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sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27211: Felizmente ainda há verão em 2025 (32): Amarante, a princesa do Tâmega, a 30 km de Candoz, e onde a natureza, a história e a cultura se combinam na perfeição (Luís Graça) - Parte II





















Fotos nºs 20 a 32

Amarante > 5 de setembro de 2025 > Fosos de fachadas de prédios urbanos no centro histórico


Descrição do conjunto urbano ribeirinho de Amarante, estruturado pelo rio, a  ponte e a igreja e o convento:


ESTRUTURA URBANÍSTICA: 

Apresenta uma estrutura urbanística essencialmente linear, composta por ruas relativamente estreitas e de traçado irregular, que confluem de uma e de outra margem do Tâmega para a ponte de S. Gonçalo. 

Para além da ponte (...),  o conjunto é fortemente marcado pela monumentalidade da Igreja de São Gonçalo (...), estruturando-se em frente desta um Largo que antecede a entrada na ponte. 

Na mesma margem do rio, entre o edifício do Convento e o Tâmega, nos terrenos da antiga cerca conventual, abre-se a Alameda Teixeira de Pascoais com ligações até à variante da EN. 

Estes dois espaços, com vista sobre a ponte e o rio - Lg. de S. Gonçalo e a Alameda onde se realizava o antigo mercado - constituem o núcleo do centro cívico, religioso e turístico da cidade. 

Ao longo da margem esquerda do rio, a R. 31 de Janeiro (R. do Covelo) conduz ao Lg. Conselheiro A. Cândido, a partir do qual se faz a ligação à EN.

ESPAÇO CONSTRUÍDO: 

A fachada urbana de ambos os lados das ruas caracteriza-se pela existência de construções genericamente integráveis nos dois tipos essenciais da arquitectura tradicional urbana: 

(i) a casa de tipo vertical, estreita e alta, com um número variável de andares, com duas ou três portas, janelas ou varandas de frente; 

(ii) e a casa larga e baixa, com r/c e andar nobre, frequentemente brasonada. 

Dentro do primeiro tipo são muitas as variantes, apresentando as casas geralmente estrutura de pedra, visível nas molduras das portas, janelas e varandas. 

Noutras o último andar é em tabique, sobressaindo a madeira pintada das molduras das portas e janelas. A este último andar, geralmente o 2º, por vezes o 3º, corresponde a varanda. Esta pode ser em ressalto, sobre uma falsa cornija, ou em avanço sobre a rua. 

Na sua maioria, as varandas são corridas, ocupando toda a largura da fachada. Algumas casas apresentam varandas corridas no 2º andar e uma ou outra, mais pequenas, possuem-na no 1º. 

Têm geralmente gradeamentos de ferro, havendo também belos exemplares de varandas com balaústres de madeira pintada.

Fonte: adapt. de SIPA - Sistema de Informação para o Património Arquitetctónico > Núcleo Urbano da Cidade de Amarante (IPA.00006137)




Foto nº 33 > Amarante > 5 de setembro de 2025 > A antiga cadeia municipal > À deporta, os nossos amigos Laura Fonseca e Jaime Silva



Foto nº 34 > Amarante > 5 de setembro de 2025 > A antiga escola primária, em frente ao "Espaço Saudade - Teixeira de Pascoaes"... 

Era uma escola-tipo  "Conde Ferreira". Foi umas das 120 previstas construir, em vilas ou sedes de concelho,  ao abrigo do legado do benemérito Conde Ferreira. 

Por volta de 1886, construíram-se  91, das quais 21 foram entretanto demolidas. A de Amarante é uma das que restam, cerca de século e meio depois.

 Eram edifícios com arquitectura simples e com uma fachada encimada com frontão triangular e em todos eles está (ou estava) inscrito "24 de Março de 1866" (data  da morte do Conde de Ferreira).   

Segundo o seu testamento,  disponibilizou 144 000 000 réis para a construção de 120 escolas primárias. As construções tinham requisitos específicos no que foi a primeira planta escolar a nível nacional, com duas salas e um espaço para habitação do professor. O orçamento de casa uma não podia ultrapassar os 1,2 contos de réis.

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Dedicado ao João e à Vilma (que estão em Nova Iorque), e que ainda não conhecem Amarante, nem muito menos a Quinta de Candoz (no vizinho concelho de Marco de Canaveses, terra da Carmen Miranda, a pequena portuguesa que conquistou Hollywood nos anos 30/40)...

Pois, prosseguindo a crónica da nossa rápida  visita do passado dia 5, fiquei com a inpressão que os amarantinos gostam da sua cidade.  Pelo menos, e à primeira vista, não há muitos estragos  do camartelo camarário nem do plano de urbanização. Aliás, já bastaram os estragos dos séculos passados: 

  • 1763 - ruína da ponte devido a uma forte cheia;
  • 1788 - conclusão da reconstrução da ponte, segundo projecto do Eng. Carlos Amarante;
  • 1809 - Amarante sofre o ataque das forças invasoras napoleónicas de Soult,  comandada por Loison (o famigerado "Maneta");  após 14 dias de resistência do general Silveira, os os portugueses são desbaratados, são saqueados e incendiados os principais edifícios e casas; 
  • 1827 - foi palco de combates entre liberais e miguelistas (estes comandados por Teles Jordão); 
  • 1985, 8 de julho - elevação a cidade.

A tradição e a modernidade não se casam mal em Amarante. Claro que eu, desta vez, e nesta visita, só me fiquei pelo "centro histórico"... 

Noutros sítios, a política urbanística, a partir dos anos 50/60 do séc. XX, e prosseguida com o "poder autárquico democrático",  foi a do bota-abaixo. Do triunfo do mau gosto dos "patos bravos". Da especulação imobiliária. Da moda das "torres" (por complexo de inferioridade saloia")... 

Para minha felicidade, até a escolinha do Conde Ferreira fui aqui encontrar. (É hoje sede de junta de freguesia; a minha, onde estudei, construída na Lourinhã, foi uma das que foi botada abaixo!)


2. É bom quando uma terra deixa saudades aos forasteiros que a visitam, e sobretudo aos que lá vivem, e têm às vezes que emigrar, por razões económicas ou outras... 

Eu que regressei, a meio da tarde, a Candoz, mais a sul, a 30 km, também levei  saudades de Amarante... Tal como os meus companheiros de viagem, que seguiram para a Lixa...


Saudades de Amarante
(Tuna de Gondar, Amarante)

Deixei um dia o meu cantinho abençoado,
E fui levado  na ilusão de uma esperança,
Passei a Espanha, os Pirinéus, como emigrante,
Com Amarante, sempre, sempre, na lembrança.

Vi novas terras, vi costumes diferentes,
Vi outras gentes, vi o céu, vi o luar,
E até lá longe, nos castelos da Alemanha,
Em nenhuma terra estranha me esqueceu (sic)  do meu lugar,

Ai que saudades eu tenho de ti,
Linda Amarante, terrinha onde eu nasci,
E S. Gonçalo, romeiro sem igual,
Guiou meus passos de novo a Portugal.


Fonte: José Alberto Sardinha, "Tunas do Marão" (Livro + 4 CD). Vila Verde: Tradisom, 2005, pág. 347


(Continua)
 ___________________

Nota do editor LG:

quinta-feira, 21 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25291: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (22): O fado de Rosemarie - Parte I


Portugal > Museu Nacional de Etnologia > Exposição "Virgílio Pereira: Itinerários de um Etnógrafo" >  31 de maio de 2020 > Instrumentos musicais populares portugueses, dos anos 60: da esquerda para a direita, rabeca chuleira, viola amarantina, bombo e baqueta (em primeiro plano) e os ferrinhos (em segundo plano). Foto: Vergílio Pereira, s/l, s/d. Cortesia de Museu Nacional de Etnologia / Arquivo Virgílio Pereira (2020)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Contos com mural ao fundo > O fado de Rosemarie - Parte I

por Luís Graça

− Não, não foi o coração que me levou a fugir para França, a salto, escondida na mala do carro de um passador…

Foi assim que a Rosemarie (nome fictício, por razões óbvias) começou o seu "relato de vida": um passador que será depois seu amante, companheiro e, já no fim da vida, marido, de papel passado na mairie.

A salto !... Como tanto outros portugueses e até portuguesas, nos anos 60 até meados de 70...

E, no entanto, a Rosemarie já não era nenhuma jeune fille… Tinha 30 anos feitos... E era "criada de servir"...0

− Nasci em 1939, mon chérie.

Morto o Antoine [leia-se "an-tu-a-ne", diz-te ela], há uns largos anos atrás, no virar do milénio, a Rosemarie ter-se-á sentido liberta de algumas grilhetas que a manietavam, a começar pela incerteza quanto ao seu futuro…

Afinal, por decisão dos tribunais, acabou por ficar com o património do seu segundo marido, de quem fora uma cuidadora inexcedível no seu doloroso final de vida. Houve um processo litigioso com outros herdeiros, os filhos do primeiro casamento.

Libertou-se sobretudo de uma relação de amor-ódio que manteve com o Antoine, e que só se apazigou ou atenuou depois da decisão transitada em julgado, favorável aos direitos e interesses da Rosemarie.

− Passei a ser uma viúva francesa rica em Portugal, ou um viúva portuguesa remediada em França… − comentou ela, com amarga ironia.

Só nessa altura é que passou a tratá-lo por “gajo”, com sentido jocoso e sarcástico ao mesmo tempo, sempre que se referia ao falecido segundo marido.

Foi uma vida atribulada, a da Rosemarie, uma drôle de vie, como ela repetia amiudadas vezes, com muito humor, perpassado âs vezes com alguma tristeza mas quase sempre sem rancor.

E, no entanto, ela foi uma típica vítima de violência doméstica, nos seus dois casamentos… Curiosamente, com dois homens mais velhos que ela, e com um passado de guerra.

A sua vida ("que contada dava um filme") foi passada entre o Portugal dos sombrios anos 40 e 50, e a França gloriosa, da V República.

− Voltei à minha terra natal... nem sei bem porquè. Dizem que é a voz do sangue... Mas agora tratam-me por Madame. Dantes, quando era nova, não passava da Maria, nem sequer Rosa, muito menos Rosinha.

Gostava de ser tratada como Madame Ben Oliel. Conheceste-a numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido materno do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve nas guerras da Indochina e da Argélia, como légionnaire.

Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor, fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher ou até effacer (esconder ou até apagar) a sua origem portuguesa e a sua condição, humilde , de imigrante em França, filha de rendeiros pobres do Norte de Portugal. O que, na realidade, nunca conseguiu por causa do seu accent: não carregava suficientemente nos "erres"...

L’important c´est la rose!... Ah, o meu querido Gilbert Bécaud ! − desviava ela a conversa quando se tocava numa tecla mais sensível.

Tu havia-la conhecido, há já uns bons anos, quando ela andava perto dos 70, conservando alguns traços da sua beleza e jovialidade de juventude, com uns fatais olhos verdes.

− Quando tinha quinze anos, mon chéri, eu já era uma moçoila vistosa, espigada, nutrida de carnes… Mas era filha de rendeiros pobres, com um bando de filhos para alimentar. E, nessa altura, criada de servir em Chaves.

Adorava bavarder, falava pelos cotovelos, e às vezes despudoradamente.  Aceitou com relativa facilidade o convite para ser entrevistada para uma projeto de investigação sociológica sobre "histórias de vida de mulheres imigrantes portugueses em França". Envolvia também investigadores franceses que a ouviram, por seu turno, nos arredores de Paris (onde tinha residência oficial).

Naturalmente, o investigador português deu-lhe todas as garantias de sigilo e anonimato. Infelizmente meteu-se a pandemia pelo meio e, num dos seus regressos a França, acabou por adoecer e morrer, estupidamente, de covid-19. Por amigos da Rosematie, soube- se que terá morrido por infeção hospitalar… Ia fazer 81 anos.

Ficou-te então a vontade de evocar (e de certo modo homenagear) a sua figura. Infelizmente, não foi cumprida a sua última vontade, a de ser enterrada na terra que a viu nascer. Foi cremada num cemitério dos arredores de Paris, “por razões de Estado” (ou seja, de saúde pública…). Desconhece-se se deixou herdeiros, mas devia ter pelo menos sobrinhos algures, em parte incerta.

Conheceste-a na casa de praia de uns amigos comuns, parisienses, que vinham há muito a Portugal, nas férias de verão, desde 1974, atraídos pela revolução dos cravos.  Agora, professores reformados, passavam cá mais tempo. A Rosemarie era visita frequente da sua casa, perto da lagoa de Óbidos.

Nunca chegaste a saber exatamente quais eram as suas afinidades mas, das conversas cruzadas, haviam-se tornado amigos desde o tempo em que a Rosemarie cantava o fado no bistrot do Antoine.

Sem ter uma voz de eleição, a Rosemarie não imitava nada mal a Amália e até dava uma certa parecença de corpo, com dezanove anos de diferença em termos de idade… Não sem uma incontida vaidade, acrescentava:

− A Amália tinha a voz, aquela voz… E eu tinha os meus olhos, aqueles olhos verdes… 'Olhos verdes são traição, são cruéis como punhais'... Quem cantava isto ?...

− Ah!, o Francisco José, um rapaz do seu tempo...

Estes amigos franceses comuns adoravam Portugal, o sol, os fruits de mer, e muito em especial as huîtres, as ostras, a que chamavam les portugaises. E, claro, o fado, a Amália que tinham ainda conhecido, em vida, e no Olympia de Paris.

Nesse fim de semana do 14 Juillet, um sábado, em que conheceste a Rosemarie, rapidamente ganhaste a sua confiança e até a sua afeição. Falavam ora em francês, ora em português, mas longe da vista dos anfitriões, entre duas ostras e um vinho branco das Gaeiras. Sentia-se mais à vontade para fazer confidências, estando só contigo.

Explicaste-lhe que a equipa estava muito interessado em conhecer a histoire de vie de mulheres portuguesas, como ela, que tiveram a coragem de dar o salto, o duplo salto, o da emigração clandestina e o da rutura com os usos e costumes do Portugal dos anos 50/60.

Acabaste por criar laços afetivos, de empatia e até de amizade, contrariando até a tua deontologia profissional. Ainda se encontraram três ou quatro vezes e falaram ao telefone. E tiveste acesso à transcrição da entrevista feita pela equipa francesa. Em suma, conheceste razoavelmente bem a sua biografia.

Com tristeza soubeste da sua morte, vítima da pandemia do século. Tratava-te, carinhosamente, por mon chéri. meu querido ou meu jovem. Era muito maternal.

Era da região de Basto, ou Terras de Basto, sendo os seus pais oriundos de uma aldeia da serra do Alvão.

− Sou a filha mais velha das raparigas de uma família de rendeiros. Éramos um rancho, entre rapazes e raparigas, uma dúzia, fora os dois que terão morrido ainda anjinhos do céu.

E acrescentava:

− Criada de servir, femme de ménage, era o destino que nos esperava, a nós, raparigas, jeunes filles.

Naquele tempo iam para Chaves para casa de algum militar, oficial de carreira. Ou para Cabeceiras de Basto, terra de brasileiros ricos. O mais longe era para o Porto, para casa de "algum senhor doutor", médico ou magistrado, ou de algum comerciante abastado da Baixa.

− Ganhava-se uma miséria de 200 ou 300 mil réis, com cama, mesa e roupa lavada.

E mesmo assim eram precisas referências, cartas de recomendação e sobretudo uma boa cunha do abade da freguesia. Como as enfermeiras. Nesse tempo, era preciso mostrar “boa robustez física” e comprovar a “conduta moral irrepreensível”…

 As raparigas não iam à escola, quando muito faziam o exame da 3ª classe, com explicações e bofetões de uma mestra particular ou uma “regente escolar”.

No caso da Rosemarie, já era uma moçoila quando abalou para Chaves, em meados dos anos 50 como “criadita de servir” de uns senhores da família do fidalgo para quem os pais trabalhavam…

Fidalgo ?! – indagaste, curioso.

− Só por se dizer que tinha uma casa apalaçada, com um brasão antigo do tempo do senhor Dom João V, se não me engano, que eu da História de Portugal não sei nada. O muito pouco que sei,  ouvi-o desses senhores,  meus patrões.

Tinha casado, entretanto,  aos 24 anos, em finais de 1963.

− Foi a minha desgraça, a minha sina, o meu fado! – comentou. com alguma amargura na voz.

Para fugir da miséria da casa paterna e da ditadura dos patrões de Chaves, casara com "o primeiro fils de putain”, o primeiro filho da p…,  que conheceu num baile, já em Resende. E que a “desonrou” (sic).

Tratava-o sempre por “cabrão”, ao primeiro marido, para o distinguir do segundo, o companheiro com que viveu maritalmente muitos anos em França, o Antoine, de quem se voltara a falar, mais à frente.

A Rosemarie era muito "desbocada", não se coibindo de usar o palavrão nortenho, mesmo frente a pessoas estranhas. Adorava falar de algumas das suas aventuras e desventuras, não sem alguma falta de pudor.

Para. ti era a entrevistada ideal, se bem que depois fosse preciso separar o trigo do joio. Perdia-se muitas vezes com histórias laterais e detalhes circunstanciais, obrigando-te a reformular ou repetir a pergunta…

Nascida em 1939, a Rosemarie casou aos 24 "com vestido branco de noiva, raminho de laranjeira, água benta"… "e a sua bênção, senhor meu pai!"...

− Pela santa madre igreja, pois claro, de acordo com os usos e costumes da época. E confidenciava, com graça:

− Já tinha provado o 'fruto proibido'. Eu, que tinha sido catequista, só nessa altura é que percebi o sentido que os padres, no confessionário, davam à expressão 'comer a maçã'.

O vestido de branco fora-lhe oferecido pelos seus antigos patrões de Chaves a quem tinha servido durante cerca de 8 anos e que fizeram questão de ser padrinhos da noiva.

Não se atreveria naquele tempo, a casar pelo civil. Nem lhe passou sequer a ideia pela cabeça. Seria logo tratada de “curta e comprida” (sic). Eram tempos cruéis para as mulheres. Ai das raparigas que rompessem o namoro, ou fossem rejeitadas! Ou, pior ainda, que tivessem a desdita de ser mães solteiras.

− Ninguém mais te pegava!... Passavas a ter lepra… Com sorte, casarias com um velho, com filhos ainda por criar, ou já com pouca força na 'verga' ! − comentou ela.

À medida que se entusiasmava com a conversa, Rosemarie usava o calão do seu tempo de “mulher do Norte com pelo na venta” (sic). O facto do interlocutor ser homem, não a inibia de todo. A sua história, as suas confidências, mesmo as mais íntimas, não te deixavam todavia de surpreender, talvez por serem de gerações diferentes, tu com idade de ser seu filho.

Afinal, isto passava-se no teu país, ainda nos anos 50 e 60. E tu não podias deixar de sentir um certo amargo de boca, ao ouvi-la contar estas histórias de vida, bem duras.

− No meu tempo, as moças repudiadas, ou fugiam para o Porto ou Lisboa, ou resignavam-se à sua sorte, ficando solteironas, o que era o caso da maioria.

− A liberdade paga-se sempre cara!... Não nos é dada, conquista-se – acrescentaste tu, usando um chavão que era, de há muito, um lugar comum.

− Ah!, sim, vê o meu caso. O meu primeiro homem foi obrigado a casar comigo, a tiro… depois de os meus irmãos mais novos terem sabido que ele me tinha desonrado.

− A sério?!... A tiro ?!... Agora se percebe por que é que o seu primeiro casamento tinha tudo para não dar certo…

− Não durou mais de um ano de paixão efémera… Depois aguentei mais uns tempos, para salvar as aparências… E se eu tive uma paixão por aquele cabrão. Oh!, se tive!... Hoje acho que foi feitiço, bruxaria, mau olhado, qualquer coisa que ele me pôs no pirolito ou gasosa, uma daquelas garrafas de refrigerante que se usavam na época, e que os rapazes ofereciam às raparigas no intervalo dos bailes… Eram bailes mandados com mandadores que gritavam: “Damas, ao bufete!”…

Os “bailes mandados” ? Explicou-te ela depois: os homens e os rapazes, de um lado, as mulheres e as raparigas, e um senhor, o 'mandador', no meio, a impor o respeito, a dirigir a coreografia e a dar a vez a cada um dos machos para ir buscar o seu par e dançar. Só "as comprometidas e as casadas" é que se podiam recusar a dançar com outro que não fosse o marido ou o namorado… Não poucas vezes, acabava tudo à paulada, com o álcool e as ciumeiras entre rapazes…

Mas os feitios de ambos, e sobretudo “a miséria daqueles tempos” (sic), não ajudaram em nada o casamento. Cedo a Rosemarie descobriu que o seu “príncipe encantado” era, afinal, um 'chulo', um malandro e, pior ainda, um homem que de bebedor social se tornara alcoólico e… violento.

Não trabalhava, ou melhor, a oficina de carpintaria já não dava para um, quanto mais para dois. Fazia um biscate ou outro, um conserto aqui ou acolá, a caixa de ferramenta numa mão, a bicicleta na outra, a maior parte dos clientes eram gente pobre, das redondezas, o rol dos fiados ia até ao São Miguel, altura do ano em que se podia fazer algum dinheiro e pagar as dívidas.

− Mas como é que vocês se conheceram ? – quiseste tu saber, intrigado.

− Num baile, tinha que ser a minha sina, o meu fado. Num desses tais bailes mandados…

− Em Chaves ?...

− Não, já em Resende, na casa de um brasileiro rico, desses de torna-viagem… Tinha voltado à terra com um bom pé de meia e quis celebrar o regress, com saúde e sucesso… Já não me lembro o nome, foi há tanto tempo… Todos o conheciam por 'O Brasileiro'… Resumindo: conheci o cabrão do meu primeiro homem nesse baile… Fazia parte da tuna…

− A tuna ?

− Um grupo de músicos que animava bailes, um que tocava viola amarantina, outro violão, outro ferrinhos… E ele que tocava rabeca chuleira. Juntavam-se a outras tunas, ali da região do Marão e Montemuro, de Baião a Cinfães, do Marco a Resende… Chegavam a ir tocar a Viseu e Vila Real. Tinham mais fama que proveito, mas sempre ganhavam uns tostões. O cabrão não tinha profissão certa, dizia que era carpinteiro, mas eu nunca lhe vi obra feita, uma mesa ou armário de jeito.

− E tocava bem, o seu homem ?

− Isso, sim, se tocava!... Punha-nos 'atolambadas', o cabrão… Olhe, fez-me lembrar aqueles encantadores de serpentes, indianos, que a gente vê nos filmes. Tocava as modas da época, que já passavam na rádio, e sobretudo as modas tradicionais, a valsa, a mazurca, a dança do fado, a contradança… Já havia rádio, mas pouca gente tinha rádio e telefone… E a televisão, então, era ainda um luxo. Não havia sequer eletricidade … Ah!, mas quando ele começava a tocar aquela valsa do Danúbio Azul… Houve até uma rapariga do Porto, que estava nas termas, que desmaiou, de comoção... Só muito mais tarde, já em França, é que ouvi falar da Sissi e de toda aquele luxo da corte imperial de Viena… Naquele tempo éramos todas umas atrasadas…

− Era muito atrasado o interior do país, é verdade… mas pode falar-se de miséria, miséria mesmo ?

− Oh! Mon Dieu de France!... Escreve aí no teu cahier – começou  a tutoyer, a tratar por tu o entrevistador, que nunca lhe correspondeu,  continuando a ser deferente e cerimonioso, para com ela, até como estratégia defensiva…

Miséria para ela era o frio de rachar no inverno, as tamancas, a casa de pedra, tosca, o interior com paredes de tabique, um quarto para os pais, outro para as raparigas, com os rapazes a dormir no palheiro do milho, e por debaixo ficava a corte dos animais. E não melhorou muito quando a família se mudou de Cabeceiras para Resende.

Dois irmãos, entretanto, tinham ido para a tropa, e sido mobilizados para Angola, o mais velho, e outro a seguir para Cabo Verde e Guiné.

Em Resende, nas termas das Caldas de Aregos, a Rosemarie arranjara um emprego sazonal como auxiliar, graças a uma cunha do patrão do seu pai que era oficial do exército, e pessoa infuente. A família, que vivia no Porto, gostava de fazer termas nas Caldas de Aregos. E tinha lá uma roda de amigos. Enfim, estava ligado à antiga nobreza rural, pequena e decadente, cujas origens remontavam ao tempo do liberalismo.

− E porquê Resende, Rosemarie ?

Os pais tinham-se mudado para lá, onde os antigos patrões tinham uma quinta e estavam a precisar de um caseiro de confiança, iam-se fazer vinhas novas, etc. Com o plano de construções de barragens no Rio Douro, havia boas perspetivas de valorização dos terrenos cultivados que viessem a ser alagados com a subida das águas. As condições eram melhores do que em Cabeceiras de Basto e os rapazes mais novos até tinham arranjado emprego, ou promessa de emprego, numa empresa encarregue, já em 1964, dos trabalhos preparatórios da construção da barragem do Carrapatelo (que só será inaugurada em 1971).

Mal sabia o pai que, passado uns anos, iria ficar sem casa nem terras, obrigando-o a voltar a Cabeceiras, "com uma mão à frente e outra atrás"… E, também com a barragem, as Caldas de Aregos começaram a entrar em decadência.

Depois da separação (de facto mas não “de jure”), a Rosemarie ainda irá trabalhar para a Linha do Estoril, para casa de uns senhores importantes ligados à banca. Foi ganhar o dobro que ganhava em Chaves e em Resende, 600 mil réis, e aí, sim, aprendeu muito, como ajudante de cozinha. E, sobretudo, aprendeu a cantar o fado...

− Separação ?!... Como foi isso, Rosemarie ?

Ela contou-te tudo tim-tim por tim-tim. Mas, abreviando, aqui vai o essencial dos factos.

A Rosemarie sempre foi, desde miúda, um grande dançarina. Não perdia “bailos”, desde que os pais, e depois os patrões, a autorizassem a ir. A princípio, até aos 16 anos, ia acompanhada por um dos irmãos, “jogador de varapau”.

− Varapau ?...

− Um pau de lódão, rijo e comprido, com que os rapazes aprendiam a ser homens… Mas, coitado do meu mano, já morreu, um dia racharam-lhe a cabeça por minha causa.

− O seu irmão ?!...

− Sim, um do meio. Era muito meu amigo, o meu guarda-costas. Por causa do meu primeiro marido, acabou por ter problemas com a justiça. 

− Mas vamos lá fazer o ponto da situação, para a gente não se perder... Estávamos a falar do baile…

− Ah!, sim, o baile… os bailes!... Ficas a saber que pus a cabeça à roda de muitos rapazes e até de homens casados. Hoje estou velha, e já sem muito tempo à minha frente, mas naquela época eu era uma raparigaça que metia muitas da cidade a um canto. Não é para me gabar… E, depois, como também tinha jeito para a costura, que aprendi em Chaves, em casa, aos serões, andava sempre bem produzida com os meus vestidos de chita… E já tinha algum jeito para as cantigas.

−…Até ao dia em que...?

− Até ao dia em que conheci... aquele cabrão!... Tinha vindo da tropa, em  Angola, em meados de 1963… A cigana que me lera as mãos em Chaves, no meio da ponte romana, tinha razão!... Aquele cabrão, estava escrito que deveria ser a minha perdição!...

− Amor de perdição!... Mas como assim ?!...

− Andávamos os dois apaixonados. Apaixonados ? Qual quê, doidos!...Eu nunca tinha sentido nada parecido!... Fazíamos amor… qual amor!, fazíamos sexo em qualquer sítio, em qualquer hora… Tornei-me muito, como direi ?, 'desavergonhada'!... Desculpa a expressão, mas eu era uma cadela com cio

− Oh!, Rosemarie, todos nos apaixonámos na juventude!... Não me parece que o termo desavergonhada seja apropriado no seu caso...

D’accord!, é uma maneira de dizer, às vezes faltam-me as palavras em português… E mesmo em francês. Ninphomaniaque, c'est çá ?!... Era o que eu era nessa altura…

− Oh! Rosemarie, nessa idade, com as hormonas à flor da pele!…

Oh!, oui, éramos os dois animais de sangue quente, na força da idade, se bem que ele fosse um pouco mais velho do que eu… E deixa-me dizer-te que ele na cama ainda era melhor do que com a maldita da rabeca… Era abonado, um garanhão, o cabrão.

− E a tuna, os bailes, as tainadas?...

− Pois, é, vinha o verão, as romarias, as festas… e aí trocava-me pela rabeca!... Comecei a ter ciúmes, primeiro dela, da rabeca, depois dele. Até um dia em que quis parti-la, na cabeça dele. Ameacei-o até de lhe pôr os cornos.,,, Uma ameaça, tola, a primeira coisa que me veio à cabeça: mesmo que o desejasse, não tinha com quem, naquela terra desgraçada...

− Ficou, portanto, o caldo entornado…

− Ele dava em sair com o grupo dele, tudo gente de vida airada. Chegavam a ir tocar a Vila Real, Amarante e até ao Porto. Só pelas tainadas.

− Mas também ao pé de si, nas Caldas de Aregos, na época balnear, não ?!…

− Sim, e à volta de Resende: Baião, Cinfães, Marco de Canaveses…

− Começaram os problemas no casal, é isso ?!…

Passaram-se os seis meses da lua de mel, um ano… E nada!...

Nada, o quê ?!-…

− Ele achava que eu não lhe dava filhos, o que para um homem, na época, era uma vergonha, uma humilhação… Um cabrão que não emprenhasse logo a mulher, não era macho, era um frouxo, ou até um mariconço…

− Portanto, a culpa só podia ser "dela"!…

Ah!, oui!... Então Começou a bater-me. Começou a ficar ciumento, possesso… Um animal!… E eu recusava-me a abrir-lhe as pernas, para o cabrão 'despejar os colhões', desculpa-me o termo.

E aqui começa outra estação do calvário da Rosemarie.

− Fechava-me no quarto para não levar porrada… Ele fazia cenas, eu berrava para alvoroçar a vizinhança... Eu desculpava-me, que estava com a 'rabeca', a menstruação, quando ele queria 'servir-se' de mim... Enfim, uma vergonha para mim e para a minha família... Pedi ajuda, até ao padre... Todos me diziam: "Entre o homem e a mulher, não ponhas colher!"...

Até um dia em que enchi-me de coragem e bati com a porta, voltando para casa dos meus pais. Tive a proteção dos meus irmãos, que lhe foram pedir satisfações. Houve porrada. Veio a GNR, mas ficou tudo em águas de bacalhau, que o cabrão tinha, na época, bons conhecimentos entre os senhores de Resende… Os homens protegem-se uns aos outros...

− E depois ?...

− Constou-se que voltara a Angola… que já conhecia,  já havido ido para lá quando rebentara o terrorismo... Depois em 74 ou 75, com a independência,  veio com os outros  retornados… Tinha, ao que se dizia,  um imão mais  velho no Brasil, foi ter com ele…  Já eu estava em França, há um bom par de anos, desde 1969…Nunca mais na vida lhe pus a vista em cima… Heuresement!... 

− Mas o mundo é pequeno, Rosemarie...

− Sim, houve quem o visse a sambar, a tocar rabeca, no carnaval do Rio. Depois perderam-lhe o rasto. Deve ter tido um fim desgraçado, que Deus o perdoe. Mas, quando eu me quis divorciar, foi o cabo dos trabalhos. Estava em parte incerta, ninguém sabia se estava vivo ou morto. Divorciei-me já em França, já com quase 60 anos… Lá no Brasil o meu advogado francês tratou de arranjar uma certidão de óbito…  Não sei se falsa ou verdadeira, custou-me uma boa nota…

− Mas a fuga para França é outra aventura da Rosemarie…

− Se foi!... Dava para outro filme, mon chérie… Mas hoje já não to conto, fica para outro dia, estou trop fatiguée

(Continua) 

© Luís Graça (2020). Revisão em 21 de março de 2024.

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Nota do editor:

Último poste da série > 11 de março de  2024 > Guiné 61/74 - P25261: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (21): O pão que o diabo amassou

domingo, 26 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24170 : Manuscrito(s) (Luís Graça) (219): Na despedida da Terra da Alegria: à minha querida 'mana' Nitas, Ana Ferreira Carneiro Pinto Soares (Candoz, 1947 - Porto, 2023)



Ana Ferreira Carneiro, na sua casa da Madalena, Vila Nova de Gaia, em 19/6/2019, no dia do casamento do filho mais novo, mas já com o diagnóstico da doença, a mielodisplasia, que deveria estar na origem da sua morte, quatro anos depois,  em 24 de março de 2023.


Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

A Tabanca de Candoz ficou mais pobre, a partir de anteontem,  com a morte da "Nitas"... Ana Ferreira Carneiro Pinto Soares (Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, 15/1/1947 - Porto, 24/3/2023)

A engenheira técnica Ana Carneiro, carinhosamente conhecida por "Nitas", formou-se em 1973 e trabalhou desde então, e durante quatro décadas, no ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto, no departamento de Engenharia Química, Laboratório de Tecnologia Química. Fez parte, já reformada, de vários grupos musicais (coros e cavaquinhos). Era irmã da Alice Carneiro e cunhada do nosso editor Luís Graça. Era casada com o Augusto Pinto Soares, "Gusto", economista, e gestor, reformado, mãe do médico José Soares e do inspetor tributário Luís Filipe. Tinha dois netos. Morava na Madalena, Vila Nova de Gaia. As cerimónias fúnebres realizaram-se em dois locais: (i) igreja do Padrão da Légua, São Mamede de Infesta, Matosinhos, com velório a partir das 18h00: missa de corpo presente às 10h00, amanhã, sábado; (ii) seguindo depois o féretro para a sua terra natal, que ela tanto amava; o corpo desceu à terra por volta das 15h00, no cemitério da freguesia de Paredes de Viadores, Marco de Canaveses.





 

Marco de Canaveses >  Paredes de Viadores >  Festa da família Ferreira >  7 de setembro de 2013 > Juntou mais de 100 pessoas. A festa realiza-se há cerca de 30 anos. A última tinha sido em 2011. 

Neste vídeo mostra-se a exibição de um grupo de mulheres da família que cantam lindamente os tradicionais cantaréus da região do Douro Litoral (que só podem ou devem ser cantados pelas mulheres, e estão hoje praticamenmte extintos, o termo aliás nem sequer está, lamentavelmente,  grafado pelo Dicionário Periberam da Língua Portuguesa): "Nitas", Mi, São (mulher do maior violonista da região, Júlio Veira Marques, também presente na festa, nosso camaradas da CCAÇ 1418, Bissau, Bula, Buruntuma, Camajabá, Ponte Caium e Fá Mandinga, 19654(/67)... e Dolores Carneiro... A "Nitas" está de óculos escuros e xaile tradicional.

Vídeo (1' 59''). Alojado em You Tube / Luís Graça (2013) (*)

1. Oração fúnebre dita da missa de corpo presente, igreja do Padrão da Légua, Matosinhos, dia 15 de março de 2023, cerca das 11h00 (**):

Querida Nitas:

Hoje há lágrimas e suspiros. Hoje é o dia mais triste das nossas vidas. Agora que partiste para a tua última viagem, aquela que não tem retorno, há um nó na garganta que nos sufoca e não nos deixa dizer tudo o que nos vai na alma.

Sabes, na hora da morte dos que nos são queridos, as palavras de pouco nos servem de consolo. Escrevi-te tantos sonetos, quadras e outros textos poéticos, ao longo da tua vida, por ocasião dos teus aniversários e em outros momentos felizes que passámos juntos no seio das nossas famílias… Mas ficou, afinal, tanto por te dizer e partilhar contigo!...

Contra toda a evidência médica, fomos resistindo à ideia de te perder e fomos sempre alimentando a luzinha que, embora muito trémula, ainda era visível ao fundo do túnel, há uns meses atrás. Mas tu sabias que a vida te estava a escapar… não obstante a dedicação e a competência dos “anjos”, que no Hospital de São João, cuidaram de ti, a começar pelo teu hematologista, dr. Ricardo Pinto.

Recordo o que me escreveste, há um ano, agradecendo as palavras que eu te mandei, em meu nome e da tua mana Alice, por ocasião dos teus 75 anos. “Querido Luís: Quando partirmos para o outro lado do rio de Caronte, como tu dizes, o que fica para a posteridade, é o que tu escreves agora para nós… Tantas e tão lindas recordações. De nós pouco fica… Obrigada mais uma vez, a todos, por todo o carinho que recebo.” (Fim de citação).

Não, Nitas, de ti fica muito. Antes de mais, fica, em nós, uma saudade imensa. De ti, fica o teu sorriso luminoso, a tua grande bondade, a contagiante alegria de viver, a tua beleza interior, a tua gentileza, a tua fotogenia, o carinho com que tratavas as tuas plantas e flores na Madalena e em Candoz, o prazer com que ias para o coro e o cavaquinho, o orgulho, a ternura e o amor que tinhas  pelo teu marido, Gusto, e pelos teus filhos Luís Filipe e José Tiago, o desvelo e o carinho que manifestavas pelos teus netos, e as tuas noras e a tua grande família: manos, cunhados, sobrinhos, etc.

Fica o exemplo extraordinário de abnegação e de resistência que deste ao longo de quatro anos de luta contra uma doença crónica degenerativa, cruel, irreversível, incurável, injusta. Tu não merecias este desfecho.

E fica o teu Gusto, sempre discreto mas eficiente e presente, sempre a teu lado, nos piores e melhores momentos, o Gusto, o teu grande companheiro de jornada, de estrada, o grande amor da tua vida. Fica o seu exemplo, para todos nós, de um extraordinário cuidador. Sem um ai, sem um ui, escudando-se muitas vezes na sombra, fora das luzes da ribalta, sem procurar protagonismo. Porque ele sabia que tu farias exatamente o mesmo por ele. Essa, sim, é uma grande prova de amor.

Fica ainda o exemplo do resto da tua família, que esteve sempre a teu lado, que soube ser carinhosa, fraterna e solidária na grande provação que foi a tua doença. Sem esquecer os teus bons amigos e antigos colegas, do ISEP - Instituto Superior de Engenhria do Pporto e dos grupos do coro e do cavaquinho…

Na tua morte, querida Nitas, todos morremos um pouco contigo. Falo em meu nome, em nome dos meus e dos teus, e de todos os demais que muito te amaram e que te vão recordar pela vida fora. Prometemos nunca te esquecer enquanto ainda tivermos do lado de cá do rio. Também já temos a moeda para dar ao barqueiro Caronte que nos há levar ao teu encontro, na outra margem. Até lá vamos falando contigo, mesmo por entre lágrimas e suspiros. Recusamos dizer-te adeus, até sempre. Apenas, adeus, até um dia destes, querida Nitas!

Luís Graça


2. Letra da canção do cancioneiro minhoto, "Ó Farol de Montedor",  interpretado por um coro "ad hoc" (sem acompanhamento instrumental),  Cemitério de Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, 25 de março de 2023, 15h00

Ó Farol de Montedor


Instrumental 
 

Ó farol de Montedor, ó ai, ó ai,
Ó farol de Montedor,
Alumia cá pra baixo, ó ai, ó ai
Alumia cá pra baixo, ó ai, ó ai

Instrumental

Eu perdi o meu amor, ó ai, ó ai
Eu perdi o meu amor, 
Às escuras não no acho, ó ai, ó ai
À escuras não no acho, ó ai, ó ai

Instrumental

É noite, e o sol já está posto, ó ai, ó ai
É noite, e o sol já está posto 
E o meu amor que não vem, ó ai, ó ai
E o meu amor que não vem, ó ai, ó ai

Instrumental

Ou o mataram a ele, ó ai, ó ai
Ou o mataram a ele, 
Ou ele matou alguém, ó ai, ó ai
Ou ele matou alguém, ó ai, ó ai

Instrumental

Ó farol de Montedor, ó ai, ó ai
Ó farol de Montedor,
Iça a bandeira de luto, ó ai, ó ai
Iça a bandeira de luto, ó ai, ó ai

Instrumental

Foi-se embora o meu amor, ó ai, ó ai
Foi-se embora o meu amor, 
Tenho pena, choro muito, ó ai, ó ai
Tenho pena, choro muito, ó ai, ó ai

Instrumental

 Ó farol de Montedor, ó ai, ó ai,
Ó farol de Montedor,
Alumia cá pra baixo, ó ai, ó ai
Alumia cá pra baixo, ó ai, ó ai


(Vd. aqui a interpretação do Coro Académico da Universidade do Minho com o Grupo de Música Popular da Universidade do Minho: Ó farol de Montedor - Trad. do Minho / harm.: Mário Nascimento XIII Encontro de Coros Universitários - 2017)

3. Joaquim Costa comentou na Tabanca Grande Luís Graça, com data de 24 de março último:

Amigo Luís, é nestes momentos que as palavras nos faltam para exteriorizar a tristeza que nos aperta o coração, pelo amigo que perde alguém muito querido.

As minhas condolências a toda a família e amigos da minha colega Eng Tec, que não tive o prazer de conhecer mas que com certeza nos cruzámos nos corredores do então IIP - Instituto Industrial do Porto (hoje ISEP)

Um grande abraço deste amigo que muito te considera.

Joaquim Costa

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Notas do editor: 

(*) Vd. 24 de setemebro de  2020 > Guiné 61/74 - P21388: Manuscrito(s) (Luís Graça) (191): Quinta de Candoz: vindimas, a tradição que já não é o que era... (Augusto Pinto Soares) - Parte I

domingo, 25 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22137: Tabancas da Tabanca Grande (2): Tabanca do Atira-te ao Mar - Parte II: Quem canta (e toca) seu mal espanta (ou troca...)

 


Vídeo (1' 56'') > Alojado em Luís Graça / You Tube

Lourinhã, Porto das Barcas, Tabanca do Atira-te ao Mar  > Abril de 2021

Interpretação: Jaime Silva (voz e cavaquinho) e Joaquim Pinto Carvalho (voz e viola)  (Ensaio)


Oh rama, oh que linda rama 

(Música tradicional portuguesa) 
Letra:

Oh rama, oh que linda rama,
Oh rama da oliveira!
O meu par é o mais lindo
Que anda aqui na roda inteira.

Que anda aqui na roda inteira,
Aqui e em qualquer lugar.
Oh rama, oh que linda rama,
Oh rama do olival! 

Eu gosto muito de ouvir
Cantar a quem aprendeu.
Se houvera quem m'ensinara,
Quem aprendia era eu!

Não m'invejo de quem tem
Parelhas, éguas e montes;
Só m'invejo de quem bebe
A água em todas as fontes.

Fui à fonte beber água,
Encontrei um ramo verde;
Quem o perdeu tinha amores,
Quem o achou tinha sede.

Debaixo da oliveira
Não se pode namorar;
A folha é miudinha,
Deixa passar o luar.



Vídeo  (2' 47'') > Alojado em Luís Graça / You Tube


Lourinhã, Porto das Barcas, Tabanca do Atira-te Ao Mar > Abril de 2021

Interpretação: Jaime Silva (voz e cavaquinho) e Joaquim Pinto Carvalho (voz e bandolim) (Ensaio) 

Maria, teu lindo nome 
(Canção tradicional de Coimbra)


Letra: 

Maria, teu lindo nome, 
Ai, para as bocas sequiosas! 
Maria, teu lindo nome, 
Ai, para as bocas sequiosas! 

Maria, disse e ficou-me 
A boca a saber a rosas, 
Maria, disse e ficou-me 
A boca a saber a rosas. 

Maria, quero-te tanto, 
Ai, que só te peço que um dia, 
Maria, quero-te tanto, 
Ai, que só te peço que um dia 

Quando tu souberes o quanto 
Me queiras tanto, Maria. 
Quando tu souberes o quanto 
Me queiras tanto, Maria.


1. Na "jovem" Tabanca do Atira-te Ao Mar (...e Não Tenhas Medo!) (*), também se canta e toca... E quem canta e toca, seu mal espanta e troca... 

Os artistas, numa sessão de ensaio, deixaram-me gravar estas duas musiquinhas... que divulgamos só para partilhar a sua (deles) e nossa alegria por estarmos vivos (... e já vacinados contra a Covid-19, 1º dose...) e a esperança de que em breve todas as tabancas da Tabanca Grande possam abrir as portas, de par em par, para recebecer todos os amigos e camaradas da Guiné (e não só)...

Para já o grupo de músicos da Tabanca do Atira-te ao Mar é restrito (é apenas um duo... ), devido às circunstâncias atuais. Mas, recorde-se, que os dois fazem parte também da Tabanca Grande e da Tabanca da Linha...E o Joaquim Pinto Carvalho também já tem ido ao convívio da Tabanca do Centro... Portanto, senhores régulos, é convidá-los para uma próxima... quando a gente sair desta "anormalidade" (e já vamos no segundo ano da comissão de serviço na guerra contra a Covid-19). (LG)

____________

Nota do editor:

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21388: Manuscrito(s) (Luís Graça) (191): Quinta de Candoz: vindimas, a tradição que já não é o que era... (Augusto Pinto Soares) - Parte I


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3

Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Quinta de Candoz > Vindimas de 1979 >  "De calças arregaçadas até ao joelho ou em cuecas, lá vão eles [, amigos, vizinhos e familiares do dono] pisando e repisando os cachos das  uvas tintas até que a grainha comece a boiar no cimo do mosto. Às mulheres era interdita esta função: "estragavam o mosto", diziam os antigos. Era um tabu que, a custo, só hoje foi esquecido e ultrapassado." ... 

No foto nº 3, vê-se, de perfil, ao canto direito,  o dono da casa e da quinta, o José Carneiro (1911-1996). (Faria 109 anos, se fosse vivo, depois de amanhã, dia 26.). O lagar já não existe, a casa, com paredes de granito de 200 anos, foi reconstruída... Os campos, em solcalcos, outrora de milho, deram origem a uma moderna vinha... É hoje a sede da Tabanca de Candoz. E já não se produz tinto, só branco... Que este ano deu 13 graus... Castas principais: pedernã (arinto) e azul...Outras: loureiro, avesso, alvarinho... Subregião de Amarante...O grosso das uvas são entregues à Aveleda, Penafiel...

Legenda: da esquerda para a direita, os seguintes familiares e amigos do dono: Luís Graça (genro), Gusto (genro), Quim (genro),  Manel (filho), António (filho) e Fernando (amigo da família, cunhado do Manel)


Fotos (e legenda) : © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1.  Num país em que, quando nós nascemos, o vinho dava de comer a um milhão de portugueses,  é quase um insulto perguntar, à rapaziada da nossa geração, quem é que nunca  "foi às vindimas"...

"Pisar a uva", no lagar, já é outra coisa: nem todos nós pisámos uvas... Mesmo os citadinos, como eu, que "vivia na vila",  tinham avós ou tios no campo, e iam nas férias grandes à "festa das vindimas"... (Quando as férias escolares eram mesmo  férias  grandes, duravam três meses...). Tratava-se realmente de uma festa, fechando o solstício do verão,  ou seja, um ciclo nove meses de trabalhos e canseiras no campo... 
A vindima era o parto da vinha.

Na região do Oeste, na altura uma das regiões do país com mais produção vitivinícola (até aos anos 60), vinham ranchos de homens e mulheres das Beiras, os "ratinhos" ou "bimbos", vindimar os milhares de hectares de vinha que havia espalhados pela Estremadura e Ribatejo... Deslocavam-se em grupo, com um capataz, e dormiam nos palheiros, como animais... Depois, os homens foram para a guerra ou a salto para França, arrancaram-se as vinhas, mecanizou-se a agricultura, a vinha (e o trigo)  deu lugar a outraser culturas mais rentáveis  (nomeadamente hortofrutícolas) ...

Mais tarde, a partir de 1976, descobri as vinhas e as vindimas do Norte, na região do vinho verde, e ainda a tempo de "apanhar o passado", a vinha de enforcado, as latadas, o milho, os engenhos (moinhos), as tradições comunitárias como as "serviçadas", a matança do porco,  os carros de bois "a chiar pelos montes acima", a parceria agrícola e pecuária, as feiras de gado, as romarias, os bailes mandados, etc.... E, pela primeira vez (e única) na minha vida também ajudei a pisar a uva (tinta, sim, porque o branco faz-se "de bica aberta")...

São tradições que se perderam, mas que ainda hoje perduram na memória dos "antigos" (e que em Candoz de algum modo procuramos preservar) ...Aqui fica um texto, que vai ser dividido em duas partes, sobre as vindimas de outrora. Foi publicado no blogue  A Nossa Quinta de Candoz

É uma descrição primorosa das vindimas de antigamente, na freguesia de Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, onde fica situada hoje a Quinta de Candoz... É da autoria do meu amigo, cunhado e hoje sócio da Quinta de Candoz, que nos coube em herança, e que modernizámos, juntamente com mais dois herdeiros, nossos cunhados... (*)

O Augusto Pinto Soares, o nosso "Gusto",  economista e gestor de profissão, reformado, é o nosso homem dos sete ofícios, o nosso vitivinicultor-mor... É também uma homenagem a ele (e o nosso sogro, José Carneiro,  proprietário agrícola e ramadeiro, nascido em 26 de janeiro de 1911, e falecido em 1996). 

É, enfim,  um texto delicioso pelos regionalismos usados, parte dos quais nem sequer ainda hoje estão grafados  nos nossos  dicionários : freima, ausio, serviçada, vinha de enforcado, cantaréu, chia, mula, etc.

O "Gusto" foi alferes miliciano de administração militar, com a especialidade de contabilidade e recebedoria, tirada na EPAM, no Lumiar, Lisboa, e é dos pouco da minha geração (, ambos somos de 1947) que, por mérito próprio  (e também sorte), não foi mobilizado para o ultramar, sendo o primeiro do seu curso. Se a memória, não me erra, fez a tropa em 1970/72. Licenciado em economia, foi gestor em empresas, nacionais e estrangeiras, da indústria de calçado.

É natural do Porto mas, enquanto trabalhador-estudante, conheceu bem a zona da origem da sua mulher (e minha cunhada), onde tinha raízes (da parte dos pais), e inclusive ajudava o futuro sogro, nas férias e aos fins de semana, a "fazer as contas" da compra de uvas por conta de empresas vinícolas   da região, como o Moura Bastos, ou a Sociedade dos Vinhos Borges, que engarrafavam e comercializavam vinhos brancos nossos comnhecidos na Guiné...  (Aliás, foi na Guiné que muitos de nós começaram a apreciar o vinho verde branco: quem ainda não se lembra  de marcas históricas como o Gatão, as Três Marias, o Casal Garcia, o Lagosta, e outras ?!)

Este texto é também uma homenagem também à antiga Casa de Candoz a cujas vindimas os amigos e vizinhos gostavam de ir porque, em troca da "serviçada", a patroa, Maria Ferreira (1912-1995), gostava de servir o melhor que tinha na salgadeira e no fumeiro. (**)



Marco de Canaveses > c. 1947 > As vindimas...
 

Marco de Canaveses > c. 1947 > O típico carro de bois


Fonte: Aguiar, P. M. Vieira de - Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses. Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947. (Com a devida vénia).



por Augusto Pinto Soares (Gusto)



I. Tempos que já lá vão, ou, como se diz agora, por influência do slogan publicitário, a tradição já não é o que era!

Com efeito, um bom par de anos atrás, as vindimas eram uma festa para alguns – os convidados, familiares ou amigos, citadinos – e azáfama e preocupação para a maior parte {, "freima", diz-se aqui]:

(i) os pobres caseiros ou rendeiros na expectativa do terço que lhes poderia caber;

(ii) os pequenos proprietários, sempre na incerteza da colheita que iriam ter e fazendo contas à vida, incluindo alimentação (um peso grande em tempos de míngua – era o tempo da sardinha para três) que haveria de se dar ao pessoal que ajudava à vindima.


Era o tempo em que a data da vindima era marcada de acordo com as disponibilidades dos outros lavradores do lugar ou das proximidades, para que, os pais e os filhos (normalmente mais de seis por família) pudessem distribuir-se na ajuda a prestar uns aos outros. Era o sistema comunitário, a "serviçada", a funcionar.

Então era ver, manhã cedo, homens e rapazes com escadas de madeira (até 12 passos) às costas, com a cesta de vime com o cambito pendurado ao ombro, em romaria às várias propriedades onde a vindima se ia realizar.

Iniciado o corte das uvas, após um frugal mata-bicho – bagaço com açúcar e um naco de broa de milho e centeio –, as conversas, os ditos, as interjeições iam-se sucedendo entre os homens e as mulheres, procurando assim animar os espíritos e dar algum intervalo às dores de costas dos homens, que para além de constantemente terem de mudar as escadas pesadas entre as uveiras altas – as vides como que serpenteavam os choupos que serviam de armação: a tradicional vinha de "enforcado" – ainda tinham, quantas vezes, de se encarrapitar para fora da escada de forma a chegar a um cacho de uvas que teimava em ficar a amadurecer por mais algum tempo.

As mulheres, essas, no seu corrupio entre as leiras e a adega com os cestos de vime pesados à cabeça e com o sumo das uvas, de tão calcadas, a escorrer-lhes pela cara e costas abaixo chegavam afogueadas e com o suor adocicado.

Até as crianças e moçoilas, ainda sem idade para acartar cestos, tinham o seu quinhão na azáfama da vindima. Como diz o ditado, “o trabalho do menino só não o quer quem não tiver tino “, e então era vê-las, cada qual com o seu açafate, empenhadas na sua válida tarefa de apanhar todo e qualquer bago que caísse ao chão, pois desperdiçar era proibido e muitos bagos (envolvidos em terra ou sem ela) sempre davam mais uns quantos litros de vinho.

Aqui e ali ouviam-se os "cantaréus", ao despique, efectuados por 3 ou 4 moças que se juntavam junto às bordas, no intervalo de mais um carreto de cestos e que, ecoando vale abaixo, indicavam aos vizinhos que ali se vindimava e qual o seu estado de alma.

(i)

Lá vai o comboio, lá vai
Lá vai ele à’sobiar,
Lá vai o meu rico amor
Par’à vida militar.

Par’á vida militar,
Par´áquela triste sina
Lá vai o comboio, lá vai
Leva pressa na subida.

Leva pressa na subida,
Leva pressa no andar,
Lá vai o meu rico amor
Par’à vida militar.

(ii)

Deitei meus olhos ao rio,
Para ver teu brio.
Estavas a lavar.

Lava, lava, lavadeira
Estás na brincadeira,
Estás a namorar.

Deitei meus olhos ao rio,
Para ver teu brio.
Estavas a torcer.

Torce, torce, lavadeira
Tua roupa branca,
Que se pode ver.

Deitei meus olhos ao ar,
Para ver de que lado
O sol estav’à dar.

Para nesse lindo arame,
Estender tua roupa,
Para a ver secar.

(iii)

Tenho no meu agulheiro
Agulhinhas de bordar
Para dar ao meu amor
Quando ele aqui chegar.

Borboletinha olaré meu bem
Borboletinha olaré quem tem

(iv)

Tenho uma toalha branca
Fiada à luz da candeia.
O trabalho é oração.
È assim a vida d’aldeia.


(v)

Se vires o mar vermelho!
Não temas que é sagrado.
São as lágrimas de sangue,
Que por ti tenho chorado.


(vi)

Do lado d’além do Rio,
Tem meu pai um castanheiro
Dá castanhas em Abril,
Uvas brancas em Janeiro.


(vii)

Oh! Erva-cidreira
Que estás na varanda,
Quanto mais te rego
Mais tu cais pr’á banda.

Mais tu cais pr’á banda,
Mais t’hei-d’eu regar.
Oh! Erva-cidreira,
Que t’hei-d’eu cortar.


(viii)

Deitei o cravo ao poço. Olé!
Fechado, meio aberto.
Dá cá, toma lá.
Rapaz com’ó Chico.
Não há, não há.


(ix)

Venho de cima do Douro,
Num barquinho de papel.
Já há muito que não ouvi,
Suspiros do meu Manel.


(x)

Ana! Estava na cozinha
E sua mãe a chamou.
Oh! Ana! Oh! Ana!
Senhora Minha Mãe, já vou!

[Fonte: Cancioneiro Popular]



   


Vídeo (1' 59''). Alojado em You Tube / Luís Graça (2013)

Marco de Canaveses >  Paredes de Viadores >  Festa da família Ferreira > 7 de setembro de 2013 > Juntou mais de 100 pessoas. A festa realiza-se há cerca 40  anos. A última tinha sido em 2011. Neste vídeo mostra-se a exibição de um grupo de mulheres da família que cantam lindamente os tradicionais "cantaréus" (que só podem ou devem ser cantados pelas mulheres, e em geral nas vidnimas): Nitas , Mi, São (mulher do maior violonista da região, Júlio Veira Marques, também presente na festa, nosso camarada Guiné) e Dolores...


Eis que chegavam as 10 horas da manhã. E, com um cestinho de vime, bem composto com broa de milho da casa, azeitonas, cebola cortada numa malga ou covilhete com um fio de azeite e vinho verde tinto, um pedaço de toucinho, umas lascas de bacalhau salgado da peça e … pouco mais, coberto com um alvo paninho de linho, lá aparecia a dona da casa.

Fazia-se assim um merecido mas breve intervalo para recompor um pouco as forças já que naturalmente não faltava o garrafão empalhado, com o vinho tinto da casa que ainda sobrara da colheita anterior. Era vê-los, sentados no chão em redor da toalha de linho onde eram dispostos todos aqueles saborosos acepipes ou, quando chovia, com um saco de serapilheira à cabeça com um vértice do fundo dobrado para o interior a fazer de capote ou debaixo dos guarda-chuvas. Era a hora do "almoço" (hoje pequeno almoço).

 Ó Tio Zé! Beba mais uma pinga! Olhe que ele ainda está bô.

Digerida a bucha lá se seguia para mais uma ramada (parreira ou latada) para encher mais uns cestos, para mais uns carretos.

Ao longe já se ouvia o chiar dos carros de bois, por entre caminhos tortuosos, íngremes por vezes, na sua função estóica de levar os cestos carregados de uvas para a adega dos Senhores (ou "fidalgos"), sempre que as propriedades não tinham lagar, onde as uvas tintas de todos os caseiros, conjuntamente, seriam sovadas. Sim,  porque as uvas brancas já tinham sido apanhadas e vendidas para Adegas [, Aveleda, de Penafiel, Moura Basto, de Amarante, por exemplo] pois era muito complexo fazer vinho branco de bica aberta, já que normalmente nunca calhava bem.

Meio-dia! Hora do "jantar" (hoje almoço).

Hoje, infelizmente, tem chovido intensamente, toda a manhã! Os homens e mulheres estão ensopados em água! O trabalho pouco rendeu!

 Oh Tio Zé! Parece que chove a cântaros! Pode ser que ainda venha um "ausio" (aberta) e dê para apanhar uma lagarada!

A dona da casa, afogueada e preocupada, chega a correr:

 Oh! Zé! Chego a panela pr’á frente ou afasto-a p’a trás?

 Oh! Mulher! Cheg'à pr’á frente!

Com dificuldade lá se conseguiu improvisar uma substancial refeição. Uma tachada de arroz salpicado com feijão branco com sardinhas fritas ou de macarrão com espinhas de bacalhau ou batatas cozidas com um naco de presunto ou salpicão que religiosamente foi sonegado às refeições da família durante o ano para agora poder ser servido como lauto pitéu. E naturalmente o vinho tinto da casa que ainda terá de chegar até ao vinho novo.

Sobremesa? Isso era uma fidalguia que não fazia parte dos hábitos alimentares desses tempos. Com muita sorte poderia aparecer um prato de rabanadas ou um prato de aletria que com o seu sabor adocicado merecia mais uma caneca de vinho. Mas tais doçarias raramente apareciam ao almoço, ficavam para a "ceia" (hoje jantar) ou para depois ou durante a sova.

Findo o repasto, novamente a azáfama durante a tarde em tudo igual ao que aconteceu durante a manhã. A meio da tarde, mais uma "merenda" com os mesmos ingredientes daquela que aconteceu a meio da manhã.

A noite chega. Provavelmente a vindima ainda terá que continuar no(s) próximo(s) dias. Agora é tempo de descansar um pouco, preparar as selhas onde os homens lavarão os pés para entrarem no lagar e meter as uvas a vinho. E, de calças arregaçadas até ao joelho ou em cuecas, lá vão eles pisando e repisando os cachos de uvas até que a grainha comece a boiar no cimo do mosto. Às mulheres era interdita esta função: "estragavam o mosto", diziam os antigos. Era um tabu que, a custo, só hoje foi esquecido e ultrapassado.

Para se vingarem dessa interdição, elas costumavam esconder abóboras no meio das uvas para que os homens ao entrarem no lagar escorregassem nas mesmas e caíssem no meio daquela massa de uvas e mosto ou então, pediam ao homem que durante a vindima ia metendo as uvas a vinho (para muitas mais caberem no lagar) que calcasse as uvas junto a um ou mais cantos (criando assim as "mulas") para dificultar aos homens (sobretudo aos rapazes) da sova o levantamento das mesmas para as poderem arrastar e pisar com os pés.

E quando as moças se lembravam de surripiar as calças que os homens tinham tirado ao entrar no lagar cosendo as pernas das mesmas, uma à outra, rindo-se depois até ás lágrimas – riso puro, jovial, sadio, contagiante  quando depois de sair do lagar os homens tentavam, cambaleando e por vezes caindo, vesti-las?

Chegam entretanto as filhas da casa com uns pratinhos de aletria – feita com ovos caseiros, amarelinhos – bem quentinha, ainda a fumegar, salpicada com uns pozinhos de canela que sabe pela vida e se presta a mais uma rodada da caneca branca de porcelana cheia de vinho, sempre tinto!

Entremeado por ditotes, por cândidas anedotas, adivinhas, alguns cantares (por vezes ao desafio) e de quando em vez alguma música (os proprietários de mais posses chegavam a contratar uns músicos com instrumentos tradicionais), a massa que vai ficando depositada no fundo do lagar é levantada com os pés de forma a encontrar alguns bagos de uvas ainda inteiros e ser esmagados.

As pernas dos homens já escorrem mosto vermelho, qual sangue vivo que começa a brotar para uma nova vida.

O patrão dá a ordem:

– Mais uma volta e podem sair!

Está terminado o dia de trabalho

A patroa já tem pronta a "ceia" (hoje jantar). Arroz de galinha, ou talvez umas batatas cozidas com bacalhau ou. se “fizer minga” [, míngua,],  uma arrozada com um bom naco de toucinho ou presunto – que sempre se foi poupando para estas ocasiões. No fim sempre se improvisava umas rabanadas para servir de final de repasto. Mais uns bons tragos de vinho para compor e…:

 Por hoje está feito, Tio Zé!

Levantada a mesa, uns entreter-se-ão a jogar as cartas (normalmente a bisca ou o burro) com a algazarra própria da batota de alguns ou das "chias" que por vezes iam acontecendo, outros na amena cavaqueira sobre os problemas da vida e da esperança que a colheita fosse boa e para que o ano que vem fosse um pouco mais farto e que um vinho, esbelto e sadio, agora em preparação, saísse para as pipas mantendo o sabor inalterável da uva até à nova colheita.

Começam a sair. As lanternas (de petróleo ou carboneto) começam a acender-se – embora a electricidade tivesse já atravessado a Serra ainda não tinha chegado ao povoado. A noite já vai longa e é preciso dormir para recuperar energias porque os dias que se aproximam serão cansativos, tal como o de hoje.

(Continua)

Texto de Augusto Pinto Soares (2005)

[ Revisão / fixação de texto, para efeitos de edição neste blogue: LG]

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Notas do editor: