Na povoação de Quebo, perdida no sertão da terra dos Fulas, o Tubabo conversa com o seu velho amigo, Tcherno Rachid, enquanto as pessoas graves da morança, sentadas em volta, ouvem as sábias palavras do Homem de Deus.
Esse Homem de Deus é um Fula, nascido na região, mas cujos antepassados remotos vieram, há talvez três mil anos, das margens do Nilo.
Mestre da Lei Corânica e filósofo, Tcherno Rachid ligou-se de amizade profunda com o Tubabo, o branco, vai para quinze anos, quando este chegou à sua povoação e se lhe dirigiu em fula.
O Tubabo é também um filósofo que veio procurar em África aquela paz de consciência que o mundo europeu lhe não podia dar.
Fora, noutros tempos, um crítico de arte e um poeta, um paladino das ideias novas, e porque proclamara em concorrida assembleia de jovens que um automóvel lançado a cem quilómetros à hora era mais belo do que a Victória de Samotrácia, firmara seus créditos de «pensador profundo».
Se alguém perguntasse ao branco porque razão se encontrava ali, no coração de África, naquela noite de Natal, talvez obtivesse como resposta um simples encolher de ombros ou, talvez, ouvisse que o seu espírito necessitava daquelas palavras simples que consolam a alma dos justos e acendem uma luz no peito dos homens .
Tcherno Rachid acabara, nesse momento, de repetir as palavras do Profeta: «Nenhum homem é superior a outro senão pela sua piedade».
— Irmão — retorquiu o Tubabo — então o crente não é superior ao infiel?
Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros, antes se ama a si próprio. Só quem ama os que pensam diversamente, venera Deus, que é pai comum de todos.
Assim como tu podes adorar Deus em diversas línguas, assim podes entrar numa igreja, numa mesquita, ou numa sinagoga.
Quando vais pelo mato e admiras o grande porte de uma árvore, as penas vistosas de um pássaro, a força do elefante ou a destreza da gazela, tu murmuras uma oração que agrada a Deus, Criador de tudo o que existe, mais do que agradam as orações que só os lábios pronunciam e o coração não sente.
— Irmão Tcherno, e aquele que não acredita em Deus, esse merece a tua estima?
— Ouvirás a muitos que esse não merece o olhar dos homens: mas eu penso que o descrente merece mais o nosso amor do que o crente. É um companheiro de caminho que se perdeu. Devemos procurá-lo, ajudá-lo, e até levá-lo para nossa casa, a fim de repousar. É um filho de Deus como tu, como eu … como todos nós.
A lua, antes de ter em si tanta luz como a que tem hoje, esteve sete dias obscura, sem ser vista de ninguém, se não de Deus.
Ouve, irmão: quem julga que não crê em Deus, é porque acredita em si próprio e, crendo em si, já crê em Deus, porque o homem foi iluminado com o sopro Divino e é, assim, uma sua imagem.
A lua ia subindo nos céus, lenta, majestosa, iluminando a povoação e a floresta, os rios e os mares…
Os homens graves, de autoridade e conselho, aprovavam as palavras do Tcherno, e o branco, oprimido pela ideia de que lá longe, a muitos milhares de quilómetros, reunidos em volta de uma mesa de consoada, seus avós, pais e irmãos, celebravam uma festa antiquíssima e lembravam, por certo, o «filho pródigo», deixou nascer uma lágrima que se avolumou e correu pela face tisnada pelo ardente sol dos trópicos.
Artur Augusto Silva, 1962
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1. Análise literário do conto
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Artur Augusto Silva (1912-1983) |
(i) Contexto e enquadramento
“Um conto de Natal” foi escrito em plena época colonial portuguesa e publicado em 1962, numa altura em que a Guiné Portuguesa já vivia tensões políticas profundas. E já havia "guerra": surda, suja, "subversão
O Natal surge não como episódio cristão ritualizado, mas como pretexto simbólico para, em pleno Forreá, o “sertão da terra dos Fulas”, fazer uma meditação universal sobre fé, fraternidade, tolerância, paz, convivência entre os povos. Em 1962, ele já estava na Guiné há cerca de 15 anos.
O conto apresenta uma estrutura simples e contemplativa, quase estática:
a) abertura descritiva: a noite luarenta, o espaço africano, a assembleia na morança;
c) culminação simbólica: a reflexão sobre o descrente e a metáfora da lua;
Intelectual europeu desencantado, mas nascido em África, Cabo Verde; antigo crítico de arte, poeta, “pensador profundo”, amigo de Fernando Pessoa, que se autoexilou na África continental profunda, símbolo da crise espiritual do Ocidente moderno, que procura nos trópicos uma paz perdida e um espaço de liberdade (que não encontrava no Portugal europeu ao tempo do Estado Novo); vive entre dois mundos: culturalmente europeu, de origem cabo-verdiana, existencialmente desenraizado; a lágrima final revela a sua condição de exilado moral e afetivo.
Este discurso é notavelmente antidogmático e ecuménico (o Concílio Vaticano II começaria nesse ano de 1962) e algo até particularmente ousado no contexto colonial e confessional do Estado Novo, já em plena guerra colonial (Angola, Índia, mas também guerra "surda" na Guiné, com repressão do nacionalismo emergente; o autor é defensor de presos políticos, acusados de serem militantes ou simpatizantes do PAIGC).
Este gesto literário funciona como uma crítica subtil, implícita, ao colonialismo, sem ser panfletária nem entrar no confronto aberto e direto ou na rutura como fizeram outros africanistas ( Norton de Matos, Henrique Galvão, etc ).
Aqui, o autor propõe uma ética da solidariedade radical, onde a fé não é critério de exclusão, mas ponto de encontro.
(v) Linguagem e estilo: prosa lírica, pausada, de grande serenidade; uso simbólico da lua: luz progressiva, paciência, revelação; léxico simples, mas carregado de densidade moral; diálogo com tom quase parabólico, aproximando o texto de uma narrativa sapiencial.
A oralidade africana e o pensamento filosófico europeu fundem-se num discurso híbrido, reflexo da própria identidade do autor.
O conto antecipa valores que hoje associamos ao diálogo intercultural, à convivência religiosa, à crítica do eurocentrismo, à denúncia do racismo e do supremacismo ("Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros, antes se ama a si próprio.")
Este conto confirma Artur Augusto Silva (infelizmente falecido há muito) como um escritor de consciência ética profunda, que utiliza a literatura não para impor verdades, mas para escutar, ouvir e conhecer o outro, meditar e reconciliar.
O Natal, aqui, acontece sob a lua africana, e a sua mensagem é clara: a fé verdadeira manifesta-se no respeito pelo outro e na humildade perante a diversidade (humana, cultural, espiritual) do mundo.
(Pesquisa: LG + IA/ ChatGPT)
Notas de L.G.
(**) 15 de junho de 2005 > Guiné 63/74 - P57: O Cherno Rachide, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo) (Luís Graça)
Dizem que o Cherno Rachide morreu em 1973 para não assistir ao advento da independência com o PAIGC como poder dominante no país. Sorte foi a sua que teve essa visão reservada só aos sábios e visionários, também eu, se tivesse dom e essa capacidade, preferiria morrer a assistir a essa "heresia" que, na Guiné-Bissau, chamaram de libertação nacional.
Liberdade teve o grande Cherno Rachide que preferiu partir desta para melhor para não ter que aturar com a brutalidade do partido "libertador". E foi um bom amigo do General Spinola, embora a sua familia fosse originária do Futa-Djalon. (...)






























