quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3525: Blogoterapia (79): Gabriel, Cruz de Guerra na Guiné, coveiro na freguesia...(V. Briote)

Camaradas até à cova


40 anos, é mesmo. Parece que foi ontem, que Manuel Alves e o Gabriel "Gago" tinham recebido em Extremoz a guia de marcha para casa e o papel que os mandava para a peluda, 30 e tal meses depois, 24 na Guiné.

Apanharam o comboio em Santa Apolónia. Mala velha cheia de tralha, umas calças, camisa, meias, cuecas e um sabre feito por um mandinga, de cápsulas de G3 derretidas. Era o que o Gabriel trazia da guerra. E um coração tatuado a azul no braço esquerdo, um desenho bem feito, com um senão, tinha-lhe dito o furriel uma vez na formatura, o Albino tinha-se enganado nas letras, tinha escrito amor de fetura noiva.

Na altura, nem um nem outro, tinham ideia do que iam fazer. De riqueza tinham os braços e trabalho na terra era igual ao dos pais.

Na minha terra, não há futuro, ruminava alto, o Manuel.
Com a enxada nas mãos, os meus pais andaram a vida inteira, a mãe com 79 ainda se levanta antes das galinhas. O pai já se foi quase há um ano. Agora para o último, passou-os em bagaço.
Estava eu ainda em Mansoa, quando o alferes me leu uma carta, não contes com grandes novidades. Era o padre Bernardino a dar conta do mal sucedido, e ainda me lembro de como terminava. Mal sentiu a morte, estava como um cacho, o médico, às primeiras impressões, até disse que o velho estava mas era a morrer de bêbado.
Meses depois de ter chegado à metrópole, Manuel fez como os outros, pôs-se a salto, para França. Tinha sido o seu irmão mais velho a quem tratava por padrinho que adiantou o dinheiro, e o entregou ao passador, lá para os lados da fronteira.

Sem saber ler nem escrever, viu-se em Paris, numa grande gare, com a mesma mala na mão e as mesmas roupas que trouxera da Guiné, e pouco mais. Fez tudo de tudo, homem a dias, acarretou blocos e cimento nos bâtiments, fez mudanças, até acabar por ser admitido na Mairie de Paris, como empregado do lixo, para a zona de Saint-Dennis. Um emprego fixo, pegava às 8 da noite, a carregar o lixo para o camião, às 5, às vezes 6, entrava em casa para descansar um pouco até às 10. Porque às 11 começava noutro trabalho que lhe arranjaram como arrumador num supermercado.

Todos os meses transferia para uma conta que partilhava com o padrinho, o dinheiro que juntava. Os dois rapazes na escola, a mulher às limpezas em casas particulares, levavam uma vida austera, poupavam no que podiam, excepto no comer, à barriga não se corta, costumava dizer à mesa. Roupas, frigoríficos, tvs, rádios, gravadores, gravuras antigas e modernas, as coisas mais inesperadas que encontrava no lixo, tudo servia para pôr a render. Juntou muito dinheiro, que o padrinho foi aplicando em propriedades. Muitos anos depois, dois andares em Barcelos para os filhos quando fossem grandes, e terras nas proximidades de Vila Seca. E sem nunca ter conseguido juntar duas letras. Mas nas contas, gabava-se para quem o ouvia, juntava os números tão bem ou melhor que muitos guarda-livros.

O Gabriel foi-se deixando ficar por ali, ajudava os pais no campo, fazia de coveiro quando alguém morria, passava pelo café do Tino, ouvia os outros. Que a falar era bem gago, passavam o dia a gozá-lo, gaguejavam também quando se dirigiam a ele. Gabriel corava, baixava mais ainda os olhos, ia à vida.
Um dia, resolveu dar troco a um, disparou-lhe de rajada, gago de boca posso ser, de dedos não, em Morés, foi nestas mãos que a MG calou os gajos. Espero que tu, grande cabrão, quando para lá fores, não ponhas os dedos a gaguejar. Ouviu tocar o sino. Pôs-se a andar para o cemitério.

E hoje, quarenta anos depois, nesta tarde chuvosa e fria calhou-lhe fechar a cova do seu velho camarada Manuel Alves. Enquanto o enterrava, pazada em cima de pazada, choros abafados, sinos e silêncio, imagens umas atrás das outras vinham-lhe à cabeça. A ida no Ana Mafalda para a Guiné, o Funchal, S. Vicente, Bissau ao nascer do sol, na Berliet a caminho de Brá, as bajudas com tralhas nas cabeças e mamas ao dependuro, as gargalhadas nervosas, os exercícios no Cumeré, os meses de Mansoa, a emboscada em Cutia, o ataque a Morés...


Num cemitério algures no nosso País, era assim que os os nossos Camaradas eram enterrados. Bombeiros, Legião Portuguesa ou uma secção de alguma unidade do Exército acompanhados de cornetins e tiros de pólvora seca ajudavam a encerrar mais uma vida.

Lágrimas? Não, é da chuva...

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Notas: artigos da série em

26 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3522: Blogoterapia (71): Abrir uma mala de pano...(António Matos)

5 comentários:

Luís Graça disse...

O VB é meu/nosso co-editor desde Julho de 2007. Discreto, competente, empenhado, trabalhador, afável, sempre afável, delicado, dotado de bom senso, sincero, leal, assertivo... Cultivando o 'low profile', podando a prosa dos camaradas menos letrados, postando os textos dos outros... E com este talento para a escrita, a assomar de vez em quando à porta, entreaberta... para a rua.

Ah!, como sabe bem, meu caro VB, ver-te despir a farda nº 3 do trabalhador editorial, elemento de uma equipa de que me orgulho, e de que faz parte o CV, e ver-te a seguir sentado à secretária, o perfil aquilino, a elegância em pessoa, a bater textos como este, como quem bate o fado das nossas vidas... Tantas vidas, e desvairadas, as nossas! Sim, que o fado antes de ser cantado, era dançado e batido...

Meu caro VB: quero-te dizer, e já não é primeira vez que o faço, que aprecio muito a tua escrita, e não estou a disposto a perder o escritor em detrimento do editor... Ficas por isso publicamente obrigado a aparecer mais vezes nessa qualidade, de autor de textos (próprios, curtos, de grande qualidade...) que têm sempre o condão de me surpreender, nos surpreender, a nós e aos seus demais amigos, camaradas e admiradores...

Eu acho que vamos ter que pensar em abrir uma 'fileira editorial' para dar vazão aos muitos talentos literários que estão a desabrochar, a revelar-se ou a desenvolver-se no nosso blogue...

Permite-me apenas que corrija o teu título: Gabriel, cruz de guerra, herói do Morés e coveiro na sua terra...

Sobre o meu editor, de primeira água, vd. poste:

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2007/07/guin-6374-p1944-virgnio-briote-co.html

Anónimo disse...

Há ou não futuro?
O passado, pelos vistos, teve momentos como estes.
....
Julgo que é a isto que chamam poesia.
V Briote um obrigado pelo momento.
Jorge Félix

vb disse...

A história é verídica, os nomes e a localidade não. Uma observação para a foto: data dos princípios dos anos 70. Algumas das pessoas que nela figuram são ainda vivas, ao contrário do meu familiar que ma ofereceu e que nela também aparece. Daqui a minha solicitação à blogosfera: que esta imagem seja exclusivamente para uso visual de quem a vê. O meu pedido de compreensão e os agradecimentos devidos aos Comentadores.
vb

Anónimo disse...

Anónimo Anónimo disse...

tardou,quase que desesperava nada ver escrito...
e
depois o outro é que deve contar a história- o outro ou outros a dizerem que houve uma guerra de merda algures em terras distantes que diziam ser parte de um País...a contarem histórias de homens crianças ou homens já...e por aí fora...
e
tardava mas apareceu...
o ritmo é igual, o som, o tantas vidas...
ainda bem...que de quando em vez...
outros venham...gabriel ou manel...cruzes de guerra ou...
AB T
Ficou no P3524. Há cada uma... OB.VB

Anónimo disse...

Caro Torcato
(...)
O teu comentário não se perdeu, recuperei-o e inseri-o na história do Gabriel. O engraçado é que aquilo aconteceu mesmo. Dois camaradas que foram juntos, pelejaram nas mesmas bolanhas, vieram juntos no mesmo navio, apanharam juntos o mesmo comboio em Sta Apolónia, beberam copos juntos no mesmo café da aldeia e depois cada um seguiu o seu destino de vida. Um foi-se à aventura por Irun, outro ficou-se po ali a vegetar com a gaguez que nasceu com ele. Reencontraram-se vastas vezes em quase quarenta anos. Um ficou com teres e haveres, o outro salvou-se com o 25/4, arranjou emprego fixo como coveiro da freguesia. Anos depois voltaram a encontrar-se, seguramente numa situação que nenhum deles desejava. Um, morto e arrefecido num caixote, e o outro a abrir-lhe a cova. (...)
...o outro ainda vai vivendo, vergado pela gaguez e pela água da vida. Vidas, como tu dizes às vezes...
vb