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terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26507: Timor Leste: passado e presente (30): Elementos para a compreensão da revolta de Manufai, ao tempo da República (1911/12)


Timor Leste > Parque Dom Boaventura. Comemoração,  dos 20 anos do referendo sobre a independência da Indonésia (1999-2019). 

A estátua de Dom Boaventura foi inaugurada em 23 de novembro de 2012, por ocasião comemoração do 37° Aniversário da Proclamação da Independência (28 de Novembro de 1975 – 28 de Novembro de 2012) e do centenário da Revolta de Manufai, liderada por Dom Boaventura (1912 – 2012).


Foto: cortesia de Wikimedia Commons (editada pelo Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2024)



1. No tempo da República, Timor era, como as restantes colónias portuguesas, parte integrante de Portugal (segundo o artº 2º da Constituição de 1911). 

A desastrosa, mal planeada e sangrenta participação de Portugal na I Guerra Mundial, foi justificada pelos políticos da República como o  imperioso dever do país face ao imperalismo alemão que olhava, com olhos de rapina, territórios como Angola e Moçambique.  Timor ficava mais longe e podia ter menos interesse para as grandes potências coloniais europeias, com exceção da Holanda (hoje Países Baixos)...

A República (1910-19269)  sempre defendeu, para as colónias, um modelo de descentralização administrativa e financeira, com recurso a um Alto Comissário ou governador. A instabilidade política, militar, social e económica da República não permitiu o aprofundamento e aperfeiçoamento do modelo.

Com a  Ditadura Militar (a partir de 1926) e o Estado Novo (a partir de 1933), há um claro retrocesso na autonomia administrativa e financeira das colónias.  O Acto Colonial (1930) vai ser integrado na Constituição de 1933. É o triunfo da perspetiva imperial na relação metrópole-colónias.

A relação da República com Timor e os timorenses também não será pacífica... Há a  "revolta indígena"  de Manufai (1911/12),  cuja história merece um poste â parte. O triunfo das autoridades portuguesas e seus aliados vai marcar a consolidação da até então precária soberania  em toda a parte oriental da ilha.( A delimitação da fronteira só fica resolvida em 25 de junho de 1914, com a devcisão do tribunal de Haia sobre o diferendo relatibvamente ao enclave de  Oecussi-Ambemo: a demarcação no terreno só vai acabar em abril de 1915.)

Só para se ter uma ideia da pulverização do poder político, o território (do que é hoje Timor Leste) estava  dividido em 71 reinos !... 


Segundo o autor que lemos (Fernando Figueiredo, "Timor (1910-1955), in: "História dos Portugueses no Extremo Oriente", 4º volume: Macau e Timor no Períod0o Republicano", dir. A. H. de Oliveira Marques, Lisboa: Fundação Oriente, 2003, pp. 521-575), haveria alguns causas próximas para explicar a revolta, réplica de resto da iniciada em 1895, sob o governo de Celestino da Silva (desta vez liderada por Dom Boaventura da Costa Sottomayor, filho de Dom Duarte da Costa Sottomayor):

(i) a "troca de bandeiras" , com o fim da monarquia: os timorenses davam (e ainda dão) muita importància a simbolos nacionais como a bandeira:  a sua lealdade ia para o rei e para a bandeira "azul e branca" da monarquia, de repente (em 29 de novembro de 1910) substituída por uma outra, "verde e rubra", a da República, que lhes era totalmente estranha;

(ii) a instabilidade da transição política foi aproveitada pelos holandeses para incitar os timorenreses à revolta contra os "novos senhores" da metrópole, e pôr em causa as fronteiras do território:

(iii) substituição da "finta" pelo "imposto de capitação " (imposto de palhota na Guiné); vem afetar os poderes gentílicos, limitar o poder discriconário dos "régulos" (ou "liurais");

(iv) escassa presença militar portuguesa no território (agravada pela longa distância, por via marítima, entre Lisboa e Díli).

Sobretudo o aumento do imposto de capitação (implicando também o arrolamento de coqueiros e gados, a principal riqueza dos timorenses), a par da proibição do corte de árvores de sândalo (prática sancionada com multas), é uma das razões fortes para a revolta de Manufai (ou a sua segunda edição) que ocorreu, em grande parte,  durante o governo de Filomeno da Câmara Melo Cabral (1911-1917). A partir do reino de Manufai, a revolta conquista grande adesão das populações e levará mais tempo a ser debelada. 

A resposta foi militar, com o envio de tropas  oriundas da metrópole, de Goa, de Macau e sobretudo de Moçambique (os "landins"). A artilharia fez grandes razias. As baixas entre os revoltosos vão reflectir-se mais tarde na demografia do território. Fala-se em 5 mil a 20 mil mortos, números difíceis de confirmar. 

A par disso, e como seria de prever, a forte repressão vai agravar as relações entre colonizados e colonizadores... O Estado anexa terras dos vencidos (caso da futura Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho). O poder dos "liurais" passou a ser mais simbólico, mas mesmo assim o governador Filomeno da Câmara soube depois imprimir uma dinâmica de desenvolvimento e pacificação efetiva do território, política que será prosseguida com algum êxito até à II Guerra Mundial.

A revolta do régulo de Manufai será o último dos grandes levantamentos contra a autoridade colonial. E tende hoje a ser vista como uma "revolta protonacionalista", de cariz anticolonialista, "avant la lettre".

Carlos Bessa ("Timor. Do Domínio Liurai â Pacificação Portuguesa", in Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira, ed. lit - Nova Históriaa Militar de Portugal. Vol. 3. S/l: Círculo de Leitores. 2004. 323-333), tirou deste período trágico da história de Timor a  seguinte conclusão:

(...) A nobreza nativa sairá muito enfraquecida destas campnhas, mas, mesmo assim, a autoridade portuguesa continuou a não pretender ser mais do que superestrutura aglutinadora e arbitral das autoridades nativas dos vários reinos, embora se tornasse marcante factor de identidade e unificação política através da influência de uma cultura luso-timotense e do catolicismo,  contrapostos ao islamismo e à influência calvinista holandesa excercida na restante Indonésia, do que resultou o tão impressionante e conhecido culton dos Timorenses pela bandeira portuguesa" (pág. 333).

PS - Num próximo poste apresentaremos alguns dados sobre a demografia do território antes da II Guerra Mundial.



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Nota do editor:

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26503: Historiografia da presença portuguesa em África (465): "Campanhas de pacificação": contra os papéis e os grumetes, Bissau, 1915 - Parte I ("Ilustração Portuguesa", 2.ª série, n.º 502, 4 de Outubro de 1915, pp. 447/448)

 

Foto nº 5 > Guiné > s/l (Nhacra,  donde partiu a coluna que entrou em Bissau a 3 de junho ou) > 1915 > Ao centro, o Abdul [Injai], "chefe de guerra" (1); e à esquerda, "o capitão [médico], sr. Francisco Regala", de chapéu  e bigode (2)... Em primeiro plano, quatro músicos, três dos quais tocadores de cora (cujo papel deveria ser o de galvanizar os combatentes, irregulares, sob a chefia do Abdul Injai). (A numeração dos combatentes é da responsabilidade da revista, "Ilustração Portuguesa").


Foto nº 4A  > Guiné > s/l (Nhacra, donde partiu a coluna para atacar Bissau) > 1915 > Partida para a guerra contra os papéis e grumetes da ilha de  Bissau: os oficiais da coluna; o capitão de infantaria Teixeira Pinto, à esquerda (1); o capitão médico Francisco Regala, ao centro (2); e à direita, o segundo tenente de marinha, José Francisco  Monteiro (3).


Foto nº 4 ...Faltam aqui mais dois oficiais: segundo tenente da marinha Queimado de Sousa e ten inf Henrique de Sousa Guerra. De se



Foto nº 6 > Guiné > s/l  (Nhacra) > 1915 > Aparelhando os cavalos para a partida da coluna.


Foto nº 7 > Guiné > s/l (Nhacra) > 1915 > Partida de um grupo de irregulares que vão juntar-se às restantes forças.


Foto nº 1 > Guiné > s/l> 1915 > O veleiro Luso, transportando as forças irregulares que vieram combater os 'papéis'.

Foto nº  2 >  Guiné > s/l (Nhacra) > A coluna preparando-se para partir para a guerra.  


1. A propósito das "campanhas de pacificação" (um eufemismo...) (*),  reproduzimos aqui um pequeno texto e fotos das operações  de 1915 (13 de maio / 17 de agosto), contra os papéis e os grumetes da ilha de Bissau (apoiados direta ou indiretamente pelos franceses que nunca viram com bons olhos aquele "enclave" português na grande África ocidental francesa), operações em que participaram, entre outros, o cap inf Teixeira Pinto, o cap médico Francisco Regala, o tenente da marinha José  Francisco Monteiro, e o cap inf Sousa Guerra,  e o chefe das tropas auxiliares,  Abdul Injai (, de etnia Uolofe, nascido em Casamansa, hpoje Senegal.


"Para as as tropas portuguesas que operam na Guiné tem sido assaz trabalhosa a sua campanha contra o gentio que estrangeiros e portugueses desnaturados e antipatriotas têm açulado contra a nossa soberania.

Mas,apesar das rudes marchas por terrenos empestados, não afrouxou o ardor dos nossos soldados que parece animarem-se ainda mais quanto maiores forem os perigos a que se expõem.

A insubmissa ordem dos 'papéis' tem sentido os resultados da sua rebeldia  no castigo eficacíssimo que as nossas tropas lhes têm aplicado, obrigando-os a uma pacificação tão desejada para aquela nossa colónia que, apesar de insalubre, possui uma agricultura invejável pela sua enorme riqueza.

A campanha continua ainda muito acesa em vários pontos, mas espera-se, pelos reforços que para lá têm sido enviados, que dentro em breve as tropas portuguesas dominem a região, o que decerto constituirá mais  uma brilhante  vitória para o prestígio nacional".

Fonte: "Ilustração Portuguesa".   2.ª série, n.º 502, 4 de Outubro de 1915, pp. 447/448.  Diretor: J. J. da Silva Graça; Propriedade: J.J. da Silva Graça, Lda; Ed lit. José Joubert Chaves. 

(Cortesia de Hemeroteca Municipal / Càmara Municipal de Lisboa; é de reconhecer publicamente o extraordinário trabalho dã Hemeroteca Municipal de Lisboa, em termos de arquivo, tratamento, digitalização e divulgação destes periódicos centenários, cujo conteúdo merece ser conhecido pelos nossos leitores, antigos combatentes na Guiné, 1961/74).
 
 (Seleção, revisão / fixação de texto, edição e legendagem das fotos: LG)


2. A notícia é dada em outubro de 1915, já a campanha tinha terminado, em 17 de  agosto, com a vitória inequívoca do hábil e destemido cap inf Teixeira Pinto (a quem os guineenses hoje devem possivelmente o facto de terem um país que não foi engolido pelo colonialismo francês; hoje seria parte integrante do Senegal e/ou da Guiné-Conacri).

A "Ilustração Portuguesa" (fundada em 1903, com uma II série a partir de 1906) era uma edição semanal do jornal "O Século", republicano. Custava 10 centavos o número avulso  A assinatura anual era de 4$80 centavos (Portugal, colónias portuguesas e Espanha). 

Recorde-se que, com a proclamação da República (em 5 de outubro de 1910), o escudo (=1000 réis) passou a ser a nova moeda. Estava dividido em 100 centavos. 10 centavos eram portanto 100 réis. O escudo irá sofrer uma grande desvalorização com I Grande Guerra.

Foi a primeira publicação a fazer grande uso da fotografia, recorrendo não só a fotógrafos profissionais (como o Joshua Benoliel, o primeiro grande fotojornalista português), como amadores: muitas das fotos da I Grande Guerra e da guerra em África são dos próprios participantes no conflito (no caso destas fotos de Bissau, 1915, desconhece-se o seu autor).

Entretanto, e a propósito dos oficiais portugueses acima retratados, recorde-se o nome do cap médico Francisco Regala, já aqui referido no nosso blogue, por um seu bisneto (**), e nosso leitor:  Francisco Augusto Monteiro Regalla "combateu em 1915 na coluna de operações em Bissau" e fez parte, durante algum tempo, da guarnição da Fortaleza da Amura...  

Francisco Regala nasceu em Aveiro, em 1871, e morreu em 1937, com o posto de coronel médico. Foi autarca no Mindelo, São Vicente, onde está sepultado. Era uma figura muito querida dos mindelenses

Enfim, apontamentos sobre a  historiografia da presença portuguesa (nem sempre "pacífica"...) em África (***)...
  
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Notas do editor:


domingo, 16 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26501: Manuscrito(s) (Luís Graça) (265): Que o Nhinte-Camatchol, o Grande Irã, te proteja, Guiné-Bissau!




Lisboa > Museu Nacional de Etnologia > Peça de santuário e toucado de dança, "A-Tshol". Baga Nalu, Guiné-Bissau. MNE, AO.335. (Patente na Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" )(*)


Que o Nhinte-Camatchol te proteja,Guiné, Tabanca Grande

por Luís Graça


Quem disse que a Guiné-Bissau não tem futuro ?
Não fui eu, que pouco valho,
não foi o dari,
que não tem seguro de acidentes de trabalho.
Nem de saúde.

Quem disse que o futuro não passa por aqui, amiúde ?
Não, não foi o macaco fantango,
que trabalha sem rede,
e não tem protecção no desemprego.
Nem o desgraçado do macaco-cão
que vai à mesa do rico e do pobre
como se fora leitão da Bairrada.
Nem o mandinga, bom negro,
tocador de cora,
que se foi embora,
em busca de outro chão,
livre do som da Kalash.

Quem disse que Deus, Alá e os bons irãs
não montaram morança nesta terra ?
Não foi o muntu,
não foi o tucurtacar pangolim,
não foi a rapaziada do Bairro do Quelélé,
não foi o fula nem o nalu,
não foram as aves do Cantanhez,
não foram os homens grandes do Gabu.
não foi o tuga, nem foste tu nem fui eu.

Ah!, como está ainda bem longe, Cabral, o ideal
 por que lutaste e morreste, uma vez,
tantas vezes,
tu e tantos outros combatentes da liberdade da pátria.
Nada que tu não saibas,
lá no Olimpo dos deuses e dos heróis,
ou não soubesses já, cá na terra dos homens,
que a História é fértil em exemplos de efeitos perversos,
de revoluções que devoram os seus filhos...

Tudo isto, para te dizer
que eu ouvi os jovens do teu país cantar o teu hino,
no antigo acampamento, a "barraca" Osvaldo Vieira,
nas matas do Cantanhez,
com o mesmo fervor do que quaisquer outros jovens
noutras partes do mundo,
em Portugal, em Cuba, na China,
na América, no Brasil ou em Angola ...
Pelo menos os teus sabiam a letra,
a tua letra, e até a música que foi composta pelo Sr. Xiao He,
um obscuro chinês, do tempo do maoísmo.

Quem disse, afinal, que a Guiné não tem futuro ?
Se não o foi macaco fidalgo,
foram os teus inimigos,
os de fora e os de dentro,
os teus filhos bastardos
e os filhos bastardos de outras nações.
Os que dizem mal de ti,
que te querem comprar
a preço de saldo,
e que te arrastam pela lama do tarrafo.
E que dizem que és um narco-Estado,
e que vives da caridade internacional.
e que já não tens fé, nem caridade, nem esperança,
nem voz, nem lágrimas para chorar.
Que já não tens alma nem salvação nem pudor.
E que Cabral morreu e está enterrado,
na antiga fortaleza colonial da Amura.

Os teus jovens,
os teus músicos,
o Furkuntunda,
o Anastácio di Djens,
grande senhor,
os teus poetas,
os teus artistas,
os teus artesãos,
as tuas televisões comunitárias,
as tuas rádios locais,
o teu novo Lamparam,
o teu Bombolom digital,
e até os centros de saúde no mato,
são a prova da tua grande vitalidade,
engenho, imaginação, talento,
alegria, nobreza,
criatividade, espontaneidade,
afabilidade, hospitalidade,
vontade de vencer o círculo vicioso da pobreza.
Do teu povo, Guiné,
de Norte a sul,
dos Bijagós às Colinas do Boé,
de Iemberém ao Quelélé.

Eu acredito em ti, país-irmão.
Eu quero acreditar em ti, Guiné,
eu quero remar contra a maré do cinismo
inimigo tão mortal
como o mosquito do paludismo.

Eu acredito nas tuas mulheres,
empreendedoras e corajosas,
que montam fabriquetas de descasque de arroz,
ou que, em casa, fazem o seu óleo de palma
e o seu chabéu, e o seu sabão.
E ainda têm tempo para ir à pesca e ao mercado
e para cuidar dos teus meninos.

Eu acredito, no talento dos teus jovens, criativos,
como o Grupo de Teatro Os Fidalgos.
Eu acredito ainda na força telúrica
e na generosidade dos homens (e mulheres)
que lutaram, por ti,
no Como,
em Cassaca,
em Cadique,
em Madina do Boé,
no Morés,
em Gandembel,
em Guileje,
em Guidaje,
no Fiofioli,
na Ponta do Inglês,
no Choquemone,
em Sinchã Jobel.
Com as armas na mão
e com as ideias e os valores na cabeça.
Para que tu fosses livre e independente,
e fosses justa e fraterna.

Enfim, uma Tabanca Grande,
grande como a bolanha de Bambadinca,
outrora verde e prenhe de arroz,
e aonde iam apascentar os búfalos.
Uma Tabanca Grande
onde cabe o Muntu e o Nalu,
os homens grandes e as mulheres grandes
e as meninas que um dia não precisarão da faca da fanateca.
Onde cabem os teus frondosos poilões
e as vaidosas cabaceiras.
Para que os teus filhos, Guiné,
tenham a merecida paz,
todos os dias do ano,
a liberdade, a justiça,
o milho, o arroz e a mandioca,
o mafé e o chabéu
com que se mata a fome e se sonha e se dança.
Enfim, a dignidade
a que os teus filhos têm direito
no seio da Mãe África
e do resto do mundo globalizado.

Ah!, a paz, a tão frágil paz
que leva tanto tempo a consolidar,
e o tão suspirado progresso que não chega,
ou que é tão lento, desesperadamente lento,
ou só chega para uma meia dúzia de privilegiados,
a nomenclatura do poder e do dinheiro...

Mas para isso, terás que fazer a ponte com o passado.
Mas para isso não poderás ignorar
nem escamotear os marcos
(de sinal mais e de sinal menos)
do passado,
bem como as raízes das lianas
e dos poilões da tua guineidade.

Como te imploram os teus filhos,
não queiras chorar mais, Guiné!
N ka misti tchora mas!
Faz das tuas lágrimas
a força do macaréu da tua revolta e do teu ânimo
que te ajudarão a abrir a Picada do Futuro,
a construir o Novo Corredor do Povo,
a Nova Estrada da Liberdade.
Que eu só desejo que seja
tão grande, larga e fecunda
como os teus rios míticos,
do Cacheu ao Cumbijã, do Geba ao Cacine.
Ou tão límpidos e belos e selvagens como o Corubal.

E que o Nhinte-Camatchol,
o grande irã, te proteja,
Guiné, Tabanca Grande.


Simpósio Internacional de Guileje
Iemberém, 1-2 de março de 2008 | Bissau, 2-7 de março de 2008
Lisboa, 30 de março e 2008 | Revisto, 16 de fevereiro de 2025

Luís Graça








Guiné-Bissau > Região de Tombali > Iemberém> Simpósio Internacional de Guileje > 1 de Março de 2008 > Grafito com o desenho nalú do irã protetor da tabanca, o Nhinte-Camatchol, e que fez parte do logótipo do Simpósio, organizado pela AD -Acção para o Desenvolvimento, o INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesqusias, e UCB - Universidade Colinas do Boé. Foi impresso nas t-shirts e pintadfo numa parede das instalações da AD em Iemberém.

 O Pepito escolheu, e não foi por acaso, a escultura nalu do Nhinte-Camatchol como "mascote" do Simpósio Internacional de Guiledje (2008). Na altura escrevi este longo poema em que pedia a proteção do grande irã para os nossos amigos e irmãos da Guine-Bissau. Aqui vai, em versão revista (**).
 
O Pepito morreria quatro anos depois. O Nhinte-Camatchol  (no nosso Museu Nacional de Wtnologia chamam-lhe  o A-Tsgol...) não protegeu o Pepito, que sacrificou muito da sua saúde, segurança e "qualidade de vida" (suas e da sua família) pelo seu povo. 

Esperemos que Deus, Alá e os Grandes Irãs protejam aquela terra que continuamos a amar, e os nossos amigos que lá vivem. Eles merecem. E que o exemplo do Pepito continue a ser inspirador, para eles e para nós. Foi pelo Pepito (1949-2012) que voltei à Guiné, m 2008, vencendo traumas da guerra.

O Nhinhe Camatchol é uma escultura dos nalus do Cantanhez usada na festa do fanado. Representa uma cabeça de pássaro com rosto humano, sendo a mensagem aos participantes deste ritual de iniciação à vida adulta a seguinte: que todos eles passam a considerar-se como verdadeiros irmãos, mais verdadeiros que os próprios irmãos biológicos. O que deve ser entendido como a afirmação do interessse coletivo, comunitário, acima do interesse dos indivíduos e das famílias. Orginalmente esta máscara não poderia ser vista pelos não iniciados, sob pena de morte (Campredon, Pierre – Cantanhez, forêts sacrées de Guinée-Bissau. Bissau,Tiguena. 1997, pp. 32-33).

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados.[Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]
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Notas do editor:

/*) Vd. poste de 15 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26499: Os 50 Anos do 25 de Abril (35): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte II


(**) Último poste da série > 30 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26326: Manuscrito(s) (Luías Graça) (264 ): Volta sempre, Irmão Sol

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26499: Os 50 Anos do 25 de Abril (35): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte II










Exposição > “Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades”


Museu Nacional de Etnologia, Lisboa, Belém,
30 out 2024 / 2 nov 2025 (*)



1. Continuamos a visitar esta exposição, que pode ser vista até 2 de novembro de 2025. E que requer "tempo, vagar e distanciamento crítico"... Merece pelo menos duas visitas. 

O seu objetivo é "pedagógico e didático", reune a colaboração de 3 dezenas de especialistas mas não deixa de ter o cunho muito pessoal e profissional da sua curadora, Isabel Castro Henriques (n. 1946) (*).


Painel I
Recorde-se que a exposição é organizada pelo CEsA Centro de Estudos sobre África e Desenvolvimento (do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa, ISEG/UL)  e pelo Museu Nacional de Etnologia,  e integra as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril.

É uma pena que a exposição não possa chegar a todo o lado... E,  tal como foi concebida, não pode mesmo, por incorporar valiosos artefactos culturais, alguns deles produzidos em territórios que foram colonizados por Portugal ...e que hoje fazem parte das coleções do Museu Nacional de Etnologia (criado em 1965 pelo nosso grande antropólogo Jorge Dias). (Acrescente-se que essas peças foram legitimamente adquiridas na sequência de projetos de investigação científica.)

Feita esta introdução, prosseguimos a visita ao primeiro painel (*) que é  dedicado ao tema "Estamos em África Há 500 Anos" (tema, recorrente, da propaganda que veio da Monarquia Constitucional ao Estado Novo, passando pela República, e que chegou aos nossos dias).

Toda a exposição se propõe confrontrar-nos (e  ajudar a confrontarmo-nos) com os "mitos e realidades" da presença portuguesa em África e com o nosso próprio imaginário.





"Cronologia das campanhas de ocupação e resistências africanas"


  • 1885/87: Ocupação portuguesa do distrito do Congo (Angola), incluindo o enclave de Cabinda  e a margem esquerda do rio (atribuídas a Portugal na sequência da conferência de Berlim);
  • 1886: Definição da fronteira da Guiné;
  • 1898/1902: Ações militares portugueses contra populações revoltadas  do centro de Moçambique (costa de Maganja, Angónia, Macanga e Barué);
  • 1902: Revolta dos Ovimbundo do planalto central angolano;
  • 1904/1915: Esforço militar português no sul de Angola e resistências africanas (Nhaneca, Cuamata, Cuanhama e Herero);
  • 1907/1914: Ações de efetivação do domínio português no litoral norte, no centro e centro-leste de Angola e resistências africanas (Bacongo, Dembo, Quissama, Ganguela, Quioco);
  • 1908/1912: Operações portuguesas e resistências africanas (Ajaua, Maconde,Macua) no norte de Moçambique;
  • 1908/1915: Operações portuguesas e resistências africanas na Guiné (Bijagó, Balanta, Mandinga, Manjaco,Papel, Grumete, Felupe);
  • 1914/1918: Primeira Guerra Mundial;
  • 1914/1920: Intensificação das operações militares portuguesas e efetivação da ocupação territorial contra as resistências africanas em Angola, Guiné e Moçambique;
  • 1915: Ocupação portuguesa do planalto dos Macondes (Moçambique);
  • 1917/1918: Revolta dos Barué (Zambézia, Moçambique);
  • 1920: Secas, fomes e epidemias (Angola);
  • 1926: Última ação militar contra os Quioco, no nordeste de Angola;
  • 1936: Últimas ações militares na Guiné e dominação do território.





Aprisionamento de Gungunhana por Mousinho de Albuquerque em Chaimite, em 28 de dezembro de 1895. Pintura de Morais Carvalho, Museu Militar, foto de Salvador Amaro.


(Imagens obtidas da exposição "in situ",  sem flash, com a devida vénia, e aqui reproduzidas com propósito meramente informativo...)

(Seleção, fotos e  fixação de texto: LG)


(Continua)

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Nota do editor:

Último poste da série > 3 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26456: Os 50 Anos do 25 de Abril (35): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte I

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26479: As nossas geografias emocionais (41): Café Bento / 5ª Rep: excertos de postes e comentários - Parte I: E tudo o vento levou.... [ Luís Graça / Jaime Machado / Patrício Ribeiro / Oliveira Miranda / Hélder Sousa / Virgínio Briote / Manuel Luís Lomba / Virgílio Ferreira / José Pardete Ferreira (1941 - 2021) ]



Guiné > Bissau > s/d (c. fev / abril de 1970) > Início da Av da República... O polícia sinaleiro que regulava o "trânsito" de Bissau, e, do lado direito , vê-se a bomba de gasolina que na época era da Shell (no letreiro falta-lhe uma letra, um "l"). Tapada pelo arvoredo, a esplanada do Café Bento. É a melhor foto que temos, até agora, no blogue sobre a localização da 5ª Rep.

Foto do belíssimo álbum do Jaime Machado, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, maio de 1968 / fevereiro de 1970, ao tempo dos BART 1904 e BCAÇ 2852)

Foto (e legenda): © Jaime Machado (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]






Mapa de parte da Bissau Velha, entre a Avenida da República (hoje, Av Amílcar Cabral) e a fortaleza da Amura. A escuro, dois prédios que pertenciam a Nha Bijagó. Com uma estrela a vermelho, a localização do edifício do antigo Café Bento, que foi demolido. Fonte: António Estácio, em "Nha Bijagó: respeitada personalidade da sociedade guineense (1871-1959)" (edição de autor, 2011, 159 pp., il.).



1. Alguns excertos de postes e comentários sobre o Café Bento / 5ª Rep:

O Café tinha o nome do seu proprietário. Há camaradas (Victor Tavares) e amigos (Lucinda Aranha) que chegaram a conhecer o senhor Bento. Vivia para os lados de Coimbra e teria uma filha médica. Mas não sabemos quando deixou a Guiné, nem em que circunstàncias, muito provavelmente por altura da independência.

O edifício, de um só piso, com uma ampla esplanada coberta de árvores, no início da antiga Avenidade da República, foi demolido. Do seu lado direito, tinha o edifício, de arquitetura colonial, dos anos 50, que era a sede da administração civil (e, depois da independència, passou a ser tribunal e tesouraria das finanças).

Interessa-nos falar do tempo em que o Café Bento era uma referência para os militares que viviam em Bissau ou passavam por lá, incluindo os "desenfiados". A famosa 5ª Rep (designação bem humorada que era aceite, inclusive, pelo gen Spínola e seus colaboradores mais próximos, do QG/CCFAG).

O Patrício Ribeiro, empresário, que vive em Bissau desde 1984, diz que já não o comheceu a funcionar. Assistiu às obras para ser um novo restaurante, de arquitetura moderna, propriedade do conhecido empresário hoteleiro, Fernando Barata que tinha negócios na Guiné Bissau (Cacheu, Bijagós...) e que foi cônsul honorário da Guiné-Bisau em Albufeira, ao tempo do 'Nino' Vieira.

" Depois foi entregue a um antigo presidente, foi alugado à RTP África, até há pouco mais de um ano. De onde retirei parte dos equipamentos, para o novo edifício da Delegação da RTP no Chão de Papel." (*)

(i) O nosso editor, Luís Graça, escreveu:

No meu tempo (1969/71) o Café (e cervejaria) Bento , era provavelmente a mais famosa esplanada de Bissau, até pela sua localização, na zona portuária.(Tem já 19 referências no nosso blogue) ...

Também era conhecido com a 5ª Rep, o maior "mentidero" da cidade: era um dos nossos locais de convívio, dos gajos do mato, dos desenfiados e sobretudo dos heróis da guerra do ar condicionado. (**)

Rcorde-se que havia 4 grandes repartições militares em Bissau, no QG/CCFAG, na Amura, mas a 5ª Rep, o Café Bento, era a mais famosa, porque era lá que paravam todos os "tugas" que estavam em (ou iam a) Bissau, gozar as "delícias do sistema"; era lá que se fazia "contra-informação", de um lado e do outro; era lá que se contavam as bravatas, os boatos e as mentiras da guerra... (Sabe-se que o QG/CFAG utilizou o Café Bento para lançar a atoarda de que iria haver uma grande operação em Buruntuma em dezembro de 1972; o PAIGC seria depois surpreendido com a Op Grande Empresa, a invasão do Cantanhez).

O Café Bento ficava na esquina da Av da República (hoje Av Amílcar Cabral) (do lado esquerdo, de quem descia), com a Rua Tomás Ribeiro (hoje António Nbana) (localização assinalada a vermelho no croquis acima publicado), no início da única avenida de Bissau, digna desse nome (a que ia da marginal e cais do Pidjiguiti até à Praça do Império e Palácio do Governador).

Do outro lado dessa artéria, ficava a Casa Gouveia, que pertencia ao Grupo CUF.

No lugar do antigo edifício do Café Bento irá constuir-se um outro, de maior volumetria, e que passou a ser, mais tarda, a sede da delegação da RTP África (hoje, com novas instalações, inauguradas em 2021, na Rua Angola, 78, Chão de Papel, já fora portanto da "Bissau Vellha", a cidadezinha colonial, a do asfalto, que conhecemos e calcorreámos.

De qualquer modo, aceitemos a "bocarra": Quem nunca lá foi, ao Café Bento, não pode dizer que esteve na Guiné, ou pelo menos em Bissau (***)

Depois, tudo o vento (da História) levou...

A Casa Gouveia passou a Armazém do Povo e o Café Bento fechou por falta de cerveja, de "apanhados do clima" (que eram os clientes e bebedores de cerveja) e, claro, da matéria-prima (que era a guerra) com que se faziam combatentes, da frente e da retaguarda, heróis, cobardes, coirões, espiões, pides,"turras", bufos, etc. (Logo ali ao lado, era a Amura, a sede do QG/CCFAG, com os seus centenários poilões.)

A 5ª Rep era a "fábrica de boatos" da guerra... Também tinha como em Saigão, "djubis" que engraxavam as botas das tropa...Nunca lá puseram, felizmente, nenhum engenho explosivo...

No final da guerra, sim, haverá um atentado terrorista contra o Café Ronda (café e pensáo, uma espelunca), em 26 de fevereiro de 1974. E foi da responsabilidade do PAIGC, que quis mostrar, no 1º aniversário da morte de Amílcar Cabral, que podia atingir alvos urbanos e civis no coração da capital...

Felizmente que a incursão pela "guerrilha urbana" ficou por ali...mas foi o suficiente para causar algum alarme entre os militares e suas famílias, que viviam em Bissau... Provocou um princípio de debandada... (Resta saber se Amílcar Cabral, se fosse vivo, aprovaria este tipo de escalada da guerra, com recurso a atentados cegos, causando vítimas inocentes entre a população civil.)

O Cafe Ronda situava-se também na Av da República, um pouco mais abaixo do cinema UDIB e do lado contrário ao deste,

Quem disse que a Guiné foi o nosso Vietname ?... Era uma das bocas com que se "emprenhavam os ouvidos aos piriquitos" quando chegavam esbaforidos e sequiosos a Bissau...


(ii) Oliveira Miranda (**)

Parabéns ao editor deste comentário que me deixou emocionado, pois o café Bento era o local onde tomava a minha cerveja, chegado do hospital militar onde estava em consulta após ser ferido em combate.

Ainda revejo passados 55 anos as piruetas que os meninos faziam com a escova de de engraxar, embora ao lado via a miséria de leprosos a pedir uns pesos (moeda local).

Passado é passado, mas não esqueço a fome, peste e guerra que alguns de nós vivemos no mato. Saudações a todos os vivos e paz àqueles que já partiram.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025 às 14:45:00 WET" (....)


(iii) Hélder Sousa (***)

(...) Assim, de repente não me faz lembrar nada o "Café do Bento".

Isto porque, tanto quanto me lembro (eu frequentei alguma vezes esse café/esplanada mas não era muito assíduo, tinha a ideia que haviam por lá "muitos ouvidos") a esplanada não seria assim tão comprida mas muito mais larga. As árvores seriam de maior porte (...)

Além disso, o espaço da esplanada, entre a estrada e a edificação do "Café" era muito maior do que se vê. (...)

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025 às 14:36:00 WET


(iv) Virgínio Briote (***)

Eu tive quarto em Brá, entre maio65 e 10kan67, e quando estava em Brá, ia quase todos os dias a Bissau e era frequente passar pelo Café Bento. Quando lá estava, o Solar dos 10 era mais conhecido pelo Restaurante Fonseca, onde se comia frango assado, ostras e vinhos verdes e maduros.

Entre 65/66 e a altura em que estas fotos foram tiradas não tenho dúvidas que as feições da cidade iam mudando.

A foto em questão (do Jorge Pinto, de agosto de 1974) leva-me mais para o Império (na rotunda do Palácio) e não coincide com a imagem que tenho do café Bento, cá mais para baixo, à esquerda de quem descia a Avenida.

Ainda se descia um pouco até uma pequena rotunda onde estava um polícia sinaleiro a regular o trânsito. E a seguir era a marginal e o cais do Pidjiguiti. Não posso garantir a pés juntos mas é o que retenho na memória.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025 às 19:53:00 WET


(v) Manuel Luís Lomba (***)

O nosso Batalhão de Cavalaria esteve uma ano de intervenção no no Forte da Amura , juntamente com a Companhia de Polícia Militar, a que pertencia o então alferes Mário Tomé.

A esplanada com guarda-sóis e o seu edifício não são o Café Bento: o seu edifício era apenas de um piso, muito envidraçado, as mesas e cadeiras eram pintados de verde, as suas árvores eram mais corpulentas, troco e copas.

Voltei à Guiné nos princípios da década de oitenta e a esplanada eram bombas de gasolina da Galp.

A Cervejaria Somar não existia. A restauração mais importante eram o Asdrúbal, dos frangos, e o Restaurante Tropical, do bife, ostras e verde branco de Amarante, da marca Vinhos Borges.

Lembro-me de ter na mesa ao lado o tenente-coronel Fernando Cavaleiro e outros oficiais. Dizia-se que quando descia de Farim a Bissau, a malta do ar condicionado do QG entrava em polvorosa: "Vem aí a guerra!"

Também lembro de o alferes Mário Tomé, em patrulhamento, ter expulsado da esplanada do Café Bento um primeiro-sargento que se refastelara numa cadeira, os seus calções eram largos, e os seus "pendentes", por acaso bem pretos, saíam-lhe por uma perneira.


sexta-feira, 31 de janeiro de 2025 às 19:55:00 WET


(vi) Virgílio Teixeira (**)

(...) Conheci muitíssimo bem o Bento. Mas até julho 69.

Depois disso nada sei. (...) Alguns estabelecimentos aqui referidos já não são do meu tempo.

Só em 1984 e 1985, voltei lá e já não conheci nada. Pois nada existia.

Tempos do caranho. Nunca mais vi um tasco aberto e o Grande Hotel estava em ruínas
Ficámos numa pensão perto da estátua do Honório, na rua Mondlane, de alguém que era amigo da dona de uma pensão aqui em Vila do Conde. (Esta pensão chama-se Manco da Areia.)

Tudo mudou muito depois do meu regresso em 1969 e depois em 1985.

sábado, 1 de fevereiro de 2025 às 01:44:00 WET

(vii) José Pardete Ferreira (1941-2021) (****)

Este livro, "O paparratos : novas crónicas da Guiné : 1969-1971", publicada sob a chancela editorial da Prefácio, surge numa coleção , "História Militar" (...) que se reclama de um "conceito inovador": pretende conciliar a investigação historiográfica com a produção literária e memorialística, como é o caso deste livro do nosso saudoso camarada José Pardete Ferreira (1941-2021), que foi alf médico, no CAOP1, Teixeira Pinto (1969) e no HM 241 (1969/71).

O alferes miliciano médico João Pekoff (heterónimo criado pelo José Pardete Ferreira, ou se não mesmo o seu "alter ego") chega a Teixeira Pinto, ao CAOP, em meados de fevereiro de 1969 (pág. 30). Em Bissau, onde o seu batalhão de origem (que apostamos ter sido o BCAÇ 2861) desembarcou em 11/2/1969, deve ter estado alguns escassos dias, em trânsito, antes de apanhar uma DO-27 que o levou até à capital do chão manjaco , de qualquer modo o tempo suficiente para começar a conhecer alguns dos pontos obrigatórios do roteiro dos cafés e restaurantes da tropa...

Alguns eram obrigatórios como o café Bento, mais conhecido por 5ª Rep, junto à fortaleza da Amura onde estava instalado o QG/CCFAG [Quartel General do Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné], com as suas 4 Rep[artições].

Era o grande "mentidero" de Bissau, onde os "apanhados do clima", vindos do mato, "desenfiados" ou em trânsito, partilhavam notícias e histórias com a malta do "ar condicionado"...

Chegados a Bissau, os "periquitos" apanhavam logo ali os "primeiros cagaços", histórias tenebrosas de Madina do Boé, de Gandembel, de Guileje, etc., aquartelamentos no mato, felizmente, longe, muito longe de Bissau e do seu "bem-bom"...

Pardete Ferreira, de cultura francófona, descreve assim a 5ª Rep, com inegável bom humor, para não dizer sarcasmo, comparanda-a com a situação de um aquartelamento do mato, Tite, na região de Quínara, perto de Bissau em linha recta, pelo que, quando era atacado ou flagelado, toda a gente ficava a saber e até a ver (pp. 54/55):

"(...) Toda a Guiné Portuguesa tinha esta classificação de zona cem por cento de risco. Naquele território, era indiferente passar calmamente uma soirée [sic] na 5ª Rep ou no aquartelamento de Tite.

"Na 5a. Rep, a arma era um copo de uma beberagem qualquer, que ia aquecendo na mão e que ia sendo municiada periodicamente. O único risco era constituído pelos perdigotos, por vezes sólidos estilhaços de mancarra, que o companheiro de conversa lançava, aproveitando o estar longe do interface do corpo a corpo.

"Em Tite, que se situa mesmo em frente da 5ª Rep, do outro lado do Geba [, na margem esquerda], apenas a alguns quilómetros à vol d'oiseau [sic], a arma que se tinha na mão era das verdadeiras, daquelas que matam.

"Aquela cómoda sala do QG [Quartel General], no teatro operacional, dava lugar a um abrigo onde o combate mordia. No QG, pelo barulho podia adivinhar-se que Tite estava seguramente a embrulhar, podendo ver-se as cores das balas tracejantes e ter uma ideia da intensidade do assalto,pela quantidade e duração do fogo de artifício.

"Na 5ª Rep, assistindo-se ao espetáculo, beberricando um whisky ou despejando rapidamente uma mulher grande [ basuca ?], quase sem tempo para descascar a mancarra acompanhante, estava-se exactamente dentro dos limites do mesmo Teatro Operacional da Guerra. Todo o pedaço daquela terra era território de guerra. O risco tinha uma graduação muito relativa, embora fosse sempre uma probabilidade.

"Não se fizeram operações de black out [sic] como treino para a remotíssima hipótese de um ataque dos MiGs da Guiné-Conacry ? Houve quem dissesse que afirmar isto era um verdadeiro disparate, na medida em que os MiGs de Conacry eram de um modelo tão antigo que. se atacassem Bissau, teriam que pedir o favor de ser reabastecidos em combustível no aeroporto de Bissalanca, a fim de poderem regressar à sua base de partida" (...).



Estes excertos vão inseridos na série "As nossas georgrafias emocionais" (**).

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos e itálicos: LG)

_________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 4 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26459: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (53): O antigo Café Bento já não é do meu tempo, e foi vítima do "bota-abaixo"...Foi remodelado e até 2023 estave lá instalada a delegação da RTP África

(**) Vd, poste de 5 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26461: As nossas geografias emocionais (40): A Casa Gouveia e o Café Bento num conhecido postal da época, da coleção do Agostinho Gaspar (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1972/74)

(***) Vd. poste de 31 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26443: Fotos à procura de... uma legenda (192): Bissau, agosto de 1974: qual a mais famosa esplanada da cidade ? Café Bento ou cervejaria Solmar ? E esta foto é da 5ª Rep ou da Solmar ?

(****) Vd. poste de 23 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21939: Notas de leitura (1343): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte II: os "mentideros' de Bissau (Biafra, 5ª Rep) e ainda e sempre a retirada de Madina do Boé (Luís Graça)

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26467: Efemérides (450): 6 de fevereiro de 1969, o desastre do Cheche: quando os relatos de futebol eram dados em direto, e efusivamente, e a guerra em diferido, resumida a telegráficas notas oficiosas








Diário de Lisboa, 8 de fevereiro de 1969, p. 1




Citação:
(1969), "Diário de Lisboa", nº 16573, Ano 48, Sábado, 8 de Fevereiro de 1969, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_7148 (2019-2-6)


Fonte: Instituição: Fundação Mário Soares | Pasta: 06597.135.23237 | Título: Diário de Lisboa | Número: 16573 | Ano: 48 | Data: Sábado, 8 de Fevereiro de 1969 | Directores: Director: António Ruella Ramos | Edição: 2ª edição | Observações: Inclui supl. "Diário de Lisboa Magazine". | Fundo: DRR - Documentos Ruella Ramos | Tipo Documental: Imprensa.

(Com a devida vénia...)


1. A notícia chegou tarde às redações dos jornais. O "Diário de Lisboa", que era vespertino,  e do "reviralho" (não-situacionista,  conotado com a "oposiçáo democrática"), deu-a em título de caixa alta só na 2ª edição, dia 8 de fevereiro de 1969,  que era um sábado. Fez ainda uma 3ª edição.

De qualquer modo, o jornal limitava-se a transcrecever a notícia dada pela agência oficiosa L [Lusitânia], com proveniência de Bissau e com data de 8 de fevereiro... As autoridades da província (leia-se: o general Spínola) levaram dois dias a recolher e a tratar a informação...

Omite-se, por certo intencionalmente, e alegadamente por razões de segurança militar, os seguintes elementos factuais:

(i) o "acidente" ocorreu na manhã de 5ª feira, dia 6 de fevereiro de 1969, faz hoje 56 anos (*);

(ii) no  final da Op Mabecos Bravios, ou na seja, na sequência da retirada do aquartelamento de Madina do Boé e do destacamento de Cheche..

2. Os portugueses  de hoje não sabem, por um lado felizmente,  o que era isso, mas  os jornais (o "Diário de Lisboa" e os outros) eram "visados pela censura": havia uns senhores todo poderosos, em geral militares, coronéis do exército ou equivalentes,  que tinham um "lápis azul", e que passavam a pente fino, previamente (ou seja, antes da publicação), todas as notícias que saiam na imprensa escrita

A grande maioria dos portugueses na época, e nomeadamente os da nossa geração, nascera já no Estado Novo, o regime de Salazar (e depois Caetano),  pelo que não sabia o que era a  liberdade de imprensa, escrita e falada... 

A guerra ao longo de 13 anos foi dada na imprensa escrita  só através de "comunicados das Forças Armadas" (em geral, com a telegráfica e fria notícia dos mortos) " ou "notas oficiosas" do Governo. Raros eram os jornalistas que iam ver "in loco" e falar com os combatentes.

O título de caixa alta,  "Desastre na Guiné", da responsabilidade do editor do jornal, era suscetível de causar alarme e consternação, nomeadamente entre as famílias dos militares que estavam então no CTIG: 47 mortos (militares, em rigor 46 militares e 1 civil guineense) era o balanço do "trágico acidente".

Acrescenta  a "nota oficiosa": "O Governo da Província lamenta profundamente este trágico acidente que causou a perda de tão elevado número de vítimas de generosos militares que aqui se batem no cumprimento do seu sagrado dever para com a Pátria"...

Acrescente-se, todavia, que estávamos em plena "Primavera Marcelista", o Mário Soares tinha acabado de regressar há 3 meses da sua deportação na Ilha de São Tomé, e havia a ilusão, no seio  de alguma opinião pública mais esclarecida, que desta vez o regime se iria "autorreformar"... Sabemos bem que as mudanças foram apenas de cosméstica: a censura passou a chamar-se "exame prévio", a PIDE "deu lugar" à DGS, a União Nacional foi rebatizada Ação Nacional Popular", e a Cilinha, do Movimento Nacional Popular, deixou de ter acesso privilegiado ao palácio  de São Bento...

Nessa altura, eu estava em Castelo Branco, no BC 6, a dar instrução militar, como 1º cabo miliciano, e em véspera de ser mobilizado para a Guiné (que era o "terror" para qualquer mancebo naquele tempo). 

A  notícia deste "desastre" mexeu comigo... A notícia da minha mobilização chega a 27 desse mês...Na noite seguinte, às 3h41 ocorre o violento sismo de magnitude 8 na escala de Richter (o maior depois de 1755), com epicentro no mar, a sudoeste do cabo de S. Vicente, na planície da Ferradura, se fez sentir em Portugal, Espanha e Marrocos. Eu nessa noite dormia o "sono dos justos", depois de ter dado de beber à dor da notícia da minha mobilização... Não dei conta de nada, da barafunda provocada pelo tremor de terra na caserna: caíram objetos, desprendeu-se mobiliário, terá havido gritos e alvoroço, mas ninguém ficou  ferido...

Voltando à notícia da agência oficiosa Lusitânia:  houve logo a preocupação, pelo menos, por parte do "governo da província da Guiné", de dar o número exato de mortos e desaparecidos (não se faz a distinção, fala-se em "vítimas") e listar os seus nomes.

O balanço era, de facto, trágico: na lista das 47 vítimas, por afogamento (parte das quais nunca chegarão a ser encontradas), constavam: 

(i) 2 furriéis milicianos; 

(ii) 7 primeiros cabos; 

e (iii) 38 soldados (na realidade, um dos nomes era de um civil). 

Mas os termos da notícia eram lacónicos, secos, quase telegráficos, como  de resto era habitual nos comunicados oficiais ou oficiosos em assuntos "melindrosos" como este (que podiam afetar o moral das tropas, ou até pôr em perigo a ordem pública e sobretudo a tranquilidade  e a paz de espírito dos portugueses, daquém e dalém-mar):

(...) "Na passagem do rio Corubal, na estrada para Nova Lamego, afundou-se a jangada que transportava uma força militar, havendo a lamentar, em consequência deste acidente, a morte, por afogamento, de 47 militares". (...)


E a notícia ficou por ali: não se voltou a falar do "trágico acidente", nas edições seguintes, nem muito menos o jornal se podia dar ao luxo de, por sua conta e risco, mandar à Guiné uma equipa de reportagem para aprofundar o assunto... Voltou-se à rotina da atualidade nacional e internacional, e os nossos valorosos camaradas que estavam na Guiné lá continuaram a "aguentar o barco" por mais cinco dolorosos  anos...

Para não dar azo, entretanto,  a perigosas  especulações, o ministro do Exército nomeou (e mandou de imediato para o CTIG) o cor cav Fernando Cavaleiro, um militar prestigiado,  o "herói da ilha do Como" (1964), infelizmente já falecido,  a fim de instruir localmente o processo de averiguações. 

Não sabemos quanto tempo levou a instrução do processo, mas temos um resumo das conclusões preliminares do cor cav Fernando Cavaleiro, publicado no jornal "Província de Angola", em data desconhecida, conforme recorte que nos foi enviado pelo nosso camarada José Teixeira, e que já aqui publicámos em poste de 25 de julho de 2015 (**).

Cinquenta anos depois, ainda não tivemos acesso ao relatório original (nem sabemos se existe cópia no Arquivo Histórico-Militar), mas tudo indica que há nele erros factuais graves, permitindo tirar conclusões enviesadas que acabam por escmotear, ignorar ou branquear a responsabilidade do 2º comandante da operação, que  terá ultrapassado o oficial de segurança, o alf mil Diniz.

Hoje sabemos que, na última e trágica viagem, em vez de 2 pelotões, a jangada levou o dobro, contrariamente às regras estabelecidas pelo alf mil Diniz... Mas este era o "elo mais fraco" da cadeia hierárquica e acabou por ser ele o "bode expiatório" de toda esta história que ainda continua mal contada... Julgado em Tribunal Militar, seria ilibado.

3. Hoje evocamos os 56 anos deste trágico evento, por iniciativa do nosso camarada Virgílio Teixeira (*)... E muita água ainda há-de ainda passar sob as pontes do rio Corubal até que se saiba a verdade ou toda a verdade (se é que algum dia se chegará a saber...), sobre esta tragédia que ensombrou o primeiro ano do consulado do Spínola e provocou grande comoção entre os combatentes no CTIG.

Ainda continua  por realizar o prometido encontro, há anos,  do nosso editor Luís Graça com o ex-alf mil José Luís Dumas Diniz (da CART 2338), responsável pela segurança da jangada que fazia a travessia do rio Corubal, em Cheche, aquando da retirada de Madina do Boé.

Uma peça fundamental para eventual encontro será ou seria o ex-alf mil trms, Fernando Calado, da CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), membro da nossa Tabanca Grande, e meu contemporâneo da Guiné (estivemos juntos, em Bambadinca, entre julho de 1969 e maio de 1970). Foi o Fernando Calado que me pôs em contacto com o José Luís Dumas Diniz. Já falámos ao telefone. 

 Dificuldades de agenda, de parte a parte, ainda não nos permitiram fazer o encontro a três. Nem sei se nos chegaremos ainda a  encontrar,  com a idade e as mazelas que já todos temos. Mas seria bom que o nosso camarada ex-alf José Luís Dumas Diniz escrevesse (ou ditasse para o gravador) a sua versão dos acontecimentos na sua qualidade de oficial de segurança da Op Mabecos Bravios. Se calhar já o fez, em tribunal, depoimento a que não temos acesso.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 6 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26466: Efemérides (449): Aos 47 mortos da Op Mabecos Bravios (Cheche, 6 de fevereiro de 1969): a minha homenagem (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)