Sou um dos milhares de cidadãos portugueses que pertencem à chamada geração da Guerra Colonial. Estive tentado a escrever o verbo no pretérito, mas, como tantos outros camaradas meus, ainda sofro, e sofrerei, as sequelas psicológicas que, durante os quase dois anos da minha estada no inferno da então chamada província portuguesa da Guiné, para sempre me machucaram a mente e o íntimo. Assim, a geração da Guerra Colonial só terminará quando o último ex-combatente cerrar os olhos ao mundo… Depois, talvez essa geração destruída, fique registada, em nota de pé-de-página, num capítulo da História do século XX português…
Existem, porém, milhares de outros que tiveram menos fortuna e continuam a padecer violentamente: os chamados deficientes das Forças Armadas – mutilados, cegos, doentes do foro psiquiátrico e orgânico… Muitos deles viram as suas vidas familiares desmanchadas, tornando-se em seres viventes cuja vida pouco sentido tem. E há ainda os milhares que tombaram na mata ao serviço de uma pátria apodrecida por um regime que, durante mais de quarenta anos, constituiu uma nódoa e uma desonra histórica.
Como escreveu um conterrâneo meu, já falecido, companheiro de República em Coimbra e camarada na Guiné, José Noronha Bretão (1), num livrinho intitulado "Três Tristes Tempos e o Regresso do Melro Preto". Passo a citar:
Esperávamos em silêncio
mastigando a memória das coisas
e a Morte claramente apercebida
aguardava o seu quinhão
Pensávamos:
Cada coice de Mauser no ombro
é uma carícia da Pátria agradecida.
Puta de Pátria que agradece aos coices.
De ambos os lados da barricada, a guerra colonial foi intensamente cruel e ainda está a sê-lo para muitas centenas, ou milhares, que por lá andaram a esmigalhar os melhores anos da juventude. Isto de se falar em terrorismo apenas do lado dos guerrilheiros tem muito que se lhe diga. As nossas tropas também o praticavam em grande escala e com muito engenho e sadismo. Sobre tudo isso, porém, era expressamente proibido falar. Havia ouvidos atentos à escuta, e existia medo, ignorância, e a censura a compor o resto do ramalhete, torcendo a verdade para construir a mentira oficial.
Nem sequer havia guerra, afirmavam os donos e cabecilhas do regime. Andávamos tão-só em missão de vigilância nas províncias ultramari nas, flageladas pelos chamados “turras”, e que, como se devem lembrar, constituíam (as tais províncias) o prolongamento natural da pátria, que ia do Minho a Timor, refrão patrioteiro, que então se entoava e que alguns ainda gostariam de continuar a solfejar.
Havia, pois, uma mantilha de silêncio caída sobre o que ocorria nas três frentes de batalha. Pouco ou nada se sabia. As razões são múltiplas e não serão despiciendas as que já apontei: censura, medo, vigilância da PIDE, desinteresse do povo em geral, que só lhe importava como passavam os familiares que por lá combatiam – adeus, até ao meu regresso – e, quanto à esmagadora maioria dos soldados, não sabiam, nem queriam saber, das razões que os haviam levado a ir matar e esfolar negros para um Continente que, segundo lhes martelaram desde a catequese da escola primária, constituía um património tão português como as suas aldeias da Metrópole – “Angola é nossa”- tocavam as bandas regimentais, nas cerimónias militares, por vezes acompanhadas por um coro de vozes tremelicantes de patriotismo…
Havia quem estivesse a par das causas da situação bélica em África: Intelectuais esclarecidos e muitos dos oficiais milicianos, saídos das Universidades directamente para as fileiras, alguns por castigo por terem intervindo activamente nas crises académicas de 62 e 69; os que haviam desertado antes que fosse demasiado tarde e seguissem para as cadeias políticas do regime; outros ainda que, mesmo na clandestinidade ou em plena guerra colonial, procuravam passar informações de todas as maneiras e feitios, que viriam a constituir matéria importante para a rádio “Voz da Liberdade”, aos microfones da qual Manuel Alegre desempenhou um papel relevante de informação e formação.
O silêncio, porém, era a regra e prolongou-se em demasia. Ninguém, por mais ousado politicamente, se atrevia, em público, a falar de guerra colonial. A primeira vez que ouvi gritar “abaixo a guerra colonial” foi numa Assembleia Magna da Academia de Coimbra, cuja ordem do dia era a greve académica que se realizou depois com tal êxito, que havia de abalar o regime. Mas, o estudante que deu aquele grito de alma, sincero e lancinante, foi depois admoestado pelos próprios companheiros, por ter dado razões aos elementos da DGS, infiltrados entre a multidão estudantil e que nos acompanhavam na gritaria de vivas e morras, para que ninguém desconfiasse da sua presença, o que não era muito difícil...
Até onde chegava a censura interior! Os jovens de hoje não poderão compreender essa atitude de uma prudência tal, que poderia, facilmente, confundir-se com cobardia…
Foi na poesia, e ainda durante no regime salazarista, que a guerra colonial principiou a ser “cantada” e denunciada. Os dois primeiros poemas conhecidos sobre a guerra colonial foram publicados por Fernando Assis Pacheco, no seu livro "Cuidar dos Vivos".
A seguir, Manuel Alegre e a sua "Praça da Canção", um dos mais sérios casos editoriais que neste país jamais aconteceram. A PIDE, como lhe competia por ofício, “vocação e amor à pátria”, ainda tentou retirar a obra do mercado, mas já não chegou a tempo. Esgotara-se num ápice. Mas não tardou que corresse, copiado à mão, por esse país fora. Outro livro do mesmo autor, com a guerra em fundo: "o Canto e as Armas"…
Uma das maneiras de escapar à censura, que, por vezes, e felizmente, se mostrava estúpida, era escrever ou poetar sobre a guerra colonial como se fosse a do Vietname ou de Hiroshima, trocando-se as voltas aos vigilantes da ordem e dos bons costumes morais, cívicos e políticos...
A editora tomarense Nova Realidade publicou antes de 74 vários livros considerados à época perigosos: "Cantares", de José Afonso; "o Canto e as Armas", de Manuel Alegre; "Hiroshyshima" e Vietname", duas antologias, cujos poemas se referiam, nas entrelinhas, à guerra colonial portuguesa…
Tenho dado tratos de polé ao pensamento a ver se consigo deslindar as razões por que, logo após a Revolução do 25 de Abril, e já com as colónias tornadas países independentes, se continuou a silenciar a guerra colonial e os seus efeitos traumáticos que ela exerceu sobre milhares de jovens portugueses. Dir-se-ia que tudo ficou encarcerado no seio das famílias que tiveram seus filhos e parentes a combater e voltaram, que morreram ou ficaram mutilados. Talvez o medo, que ainda se não desvanecera por completo, seja uma das razões; quem sabe se o pudor de falar sobre uma ferida ainda não sarada; quiçá a explosão da festa revolucionária, após a qual se silenciaram as armas, ou ainda o facto de a Guerra Colonial ter sido travada contra o regime português e não contra o seu povo, dando deste modo uma achega para o êxito da Revolução de Abril… São causas possíveis, mas que estão longe de explicar tudo. Um dia há-de saber-se, ou se calhar não, pelo menos na sua real profundidade…
Cristóvão de Aguiar
O texto aqui apresentado foi lido, em versão mais ampla,na Biblioteca-Museu da República e da Resistência/Espaço Grandella, em 27 de Novembro de 2008, seguido de um aceso debate entre os presentes.
Notas de vb:
1. Julgo estar a referir-se ao alf mil António José Orlando Bretão que, segundo consta na História do BCav 490, se apresentou em 19 de Dezembro de 1963 e foi destinado à CCav 488/BCav 490 , em substituição do alf mil António N. Coelho Brasil (ferido em combate em 08Out63).