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quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21560: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (17): Recordação/Homenagem de reconhecimento a Guedes Barbosa

Antigo Quartel do Regimento de Transmissões - Porto
Foto retirada da página http://zala.fotosblogue.com/129565/Codigo-de-Morse/, com a devida vénia


1. Mensagem do nosso camarada Hélder Valério de Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 16 de Novembro de 2020:

Caros amigos,

Como já faz tempo que não envio colaboração, aqui vai uma coisa "ligeira", que penso pode ser colocada na minha série "Histórias em tempo de guerra".

Em parte talvez sirva para amenizar um pouco a agressividade verbal (escrita) que tem aparecido mais recentemente aqui no Blogue.

Por outra parte entendo ser um assunto, o da reconhecimento da faceta humana e solidária por parte de alguns homens do Quadro que connosco se cruzaram e de homenagem aos seu comportamento.~

Será talvez dar corpo à minha faceta de "conciliador-mor" mas não me sinto mal com isso.

Como de costume isto está "fraco" de imagens que possam ajudar a enquadrar o texto e amenizar a sua leitura mas tenho ideia que no Post que cito há por lá uma imagem da parada do Quartel. Não tenho nenhuma foto de quem estou a recordar e mesmo minhas também são raras.

Envio duas fotos de há 3 anos desse Quartel do RTm, a da entrada actual que pouco difere da do meu tempo e onde se vê um pouco do interior da parada com várias viaturas e uma do Edifício do Comando, bastante degradado e uma outra foto pessoal, mais recente, tirada na Feira do Livro de Lisboa o ano passado, aquando da apresentação do livro do Zé Ferreira.

Saudações
Hélder Sousa



Recordação/Homenagem de reconhecimento a Guedes Barbosa

Caros amigos

Vou fazer referência a um “Homem do Quadro” que me marcou e que considero necessário e importante dar aqui testemunho disso e porquê.

Há por norma alguma “animosidade” contra esses homens (haverá algumas razões, com certeza) mas também já apareceram referências a Oficiais e elementos da classe de Sargentos do Quadro que não desmereceram a qualidade de nossos camaradas.

Portanto, o “porquê” destas linhas poderão verificar no final e esclareço também que da pessoa em causa não tenho notícias já faz bastante tempo, ignoro se é viva (e espero que sim), nem falei com ele recentemente de modo a obter anuência para o que vou escrever.

Trata-se de Guedes Barbosa. Ao tempo que o conheci, no então RTm (Regimento de Transmissões), no Porto, chefiava a Secretaria e, embora sem qualquer certeza agora, julgo que era 2.º Sargento. Este Homem era um militar de carreira, do Quadro, um “chico” como dizíamos, mas era dotado de grande sentido humanista e também de humor.
Entrada do então Regimento de Transmissões do Porto

Ora bem, antes do episódio que agora recordo, ocorrido aí em finais de Julho de 1970, devo dizer que estava nesse Quartel em funções de formação de futuros Oeradores de Morse e que por circunstâncias várias estava a chefiar um Pelotão de instruendos, tal como vários dos meus camaradas de Curso, aqueles a quem por hábito costumo designar por “Ilustres TSF”. Por via disso, dessas funções, era corrente ter que tratar de assuntos vários na Secretaria e, naturalmente, interagir com o senhor Sargento Guedes Barbosa.

Então, esperando que não me chamem muitos nomes por agora “puxar a brasa à minha sardinha” (o amigo Branquinho perdoará este meu “falar sobre o meu umbigo”), sempre vos digo que arranjei maneira de termos (os “Cabos Milicianos” que estávamos de “instrutores”) uma semana de férias, quando isso normalmente não teria sido possível.

E como foi? Ora bem, por aqueles tempos faltavam “Aspirantes” e, como disse acima, nós, os “Ilustres” é que estavam a comandar os Pelotões de Instrução. Algures no Regulamento (RDM) eu li que “quem estivesse a desempenhar funções normalmente cometidas a um 'superior', por um período igual ou superior a 3 meses, tinha direito a 1 semana de licença".

Na posse desta informação (não sei precisar se cheguei lá de “motu próprio” ou foi “soprada” por alguém), a verdade é que fui com isso ao Guedes Barbosa, argumentei, reconheceu que tinha razão (estava no RDM….) mas que isso não era habitual, e que seria difícil acontecer mas que, no entanto, ia apresentar a situação ao Senhor Comandante e que, caso houvesse deferimento, não poderíamos ir todos ao mesmo tempo.

Não era habitual acontecer mas aconteceu! Essa minha semana de férias, inédita volto a dizer, ocorreu de 24 ou 25 de Agosto a 1 de Setembro quando regressei e fiquei logo de “Sargento de Dia”.

Nesse dia, 1 de Setembro de 1970, ocorreu então em “encontro imediato” com um personagem sinistro que havia no Quartel, um tal Capitão Carneiro (a quem chamavam “cobra cuspideira” porque quando vociferava – ele raramente “falava” – enchia o interlocutor de perdigotos”) mas isso é outra história, mais comprida, e já a contei aqui no Blogue, no poste P10341, de 6 de Setembro de 2012, intitulado “Abuso de poder”.

Desse “encontro” resultou uma ameaça do tal sinistro personagem de me “embrulhar” numa participação. Acontece que, por sua vez, houve quem me aconselhasse a “fazer queixa” dele, já que o desaforo foi exercido contra um militar em funções, com imensas testemunhas desde o Oficial de Dia aos instruendos de 5 Pelotões que estavam formados à porta do Refeitório.

Por coincidência, no rescaldo dessa refeição foi dado conhecimento da minha mobilização para a Guiné, juntamente com mais alguns.

Quem foi então que me ajudou? Claro, o Sargento Guedes Barbosa! Em primeiro lugar pelo tal conselho de “fazer queixa” (fazer “participações” não era nossa prerrogativa) e depois por ter demovido o tal Capitão de avançar com a participação “porque o rapaz acabava de ser mobilizado para a Guiné e já chegava de “castigo”). 

Ao mesmo tempo, junto de mim também influenciou considerando que devia desistir então, em simultâneo, da “queixa”, pois embora tivesse razão e tudo para ganhar o pleito, o processo ia-se arrastar e nunca mais me despacharia da tropa.

Mas acabou aqui o meu relacionamento com o Guedes Barbosa? Não!

Também ele acabou por ir parar à Guiné e aí já me recordo de ser 1.º Sargento. Por essa época, estando eu a desempenhar funções no “Centro de Escuta”, o 1.º Guedes Barbosa vivia numa moradia ali ao lado e cruzámo-nos várias vezes, trocando impressões. Numa ocasião queixei-me de dores no estômago e não é que o “nosso 1.º” se afadigou em arranjar e fazer um chazinho para o estômago? Pois é, caí em graça e já se sabe que “mais vale cair em graça que ser engraçado”.

Terminou? Não!

Alguns anos mais tarde, não sei agora precisar mas estimo que no início da década de 80, eu e o Nelson Batalha, acompanhados das respetivas “consortes”, metemo-nos ao caminho desde Setúbal para ir visitar um camarada nosso, o Manuel Martinho que julgo por essa altura ainda habitar em S. Martinho do Campo.

No caminho passámos no Porto, fomos até à Arca d’Água, chegámos à porta de armas do Quartel das Transmissões e pedimos para falar com o “senhor 1.º Sargento Guedes Barbosa”. Nessa altura, já não sei se o sentinela, se o “sargento de dia” que entretanto apareceu, retorquiram: “1.º Sargento não, nosso Capitão Guedes Barbosa” e informaram que ele se encontrava num edifício que ficava no interior logo que se saía da parada para o lado das salas de instrução, que bem conhecíamos.

Com a devida autorização fomos até lá. Ficámos à entrada do portão do edifício, uma espécie de armazém de material, em perfeita contra-luz para quem estava no interior em penumbra e dissemos em uníssono “meu Capitão,  dá licença”? De imediato ele volta-se para nós e diz: “Olha o Batalha e o Bigodes”!

Foi comovente, pois passados aí uns 10 anos foi capaz de nos reconhecer num ápice. Não sei mais nada dele, espero que esteja bem, mas guardo boas e gratas recordações.

Abraços
Hélder S.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE JUNHO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13249: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (16): A Carta de Condução

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13249: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (16): A Carta de Condução

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 25 de Maio de 2014:

Caros camaradas Editores
Em anexo envio uma pequena história que se passou comigo sendo realmente uma "Histórias em Tempos de Guerra".
Envio também em anexo documentos e fotos que podem ajudar a ilustrar o texto que, naturalmente, terá o destino que melhor entenderem.

Abraços
Hélder Sousa


HISTÓRIAS EM TEMPO DE GUERRA




16 - A CARTA DE CONDUÇÃO

Caros camaradas, amigos e outros…
Aqui vai uma pequena história que vou partilhar convosco esperando que seja suficientemente ‘leve’ para vos provocar um sorriso compreensivo. Certamente muitos de vós ainda se devem lembrar de uma expressão, agora já caída em desuso, e que era “eh pá, parece que tiraste a carta na tropa!”, quando alguém cometia erros de condução ou mesmo condução perigosa ou “pé pesado”. Isso era assim porque se dizia que ‘na tropa’ se tirava a carta com muita facilidade, sem rigor, sem exigências, tudo muito facilitado. Acho que havia aqui algum exagero de julgamento mas que esta expressão era um tanto corrente, lá isso era.

Tirei a minha carta de condução automóvel durante o ‘tempo da tropa’. Foi em Bissau, em Novembro de 1971.

Numa escola de condução ‘civil’, a “Escola de Condução Manuel Saad Herdeiros, Lda,” que se situava na Rua Tenente Marques Gualdes. À séria, com aulas de código e de condução pelas ruas de Bissau e também, já nas últimas lições, na estrada até ao aeroporto. O mais difícil era arranjar local para fazer “ponto de embraiagem”….

Quase tudo plano, havia três ou quatro sítios onde isso se fazia. Ensaiava-se em todos esses locais e um deles calhava de certeza no exame. A mim foi na pequena rampa de acesso à então “Praça do Império”, vindo do lado do aeroporto. Foi a última manobra e após isso, ficando aprovado, lá se foi comer uma ‘sanduiche’ de queijo da serra na “Pastelaria Império”. Com o examinador, claro!

Para comprovar, junto cópia do “cartão da escola”, do talão do pagamento de 610$00 e também da “requisição de carta”, com todos os elementos identificadores necessários e confirmados pelo Comandante do Agrupamento de Transmissões onde eu estava incorporado, Major João Silva Ramos (o “Raminhos”, como lhe chamávamos, devido à sua pequena altura) e pelo então Chefe da 1ª Rep., Tenente-Coronel Augusto Silveira Reis.

Talão de Caixa no valor de 610$00 (Pesos)

Boletim de inspecção

Até aqui, nada de especial, apenas o facto de ainda não ter visto no Blogue nenhum relato semelhante, embora tenham havido referências a problemas e acidentes de condução. O que tem de mais curioso é que esta questão de tirar a carta não era, para mim, naquele tempo, naquela época, nenhuma obsessão, ainda não havia a ‘pressão social’ de se ter que ter um carro para ‘melhorar’ o seu estatuto social. Recordo mesmo que naqueles momentos de folga, entre turnos de serviço “Escuta”, tinha já, uma vez ou outra, conversado com o meu amigo e camarada de curso e serviço, Nelson Batalha, de que já aqui falei e que é meu padrinho de casamento, da vantagem de tirar a carta numa escola de condução que pudesse ministrar formação mais rigorosa. Lembro-me de se ter concluído que seria essa a decisão que ambos tomaríamos e que de facto aconteceu.

Foto da esplanada do Ronda. (Publicada por Francisco Carrola,  Facebook.)


Vista exterior da esplanada do Ronda. (Publicada por Francisco Carrola, Facebook.)

A parte caricata tem a ver com uma situação que ocorreu talvez em Setembro de 1971, na esplanada da Pensão/Café Ronda, de que junto umas fotos que retirei da ‘net’, apresentadas no “Facebook” por Francisco Carrola. Não me recordo como tudo começou mas a certa altura estávamos para aí uns catorze ou quinze em várias mesas juntas, com muita cerveja e algumas coisas para comer, sendo que quem estava ali era o amigo do amigo do amigo, de que apenas conhecia dois ou três deles.
A certa altura, também já não me lembro a que propósito, a conversa chegou até à parte dos “exames de condução” e de “tirar a carta na tropa”. Foram-se dando opiniões, palpites, etc. e tal, e quando me perguntaram o que é que achava, em vez de ser assertivo e dizer o que realmente pensava, que estava determinado a fazer e que realmente fiz, entrei numa de “maria-vai-com-as-outras” entrando na onda do tom geral das observações que se faziam e disse mais ou menos isto:
- “Eh pá, eu também tinha pensado em tirar a carta na tropa mas parece que há por lá no Serviço de Transportes um Alferes que dizem ser um grande filho “da mãe” que tem a mania que é rigoroso e anda a ‘chumbar’ a malta toda e não estou para isso”….

Nessa ocasião, o camarada ‘à civil’ que estava ao meu lado esquerdo “amigo do amigo do amigo”, disse:
- “Olha lá, esse Alferes sou eu e achas que faço mal?”

Acreditam que ia jurar que me pareceu que alguma coisa ‘caiu aos pés’? Claro que tratei de ensaiar uma ‘retirada estratégica’, balbuciando umas tretas, do tipo de “não era bem isso que queria dizer”, “realmente tens razão”, “é verdade que é preciso evitar que o pessoal vá para a vida civil mal preparado” (afinal tudo o que na verdade acreditava) e outras coisas do género.

Não aconteceu mais nada de especial. Houve compreensão, ficámos amigos e cerca de mês depois estava de facto a frequentar a Escola de Condução.

Sempre que sou tentado em rodear uma questão em vez de a enfrentar de forma séria lembro-me deste episódio, que me marcou verdadeiramente. Até por ter sido uma situação desnecessária.

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur. Mil.
Transmissões TSF
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P12957: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (15): O meu amigo Fur Mil Bento Luís, ou a amizade através dos tempos

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P12957: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (15): O meu amigo Fur Mil Bento Luís, ou a amizade através dos tempos

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 6 de Abril de 2014:

Caros camaradas Editores
Dando cumprimento ao apelo do nosso Editor-Chefe Luís Graça que pediu para 'alimentar o Blogue' durante os tempos que iria ficar no 'estaleiro' devido à intervenção à anca, aqui fica um modesto contributo com este pequeno episódio que me 'tocou' e que ocorreu na passada 3ª feira.
Penso que pode ser inserido na série que, em certa medida, me 'pertence' e a que dei o título de "Histórias em Tempo de Guerra".
Em anexo remeto também uma foto minha actualizada, uma foto relativamente recente do amigo a que me refiro, o nosso camarada da Guiné, Furriel Mil. Bento de Jesus Luís, uma foto em que estou a almoçar com ele no "Enfarta Brutos" em Bissau e uma outra foto em que estou com a moto que utilizava nas minha deslocações a Nhacra, na companhia do meu amigo e também trabalhador na "Escuta", o Fur. Mil TSF Manuel Martinho.

 Abraços
Hélder Silva


HISTÓRIAS EM TEMPO DE GUERRA

15 - O MEU AMIGO FUR MIL BENTO LUÍS
ou
A amizade através dos tempos

Hesitei um pouco sobre como enquadrar este meu artigo. Na verdade, o motivo próximo, foi uma recente intervenção de carácter público que esse meu amigo fez em Vila Franca, mas como o que a motivou teve a ver com algo passado aquando das nossas vivências na Guiné, não será de todo desenquadrado do teor do título que fui dando às minhas memórias, que chamei de “Histórias em tempo de guerra”.

Eu e o Bento já nos conhecíamos há muito. Desde os tempos do exame de admissão à Escola Industrial e Comercial de Vila Franca de Xira, corria o ano de 1959. O Bento, que tem por uma das suas características principais a discrição (por feitio, por formação, por necessidade), teve o azar de nas vésperas ter tido um problema que o fez apresentar-se nessas provas de ambulância, maca e perna engessada. Para quem não gosta, nem quer, ‘dar nas vistas’, convenhamos que ‘melhor’ seria difícil!

Ex- Fur Mil Bento Luís

A partir daí, em que era fácil ser referenciado, e pelo facto de termos ficado na mesma turma nesse ano inicial, de arranque, da Escola Técnica, fomos estreitando, desenvolvendo e cimentando a nossa estima e amizade. Foi-se mantendo ao longo dos tempos, mesmo tendo cursado áreas diferentes pois eu fiz o curso de montador electricista e ele o de formação de serralheiro (tempos em que se procurava obter formação para trabalhar….). Terminada essa fase os nossos destinos originaram um afastamento. O Bento foi ingressar no mercado de trabalho e eu fui continuar os estudos em ‘modo diurno’ para a Machado de Castro, em Lisboa, com vista a obter a formação complementar para tentar o ingresso no Instituto Industrial.

Ao longo do tempo fomos tendo vivências diferentes, convergindo contudo na procura de respostas para se encontrar caminhos para uma sociedade mais justa, mais feliz. O ano de 1969 fez-nos reencontrar em Santarém, na EPC, sendo que ele foi na 2ª incorporação e eu na 3ª mas como ficou na Cavalaria acabámos por ser contemporâneos, sendo que nessa altura estava com ele outro colega da EICVFXira, o meu amigo Joaquim Pedrosa, jogador da Académica de Coimbra e que aí foi colega do Brasfemes, Vítor Campos, Costa, Gervásio, etc.. O ano de 1971 foi o do reencontro em Bissau.

O Bento pertenceu à CCAV 2721, que esteve na Guiné entre 69/71 e que andou pelo Olossato, Companhia a que pertenceu, entre outros o nosso “tertuliano” Paulo Salgado. Tenho a ideia que inicialmente teve um Capitão a comandar a Companhia mas foi substituído (por falecimento?) pelo Capitão Mário Tomé e terminaram a comissão em Nhacra.

Fruto dessa proximidade a Bissau e tendo em conta que desde o final de Maio de 71 já me encontrava na “Escuta”, o Bento, na sequência da sua ida ao Hospital, procurou-me e eu dei-lhe o apoio possível. É dessa época a foto que anexo em que estamos a comer no restaurante da Estrada de Santa Luzia, o “Enfarta Brutos”, julgo que eram umas omeletes de camarão, e cuja foto foi tirada por outro camarada que estava connosco, o Fernando Roque.

Bissau > No Enfarta Brutos com o Fur Mil Bento Luís

A partir daí fui algumas vezes a Nhacra, com o Roque, de moto. Na foto que anexo está a moto que utilizava, embora o camarada que está comigo seja o Manuel Martinho outro “Ilustre TSF” que estava comigo na “Escuta”. Em Nhacra não se vivia só da guerra e para a guerra. Havia conversas, perspectivava-se o futuro, iam-se ‘formando vontades’. Havia também sessões culturais, leitura de poesia, etc.

Setembro de 1971 > Hélder Silva e Manuel Martinho

Quando ele acabou a comissão, em 1971, eu ainda fiquei quase até ao final de 1972 e portanto deixámos de nos ver pois as nossas vidas familiares, profissionais e até de residência eram diferentes. Mas, mais do que isso, foram as diferenças nos nossos “entendimentos” de como se chegar a uma sociedade melhor, que não nos deixaram aproximar mais, permanecendo apenas a amizade e estima ‘à distância’, consubstanciada tantas vezes de forma colateral, já que o Bento manteve a amizade com o meu pai, a quem visitava com frequência e a quem deixava sempre um abraço para mim.

Um dia destes, na passada 3ª feira, dia 1 de Abril, calhou estarmos presentes numa sessão em Vila Franca de Xira promovida pela Junta de Freguesia, integrada nas actividades destinadas a comemorar os 40 anos do 25 de Abril de 74, dando voz, na ocasião, a alguns dos vilafranquenses (naturais ou adoptados), meus contemporâneos, que experimentaram a repressão e a ignomínia da prisão e da tortura pela execrável polícia política.

No final das intervenções dos quatro elementos do painel, em que se falou de resistência, de coragem, de determinação, de solidariedade e de mais outras coisas, foi dada a palavra à assistência, que apesar da noite fortemente chuvosa lotava o auditório da Junta. Numa delas, para minha surpresa e algum embaraço, o Bento resolveu citar-me como um exemplo de solidariedade, forjado na guerra, na medida em que lhe cedi alojamento e outros apoios aquando da passagem dele pelo Hospital de Bissau e de como isso lhe tinha sido marcante e agradável, a ponto de o estar ali a referir.

Confesso que nunca me tinha apercebido do efeito que, de forma natural e impulsiva, fui causador. Para mim, o que fiz foi uma coisa simples, auxiliando um amigo, sem qualquer esforço. Fiquei a pensar que muitas vezes os nossos gestos têm um alcance muito maior do que aquilo que julgamos. E que o “fazer bem” não só não é difícil como é compensador.

No final ficámos a rever as nossas vivências e, mais uma vez, a ‘teorizar’ sobre a necessidade de nos empenharmos, de novo, no combate por um mundo melhor. E, naturalmente, celebrámos a amizade!

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur. Mil. Transmissões TSF
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE NOVEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10613: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (14): Um poema-despedida da Naty, dedicado ao seu companheiro a caminho da Guerra Colonial

sábado, 3 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10613: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (14): Um poema-despedida da Naty, dedicado ao seu companheiro a caminho da Guerra Colonial

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 3 de Novembro de 2012:

Caros camaradas Editor e co-Editores
Por motivos profissionais não tenho estado muito 'colaborante', embora acompanhe na mesma o nosso Blogue por via das mensagens que sempre vão chegando.
Estou sempre esperançado que melhores dias virão (não estou a falar de política, nem de economia, nem da vida das pessoas em geral, estou a referir-me à minha disponibilidade de tempo...) e que nessa ocasião colaborarei mais.

Desta vez envio apenas um poema. Não um poema escrito por mim, não senhor, não tenho jeito, mas um poema escrito para mim. É um poema-despedida-incentivo que me foi presenteado na abalada para a Guiné pela então minha namorada, com quem casei e que encontrei quando arrumava alguns papéis.
Tem a data de 27 de Outubro pois seria por esses dias que teria partido mas, tal como relatei no primeiro artigo que enviei, nesse dia o "Ambrizete" fez-se ao largo da Baía de Cascais mas voltou para reparações e só segui viagem definitivamente cerca das 22:30 do dia 3 de Novembro, faz hoje exactamente 42 anos.

Se acharem por bem, podem publicar e podem incluir na série a que dei o nome de "Histórias em tempo de guerra".

Saudações a todos os camaradas
Hélder Sousa




Querido Companheiro

Vais partir, para um destino incerto,
Mas onde é certa a ameaça da vida.
Nos olhos levas o pranto e o espanto
Da tua cobardia à "doce" realidade.
Viveste no meio da tortura, hesitando e destruindo
Como se não fosse fácil escolher na tua idade!...
Vais de rosto lindo, cheio de amargura.
Tuas veias se contrairão para não espirrarem...
Sentes desmoronar tuas ideias, teus ideais,
Não, não digas nada, companheiro querido,
Eu sei que é por mim que vais!


Monte Real 2011 > VI Encontro da Tabanca Grande > A Natividade, esposa do nosso camarada Hélder Sousa e autora do poema publicado. A Natividade é tratada pela família e amigos por Naty, permitam-nos os dois que no Blogue fique também conhecida por este diminutivo.
Foto ©: Miguel Pessoa (2011)
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Notas de CV:

- Título do poste da responsabilidade do editor

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10341: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (13): Abuso de poder

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10341: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (13): Abuso de poder

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 2 de Setembro de 2012:

Caros amigos
Nesta época de alegada menor produção editorial e de atenção ao Blogue por parte daqueles que normalmente o seguem, envio-vos este texto que foi produzido por inspiração dum episódio retratado no "P10305" da autoria do Juvenal Amado e que podem, caso queiram e achem oportuno, fazer publicar.

Trata-se de uma situação de abuso de poder, de atitudes reprováveis mas afinal tão recorrentes. E também de solidariedade.

Embora não se passando em terras da Guiné trata-se de coisas que se passaram 'em tempo de guerra', que é o lema que escolhi para os relatos das minhas recordações, e com pessoas que estavam a ser preparadas para 'ir para a guerra', sendo que alguns dos que se referem no texto também pisaram terras da Guiné.

Abraços
Hélder Sousa


HISTÓRIAS EM TEMPOS DE GUERRA (13)

ABUSO DE PODER


Caros camaradas, amigos e outros…
A memória tem destas coisas. Certas cenas, certas situações, ficam arrumadas lá, nalgum cantinho do cérebro, por incomodarem, por não lhes darmos importância ou por outro motivo qualquer mas, às vezes, basta um pequeno ‘clic’, uma pequena referência, para voltarem a aparecer, mais ou menos claras, mais ou menos difusas. O que agora pretendo relatar é uma dessas situações. Passou-se fez agora 42 anos e foi o texto do Juvenal Amado no “P10305”, relatando a atitude prepotente de um Oficial, em claro abuso de autoridade, perfeitamente descabelado, no caso que ele ilustrou sobre o Silva, que me fez relembrar este outro episódio do qual fui uma testemunha privilegiada. Neste meu relato há lugar à revelação dessa atitude de abuso de poder mas também às manifestações de solidariedade subsequentes.

Foto retirado da página http://zala.fotosblogue.com/129565/Codigo-de-Morse/, com a devida vénia

O local foi o então designado Regimento de Transmissões, no Porto, na Rua do Vale Formoso, ali perto do Jardim da Arca d’Água. A data foi o dia 1 de Setembro de 1970, os tais 42 anos que acima referi. O espaço em causa foi nas proximidades do Refeitório, aquando da formatura para o almoço.

As personagens principais foram o Sargento-de-dia, papel desempenhado pelo 1.º Cabo Miliciano de serviço na escala desse dia e um tal “Capitão C” vulgarmente conhecido na Unidade com a ‘cobra cuspideira’ pelo facto de ser usual falar espalhafatosamente lançando ‘perdigotos’ para cima dos seus interlocutores que deveriam guardar prudente distância. As personagens secundárias foram o Sr. Oficial-de-dia e o conjunto de soldados-instruendos em formatura e outros nas proximidades. O que se passou, e a que eu assisti, foi o seguinte:

Aquando da verificação das presenças e ausências autorizadas para a entrada no Refeitório, com os diversos pelotões formados, sob um sol a pino, abrasador, o Sargento-de-dia verificou que faltavam dois elementos que, por sinal eram do seu Pelotão de instrução. Procurou saber o que se passava e logo outros instruendos lhe disseram que os elementos em falta tinham sido ‘desviados’ pela ‘cobra cuspideira’ para ir até à pedreira, ali ao lado (cerca de 30, 40 metros), quando se dirigiam para o Refeitório, para participarem numa acção de rebentamento dessa pedreira e retirada rápida de algumas pedras. Esse trabalho demorou mais do que se previa e desse modo os homens ainda se encontravam sob as ordens forçadas do “Capitão C” estando agora em falta à formatura.

Para procurar resolver a situação o Sargento-de-dia dirigiu-se ao local onde estavam os elementos em falta para saber como se tinha processado a ‘requisição’ e como e quando os homens seriam ‘libertados’.

Nesse momento, o “Capitão C”, sentindo-se questionado na sua autoridade, dirigiu-se em passo apressado, gesticulando e vociferando, perguntando ao 1.º Cabo Miliciano o que é que ele tinha que interferir no trabalho. O 1.º Cabo Miliciano suportando estoicamente os ‘perdigotos’ da ‘cobra cuspideira’, colocou-se em sentido e respondeu-lhe que só estava a cumprir e a fazer cumprir as suas responsabilidades de Sargento-de-dia e pretendia os homens na formatura ou então um documento de requisição dos mesmos para justificar a ausência deles à formatura.

De cabeça perdida, por lhe contestarem a sua ‘autoridade’ normalmente impune, o “Capitão C” ensaia enfiar uma chapada com a sua mão direita na face esquerda do Sargento-de-dia que teve reflexos mais rápidos que o agressor, levantando o braço esquerdo e sustendo a chapada ao mesmo tempo que a mão direita agarrou fortemente o braço da ‘cobra cuspideira’ dizendo qualquer coisa que ficou apenas no conhecimento dos dois (e dos dois instruendos que se encontravam ali a dois metros), já que estavam face a face.

O Sr. Oficial-de-dia resolveu então entrar para ‘salvar’ a situação, assumindo a ‘justificação’ da não presença dos instruendos ‘requisitados’ pelo “Capitão C” e dissuadindo o “Capitão C” de voltar a interferir com as obrigações do Sargento-de-dia, mas como tudo se tinha passado à vista dos vários Pelotões e do próprio Oficial-de-dia os acontecimentos não iriam ficar por ali.

Até aqui falei do ‘abuso de poder’, mas é preciso também falar da solidariedade.

Acontece que naquela época decorriam obras no Quartel sendo que era voz corrente, no tal diz-que-diz, que a ‘dupla maravilha’ que por lá havia nessa época, constituída pelo referido “Capitão C” e pelo “Tenente VT”, manobrou a empreitada de modo a fazer com que algum trabalho necessário fosse executado pelos próprios soldados-instruendos, economizando as verbas correspondentes, sendo que o tal ‘diz-que-diz’ aventava hipóteses bem mais ‘cabeludas’.

O certo é que esse referido trabalho consistia essencialmente na recolha e transporte de pedras da pedreira para o local das obras, trabalho feito sem luvas (estávamos longe da intervenção da inspecção de trabalho…) o que originava frequentes cortes, esfoladelas e inchaço nas mãos. Os instruendos envolvidos, requisitados obrigatoriamente’, faziam-no rotativamente pelos vários Pelotões, mas andavam contrariados, revoltados mesmo, porque essas acções originavam frequentemente um menor desempenho nos testes de aproveitamento semanal, que permitiriam, ou não, a ida de fim-de-semana.

Deste modo, a cena ocorrida à sua frente, de desautorização do Sargento-de-dia pelo “Capitão C” e correspondente oposição só podia suscitar apoio e simpatia ao 1.º Cabo Miliciano.

O “Capitão C” no meio da sua fúria, para além de sentir desafiado na sua ‘autoridade’ dizia que tinha sido ofendido porque o 1.º Cabo Miliciano quando o impediu de bater e lhe agarrou o braço lhe teria dito:

- Se voltas a repetir isto, meu cabrão, mato-te! - e, em consequência ameaçou o 1.º Cabo Miliciano que lhe ia ‘fazer a folha’, ia fazer uma participação que o meteria na cadeia. Os instruendos juraram que o que ouviram foi:

- Se volta a repetir isto, meu capitão, bato-lhe!-  e dispuseram-se para o testemunhar onde e como fosse preciso.

Várias pessoas, incluindo o Oficial-de-dia que presenciou a cena (mas não o ‘diálogo’) e por exemplo o então 1.º Sargento Guedes Barbosa (que mais tarde também esteve na Guiné) que é um exemplo vivo de como as pessoas do Quadro não são indiferentes às injustiças, aconselharam o Sargento-de-dia a ‘fazer queixa’ do “Capitão C” com base de desautorização de funções e de tentativa de agressão testemunhada.

Com estas premissas decorreu a refeição e logo a seguir ao almoço foram várias as ‘movimentações’ que se processaram em vários sentidos. Nos ´rádios´ recebidos por essa altura, depois de descodificados, tomou-se conhecimento de várias mobilizações, designadamente de sete 1.ºs Cabos Milicianos para o CTIG, entre os quais o que protagonizava o episódio do dia.

Uns quantos dissuadiram o “Capitão C” de apresentar a tal participação, porque as suas razões eram fracas, havia largas dezenas de testemunhas para falar da tentativa de agressão e, além disso, “o rapaz já tinha castigo suficiente, tinha acabado de ser mobilizado para a Guiné”.

Outros ‘mostraram’ ao 1.º Cabo Miliciano que não valia a pena ir para a frente com a queixa porque o processo iria demorar algum tempo e já não estaria lá para o acompanhar. O melhor era mesmo anularem-se as acções, a participação e a queixa. E assim se fez.

Mais difícil foi dissuadir alguns dos instruendos mais revoltados com a situação de exploração a que estavam submetidos, trabalhando como escravos e ‘metendo dinheiro ao bolso’ dos tais membros da ‘dupla maravilha’ e que aproveitaram a situação para tentarem algum desforço deles.

Recordo alguns, como o “Tony” que trabalhou no “Hotel Cibra” em Cascais (e que também foi mais tarde parar à Guiné) e o “Marinheiro” que trabalhou na “Lanalgo” em Lisboa, entre outros, que estavam apostados em ‘visitar’ a propriedade da ‘cobra cuspideira’ em Gaia e fazer lá alguns ‘trabalhos’ para se sentirem de algum modo vingados das afrontas.

Acho que consegui fazer-lhes ver que não valia a pena tais acções, nem por mim que iria seguir a minha mobilização e não queria mais perturbações, nem por eles pois podiam ter algum dissabor que lhes iria estragar a vida. Mas valeu a solidariedade!

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur. Mil. Transmissões TSF
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10195: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (12): O senhor Major Calixto

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10195: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (12): O senhor Major Calixto

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 22 de Julho de 2012:

Caros Editor e Co-Editores
Como sei que a 'produção' afrouxa, aqui me atrevo a enviar um texto que, se entenderem, podem publicar.
Trata-se de algo de que senti o impulso de escrever pois tudo o que aí relato é verdade, com um ou outro pormenor que possa estar menos exacto, e que no fundo é para fazer a minha justiça a alguém que lá e naquelas circunstâncias pode não ter sido (ainda hoje) bem compreendido.

As fotos que vos envio têm créditos que devem ser atribuídos, a mim mesmo na foto a preto e branco em que estou com os Furriéis Centeno e Herlander, a João Moura na foto do conjunto do Quartel e a Eduardo T. Lopes, da CART 3332, as restantes. Na foto de conjunto, que é pouco antes da minha chegada a Piche pode-se ver a Porta de Armas com a árvore que nessa altura ainda não tinha a base cimentada, vê-se o edifício identificado com o 11 como sendo o do Comando, atrás desse local pode-se ver o edifício com a viatura do STM, o edifício com o 4 era a messe de sargentos e oficiais e o espaço assinalado entre o 6 e o 14 foi onde se construiu o novo Posto do STM.

Saudações.
Hélder Sousa


HISTÓRIAS EM TEMPOS DE GUERRA (12)
 

 O SR. MAJOR CALIXTO

Os antecedentes

Já vos macei várias vezes com os meus relatos mas, para um melhor enquadramento desta história, volto a referir que aparecendo na Guiné em rendição individual, sendo Furriel Miliciano de Transmissões e pertencendo ao STM, fui incumbido de ir até Piche com a missão de insistir com o comando da Unidade que à data, início de Dezembro de 1970, lá estava sediada desde Agosto desse ano, o BCAV 2922, para providenciarem a rápida construção dum edifício próprio para alojar o Posto de Transmissões do STM que até ao momento funcionava numa viatura que seria necessária para outras actividades, em Bissau ou onde viesse a ser aplicada.

Vista geral do Quartel de Piche

Foto: © João Pereira da Costa (2012). Direitos reservados.

Quando lá cheguei o Batalhão estava a ser comandado interinamente pelo 2.º comandante, o Sr. Major Cav António Calixto, já que o 1.º comandante, o Sr. Tenente-Coronel Cav Chaves Guimarães (que me dizem já ter falecido), tinha sido ‘retirado’ para a ‘Metrópole’, como então se dizia. Uma ‘história cabeluda’ conforme as ‘vozes da caserna’, as quais também me alertaram para ter cuidado com o “Major Calixto”, que ‘era uma fera’. Foi exactamente ao Sr. Major António Calixto que me apresentei informando que iria tomar conta do Posto do STM, sem me alongar em mais detalhes ou outras indicações sobre a missão principal.

Por essa época cantavam-se algumas canções, fados, coisas assim, lá por Piche, nos convívios do pessoal e uma delas, rezava assim:

Foisimbora o Guimarãããães 
foisimboooora o Guimarãããães  
Foisimbooora pra Lisboa 
Se levasse o Calixto e o Paulo 
Se levasse o Calixto e o Paulo 
Isso é que era coisa boa.

O tom era bastante lamentoso, choroso mesmo, e no início quando comecei a ouvir pensei que se tratava de uma homenagem a algum camarada que tivesse morrido (foi-se embora o Guimarães…) não sabia que Guimarães era o nome do Comandante ausente e inicialmente pensava que o ‘embora’ era mortal, mas depois o ‘ir para Lisboa’ levou-me a pensar que seria ferido. Quando a seguir vem as referências ao “Calixto” e ao “Paulo” é que me esclareceram tratarem-se dos Majores da Unidade, sendo o “Calixto” o 2.º comandante e que agora chefiava o Batalhão interinamente e o “Paulo”, o Sr. Major Mendes Paulo (também entretanto falecido), que era o Major de Operações.

Obviamente que se tratava daquele tipo de reacção do pessoal que ‘sente’ que as chefias é que determinam as situações e que ‘rebelando-se’ contra elas, o ‘mal’ fica exorcizado. Quem não se lembra daquela espécie de ‘grito de guerra’ que se ouvia muitas vezes de “tirem-me daqui!”, “estou farto deles’! a que se seguia muitas vezes também um coro de vozes a dizer “então corta-os”! Esses ‘eles’ eram todos os que hierarquicamente estavam acima da cadeia de comando de quem se sentia ‘encurralado’.

Ora bem, este tipo de indicações apenas dá para caracterizar muito superficialmente uma situação mas dá para entender que havia por li algum temor. Como pretendo apenas falar do Sr. Major Calixto vou ficar pelo que a ele diz respeito.

E quero fazê-lo porque acho que é devido e merecido.

Ainda recentemente (16 de Junho passado) estive em Estremoz no convívio organizado no RC3 para comemorar os 40 anos do regresso do referido BCAV 2922 e de que o nosso ‘tabanqueiro’ Francisco Palma fez relato para o Blogue, onde tive a oportunidade de conversar com o Sr. Major (hoje Coronel) António Calixto e lembrar-lhe alguns episódios que irei agora também relatar. E porque alguns dos que por lá estiveram ainda pareciam ter mais temor que respeito, quero aqui deixar o meu testemunho público do que me parece ser justo referir.

Perguntando eu porque diziam que “o Calixto” era ‘uma fera’ não me conseguiam adiantar nada que não fosse configurável com uma exigência de disciplina e rigor que o Major procurava incutir no pessoal. E, pergunto eu, isso não era fundamental para manter a ‘pele sem furos’? Tanto quanto sei acho que o Sr. Major não utilizou a pedagogia do ‘pontapé no cú’ já aqui revelada como método eficaz para fazer dum determinado pelotão, autodenominado “Foxtrote”, de que o nosso conhecido e amigo Zé Dinis tem vindo a relatar a história, uma força disciplinada, organizada, solidária e… intacta!

Diziam-me: “ah, ele às vezes passava por um e dizia – ‘ainda não apanhaste uma ‘porrada’? vamos ter que tratar disso!’ Francamente, não me parece grande coisa, e nunca fui testemunha de tal coisa.

Por isso, considero que a acção do Sr. Major Calixto foi, em geral, benéfica para o conjunto dos militares que integraram aquele aquartelamento e que a disciplina e o rigor nunca fizeram mal a ninguém. Bem pelo contrário. Se hoje houvesse mais atributos desses em muitos lugares de decisão, e para não politizar esta questão fico-me apenas pela referência a membros do Governo, andaríamos todos muito melhor. Se questionassem as posições políticas e as convicções do Sr. Major talvez se pudesse encontrar alguma base de entendimento, agora a disciplina, não! E com o Sr. Major Calixto aprendi alguma coisa, lições de vida, que partilho então seguidamente.


O primeiro ‘embate’

Na noite do primeiro dia em Piche fui para a messe comum, de sargentos e oficiais, sendo que os primeiros tinham duas 'mesas' em que a primeira delas era para a generalidade dos sargentos (furriéis incluídos, obviamente) e a segunda para os poucos que estavam de serviço ou tinham qualquer impedimento para estarem na primeira ‘mesa’ sendo que essa segunda ‘mesa’ coincidia com a dos oficiais. Como era novato na zona fui na primeira mesa acompanhar a maioria dos furriéis que tinham sido meus contemporâneos na recruta em Santarém, como por exemplo o nosso tertuliano Luís Borrega, fui conversando e ao mesmo tempo arquitectando o que pensava ser a melhor maneira de abordar o assunto da tal missão principal que me levava a Piche, tendo em conta o aviso que me tinham feito sobre a ‘fera’.

Antes de ir para lá tinha estado naturalmente com o pessoal que iria chefiar, inteirei-me da situação, de cada um deles, do trabalho, do Posto e do que se poderia saber sobre a localização da tal construção. Mostraram-me um local que se dizia estar reservado para tal, quase em frente à messe de oficiais, que já tinha a base escavada até cerca de 1 metro abaixo do solo e com enrocamento de 60 centímetros a toda a volta excepto num ponto que se dizia ir ser a entrada e cuja continuidade de construção tinha sido parada por falta de material ou por outras prioridades, que o meu pessoal não me soube dizer.

Munido dessa informação resolvi-me a ‘enfrentar a fera’ segundo o meu esquema mental, que me pareceu o mais adequado. Então fui-me deixando ficar na messe até perceber que o Major Calixto se preparava para se levantar. Antecipei-me, saí, e fiquei no alpendre como quem está (e estava de facto) a saborear a primeira noite de mato, a absorver cheiros, sons, e até cores. O Major saiu, viu-me e perguntou amavelmente que tal achava o Quartel, as instalações, o pessoal, etc.. É preciso que se diga que, tendo feito a recruta em Santarém, sabia bem como impressionar, pelo aprumo, pelo rigor e também por alguns ‘tiques’ próprios, os homens dessa Arma.

Aproveitando a ‘deixa’ das instalações fui directo ao assunto e disse-lhe:  
- Meu Major, há pouco quando me apresentei, não houve oportunidade para lhe dar conta da totalidade da minha missão e que é de que venho incumbido pelo meu comando do STM de Bissau para lhe pedir que avance rapidamente para a construção do edifício para o Posto pois a viatura está a fazer muita falta para outras missões.

Até aqui, tudo bem, tudo normal. Mas a seguir joguei forte, conforme tinha pensado durante o jantar e disse:
- Tenho a indicação para fazer reportes semanais para Bissau a dar conta do avanço dos trabalhos. O meu Major pode-me dizer como estamos quanto a isso?

Estão a ver a situação, estão? Um fedelho de 22 anos, um Furriel, a colocar um Major, a “fera”, na situação de lhe ‘dar satisfações’ para depois as reportar para Bissau? Nessa ocasião o Sr Major ‘fechou’ a cara, olhou-me de-alto-a-baixo e disse secamente:
- Pode informar que não está nada feito!.

Ora bem, sabendo eu o que já sabia e que acima vos dei conta, disse para os meus botões: “ou já ganhaste isto ou vais ter um amigo à perna”.

No dia 1 de Abril de 1971 tive o grato gosto de enviar o último reporte: “posto concluído”! E concluo também que da premissa que acima coloquei não só ‘ganhei isto’ como também ganhei um amigo, e não foi ‘à perna’, pois o Sr. Major deve ter gostado (nunca falámos disso mas foi o que me deu a entender na despedida) da minha atitude assertiva.


Aprendizagem

Há sempre quem teorize sobre as benfeitorias da vida militar e há também quem a diabolize. Neste caso que vos vou relatar, passado naturalmente entre mim e o Sr. Major, fiquei com a lição do que se espera de quem tem por missão mandar e/ou comandar. Foi assim.

Numa bela manhã, já no ano de 1971 mas que não sei precisar bem quando, embora a minha sensibilidade aponte para o mês de Fevereiro, o Sr. Major precisou de mim e mandou-me chamar pouco depois do café da manhã.

Acontece que por esses dias o Posto estava desfalcado de pessoal porque dos cinco operadores que o compunham tinha um de férias e dois manifestamente inoperacionais com fortes ataques de paludismo. Nessas circunstâncias decidi que eu próprio faria o turno mais penoso (não era mau de todo no trabalho com a chave de morse), pelas dificuldades das condições de captação, das interferências atmosféricas, do esforço resultante da solidão, ou seja o nocturno, que podia ser bastante pacífico em termos de necessidades de comunicação ou a exigir grande tensão por actividade que, naqueles momentos se traduziam quase sempre por mensagens tipo “zulu”. Nas circunstâncias fiquei com a responsabilidade de assegurar a operacionalidade do Posto desde as 20 horas até às 8 da manhã, ficando cada um dos outros dois operadores com 6 horas cada qual.

Como podem calcular, depois de uma noite ‘directa’, cerca das 10 horas, mais coisa menos coisa, quando fui chamado, estava no começo do primeiro sono e devia estar completamente ‘pedrado’. Deste modo, entre a chamada do Sr. Major, irem-me acordar, reagir, levantar-me e colocar-me em condições apresentáveis, demorou algum tempo, mais do que seria esperado por quem me chamou. E disso mesmo fui confrontado pelo Sr. Major Calixto que, aparentemente incomodado pelo que pensaria tratar-se de algum acto de desobediência ou resistência ao comando, lá tratou de me verberar fortemente para a necessidade da rápida e pronta resposta às solicitações do Comando. Quando lhe relatei o que se passava e a razão pela qual não me tinha apresentado mais prontamente, pois tinha estado a trabalhar com a chave de morse toda a noite, o Sr. Major Calixto disse-me:
- Você não está aqui para trabalhar, está aqui para dirigir e disciplinar os seus homens, não se esqueça disto!

E não esqueci!

Foi uma lição. Fiquei a saber que fossem quais fossem as circunstâncias, não deveria haver misturas entre comandantes e comandados. Percebo o que me queria transmitir e não deixo de entender a sua relativa validade mas, como em quase tudo na vida, segundo a minha perspectiva, é preciso ter sempre em conta cada circunstância e agir a partir dessa análise.


Piche, Março de 1971 > Centeno, Hélder e Herlander

Foto: © Hélder Sousa (2012). Direitos reservados.


Reconhecimento

Uma outra passagem com alguns aspectos interessantes dos meus contactos com o Sr. Major Calixto passou-se numa noite quente (qual não era?) nos finais de Março ou princípio de Abril de 71.

Nessa noite, já depois da hora de jantar, estava com outros furriéis amigos, o Centeno, o Herlander e o Sobreira, a conversar recostados numa base cimentada que envolvia uma grande árvore que ficava no meio da parada de entrada, frente ao Comando. Como de costume, a conversa versava vários temas e entre eles também às vezes se questionava a justeza da nossa presença ali, naquelas circunstâncias, a natureza da guerra, o nosso futuro como cidadãos, como País, etc.

Onde nós estávamos predominava a escuridão mas na zona do Comando as luzes interiores deixavam ver quem lá estava, bem assim como a porta aberta trazia-nos alguns sons do que por lá se ia passando. E parece que a inversa também.

Em dada altura o Alferes do Pel Art, cujo nome agora não me ocorre, irrompe pelo Comando e ouvimos o Sr. Major perguntar-lhe se havia algum problema, se as zonas de tiro para a batida à zona que se fazia logo de manhã para a área da construção da estrada que estava a ser feita pela Tecnil já estavam determinadas e foi aí que ele disse que andava à procura do Furriel Centeno para ultimar esses preparativos mas que não o consegui encontrar. Sem mais delongas também ouvimos o Sr. Major dizer “procure ali debaixo da árvore que deve estar lá com o pessoal da Oposição”.

Como podem calcular a expressão utilizada e o conceito que lhe estava subjacente deixou o pessoal preocupado sobre que e quais consequências isso poderia ter. Na verdade, não se passou nada, pelo menos que saiba, e quanto a isso acho que se pode admitir que o Sr. Major Calixto resolveu utilizar alguma dose de ‘paternalismo’, afinal nós tínhamos 22, 23 anos e é próprio da juventude ser irreverente.


Despedida

O outro, e último, momento significativo dos meus contactos com o Sr. Major Calixto, que só voltei a ver agora no Encontro do BCAV 2922, ou sejam 41 anos depois, foi exactamente quando lhe fui apresentar as minhas despedidas no meu regresso a Bissau com a missão cumprida, o Posto construído, equipado, com um outro Furriel Valério a substituir-me.

Foi uma conversa a dois, com a disciplina militar pelo meio, é certo, mas de uma elegância e nobreza que ainda hoje me faz vir aqui a terreiro honrar o trabalho que o Major Calixto fez em Piche. Não sei qual foi o seu percurso após o 25 de Abril, da sua ‘conversão’ ou não à ‘nova situação’, isso não é relevante para esta análise, que procura falar do ano de 1971. Apenas me interessa deixar aqui o testemunho de que apesar de tudo o que atrás relatei, nesse dia, nessa hora, olhámo-nos nos olhos, agradeci-lhe a hospitalidade, as ‘lições de vida’ e também a sua compreensão e ele também me disse que tinha tido grato gosto em me ter como colaborador, que lamentava que me fosse embora e que me desejava felicidades e sucesso na vida futura, não deixando também de me recomendar ‘prudência’.


Francisco Palma, Hélder Sousa e Coronel Aantónio Calixto

Hélder Sousa, Coronel António Calixto e Francisco Palma

Major António Calixto e Luís Borrega

Fotos: © Eduardo T. Lopes (2012). Direitos reservados.


Conclusão

Fica assim concluída a reportagem de alguns episódios da minha passagem/estadia por Piche, na perspectiva de que senti a necessidade de dizer a alguns dos amigos que por lá foram integrados no BCAV 2922 que não partilho a ideia do Sr. Major Calixto ser ‘uma fera’, mas sim um disciplinador, e provavelmente aquele que, dadas as circunstâncias da saída precoce do 1.º Comandante com baixa à psiquiatria após 3 meses de mato, a Unidade necessitaria para assim manter níveis elevados de concentração.

Um abraço, e boas férias para aqueles de vocês que as tiverem!
Hélder Sousa
Fur. Mil. Transmissões TSF
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Setembro de 2011 > > Guiné 63/74 - P8790: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (11): A primeira missão - parte II

domingo, 18 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8790: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (11): A primeira missão - parte II

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 16 de Setembro de 2011:

Caros camaradas Editor e Co-Editores
Em anexo envio em conjunto os vários comentários (com alguma pequena revisão) que enviei a propósito de questões que foram colocadas no post* com o relato da minha "primeira missão", que pretendia servisse para provocar algum sorriso de boa disposição mas que acabou por suscitar vários esclarecimentos, dos quais aqui estou a tentar dar resposta a parte deles, sendo que acabei por completar com mais informação.

Podem proceder conforme melhor for considerado.

Um abraço para todos
Hélder Sousa


HISTÓRIAS EM TEMPOS DE GUERRA (11)

Caros camarigos
Motivado por várias questões que foram colocadas no artigo anterior relativo ao tema a que chamei “A primeira missão”, vou tentar adiantar alguns esclarecimentos, os que puder e souber, relativamente ao que me solicitaram, chamando agora

“A primeira missão – parte II”

Nesta parte vou procurar responder e corresponder às questões ‘técnicas e práticas’ deixando para uma “parte III” as que envolvem outro tipo de sensibilidades, com as que se prendem com a opinião manifestada pelo nosso camarada C. Martins quanto às "irresponsabilidades confrangedoras", de acordo com a sua visão do que apresentei, a qual, sendo dele, tem o meu total respeito, embora com parcial desacordo.

Vou então começar pelas questões do Luís Graça, relativas ao percurso efectuado e ao "perímetro de segurança", sendo que alguns esclarecimentos podem também servir para outros amigos.

O percurso
Sobre isso gostava que fizessem um esforço par se procurarem colocar-se um pouco na minha pele, ou seja, na minha situação. Muitas vezes encontro aqui no Blogue, mas não só (isso é comum a muitas situações), casos em que as pessoas colocam objecções, questionam, opõem-se, etc., ao que é descrito mas não fazem um esforço para enquadrar a situação de que estão a "mandar bitaites" no tempo e no espaço.

Reparem, eu cheguei à Guiné a 9 de Novembro, a partir de 10 entrei em estágio no STM e o meu percurso era das instalações do alojamento dos sargentos para o STM, para a messe e uma ou outra noite para ir ao centro de Bissau conhecer a "Meta", o "Pelicano", o "Chez Toi", o "Solmar", a "5ª Rep.", etc.
Foram estes nomes que começaram a ser familiares, mais "Amura", "QG", "Palácio do Governador", "Cupilão", e alguns outros mais.

Também comecei a ouvir outros nomes: "Tite", "Morés", "Óio", "Cantanhez", "Pirada" "Aldeia Formosa", "Teixeira Pinto", "Buba", "Bula", "K3", "Mansoa", "Guileje", "Guidaje", e mais alguns outros sendo que nessa altura eram só nomes, não sabia graduar as dificuldades, as perigosidades, de cada um desses locais.

Havia outros nomes que já conhecia, pelo estudo da geografia e das notícias dos jornais, tais como "Bolama", "Bafatá", "Madina do Boé", "Bijagós", "Como", etc.

Deste modo podem perceber que, para mim, "Prabis", "Quinhamel" e outras coisas semelhantes, não tinham nenhuma carga valorativa, quanto a ser favorável ou perigosa.

Julgo que com esta explicação, e se fizerem um esforço de acompanhamento do que poderia pensar na ocasião, poderão concordar comigo que, ao fim de talvez nem sequer uma semana, não tinha nenhuma noção sobre esses locais.

Pergunta então o Luís se não teria feito um esboço do percurso dos ensaios. Não, não fiz, nem estava preparado mentalmente para o fazer, não fazia ideia do que iria suceder.

Eu não era mau de todo na grafia e tinha jeito para "afinar" as sintonias, "tirar o bigode", como o pessoal que trabalhou com a ANGR-C9 costumava dizer. Por isso, e por estar "disponível", já que estava em estágio, tal como mais três dos outros Furriéis que chegaram comigo, fui indicado para a missão, mas não sabia muito bem o que é que era pretendido com a experiência.

E de facto quando saímos do edifício das Transmissões é que fomos recebendo as indicações para onde pretendiam que fossemos. Disseram "até Antula", que era onde situavam os emissores, mas para mim isso era apenas um nome, não sabia para onde ficava, só depois é que fiquei a saber que ficava a leste da Santa Luzia. Mas eu não saber era obviamente irrelevante, só tinha que receber a indicação, transmiti-la ao condutor que, naturalmente, sabia.

Depois disseram, "até Quinhamel". Outro nome sem significado geográfico, sem outro tipo de referências, mas do conhecimento do condutor.

Em abono da verdade devo dizer que nessa viagem, feita de dia, à tarde, não cheguei a ver o caminho, ia na parte de trás da viatura, que era fechada, junto ao rádio, do operador de grafia e do Oficial sul-africano. Não me apercebi da envolvência exterior, se era em descampado, se no meio de arvoredo, se no meio de casas.

Já no percurso de noite aconteceu o mesmo. Ia na parte operacional e o outro Furriel na cabina junto ao condutor. Por isso sei que fomos até Prábis (foi o que se falou) e aí andou-se um bocado para a frente e para trás, como relatei. Na volta de regresso fomos até à "Missão Católica".

Essa “Missão” acho que sim, que são as instalações de Cumura que ficam a cerca de 2,5 km de Prabis, no lado norte da estrada, já no sentido de Bissau, a cerca de 10km desta. Julgo que com estas indicações será possível localizar aproximadamente. Sai-se de Bissau para oeste, para Prábis, e cerca de 10km do lado direito da estrada, ou seja, lado norte, está a "Missão Católica" de Cumura.


Perímetro de segurança

Bem, quanto a isto, e mais uma vez, as coisas são relativas...
Posso dizer que em 1971, depois de ter estado em Piche e ser requisitado no final de Maio para a "Escuta", nos meses de Agosto, Setembro, Outubro e talvez ainda Novembro (aqui já não me lembro bem), fui algumas vezes, de motorizada, conduzindo uma, ou como pendura, até Nhacra, visitar um Furriel meu amigo e antigo colega da escola em Vila Franca, numa Companhia de Cavalaria que estava lá colocada depois de ter estado antes na zona de Farim e que na altura era comandada pelo Cap. Cav. Mário Tomé que foi tomar conta dessa Companhia depois da morte do anterior e titular comandante.

Tenho ideia que das duas primeiras vezes não houve qualquer problema, impedimento ou condicionalismo. Mas depois passou a haver controlo em Safim e só podíamos seguir quando houvesse viaturas militares em circulação, acompanhando-as.

Depois da partida (regresso a Portugal) desse meu amigo não voltei mais a Nhacra. No entanto posso dizer que já no ano de 72, não sei precisar o mês, o controlo passou a ser junto ao aeroporto. Nessa ocasião o destino das viagens que fazia de moto passou a ser a estrada para Quinhamel, que se tomava a sul do aeroporto e depois virava para oeste.

Nessas viagens ia à civil e, obviamente, desarmado, aliás, não tive arma atribuída. Na "Escuta" estava um armeiro com várias G3 e se necessário eram essas as usadas.

Não sei dizer se era seguro ou inseguro, mas que se notou uma retracção do perímetro de segurança isso foi para mim inquestionável. Também se era psicológico ou "profilático", é coisa que não posso nem sei determinar.

Interiormente, nos bairros populares, nomeadamente no Cupilão, já na altura que lá cheguei corria o boato que "cortavam cabeças" a quem por lá se aventurava sozinho, à noite. Mas confesso que nunca tomei conhecimento de qualquer confirmação nesse sentido. Agora que era aventureirismo, isso sim.


Agora, os rádios

O que o Belarmino diz, está correcto. O Racal TR28 B2 equipava as unidades móveis, quando substituiu gradualmente os ANGR-C9.
No entanto, para os postos do STM, normalmente colocados nas sedes de Batalhão, que trabalhavam, ia a dizer "exclusivamente", em grafia (morse), eram usados os "marconi".

Era para proceder à modernização destas comunicações, portanto do STM, que se procurou equipamento melhorado e os Racal TR15 vieram à experiência. Na altura dos testes eram 3 os aparelhos. Um estava no posto director, outro na viatura móvel e o outro de reserva.

No imediato sei que um ficou em Bissau, um foi para Catió (porque o Furriel Batalha que tinha estado comigo nos testes trabalhou com um deles até ser ferido e evacuado) e não sei o destino do restante. Depois da encomenda vieram mais uns quantos mas não sei para onde foram, até porque depois ingressei na "Escuta" e fiquei aí dedicado, acabando por não acompanhar o que se passou noutras áreas.

Pergunta também o Belarmino se era para trabalhar em grafia, fonia ou ambas as vertentes.

Honestamente, agora, não sei afirmar de forma peremptória, mas acho que seriam então para trabalhar "preferencialmente" com chave de morse, embora tenha ideia que podiam ser também utilizados em fonia. Digo isto porque a disposição do aparelho, tipo caixote em cima da mesa de trabalho e a ideia que tenho de ter havido comunicação verbal entre o posto director e a viatura durante os testes (podia ter sido para outro aparelho...) fazem agora ter essa opinião.


Interferências nas comunicações

A "paisagem" da Guiné, com imensos espelhos de água, provocava como que uma espécie de reflecção das ondas rádio das comunicações. Mais do que os obstáculos florestais eram esses, os cursos de água, rios e bolanhas, que mais prejudicavam as transmissões.
Por outro lado, durante a noite, havia interferências de carácter magnético que também eram bastante prejudiciais, daí os tais estalidos, quase constantes, que se ouviam nos auscultadores e que deram cabo de bastantes aparelhos auditivos.

Caro amigo José Câmara, isto que acima escrevi serve, reconheço que com pouca profundidade de esclarecimentos, para dar uma aproximação de resposta à tua questão. Era mesmo assim, com trovoadas, alterações de condições climatéricas e das próprias alterações magnéticas, as interferências aumentavam e era necessário introduzir mais filtragens e melhores antenas, o que no mato não era fácil.

No “Centro de Escuta”, durante a noite, havia períodos em que a recepção era muito difícil e tínhamos boas antenas. Também para os exercícios de radiolocalização a tal situação dos planos de água era bastante prejudicial, já que se tornava quase aleatório determinar a direcção de um emissor pois o tal efeito de "espalhar" as ondas induzia a erros grosseiros. Mesmo com as triangulações, havia grandes desvios.

Um abraço
Hélder Sousa
Fur Mil TRMS TSF
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 14 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8774: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (10): A primeira missão

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8774: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (10): A primeira missão

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 13 de Setembro de 2011:

Caros camaradas Editor e Co-Editores
Já faz algum tempo que não contribuo com algum texto, embora procure acompanhar o Blogue e intervir ao nível do 'comentários'.
Há que dar lugar aos novos, para que também eles assumam este colectivo.

Caso vejam interesse, envio então este texto que podem inserir numa série que eu teria de ir completando e que se chegou a intitular "Histórias em tempo de guerra", com uma história verídica e que se passou ainda não tinha uma semana de Guiné, ou seja, de Bissau. Ainda era tudo novo, tudo misterioso. Depois ganha-se calo.

Peço desculpa por não poder rechear o texto com fotos a propósito, por exemplo do aparelho de rádio referido, mas é que não encontrei, nem na net. Apenas junto essa que o Vítor Raposeira me facultou e que pode servir para avaliar o formato e dimensão do aparelho em questão.

Depois acho que também devo pedir desculpa aos camaradas para quem a sua "primeira missão" não foi como a minha, mas trata-se de contar aqui a verdade. A minha foi assim.

Abraço
Hélder Sousa



HISTÓRIAS EM TEMPOS DE GUERRA (10)

A PRIMEIRA MISSÃO

Caros camaradas, amigos e outros…
Impulsionado por algumas coisas que recentemente apareceram no nosso Blogue, lembrei-me desta experiência que passo a relatar.

Ela assenta em factos reais, verdadeiros, com algumas certezas e algumas dúvidas, a saber:

Certeza: ocorreu logo depois de ter chegado à Guiné, aí à volta do dia 15 de Novembro de 1970 (cerca de uma semana antes da ‘Operação Mar Verde’).
Dúvida: não sei dizer o dia certo, mas espero que isso não seja impeditivo para o relato do desenvolvimento da acção.

Certeza: participaram dois estrangeiros, um deles Engenheiro (não sei se civil se militar) e o outro, um militar com patente de Oficial. Um era rodesiano e o outro sul-africano.
Dúvida: não sei dizer qual era o rodesiano, acho que era o Engenheiro, da Racal, mas sem certeza, nem qual o sul-africano, acho que era o Oficial, salvo erro Coronel de Engenharia ou Transmissões, mas também sem certeza.

Certeza: a operação destinava-se à realização de testes de eficácia, de prova da capacidade, de bom desempenho, de uns rádios que se pretendiam vir a equipar em breve algumas unidades do STM. Tratavam-se de versões do Racal TR-15. Não, meus camaradas, não era o TR-28, o que foi colocado à experiência era de muito maiores dimensões, cerca de 60cm de frente e para ficar assente em mesa, de que podem observar, embora só um pouco, na foto que me foi cedida pelo Vítor Raposeiro em que está em frente a um, já em Bissau.
Dúvida: tenho a ideia que a seguir à identificação TR-15 havia uma letra, não sei se um “A” se um “L”, nem me lembro agora para onde foram alguns exemplares, para além de Catió.

Fur Mil Vítor Raposeiro no seu posto de trabalho

Para a realização dos referidos testes montou-se um ‘posto director’ numa espécie de pátio que havia lá nas Transmissões, com uma tenda para evitar que o aparelho em apreciação fosse alvo da curiosidade e para o proteger das acções climatéricas (nessa altura ainda apanhei chuva nesse dia), e com a execução de uma antena dedicada ao aparelho pelo Alferes Pereira da Silva, que era um especialista nesse tipo de equipamentos.
Um outro aparelho foi montado numa das viaturas típicas das transmissões e servido apenas por uma antena ‘vertical’.

Antes de prosseguir quero aqui deixar a minha homenagem ao Alferes Pereira da Silva, que nunca mais vi nem sei o que é feito dele, mas que era “Aspirante” no BT aquando da minha passagem por lá a fazer o 2.º Ciclo do CSM, pelo que já nos conhecíamos desse tempo, um ano atrás. O Pereira da Silva era de facto uma figura típica, um bom homem, um grande especialista em antenas e muito bom em tudo o que dizia respeito a rádios e transmissões, parecendo contudo que estava sempre ’pendurado’ num cigarro que lhe saía da boca. Havia até quem apostasse que ele só acendia um cigarro por dia, os restantes acendiam-se sucessivamente, chegando a haver ocasiões que não era raro haver dois cigarros em simultâneo.

Nesta operação calhou-me a mim e ao Furriel Nelson Batalha fazer o trabalho na viatura, onde havia um condutor, os dois Furriéis recém-chegados, o ‘Oficial’ estrangeiro e creio que também um ‘operador’ de grafia. No ‘posto director’, para além do Alferes Pereira da Silva no apoio técnico, ficaram vários ‘quadros’ das Transmissões entre os quais os Capitães Cordeiro e Oliveira Pinto, bem como outro pessoal relacionado com o STM, nomeadamente o Sargento Taveira.

A seguir ao almoço (a montagem dos equipamentos ocupou a manhã) lá seguimos com a nossa viatura por vários e diversos caminhos e locais, que para mim na altura pouco ou nada diziam. Fomos para Antula, depois para o lado oposto, para a zona do aeroporto, também seguimos para o caminho de Quinhamel, embora não chegando lá.

As comunicações entre os dois rádios, quer em fonia, quer em grafia, foram satisfatórias, pelo menos assim foi dito. Mérito do rádio? Mérito da antena? Há um comentário do nosso camarada Carlos Filipe que refere uma máxima “é preferível um mau emissor com uma boa antena, que o inverso.” Estou convencido que foi de todo o conjunto: o rádio era bom, a antena também e as condições de ensaio foram favoráveis.

Contudo a experiência não ficou por aqui. Era necessário saber como era o comportamento em situação nocturna, com condições atmosféricas desfavoráveis. Vai daí, havia que repetir a experiência da tarde mas agora com ida a Prabis e depois Quinhamel.

Foi aqui que a ‘coisa’ se tornou caricata. O condutor e o operador, já com a viatura a circular por Bissau, disseram que não era nada aconselhável nem ‘saudável’ aventurarmo-nos pelos referidos caminhos, de noite, sem protecção, que o Comandante não tinha a noção do perigo, ainda para mais com um equipamento novo, que não estavam para se arriscar por causa ‘deles’, pelo que inquiridos sobre qual era a sugestão que faziam, sem se falhar o ensaio nem se entrar em desobediência, ficou entendido avançar-se um bocado na estrada de Prabis e depois recuar, avançar novamente e depois voltar a recuar: faziam-se os testes, faziam-se os quilómetros, e tudo correria bem. Ainda de noite fomos depois também para junto de um local que me lembro de terem dito ser a Missão Católica e tornear várias vezes o edifício e voltar a haver os avanços e recuos.

No meio destas cenas o Oficial estrangeiro que nos acompanhava ‘percebeu’ a situação, piscou o olho numa prova de entendimento e meneou afirmativamente a cabeça pois também não se tinha revelado muito confortável com a situação. Afinal, tudo aquilo ‘corria a favor’ dos testes….

Como conclusão posso adiantar que os testes foram positivos, o rádio agradou em pleno, a encomenda seria feita seguidamente, os ‘vendedores’ do produto saíram satisfeitos e nem percebi porque na despedida o Oficial completou a saudação com um cumprimento e novo piscar de olho. Os homens da viatura ficaram também contentes e eu e o Batalha confortados pelo êxito da nossa primeira missão.

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur Mil Transmissões TSF
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 22 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8587: O Mundo é Pequeno e o nosso Blogue... é Grande (44): Aqui e ali, prossegue a recuperação da memória.... (Hélder Sousa)

Vd. último poste da série de 15 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5821: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (9): A Presse Lusitana

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5821: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (9): A Presse Lusitana

1. Mensagem de Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 15 de Fevereiro de 2010:

Caros Editor e Co-Editores
Junto envio este texto que foi motivado pelas lembraças despoletadas pelos posts do Eduardo relativamente à folha informativa "Presse", que julgo que no 'meu tempo' se chamava 'Presse Lusitana'.
Duma forma ou doutra o texto aqui vai e espero que sirva para conhecerem melhor outras actividades, para além daquelas que eram comuns à maioria dos 'operacionais'.

Um abraço
Hélder Sousa


HISTÓRIAS EM TEMPO DE GUERRA (9)

A “PRESSE LUSITANA”


Os relativamente recentes artigos do Belarmino Sardinha sobre as Transmissões e as funções e trabalhos dos camaradas TSF e agora os artigos do Eduardo Campos com a apresentação de vários exemplares da “Presse” (Serviço noticioso para as Forças Armadas da Guiné – Notícias captadas da radiodifusão pelas Transmissões), fizeram recordar-me alguns aspectos da minha actividade nesse âmbito.

Devo dizer que não tinha comigo nenhum exemplar do meu tempo, nem de outro, coisa que agora já está resolvida por que o Eduardo fez questão de me presentear com três originais do ‘tempo dele’, o que muito me sensibilizou e que aproveito para agradecer publicamente.

Como entretanto podem ter reparado, o sub-título refere-se à “Presse Lusitana” que é como a minha memória recorda a designação do ‘meu tempo’, e não simplesmente “Presse”, como aparece nos documentos apresentados no Blogue. Posso estar a ser atraiçoado pelo desgaste do tempo mas era assim que me lembrava, por isso assim o indico.

Aliás, já em várias situações se tem verificado que as coisas foram mudando ao longo do tempo, na ocupação do terreno, na extensão territorial do conflito, nas diversas operações, etc., e também até já me apercebi, por textos colocados aqui no Blogue, que relativamente às Transmissões também houve modificações, adaptações a novas realidades operacionais.

No caso particular destas ‘folhas de notícias’, julgo recordar-me que houve camaradas de tempos anteriores ao meu que se referiram a procedimentos que não coincidiam com o que foi a minha prática, por isso nada melhor que relatar como foi comigo e deixar que cada qual faça as suas adaptações…

Não sei, não me lembro, onde é que a “Presse” era efectivamente produzida, ou seja, batida a ‘stencil’ e depois policopiada e distribuída, seria certamente ‘algures’ nas instalações do Agrupamento de Transmissões, mas tenho a certeza que, no meu tempo, a “Presse” era sempre composta por três grandes grupos de notícias, a saber: notícias do País, notícias do Desporto e a parte restante, para ocupar o espaço, notícias do Estrangeiro.

As duas primeiras partes, ‘do País’ e ‘do Desporto’ calculo que eram recebidas no Centro de Mensagens e era um serviço recebido ‘via Marconi’. Talvez também no início as notícias do estrangeiro viessem por ali, não sei, mas a partir do momento em que no Centro de Escuta desenvolvemos a parte de captação das diversas agências noticiosas ficámos com a tarefa de coligir umas quantas que depois um estafeta recolhia ao fim do dia. Afinal, havendo ‘fonte’ para as notícias do estrangeiro, sempre se poupavam tempos de ligação à Marconi, que não eram grátis…

Não me lembro de haver qualquer indicação de orientação ou critério para a recolha dessas notícias, pelo que quando estávamos de serviço íamos, a nosso bel-prazer, fazendo uma ou outra tradução (a maioria das captações estava em francês, mas também havia em inglês, espanhol e italiano) e quando o estafeta passava, levava o que havia.

Como era uma actividade que eu gostava, pois assim estava a par do que se passava no Mundo e muito mais informado que qualquer vulgar cidadão português, acabei por chamar a mim o grosso das traduções, já que o fazia durante qualquer que fosse o turno, e mesmo durante a folga deixei muitas vezes o ‘serviço’ adiantado bastando aos camaradas seguintes escrever mais umas poucas, se se dessem a esse trabalho.

Dum modo geral não havia muito espaço para as ‘notícias do estrangeiro’ pelo que fosse qual fosse o conteúdo das notícias por nós coligidas no Centro de Escuta, não se corria muito risco da passagem de qualquer notícia menos ‘normal’.

No entanto, como sempre acontece nestas coisas, há sempre um dia em que não é assim!

Como já vos dei a entender, era minha convicção de que aquele território não era continuidade física de Portugal, que entendia como natural que aqueles povos aspirassem a uma independência, tal como os povos da península Ibérica se opuseram ao ocupante romano, tal como as tribos cristãs empreenderam a reconquista desse território peninsular, tal como os Portugueses se opuseram aos leoneses, aos castelhanos, aos franceses e até aos ‘aliados’ ingleses, pelo que, por simples acto de me rebelar contra a circunstância de estar ali, às vezes, pelo meio de notícias perfeitamente inócuas, metia um conjunto de notícias que não seriam as mais simpáticas para a orientação política do governo português e ao seu esforço de guerra, como por exemplo fazendo referência às decisões da ONU e a desastres crescentes ocorridos no Vietnam, tais como bombardeamentos, por engano, das próprias tropas americanas.

Ora então acontece que o maior problema ocorreu num domingo de 72, já não me recordo exactamente quando, mas que teve a ver com as eleições americanas que entretanto decorriam entre o republicano Nixon e o democrata MacGovern.

Tínhamos notícias de várias proveniências, como algumas vezes já referi, da APS (Argel Press Service), MAP (Magreb Árabe Press), MENA (Midle East News Agency), Reuter, France Press, etc., e também de algumas que íamos pesquisando, entre as quais a ‘Prensa Latina’ de Cuba.

Ora, nesse dia em causa, as comunicações da Marconi falharam pelo que o pessoal da “Presse” (ou Presse Lusitana) apenas tinha a tal folha proveniente da Escuta com as “notícias do estrangeiro” pelo que tudo o que eu tinha traduzido foi impresso e distribuído.

Entre outras coisas apareceu esta ‘pérola’, traduzida da ‘Prensa Latina’ que se referia, naturalmente, de modo pouco abonatório para o presidente Nixon, candidato republicano à reeleição. Dizia assim: “Mientras el Presidente Nixon se enfrascava en la Convención de Miami, el candidato MacGovern proseguía su campanha ….” . A minha tradução foi à letra, apenas coloquei o enfrascava entre aspas e foi assim que saiu.

No dia seguinte, após o Comando da Companhia se ter inteirado de que o redactor das ‘notícias do estrangeiro’ era eu, mandou-me chamar e procurou que lhe desse boas razões para aquilo ter saído assim. Foi o que fiz. O Sr. Comandante ‘compreendeu’ mas sempre foi avisando que talvez lhe fosse difícil defender a situação ‘mais acima’, porque aquilo tinha dado celeuma e havia ‘algumas vozes’ a propor inquérito com vista a possível punição.

Não aconteceu nada e o meu Comandante nunca me chegou a dizer como as coisas evoluíram, e eu também não lhe perguntei, no entanto, mais tarde, fiquei conhecedor da sua participação e envolvimento no “Movimento dos Capitães”, o que me fez perceber melhor porque é que ele ‘compreendeu’ as minhas ‘manhosas’ explicações.

Caros camaradas, desculpem estas reflexões sobre “memórias de tempos de guerra” que, espero, possam contribuir para o vosso melhor conhecimento das actividades ocorridas noutros locais, noutras funções e, como já uma vez escrevi, podem crer que a guerra se travou em muitas frentes… e de muitas maneiras! Até para criar condições para acabar com ela!

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur Mil Transmissões TSF

Centro de Escuta
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5636: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (8): Como fui parar ao Centro de Escuta