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Aqui vai um texto que será para a minha Guerra a Petróleo.
Penso eu de que...
Um Ab.
António J. P. Costa
A MINHA GUERRA A PETRÓLEO
11 - AINDA O POSTE DO CHERNO BALDÉ E OUTROS
Fiquei deveras surpreendido com a reacção dos participantes no blog a um post onde se descrevia a morte, por fuzilamento, de dois guineenses – dos quais um ex-colaborador das NT durante a guerra colonial – na sequência de uma insubordinação de uma grupo de ex-milícias e ex-soldados do Exército Português, ocorrido em Cuntima, a 14 de Novembro de 1976.
Efectivamente, em pouco tempo, o número de comentários ultrapassou os quarenta e, curiosamente, muitos deles traduziam um antagonismo entre os participantes no blog que ia muito para além do simples comentário ao acontecimento que fora narrado. Na análise de alguns comentários detecta-se até uma espécie de sentimento de culpa que, pelo menos em relação a este facto concreto, não se justificará muito. Para além de estarmos perante algo que sucedeu já em plena independência da Guiné, no fundo, trata-se de uma reacção popular (violenta, é certo) a algo que deveria ser feito e não se fez, embora seja patente que os contestatários, em virtude da sua vivência anterior, não estariam muito dispostos a aceitar as determinações do novo poder. Era de esperar que assim fosse. O mais curioso é que o próprio narrador situa bem o sucedido numa linha de actuação do PAIGC, em relação às populações do país que se incumbiu de governar. Assim, chegado ao poder efectivo havia cerca de um ano (em 10 de Setembro de 1974) procurava afirmar-se nele, como seria lógico. Porém, essa afirmação seria feita não tanto numa acção positiva, materializada pela melhoria das condições de vida das populações, isto é, da acção governativa eficaz, mas antes e pelo contrário de uma acção repressiva que visava manter aquelas num estado de disciplina, mais ou menos imposta pela hierarquia que saíra da vitória na guerrilha.
Enfim, nada que pudesse ser da responsabilidade directa da “guerra” ou das actuações do Exército Português.
Donde veio então este debate de ideias inconciliáveis?
O PAIGC, como movimento guerrilheiro africano do final dos anos cinquenta do Séc. XX, apresentava as práticas de disciplina interna (a tal "disciplina revolucionária" que lhe conhecemos através da documentação de informações) que lhe garantiram a sobrevivência ao longo de uma guerra feroz e desgastante e que lhe teriam sido inculcadas pelos doutrinadores da URSS. Compreende-se. Assim como se deverá compreender que se tenha constituído, após a tomada do poder, como partido único, responsável pelo funcionamento da sociedade guineense. Não é justo que se exija a quem se expôs a tudo e arriscou tudo para tomar o poder que se vá sujeitar a um “referêndum” para partilhar o que tanto lhe custou a ganhar. Depois, com andar dos tempos, ainda se aceita a disputa política, mas naquele momento é sinceramente uma injustiça.
Conhecemos as características das lideranças africanas, quer naquele tempo, quer na actualidade. Porventura mais duras naquele tempo, quando era necessário levar para o combate e sofrimento alguns milhares de guineenses e evitar que desistissem da "luta". Muita da adesão popular foi coercivamente obtida, no início da “guerra”, e mantida por um policiamento apertadíssimo por parte das unidades do partido. Mas o que é inegável é que as deserções de combatentes e fugas da população foram raras, o que não significa que as populações a aceitassem livremente. Por outro lado, após a independência, estender a “disciplina revolucionária” a toda a população não era boa técnica, como já se começava a ver em todos os países onde a doutrina política apontava para o partido único. Além disso, o povo guineense permanecera na sua maior parte sob controlo e protecção das NT o que lhe concedeu um estatuto e condições de vida que o partido cada vez menos podia assegurar. Mas há um outro aspecto importante a considerar, na análise do problema. A ocupação pela força de dado um território (como o PAIGC sustentava que era a situação) nunca pode ser feita sem a colaboração de uma parte mais ou menos considerável da população. Não seria este exactamente o caso da Guiné. As autoridades locais que materializavam a acção do governo central só abusivamente podem ser consideradas como ocupantes, mas dispunham de um considerável número de apoiantes, alguns decididamente colaborantes, outros fazendo-o mais ou menos tacitamente. A retirada de um invasor deixa sempre para trás um número de “colaboracionistas” que não o acompanham na saída. Só a título de exemplo, recordemos a dramática saída dos sul-vietnamitas da embaixada dos Estados Unidos, em Saigão. As características da guerra subversiva aproximam-na muito de uma guerra civil que, frequentemente atinge graus elevados de violência, muitas vezes gratuita, e gera a existência de vencidos da guerra, ou seja, aqueles que combateram por uma causa, perderam a guerra, mas não abandonaram as suas convicções, constituindo-se sempre como resíduos de uma possível contestação aos vencedores.
E não se podem matar todos!...
Sinais dos tempos, pois antigamente e em muitas situações podiam exterminar-se na totalidade. A História está aí para no-lo mostrar e, com se sabe, quanto mais “velho” é um país mais fácil é recolher, no seu passado, bons e maus exemplos…
A retirada das Forças Armadas Portuguesas da Guiné foi feita sob diversas pressões das quais podemos referir apenas as duas principais: uma interna, consequência da fadiga e revolta inerentes a 13 anos de guerra que já fazia parte do nosso “dia-a-dia” e outra externa, proveniente do PAIGC que, nunca tendo esperado que a vitória lhe surgisse assim, ficou ébrio e nada mais queria do que assumir o poder. Claro que há aqui um erro de avaliação. O partido não tinha estruturas nem quadros que lhe permitissem desenvolver a sua acção político-administrativa e, mesmo tendo necessidade dela, a colaboração da administração portuguesa era a última que lhe conviria para o apoiar ou auxiliar.
É à luz destes dois parâmetros que deve ser vista a saída dos militares portugueses da Guiné, deixando para trás muitos guineenses que tinham colaborado, por vezes muito activamente, com as FA de Portugal.
Cheguei a admitir que a maturidade do partido e as raízes unitárias com que foi constituído poderiam ser a garantia de que o ambiente se pacificaria. Não me surpreendeu, por isso, que o PAIGC tivesse assumido como guineenses os “colaboracionistas com as FA” e/ou os “vencidos da guerra civil”. Confesso que tive dúvidas, pois conhecia aquele povo e o partido que tomara o poder, mas… podia ser que fosse assim.
Não contei com uma manobra (de longo alcance) do PAIGC que lhe permitiu constituir um bode expiatório para os seus falhanços e um exemplo para mostrar aos contestatários das suas opções políticas e económicas. Se os "traidores guineenses que tinham lutado do lado dos colonialistas” fossem considerados portugueses seriam intocáveis, por serem estrangeiros, e poderiam sair da Guiné se o desejassem ou serem a tal obrigados pelas novas autoridades. No fundo seria uma forma de punição: a perda da nacionalidade.
Esta actuação do PAIGC, ocorrida em Novembro de 1976, foi assim uma tentativa de disfarçar a sua incapacidade de reconstruir o país. Recorreu a demonstrações de força (esta e outras), a cargo de militantes seus de uma fidelidade canina, capazes de extrema violência, mas dotados de pouca cultura e abdicando do uso da inteligência. Aterrorizar as populações, especialmente as das áreas onde tinha menor implantação ou em que os contornos éticos lhe fossem mais dissonantes passou a ser possível. Se acrescentarmos a prepotência e as vaidades de quem tem “o rei na barriga”, temos todas as condições para que estas situações ocorressem e continuem a ocorrer. Agora, porém, a ligação ao colonialismo é mais difícil, mas é sempre possível de estabelecer. Como já disse, estes exemplos proliferaram por todo o continente na sequência das independências, ganhas ou concedidas, e, às vezes para meu desespero, eram bem previsíveis. Mas não era politicamente correcto anunciá-los…
Tenho para mim que se o Amílcar Cabral fosse vivo naquela altura – e até alguns anos depois – isto também sucederia. O ambiente e os factos, nomeadamente a cisão do partido em PAIG e PAICV confirmam o que digo.
Não vejo, por isso motivo para nos culpabilizarmos por este caso ou casos similares. Outra atitude do PAIGC, mais madura e justa, poderia tê-lo até dado a maior respeito interno e internacional. Era o que se esperava de um partido velho, com muito tempo de luta violenta e dotado de uma maior maturidade, o que não sucedera a tantos outros a quem a independência foi dada de bandeja. Mas a sua opção foi noutra e isso só aos guineenses diz respeito.
Admiti que o povo da Guiné poderia ganhar muito com a independência em áreas como a agricultura, pescas e pecuária, agora que apenas dependia de si mesmo para atingir os seus objectivos e afinal enganei-me.
Talvez seja sina da África ser governada por sistemas de partido único, constituídos por homens imbecis, ou até válidos e bem-intencionados, mas que rapidamente embrutecem e se tornam insuportáveis. Aí não posso, nem devo, nem quero fazer nada (para além de simples conselhos). Será uma espécie de via-sacra que os povos têm que seguir até que, a sua cultura e (porque não dizê-lo?) a sua maturidade lhes permitam reduzir, que não anular, este tipo de procedimentos.
Contudo, estávamos no Séc. XX (e agora já XXI) e, por isso, seria bom que cada povo aproveitasse a experiência dos outros e, pelo menos tentasse evitar cair nos erros cometidos. Não me sinto culpado de nada do que sucedeu na Guiné depois da independência e, muito mais agora que aquele povo “tomou o seu destino nas próprias mãos” há quase 40 anos (duas gerações). Limito-me a observar de longe e constatar que ali não houve excepção relativamente ao sucedido noutros países da mesma área geográfica.
Parece-me, isso sim, que, com a vitória, o PAIGC contraiu uma série de responsabilidades, nomeadamente no que respeita aos seus heróis e à sua história que é uma fracção já considerável da História da Guiné e que lhe deverá servir de arrimo ao seu percurso político.
Por favor não aceitem as culpas que não temos e se digladiem por causa delas.
Não esqueçam que, em Direito, os principais responsáveis são sempre os autores materiais do crime. O facto de existirem “condições” não quer dizer que o crime seja cometido.
António José P. da Costa
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Notas do editor
Ilustração retirada da História do BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74), unidade que foi rendida pelo BCAÇ 4612/74 (Mansoa, 1974)...
Um exemplar da história desta unidade, o BCAÇ 4612/72, foi-nos oferecido, em formato papel e em pdf, pelos nossos camaradas Agostinho Gaspar e Jorge Canhão (ex-Fur Mil 3ª C/BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74).
Este documento tem cerca de uma dúzia de interessantes (e raras) ilustrações, feitas por um ilustre desconhecido, a estilete sobre "stencil"...
Imagens: Cortesia de Jorge Canhão (2011).
Último poste da série de 28 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11172: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (9): A praxe da Ivone