guerra, a Guiné…

Ainda ensaiaste uma tímida tentativa de diálogo mas ele correu contigo, pondo-te fora do quarto, aos berros… Aí ficaste chocado, assustado, com a sua brutalidade,  mas sobretudo ao ver e rever o seu ar acabrunhado, as olheiras fundas, os olhos vidrados, a cor da pele amarelada,  a barba, de vários dias, por fazer, o ar cadavérico…

Afinal, era um “ataque de paludismo”, tranquilizou-te a pobre mãe que, à força de muitas súplicas e lágrimas, lá o convencera a ser visto pelo médico, amigo da família, e que, sendo de saúde pública, sempre devia perceber alguma coisa de "doenças tropicais"…

Nas costas da mãe e do médico, nesse fim de semana, despejou uma garrafa de uísque.

Na altura, confessarás mais tarde, até pensaste que ele poderia estar com ideias parassuicidárias, como se diz hoje. Ficaste assustado com o estado de saúde, física e mental, do teu amigo. 

E ainda estava fresca, na memória de toda a gente da terra, a morte por enforcamento do pai de um antigo colega teu de escola. Estavas tu de piquete na redação do jornal, fazias os "faits divers", as pequenas ocorrências, os nascimentos, batizados, casamentos e óbitos,  e ainda viste, enquanto se aguardava a chegada da autoridade de saúde, o corpo a baloiçar numa barrote da caldeira onde  trabalhava, nos arredores da cidade. Era o adegueiro.

Reconstituindo o que se passara nessa manhã de neblina, em que desembarcara, no Tejo, de um velho navio, misto, de mercadorias e passageiros, da carreira colonial, agora requisitado para transporte de tropas, o Doc contou-te que durante a viagem e à chegada tinha tido “pensamentos confusos e impulsos contraditórios”. 

Percebeste, por entre as lacónicas frases que ele te ia rosnando, entre dentes, que a viagem de regresso no "barco negreiro" tinha sido um pesadelo.

Logo à saída da gare marítima, chamara um táxi e estendera ao condutor um bocado de papel  com a morada de casa. Pediu para o acordar quando chegasse ao destino. Nem sequer fez questão de perguntar em quanto ficaria o serviço de táxi, sendo para fora de Lisboa. Tinha os bolsos cheios de notas, o “patacão sujo da guerra” (sic). Em Bissau trocara um maço de “pesos” por escudos metropolitanos.

Ao fim de quase quatro horas de viagem (ainda não havia autoestradas nesse tempo), estava na cama, na casa dos seus pais, na região Centro. Na sua cama de solteiro, no seu quarto, com as estantes dos seus livros e discos de vinil, os cartazes de teatro e cinema... Estava tudo como ele tinha deixado há dois anos atrás. Arrumado,  impecável, sem um grão de pó, graças ao desvelo da sua mãezinha que o adorava.

Justamente ia fazer dois anos que não se viam, ele e os pais e a irmã. Ele não viera de férias, por “razões disciplinares”: tinha apanhado uma “porrada” (sic) e, em consequência do castigo, tinha sido transferido para outra companhia, "como mandava o RDM, o regulamento de disciplina militar" (segundo depois te explicou).

Sentiste que esse episódio o marcara muito, mas nunca te deu grandes pormenores. E tu respeitaste a sua revolta e sobretudo o seu silêncio. Era evidente que o assunto o incomodava, não gostando sequer de falar dele.  

Em aerograma que mandara aos pais, terá arranjado uma desculpa esfarrapada para justificar a impossibilidade de comparecer na festa, comemorativa  dos  30 anos de casados, marcada para o verão de 1966. (E se a mãe tanto insistira com ele para reservar as férias para o mês de julho de 1966!). 

A releitura dos seus aerogramas não te permitiu esclarecer cabalmente esta história que lhe sujou a “caderneta militar” (documento, aliás,  a que tu nunca puseste a vista em cima,  se é que ele não o destruiu em vida).

Há dois episódios que poderiam estar na origem  da tal “porrada” ou castigo… Recapitulaste cada um deles, sem  poderes entrar em grandes pormenores por falta de informação. 

primeiro  terá tido a  ver com uma exaltada discussão  com a Polícia Militar, em Bissau, quando ele tirou uns dias para ir ao estomatologista. Traduziu-se numa participação contra ele, tudo por causa de um cena de pugilato com outro militar (de que desconhecias a patente, mas o mais provável era ter sido um 1º cabo).

O teu amigo Doc, que estava numa esplanada, perto da conhecida fortaleza da Amura, quis fazer justiça  pelas suas próprias mãos, contra  um grupo de “velhinhos”, ruidosamente festejando o fim de comissão e a véspera de embarque. Deram-lhes para se meter com os “djubis”, os miúdos que vendiam “mancarra"  (amendoim), nas ruas da Bissau velha, frequentada pela tropa… Aliás, miúdos e miúdas. 

Fizeram-lhes uma série de tropelias, o que começava a incomodar quem estava na esplanada, seguramente todos militares, uns fardados, outros à civil. O Doc interpretou isso como um ato de violência gratuita, se não mesmo racista, para mais sendo as vítimas crianças, indefesas, que tentavam ganhar a vida… Porém, de nada lhe valeu, a ele,  puxar dos galões. O grupo estava sob a euforia dos vapores do álcool e ninguém mediu as consequências dos seus atos. Às tantas generalizou-se a pancadaria, e voaram cadeiras da esplanada, até que chegou a Polícia Militar e restabeleceu a ordem. 

Abreviando a história, houve várias detenções. O Doc foi levado para o quartel da polícia militar. Ficou lá cerca de uma manhã. Mas houve testemunhas que abonaram a seu favor. Pelo menos, um dos  alferes ou furriéis que estavam sentados na esplanada, e que, por cobardia, comodismo ou cautela,  não se quiseram meter ao barulho. 

− Afinal, um militar fardado, para mais oficial,  está ou não está 24 horas por dia de serviço?! − interrogava-se o Doc, em voz alta, a limpar o sangue do sobrolho e ainda a espumar de raiva contra o grupo de arruaceiros.

O segundo episódio prende-se-á com uma situação algo semelhante, em que vem ao de cima o lado “justiceiro” e "solidário" do Doc, mas desta vez envolvendo um oficial superior,  um major,  que terá tratado mal (com insultos e ameaças de porrada) alguns militares de um pelotão de caçadores nativos, adido à  companhia de comando e serviços do batalhão a que pertencia o Doc. 

Eis o essencial da versão do Doc, num dos  aerogramas que ele te  escreveu: 

− Os soldados, todos guineenses, estavam a abrir valas, à volta do perímetro do aquartelamento… À porta do bar... Valas que seriam depois encimadas por bidões cheios de areia, como proteção em caso de ataque...

Calaceiros, mandriões  e outros epítetos ainda mais injuriosos acompanharam as ameaças do  major, 2º  comandante  de batalhão, impaciente com a fraca produtividade dos "nharros", dos "barrotes queimados" e outros "mimos" de semelhante teor,  que o Doc interpretei como sendo grosseiros,  descabidos, inapropriados e despudoradamente racistas...

À hora do bridge, e depois dos uísques do costume, a seguir ao jantar na messe de oficiais, o Doc, que assistira à cena da tarde, à porta do bar, “impotente mas indignado”, caiu na asneira de comentar, em tom subtil mas jocoso, em voz alta, a versão do major sobre o "incidente", ao mesmo tempo que incriminava o alferes, comandante do pelotão em causa, por deixar os seus homens ao deus-dará... 

− Este, cobardolas, branco como a cal da parede,  estava enfiado na cadeira com o rabo entre as pernas...

O Doc terá citado um provérbio popular, muito usado na sua região: "Quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão"... 

Caiu o  Carmo e a Trindade, na messe de oficiais… O major ficou lívido de raiva, "à beira de um ataque de nervos", era de resto um homem "histérico e irascível". O comandante veio de imediato em defesa dele e da honra do convento, dando ordens ao alferes, ao Doc,  para "se recolher de imediato ao seus aposentos".

O médico do batalhão, que era conhecido do Doc, do tempo de Coimbra e da crise estudantil de 1962, terá ainda, "timidamente", interferido a seu favor, junto do tenente-coronel.  Em vão, ao que parece. 

Não sabes bem o desfecho da história. Mas verdade é que, passado pouco tempo, em maio de 1966, o Doc é transferido de unidade…

O castigo disciplinar, "desproporcionado",  teve consequências graves na sua vida militar na Guiné: perdeu, de imediato, o direito ao gozo da licença de férias, e passou, de uma região  relativamente calma, o Leste, para outra, o Sul,  onde a atividade operacional era mais intensa…  

− Tal como cheguei, sozinho como um cão, assim parti...

Nenhum dos seus camaradas, alferes milicianos, se dignou ir ao bar de sargentos beber um copo de despedida com ele.

− Nem sequer o sacana do médico. Tive apenas, à mesa, dois ou três furriéis que me estimavam... 

E, pior ainda, ele que tinha uma especialidade relativamente burocrática (era oficial de operações e informações), passou a andar no mato, de camuflado e de G3 em punho, como comandante de um grupo de combate numa companhia de caçadores…

Nunca soubeste ao certo por onde ele andou o resto da comissão… Porque nos aerogramas só vinha o SPM, o código do Serviço Postal Militar. E tinha sempre o cuidado de nunca se identificar. Assinava, na correspondência para ti,  como  “o teu amigo Doc”…

Num dos últimos aerogramas que te escreveu, já perto do final da comissão, confidenciara-te:

(...) “Tenho a mania que vou endireitar o mundo. A liberdade de expressão na tropa paga-se caro, com língua de palmo. Nestes quase quinze  meses cá em baixo, na região a que chamam de Tomba...li, já conheci os múltiplos tormentos do inferno desta guerra: a sede, a fome, a insolação, os ataques de abelhas, as formigas carnívoras, a exaustão física e emocional, os tufões e outras intempéries tropicais, a merda que te cobre o corpo, a solidão, a alienação, a desumanidade… Para não te falar do medo das minas e armadilhas, e das emboscadas, mais do que dos ataques e flagelações aos nossos quartéis, onde, apesar de tudo, tens um buraco para enfiar os cornos" (...).

A mãe não conteve o espanto e as lágrimas de alegria quando ele, o Doc,  espavorido, lhe entrou,  de rompante, pela casa dentro, à hora do chá, um hábito colonial que o casal mantinha desde Moçambique… Com duas malas na mão, uma com a roupa e os demais objetos pessoais, e outra com o resto dos seus livros, algumas garrafas de uísque, mais algumas peças de arte africana.

Tu só soubeste da sua chegada da Guiné, passados uns dias. A mãe, quando ia ao velho mercado local, a praça do peixe, frutas e legumes, viu-te de relance, na redação do jornal, parou, espreitou, entrou e disse-te:

− Ruizinho (também te tratava carinhosamente por Ruizinho, como o filho), o teu amigo Doc chegou!... Está vivo e inteiro, graças a Deus. Mas não está nada bom da cabeça, o meu pobre filho!... 

E explicou-te que estava há dias ferrado a dormir, fechado no quarto, dizendo não querer ver ninguém… 

− Passa por lá, no fim de semana, almoças connosco, vou fazer um carilada de camarão com leite de coco, que eu sei que ele gosta e tu também. Pode ser que ele, por ti, se queira levantar e falar um pouco… Só lhe fazia bem...

A dona Domitília Meneses era uma santa senhora. Era professora primária, já reformada.  Tinha sido tua professora da 4.ª classe e do exame de admissão ao liceu. Era moçambicana, de origem goesa, descendente de gente da pequena nobreza local, um dos seus antepassados teria sido vice-rei da Índia em meados do séc. XVIII, "ao tempo do senhor Dom João V".

Já o mesmo não se poderia dizer do marido, também ele professor do ensino primário, velho republicano, maçónico... Tinha mais quinze anos do que ela, e fora aposentado compulsivamente da função pública na sequência, dizia-se,  do apoio à candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República em 1949.

Tu conhecia-o mal, era um homem amargurado, pouco sociável, para não dizer misantropo…
 
Na realidade, ele tinha sido  marginalizado,  legal e politicamente  pelo poder  central e socialmente  pela elite local. Passando a ser considerado, ostensivamente, um “oposicionista", um indivíduo "contra a situação", deixara de ser convidado para integrar os corpos sociais das diversas associações locais de que era sócio ou membro  (a filarmónica, os bombeiros, o clube recreativo, desportivo e cultural, o núcleo local da liga dos combatentes, etc.). 

Em boa verdade, fora a sua "morte social". Amargurado,  demitiu-se das suas funções de encenador das récitas e cegadas que na época carnavalesca animavam, alegremente,  o palco do teatro local bem como as ruas da cidade.

Raramente saía à rua, nem mesmo nalgumas efemérides patrióticas, como o 1º de dezembro de 1640 ou o 5 de outubro de 1910. Quando muito dava um salto a  Coimbra, para ir consultar bibliotecas e arquivos públicos. Dedicava-se aos seus livros, era um apaixonado africanista, correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, interessando-se, muito em particular, pela história da colonização de Moçambique, no tempo da monarquia constitucional e da I República.

O único ponto em que estava de acordo com a política do Estado Novo era na questão da “defesa intransigente do Ultramar”. Tinha estado na sua juventude em Moçambique, primeiro como expedicionário e depois, mais tarde,  como professor. E alí viria a conhecer a mulher em meados dos anos 30. O filho nasceria, na Beira, em 1942. E tivera como ama de leite uma jovem mãe negra. 

Parecidos em muitos aspetos de personalidade, pai e filho, separados por quase cinquenta  anos de diferença, engalfinhavam-se com frequência em discussões, por vezes violentas, sobre o que se estava a passar nos territórios ultramarinos portugueses (mas também na África Austral do "apartheid").

Tinha ideias fixas, o “Velho”, sobre o futuro desses territórios (“possessões ou colónias, como queiras chamar-lhe”, dizia ele ao filho), defendendo todavia o princípio da autodeterminação progressiva, a par da criação de uma "Commonwealth" à portuguesa. Era um admirador incondicional da colonização britânica e da formação de elites locais.

Apoiava o esforço militar do País, contra o “terrorismo internacional” (sic), mas era crítico em relação à vontade e à capacidade de Salazar de enveredar por uma “solução política” para o problema, nomeadamente em relação a Angola e Moçambique, que eram,  para ele,  as verdadeiras “joias da Coroa”, depois de perdida, “miseravelmente” (sic), a Índia Portuguesa.

O teu amigo Doc era, para ti, o irmão mais velho que tu nunca tiveras. Partilhavam  ambos alguns interesses intelectuais, a começar pelo teatro, a poesia, a literatura, a arte e, claro, a política.
 
Nessa época, poucos jovens da tua idade tinham ainda “consciência política” (como então se dizia), porque só uma minoria tinha acesso a um educação de nível superior e a fontes de informação, independentes e credíveis. Vivia-se num regime de partido único, não havia opinião pública, os jornais estavam sujeitos à censura, havia a polícia política, a PIDE, e a única televisão de que o povo podia ver, a RTP, era a voz do dono, tal como a Emissora Nacional… Era o tempo dos 3 FFF: Fátima, Futebol e Fado, três coisas que "tiravam do sério" o teu amigo Doc,,,  

O que é que tu sabias do que se passava em África, no "nosso glorioso Império Colonial", para usar uma expressão irónica do Doc ? Racismo, colonialismo, trabalho forçado,  revoltas nacionalistas…? Não, nunca ouviras falar disso, muito menos da boca da tua querida professora, a  Dona Domitília,  para quem Moçambique era "o paraíso na terra"... 

Só te lembravas, na igreja, terias tu os teus 10 anos, por volta de 1958, de pedirem uma esmola ao teu santo avô para ajudar as missões católicas, o mesmo era dizer, os “pretinhos da Guiné”...

Tu vivias numa pequena cidade da região centro, onde só os mais afortunados iam estudar para Coimbra… A maioria dos jovens da tua geração sabia lá o que se passava em África… Mal sabiam do se passava à sua volta, nos arrozais  e nas fábricas, na frota pesqueira,  nas escolas, nos quartéis, nos hospitais… 

Aliás, o que é que a malta sabia e podia saber? Só o que "eles" queriam que a malta soubesse... 

− Saber ler, escrever e contar acrescentava o teu amigo Doc , o que não quer dizer... saberes pensar pela tua própria cabeça...

Além disso, as  aldeias, vilas e pequenas cidades do interior começavam a ficar envelhecidas, com a saída dos mais jovens, para o ultramar e a emigração (interna e externa). Muitos dos teus colegas de escola nunca mais os viste. Alguns como tu fixaram-se em Lisboa, onde eram maiores e melhores as oportunidades de emprego. Outros foram para França,  "a salto".

Enquanto ele, o Doc, esteve na Guiné, correspondia-se contigo, regularmente, uma ou duas vezes por mês.  Tu  guardaste religiosamente os aerogramas que ele te mandava. Tinhas intenção de os organizar por data e devolvê-los ao remetente, logo que ele chegasse, “são e salvo”, como tu esperavas  que ele chegasse.

Quando o foste visitar, não te deixou sequer falar dos aerogramas, que naturalmente lhe traziam recordações dolorosas da Guiné, e que ele queria extirpar para sempre da memória. A sua resposta, brusca e mal humorada, foi:

− Queima-os, Ruizinho, queima-os!

− É um pedido?

− Não, é uma ordem!

Não lhe fizeste a vontade. Devias tê-lo feito? Continuaram guardados ao teu cuidado. Sempre pensaste que ele poderia, com os anos, mudar de opinião. Era material para uma ou mais peças de teatro... Mas, não, nunca mais quis falar da Guiné e desses "anos de chumbo" em que esteve na tropa e na guerra... E acabaste, afinal,  por entregar os aerogramas à irmã, no dia do seu funeral.  Hoje tens pena de não os ter fotocopiado, limitaste-te a copiar alguns excertos. 

Curiosamente ele nunca te escrevia cartas, mas apenas aerogramas, que eram de borla. 

− Com o dinheiro que poupo nos selos, compro livros, revistas, peças de artesanato e... uísque" − dizia-te ele, a gozar. 

Tu tinhas receio que a correspondência, trocada entre os dois, pudesse um dia ser intercetada pela PIDE. Ele tranquilizou-te a esse respeito. Tinha confiança no SPM (acrónimo de Serviço Postal Militar) que lidava todos os dias com várias toneladas de papel (cartas, aerogramas, encomendas, jornais, revistas. etc.), a circular pelos diversos territórios ultramarinos. 

Por outro lado, e até pelo conhecimento pessoal que ele tinha da PIDE na Guiné, com quem tinha de lidar, a contragosto, na sua qualidade de oficial de informações e operações, ele conhecia relativamente bem os pontos fortes e fracos daquela polícia, a começar pela sua estrutura, a sua organização e a qualidade do seu pessoal… 

Os recursos humanos, dizia-te ele,  deixavam muito a desejar: 

− Fracas habilitações literárias, baixo nível cultural, insuficiente conhecimento de línguas estrangeiras (a começar pelo francês e o inglês), iliteracia política, tacanhez de espírito, sistema de informação artesanal… Até o português escrevem mal e porcamente!... 

Por outro lado, havia alguma rivalidade e até desconfiança em relação à tropa… (e vice-versa). 

− Os gajos eram uns cepos, eram capazes de desconfiar de uma inofensiva bíblia protestante mas passavam por cima de um livro do Franz Fanon, que era dinamite – afiançava o teu amigo. 

− Cepos?!... − duvidaste tu.

− Só não eram maus a torturar, a arrancar informações dos pobres diabos que a gente, o exército, lhes entregava, para eles fazerem o trabalho, sujo,  que lhes competia... 

E sentiu-se na necessidade de te explicar:

− Felizmente, que o meu pelotão de informações e operações não foi treinado para torturar e  eu, por mim, nunca toleraria essas práticas" −  garantiu-te o Doc (a quem um dia perguntaste que raio de especialidade era aquela que lhe haviam atribuído).

Cepos ou não, tu é que não ias na conversa do Doc: com os teus verdes anos, e com os medos  que alguns amigos mais velhos, no liceu, te haviam metido na cabeça, achavas que a PIDE era como Deus, omnipotente, omnisciente e omnipresente. Pelo sim, pelo não, não fosse o diabo tecê-las, era melhor pôr a salvo a correspondência do Doc, para mais sabendo que ele tivera “chatices” na Universidade e, depois, na Guiné.

Sabias que o teu avô, materno,  era da “situação”… Era um bom homem, um "santarrão",  ia à missa, raramente discutia política, e muito menos contigo… Não gostava do Salazar, é verdade, mas tolerava-o. Encolhia os ombros e, às vezes, desabafava com os filhos e netos, quando se jantava lá em casa:

− Meus filhos, hoje o Salazar, amanhã, quem sabe, talvez pior, o diabo em figura de gente…

O teu avô, coitado,  era dos que acreditavam que o Salazar é que tinha livrado os portugueses da II Grande Guerra, com a ajuda da Nossa Senhora de Fátima… Um seu irmão mais novo, que tu não chegaste a conhecer,  tinha sido  expedicionário nos Açores, e tinha regressado a casa, “são e salvo"...,  para morrer, afinal,  uns meses depois, de "doença do peito", de tísica, de tuberculose... Falava-te que nesse tempo tinha tido muito medo, por causa do irmão,  dos submarinos alemães que infestavam o Atlântico Norte… e que chegavam a Cabo Verde. Ele, de resto, ouvia a BBC.

Tinha, por outro lado, a sua tertúlia, os seus amigos, os seus petiscos. Mais importante: o teu avô tinha uma adega, a que chamavam a “adega do povo”, aberta a todos os amigos e vizinhos, embora já fora da cidade… Na adega também tinha o seu escritório e o seu arquivo (pastas e pastas da contabilidade).

O teu avô estava acima de todas as suspeitas. Era um homem respeitado e respeitável, guarda-livros de profissão, conhecia os “podres” das várias famílias importantes da terra… Razão por que todos o estimavam (e temiam), pondo as mãos no lume por ele. Em contrapartida, podiam contar com o seu “silêncio de ouro”.

Tu gostavas muito dele, tinha bonomia e bom humor, nunca se chateava contigo. Dizia-te na brincadeira que era ele, o guarda-livros, quem tinha uma das três chaves do céu…

− Então?... E as outras duas, avô?

− Tem-nas o padre e o médico!...

A pior desgraça que podia acontecer a um guarda-livros era ser despedido (e, nalguns casos, preso) por abuso de confiança:

− Tens a chave do céu mas não podes abrir a porta… E houve casos, meu filho (tratava-me por filho) de gente, nesta profissão, que não soube qual era o seu lugar, na ordem natural das coisas… Olha, um matou-se, o outro foi parar à prisão…


O Doc nunca te deixou publicar nenhuma notícia, a seu respeito, no jornal, um quinzenário, onde tu trabalhavas, como estagiário e, em boa verdade, como “pau para toda a obra”, desde paquete a repórter, embora ainda sem cartão e jornalista (que era emitido pelo sindicato corporativo). Tinham uma secção, “Correio dos Heróis do Ultramar”, onde se publicavam notícias dos filhos da terra a cumprir “missões de soberania além-mar".

O jornal, regionalista, tinha uma orientação editorial que não se coadunava, de todo, com as ideias (políticas, estéticas, éticas e culturais) do teu amigo que, de resto, era conhecido na cidade como filho de um oposicionista, e já teria, ele próprio, ficha na PIDE.

O Doc estava a estudar em Coimbra, na faculdade de medicina, quando foi inesperadamente chamado para a tropa. Na secretaria, explicaram-lhe secamente que, tendo chumbado a uma cadeira, deixava automaticamente de beneficiar do direito ao adiamento da incorporação militar… 

Nunca se chegou a apurar a verdade relativamente à suspeita de ter sido a PIDE a despoletar a questão,  na reitoria ou na direção da faculdade. Enfim, estivera também envolvido na crise académica de 1962, embora fosse um "segunda linha"...

O jornal onde tu trabalhavas (e que foi, de resto, o teu primeiro emprego), "o teu jornal",  estava ligado a uma família local, política, social e economicamente influente. O proprietário era o presidente do Grémio do Comércio.

A filha mais velha, por sinal tua catequista, casara com um “jovem e promissor advogado” que viera de Coimbra, no princípio dos anos 50, e que aqui se fixara.

A tua terra tinha fama de acolher bem “os de fora”. De imediato, esse advogado foi admitido no “seleto clube local” e aí não levou tempo a perceber quem poderia ser a sua futura clientela e, mais do que isso, quem eram as meninas casadoiras… Era ali que estavam as "forças vivas" da terra, aquelas que tinham nome, património, estatuto, influência, charme, poder e... algum dinheiro.

Ora um dos seus primeiros clientes foi justamente a empresa do futuro sogro, grande (para a época e para a terra) armazenista de vinhos que exportava para África, e sobretudo proprietário urbano, “dono de uma rua inteira da cidade” (como se dizia, não sem exagero). O teu futuro patrão, o advogado, teve, como uma das prendas de casamento 
a direção do jornal (a menos valiosa, materialmente falando, mas nem por isso dispicienda para o seu projeto de promoção pessoal, profissional e até polílica). 

Na realidade, era um "jornaleco", um "pasquim" (como lhe chamava o Doc), que todavia se irá tornar, mais tarde, no consulado marcelista,  num influente semanário regionalista com algum prestígio, audiência e até qualidade. 

Dentro de todos os condicionalismos da época (censura, autocensura, ausência de formação profissional e de  regras de deontologia, não dissociação da propriedade e da direção, etc.) foi para ti a a tua escola de jornalismo e de escrita, muito embora o Doc andasse sempre a gozar contigo por causa do teu “jornaleco”… Pensas que ele não gostava sobretudo da pessoa do diretor…


Tu e o teu diretor tinham uma diferença de quase trinta anos.  A ele ficaste a dever alguns favores e até confidências. Por ele soubeste que tinha vivido numa república de estudantes, em Coimbra, acabando por se envolver na política, no MUD Juvenil, o movimento juvenil democrático, constituído em 1945, no rescaldo da guerra…

− Paixões da juventude, coisas de garotos, que às vezes têm um preço alto,  mais tarde – comentou ele, de um modo algo enigmático.

Como diretor do jornal, gostava de acarinhar os “jovens literatos” da terra, onde tu te incluías, gente que tinha saído do liceu, uns, poucos, que haviam entrado na universidade, outros, como tu, que esperavam a “sorte grande” da tropa…

Ele próprio te confessara que, na "Lusa Atenas",  publicara um livro de poemas, de “qualidade sofrível” (sic), na linha estética da revista "Vértice" (ou seja, do neorrealismo, acrescentaste tu, com alguma irreverência e ousadia).

Admirava agora os jovens, da geração 60, que estavam a aparecer, e que tinham até mais talento e cultura literária do que a sua geração… Para esses havia um cantinho no jornal, uma página juvenil… onde poderiam escrever, “sempre era uma melhor alternativa do que andar por aí a dar cabo da vida e da saúde, e a comprometer o seu futuro, em antros imorais e quiçá subversivos" (sic)...


Percebeste o seu "recado" (que, no teu caso, visava as "más companhias" como o teu amigo Doc e o grupinho do teatro amador da cidade)... Mas só mais tarde é que eu vieste a contextualizar  as suas esporádicas conversas na redação do jornal, depois de descobrires que 
 o “teu patrão” se tinha tornado,  rapidamente, um entusiástico defensor do marcelismo...

Mas, voltando ao teu amigo Doc, que nessa altura já estava, de regresso, a Coimbra e em risco de ser suspenso da Universidade, pela segunda vez... A malta do liceu e do teatro sempre o tratara por Doc, a partir do momento em que ele entrou na faculdade de medicina, ou até antes, quando ele começou a manifestar a sua intenção de abraçar a carreira médica… Era uma alcunha carinhosa. E ele não se importava.

Tu, pelo teu lado, ainda estavas longe de saber o querias fazer da tua vida...  Começavas a preocupar-te , isso sim, com a guerra que alastrava em Angola em 1961 e com a mobilização dos teus vizinhos e conhecidos, mais velhos...

Em 1962 houve a crise académica... E em 1964 o Doc foi chamado para a tropa e, em menos de um ano depois, estava na Guiné.

Parte da tua formação intelectual e até literária deves-lha a ele, ao teu amigo Doc. Emprestava-te livros, trazia-me jornais e revistas quando vinha de Coimbra nas férias, incluindo alguns, estrangeiros, franceses, que não chegavam à província, como “Le Monde” ou “Le Nouvel Observateur”…

Depois da sua prolongada “cura de sono” (que passou também por uma clínica de desintoxicação alcoólica, deves acrescentar sem trair a sua memória…), acabou por voltar a Coimbra e à sua “doce boémia”… Com as economias que trouxera da Guiné, conseguiu assegurar a sua independência económica. Fez algumas cadeiras atrasadas no ano letivo de 1968/69. Mas o curso marcava passo.  

Mas foi também a época em que tu deixaste de ver o Doc, com regularidade. Soubeste depois que se tinha incompatibilizado de vez com o pai, por causa das eleições legislativas de 1969, rompendo então, definitivamente, com a sua cidade natal. Há muito que  deixara, de resto, o teatro da cidade, que passara a ter um novo diretor, aquando da sua partida para a Guiné. Enfim, fixou-se de vez em Coimbra.

E tu nessa altura acabavas de chegar à  Guiné, onde votaste em branco nas eleições para a Assembleia Nacional. Ias tendo algumas notícias dele pela sua mãe, sempre extremosa, mas também pela irmã que estava em Lisboa, onde tirara o curso de germânicas, e que não escondia os seus cuidados pela saúde do irmão, mais novo, o seu "caçula". 

Depois tu e o Doc perderam o contacto... Deixaram mesmo de ser "íntimos", se bem que a  amizade entre ambos estivesse para durar até ao fim da vida... Soubeste, por outras vias, que ele se envolvera também na crise de 1969, fora desta vez suspenso por dois anos, e tivera que ir trabalhar na Propaganda Médica (o que terá sido deveras penoso para ele).

Não tens  aerogramas dele do teu tempo de Guiné. Nunca se  corresponderam nesse tempo. E um ou dois que lhe escreveste, não tiveste coragem de os pôr no correio...

Depois do teu regresso à Guiné, e da tua própria "cura de sono", tiveste em Lisboa notícias dele e da família:  a dona Domitília Meneses não sobrevivera a um cancro da mama, uns bons anos antes da morte do filho.

Por seu turno, o marido já tinha morrido antes dela, não sem ter tido, porém, duas alegrias: a de ver o seu filho finalmente formado em medicina, aos 30 e picos anos, e logo a seguir a de ter podido dar vivas à liberdade, no 25 de Abril de 1974. (À boa maneira republicana, lançando o chapéu ao ar, enquanto alguns dos seus tradicionais inimigos políticos se trancavam em casa para ver em que é que paravam as modas.)

A entrada do Spínola para a Junta de Salvação Nacional ainda dera ao pai do Doc algum alento quanto à possibilidade de se organizarem "eleições livres", com vista à autodeterminação de Angola, Guiné e Moçambique... 

Mas os acontecimentos precipitaram-se e a descolonização que se seguiu foi um dor de alma para o "velho republicano e maçónico, admirador do Norton de Matos"; morreu em finais da década de 1970, sem nunca ter podido  realizar o sonho de voltar às terras do Índico, que ele amava de alma e coração.

Por onde andou o Doc, agora médico de pleno direito, depois do 25 de Abril e até morrer, quinze anos depois, no princípio de 1990 ?

Apaixonou-se por Trás-os-Montes, onde fez o Serviço Médico à Periferia, fez medicina do trabalho numa empresa mineira e depois numa empresa da pesca do alto, praticou clínica geral nas caixas de previdência da margem esquerda do Tejo, integrou-se na carreira de clínica geral, criada em 1983, pediu uma licença sem vencimento para se poder alistar como voluntário numa ONG francesa que tinha uma missão médica na Amazónia...

− Enfim, ando por aí  
− como te garantiu ele, da última vez que falaram ao telefone  − a ver se ainda consigo reconciliar-me com a humanidade... 

Mas nunca mais voltou  à Guiné, nem nunca manifestou desejo de o fazer. E nunca sabias ao certo por onde ele parava... Era ele que te costumava telefonar pelos teus anos. Tinha esse gesto bonito para contigo. Gostava, contudo,  de cultivar o mistério de uma certa clandestinidade.

Em tempos tinha-te manifestado o interesse em tirar o curso de medicina do trabalho, queria fazer algo de  "socialmente útil"... E tu ainda o ajudaste a preparar a candidatura. Detestava a "medicina da caixa" que se fazia nesse tempo, por todo o lado... 

Entretanto, deixara de fumar... Tarde demais. O cancro pulmonar começava a cortar-lhe as asas dos seus sonhos de aventura e liberdade, já de si frágeis e erráticos... Teve altos e baixos, euforias e depressões. Tiraram-lhe um pulmão...

Finalmente, foi pela Mena, a irmã, que tu soubeste que ele estava a morrer. No anexo do hospital, num pequeno quarto escuro, ao fim de um corredor sombrio, por ironia a escassas centenas de metros do teu gabinete de trabalho… Um pneumologista,  seu conhecido do tempo de Coimbra, havia-o admitido no seu serviço. Por caridade. Para ali morrer, sozinho como um cão. Sem uma palavra.  Sem um gesto de compaixão. Sem um adeus. 

© Luís Graça (2020). Revisto: 6 de novembro de 2024.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 21 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26063: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (34): Ciúme patológico