sábado, 29 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3541: 28 Novembro de 1968: Vão-se os nervos e a vontade de mijar...(Torcato Mendonça, CArt 2339, Mansambo, 1968/69).

1. Mensagem do Torcato Mendonça:

Meus Estimáveis Editores

Há 40 anos atrás, este e muitos outros militares de empréstimo, mais dois profissionais(um com um ataque de hemorroidal; outro com um cisco numa perninha) andaram por terras distantes, pertença do nosso glorioso império, a fazerem e a fazerem-lhes tropelias.

Apareceu na memória. Melhor, perguntei que dia é hoje? É vinte e oito? É, hoje é vintôito...e recordei...daí passei o anexo, muitas horas depois ao papel. Gaita à tecla. Aí vai o meu vinte oito de Novembro, quarenta anos atrás.

Bom fim de semana.

Abraços do TM

Novembro, 28: quarenta anos atrás.

por Torcato Mendonça

A noite a fugir. Barulho habitual da preparação de mais uma “operação”, olhares vazios, gestos de autómatos, rostos fechados, a última trinca no pão ou bolacha a ser engolida a custo.

Pressente-se o levantar do dia, ajeitam-se uniformes, armas e munições. Formatura para rápida revista, as perguntas sempre iguais e a inevitável resposta – pronto.

Vão-se os nervos e a vontade de mijar, vai-se o sentir da vida. Já seguem em “bicha de pirilau”, guias e picadores à frente, o resto da maralha, nos sítios certos, atrás.

A madrugada a vir, as sombras a tomarem formas de homens e da mata. Olhares mais atentos, armas mais aconchegadas, marcham, entrando e saindo do trilho já bem conhecido.

Param de quando em vez, posicionam melhor o material, olham mapas, bússola e relógio, alguns ainda mijam. Olham, com olhos tamanho de cabaças a tudo quererem ver e olham-se, entre eles e, por sinais, dizem tudo.

O objectivo era perto do aquartelamento deles. Demasiado perto, demasiado incómodo para lá estar. Até afrontava. Agora iam lá partir, destruir, aniquilar tudo o que bulisse.

Raios. Puta de vida a destes homens, quase ainda meninos. Ou já velhos?

Seguem atentos, rostos fechados, silêncios a nada quebrarem. Sabiam a possível localização do objectivo, as sentinelas adiantadas e as cautelas com o trilho armadilhado ou não. Iam sempre em frente, repetindo os mesmos procedimentos. Mais uma paragem, breve consulta e mudança de Grupo a ir à frente. O acampamento inimigo devia estar perto. Progressão ainda mais cuidada, os ruídos da mata a manterem-se, sinal que iam bem. De repente, de forma inesperada tudo se precipita, parece que o apocalipse aí estava: rebentamentos, tiros, gritos. O inferno ali á mão.

Param. O inimigo reage e, conhecendo o trilho, faz bastante fogo e manda algumas morteiradas a tentar acertar. Chuva de folhas a tombarem da mata serrada. Continua forte o tiroteio. Em redor daquele local, quilómetros em redor não existem seres humanos. Ali há feras, somente feras em luta terminal. Tentam reagir os detrás mas era difícil. Esperam.
- Deite-se, deite-se meu Alferes grita o Sargento do outro Grupo.
- Espere porra. Vê se mandas morteiradas por ali. Tu, uma bazucada além, mas longe. Merda assim não dá. Pára.

De repente um estoiro, o rebentamento de uma morteirada In, sente a terra a bater-lhe, o sopro a levar o quico. Cabrões, filhos de puta…
- Estou ferido - grita o Sargento.
- Calma caraças. Isso não é nada porra.

Acalma e pára o tiroteio. Os do assalto regressam, o Seco do Xime à frente, o resto atrás com três ou quatro feridos.

Fomos vistos pela sentinela. Gritou tuga, tuga pela última vez. O resto foi com as bazukas, a MG e o habitual… partiu-se aquilo tudo…os tipos aguentaram porque tinham lá mulheres e putos…diz-me o Manuel.
- Enfermeiro, trate aqui do nosso Sargento.
- Isto tem que ficar no relatório - diz o Sargento.
- O quê?
- O ferimento, meu Alferes, o ferimento…
- Fo...que merda esta. Está bem. Mas não é comigo. Aguentem isto que vou lá atrás saber o que querem fazer.

Dois oficiais já tinham decidido.
- Objectivo destruído. Os tipos foram-se. Temos feridos. Regressamos com eles. Pedimos evacuação se piorarem.

Respondeu:
- Vou lá ver aquela merda. Quero…
- Não. Não há nada para destruir mais ou pilhar. Cobre a retirada e agora passas para o fim da malta.
- Tudo bem, levem os feridos….

Voltou para junto do Grupo. Regressaram calmamente, devagar, um ou outro problema aqui ou acolá. Talvez duas horas depois entraram no aquartelamento.
- Então o que se passou para este atraso, questionava o Capitão. Tinha ficado de cama devido a doença “dolorosa”. Ouvimos tiros.
- Viemos a cobrir a retirada sem pressas. Depois dizem lá pelo Alentejo: as cadelas apressadas têm os filhos cegos, sem ofensa para ninguém.
- O pessoal da outra Companhia já saiu. Você e o outro Alferes vão amanhã ao Batalhão, têm umas questões a resolver.

Foi. Primeiro apresentou-se o outro Alferes ao Major de Operações e ao Comandante de Batalhão. Enquanto esperava bebeu um ou dois uísques no bar.
- Logo de manhã nosso alferes? - Dizia o Capitão.
- O uísque? Não estou doente meu Capitão. Limpa a bicharada…

Entrou na sala, pouco depois, onde estava o Major e o Tenente-coronel, com um bigode de galã dos anos quarenta.
- Viu se ficou tudo destruído?
- Não meu Comandante.
- Porquê?
- Cumpro ordens.Depois de responder ao nosso Major vá ter comigo.

O Major escreveu algumas palavras num papel, levantou o olhar para ele e disse:
- Vemo-nos à hora do almoço.

Saiu e foi falar com o Comandante.
- Não gostei, Alferes.
Olhou aquele “guerreiro de parada” por quem tinha estima e respeito. Esperou.
- Não diz nada?
- Não meu Comandante.

Um mês depois o Comandante, no dia que fazia 51 anos, foi ver e constatar a destruição feita a 28 de Novembro.

E já passaram, ou fazem hoje, quarenta anos.

Ah o ferimento do Sargento ficou no relatório...precisava...coisas...
__________


Notas de vb:

1. Torcato Mendonça foi Alf Mil da CArt 2339, Mansambo, 1968/69.

2. Artigos do Autor em

28 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3538: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CArt 2339) (2): De Évora a Mansambo...instrução, viagem...Adeus ao meu País.

1 comentário:

Luís Graça disse...

Óptimo regresso... O Torcato (ou o José ?) no seu melhor... Que sejas bem-vindo, camarada...

Luís