Luís Graça (2014) |
Por razões de força maior (doença terminal de uma pessoa, familiar, que lhe é muito querida), o nosso editor está temporariamente com menos disponibilidade (física e mental) para editar o blogue, encontrando-se desde há uma semana no Norte (Madalena, Vila Nova de Gaia). Conta com os outros coeditores,
São textos que ele foi buscar ao seu "baú", a sua antiga página na ENSP/NOVA onde ensinou e investigou, durante quase quatro décadas, ajudando a formar médicos de saúde pública, médicos do trabalho, medicos de clinica geral e familiar, administradores hospitalares, gestores de serviços de saúde, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, técnicos de higiene e segurança, educadores e promotores de saúde, engenheiros, mestres, doutores, etc.... A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça, (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).
Ele espera, ao menos, que a leitura destes textos desperte algum interesse, tenha algum proveito para os nossos leitores e suscite alguns comentários (críticos)... LG.
Graça, L. (2000) - Representações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica nos Provérbios em Língua Portuguesa. Parte II : 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro'
3. Estereótipos em relação aos médicos e à medicina
De facto, imperavam o dogmatismo e a superstição. O prognóstico era regulado pela astrologia, tal como na Babilónia (Lafaille e Hiemstra, 1990). O diagnóstico era praticamente limitado à observação das "águas" (urina) e, depois da Renascença, à tomada dos pulsos. A observação clínica estava posta de lado. O conhecimento da anatomia e da fisiologia do corpo humano era grosseiro, já que a dissecação de cadáveres era expressamente proibida pela Igreja. Daí o provérbio " Se queres conhecer o teu corpo, mata o teu corpo"...
A par disso, não existiam hábitos de higiene pessoal nem de salubridade pública. As condições sanitárias ambientais eram péssimas. As cidades medievais não tinham sistemas de abastecimento de água potável e saneamento básico. Os despejos domésticos eram feitos para a via pública.
Quanto à tradição romana dos banhos públicos, de algum modo valorizada pela medicina judaica e árabe na península ibérica, sabemos como ela foi duramente combatida pelo cristianismo: por exemplo, homens da Igreja como São Jerónimo (c.343-420) não viam razões válidas para um cristão tomar banho depois do baptismo... se bem que na planta arquitectónica do célebre mosteiro de Sankt Gallen (Séc. IX) estivessem previstas latrinas e balneários (Graça, 1996).
Refira-se que este preconceito teológico em relação aos cuidados de higiene corporal vai ter consequências nefastas na saúde da população europeia (por exemplo, no caso da peste negra de 1347-1353).
Além disso, a teoria demoníaca da doença tinha então muito ascendente e, no caso das devastadoras epidemias que assolavam a Europa (sob o nome comum de "peste"), o bode expiatório eram geralmente os judeus ou outras minorias como as "bruxas" (ou sejam, as mulheres com "poderes" terapêuticoss, mágicos ou maléficos). Ou até os próprios médicos, os comerciantes ricos, a nobreza, o alto clero e a corte real que sempre tinham mais meios de fugir, "depressa e para longe", dos sítios atingidos pela peste ou outras epidemis, de acordo com a aforismo da Escola de Salerno: Cito, longe, tardo, fuge, recedde, reddi (Mira, 1947. 415), ou seja, Foge depressa, vai para longe e volta devagar...
O ensino da medicina, por sua vez, era escolástico, ou seja, dominado pelo espartilho filosófico-teológico apesar de se ter assistido à criação e a um certo florescimento de algumas escolas médicas, umas absolutamente pioneiras e pluralistas (como foi o caso da Escola de Salerno, a civitas hippocratica onde, no virar do 1º milénio, se cruzavam as culturas judaica, cristã e muçulmana), outras já na sequência do desenvolvimento da universidade a partir de finais do Séc. XII (por ex., Bolonha em 1188, Valência em 1209, Oxford em 1214, Paris em 1215, Montpellier em 1220, Salamanca em 1230, Coimbra em 1279).
O ensino da medicina também beneficia da redescoberta dos autores gregos, por via da sua tradução para o latim na Escola de Salerno e sobretudo para o siríaco e para árabe, nomeadamente através da seita cristã dos nestorianos que se instalaram na Pérsia, a partir de 489.
Entre os seguidores de Nestório, patriarca de Constantinopla, condenado como herege no Concílio de Éfeso (431), há médicos e outros letrados que levam consigo numerosas obras de autores gregos (Hipócrates, Aristóteles, Dioscórides, Galeno, etc.). O contacto com os nestorianos foi decisivo para o desenvolvimento da medicina árabe.
Mais importante ainda é a tradução de dezenas de obras da medicina árabe para o latim medieval, graças nomeadamente a:
- Constantino, o Africano (c. 1020-1087), em Itália (Salerno e Montecasssino);
- Gerardo de Cremona (c. 1114-1187) em Espanha (Toledo, reconquistada pelos cristão em 1085); entre as muitas obras traduzidas por Gerardo conta-se o Cânone de Avicena, por volta de 1150).
No essencial, o ensino da medicina irá limitar-se, durante séculos, mais à reprodução (sucessivamente deformada) dos clássicos (sobretudo Galeno e Avicena) do que à aprendizagem dos seus métodos empíricos de diagnóstico e terapêutica, baseados na observação e até na experimentação.
Hipócrates e muitos outros autores gregos só serão redescobertos e lidos no original a partir da Renascença. Muitos manuscritos chegam então ao Ocidente com a queda de Constantinopla em 1453 e o fim do império bizantino.
Na antiguidade clássica greco-romana, a medicina era inseparável da filosofia, tal como o será da teologia entre os povos de religião monoteísta (os judeus, os cristãos e os muçulmanos). A ruptura epistemológica da medicina com o pensamento teológico e filosófico só se fará, muitos séculos depois, com o triunfo do positivismo em meados do Século XIX (e nomeadamente graças aos trabalhos de três figuras fundamentais: Bernard, Pasteur e Koch), sem esquecer obviamente toda uma plêiade de precursores, da Renascença ao Século das Luzes, que nas mais diversas áreas do conhecimento foram construindo as bases da moderna cultura científica (Goff e Sournia, 1985; Lyons e Petrucelli, 1991; Sournia, 1995) (vd. Caixa 1).
Objecto | Provérbio |
Anatomia Corpo |
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Cirurgia |
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Cirur-gião Mestre |
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Os estudos sobre anatomia e fisiologia, nomeadamente a partir de A. Vesálio (1514-1564) e dos seus seguidores (Colombo, Fallopio, no Séc. XVI, Bonnet, no Séc. XVII, e Morgagni e Bichat, no Séc. XVIII), vão permitir o progressivo conhecimento do corpo humano (Quadro VIII), enquanto por outro lado surgem as primeiras técnicas de diagnóstico e terapêutica (auscultação, percussão, termómetro clínico, microscópio), lentamente aperfeiçoadas e divulgadas (Lyons e Petrucelli, 1991).
No Século XVIII, irá entretanto assistir-se ao desenvolvimento da prática e do ensino da medicina clínica, à cabeceira do doente, nomeadamente com H. Boerhaave (1668-1738), na universidade holandesa de Leiden, o qual introduz o termómetro e a lupa para uma observação clínica mais rigorosa.
No polo oposto do físico e do cirurgião, está o boticário: "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia", uma forma jocosa de ridicularizar a pobreza do arsenal terapêutico de que a medicina podia lançar mão, em contraste com o dinheiro que a botica arrecadava. Daí o aviso: "Foge do feio e do porcino, da botica e do remédio" (Quadro IX).
A arte farmacêutica é tão antiga como a arte médica, a ponto de se confundirem ou estarem intimamente relacionadas até à Alta Idade Média. A separação nítida entre a farmácia e a medicina, o seu ensino e a sua prática, dever-se-á aos árabes.
No entanto, a preparação de produtos de origem animal e vegetal, para prevenir as doenças, aliviar as dores ou curar as enfermidades, está documentada pelo menos desde o Egipto Antigo: por exemplo, o famoso papiro de Ebers (c. 1550 a. C.) — do nome de Georg Ebers (1837-1898) a quem se deve o seu primeiro estudo, em 1875 — contém já uma lista de mais de 800 receitas, fórmulas ou prescrições terapêuticas e faz referência a mais de 7 mil substâncias medicinais (Lyons e Petrucelli, 1991; Dias, 1997).
Na Idade Média, o reconhecimento da actividade farmacêutica, como ofício, distinto da medicina, é atribuído à Escola de Salerno, fundada no Séc. IX, no sul da Itália.
Segundo leis promulgadas em 1240 pelo imperador Frederico II da Sicília e Nápoles, o médico estava proibido de ser proprietário de uma botica ou de preparar medicamentos, um princípio fundamental que irá influenciar toda a legislação posterior nesta matéria (Clément, 1995; Dias, 1997). E quanto à actividade farmacêutica, faz-se já a distinção entre os confectionnarii e os statunarii:
- Os primeiros (confectionnarii) são produtores de mezinhas, percursores da indústria farmacêutica que se irá desenvolver na segunda metade do Séc. XIX: confeccionam por sua conta e risco, e de acordo com o estado da arte da sua época, os medicamentos que os médicos prescrevem para tratamento dos doentes;
- Os statunarii, por seu turno, são meros comerciantes, limitando-se unicamente a vender as substâncias e os medicamentos simples, fornecidos pelos confectionnarii (Clément, 1995).
Não sabemos até que ponto havia, na época, acumulação dos dois ofícios. De qualquer modo, os statunarii estão mais próximos da figura do moderno farmacêutico do que do antigo boticário que, entre nós, também era um produtor de mezinhas.
Referindo-se à diferenciação técnica e social que já existia na Antiguidade Clássica entre a farmácia e a medicina, Dias (1997, Capº 4) diz o seguinte:
"Na Grécia eram várias as denominações utilizadas para os profissionais que lidavam com medicamentos, para além dos médicos (iatroi )":
- Os mais comuns eram os pharmakopoloi (singular pharmakopolos), ou "vendedores de medicamentos (...) cujo estatuto social e cultura não seriam elevados";
- Pelo contrário, os rhizotomoi (singular rhizotomos), ou cortadores de raízes, tinham outra importância e estatuto, sendo também maior a sua preparação e o seu nível de conhecimentos;
- Outros grupos no campo farmacêutico incluíam os pharmakopoeoi (sing. pharmakopoeos), "preparadores de medicamentos", além dos preparadores de unguentos, os vendedores de misturas, os vendedores de especiarias e os vendedores de mirra;
Em Roma, vamos encontrar estas e outras categorias ligadas à produção e/ou comercialização de medicamentos, tais como os vendedores ambulantes e os vendedores fixos de medicamentos, os trituradores de drogas (pharmacotribae ou pharmacotritae ), os prepradores de cosméticos (pigmentari ) e os herbanários (herbarii ) (Dias, 1997).
Outra restrição imposta à actividade farmacêutica, em 1240, em Salerno, prendia-se com o prazo de validade dos produtos, armazenados na botica, e que passavam a estar sujeitos a inspecção: esses produtos não podiam ultrapassar o período de um ano após a data da sua aquisição (Dictionnaire médicale Dechambre, 1887, cit. por Clement 1995, p. 33).
Dias (1997, Cap. 6º) acrescenta que o édito de Melfi, promulgado por Frederico II em 1240, vinha também introduzir o princípio do "controlo dos preços dos medicamentos" bem como do "licenciamento e inspecção da actividade farmacêutica".
O boticário enquanto ofício, ou seja como corporação, é reconhecido em França, por alvará régio de 1514 (Clément, 1995). Mas já anos antes, em 1495, há notícia da criação da primeira botica hospitalar (no Hôtel-Dieu de Paris). Tratava-se, ao que parece, de uma medida de excepção, já que no hospital medieval eram o pessoal religioso que se ocupava da farmácia.
Depois da Revolução Francesa, o Estado vai regulamentar o exercício da actividade farmacêutica, através da lei de 21 de Germinal do Ano XI: a abertura de um estabelecimento farmacêutico bem como a preparação e a venda de medicamentos só são autorizadas aos farmacêuticos e desde que estes sejam, eles próprios, proprietários dos estabelecimentos.
A única excepção continuam a ser os hospitais que, sobretudo os menos importantes e com menos recursos, não tem farmacêuticos privativos, pagando uma avença ao boticário local para exercer a função a tempo parcial (o mesmo acontecendo em Portugal).
A partir do final do Séc. XVI, vamos já encontrar a figura do boticário hospitalar (e dos seus ajudantes), residindo no próprio estabelecimento e assistindo à visita médica dos doentes. No nosso país, esta inovação é bastante anterior, estando pelo menos consagrada no Regimento do Hospital Real de Todos os Santos (1504) e, mesmo anteriormente, no Hospital Termal das Caldas da Rainha (fundado em 1484).
Só no princípio do Séc. XIX, é que será criada em França a carreira dos farmacêuticos hospitalares (1802). As suas funções continuam a ser a preparação dos medicamentos, mas já de acordo com a farmacopeia em vigor.
Além disso, devem prestar contas anualmente, à comissão administrativa do estabelecimento hospitalar, da gestão da farmácia. De qualquer modo, durante muito tempo e até recentemente, o seu estatuto (admissão, nomeação, remuneração, incompatibilidades, competências, etc.) era técnica e socialmente inferior ao do médico (Graça, 1996).
No caso português, pode considerar-se como ponto de partida (histórico), para "a organização de serviços de saúde com diferenciação funcional" (Ferreira, 1990, p.85):
- A separação das actividades do físico-mor e do cirurgião-mor (1460);
- E o reconhecimento das funções dos boticários, os quais passaram, pelo menos, por lei, a substituir os médicos na preparação dos medicamentos (1461).
Mais especificamente, uma lei de 23 de Abril de 1461, de D. Afonso V, vem proibir aos físicos e cirurgiões a manufactura de mezinhas em suas casas, e aos boticários a administração de mezinhas aos doentes sem parecer do físico ou do cirurgião.
Merceeiros, especieiros e quaisquer outros ficavam igualmente proibidos de vender ao público medicamentos compostos nas localidades com boticário estabelecido. O mesmo se passava com os teriagueiros, em geral, judeus que vendiam de terra em terra a teriaga (um preparado utilizado como antítodo dos mais variados venenos, ou mais ou menos o equivalente à "banha da cobra" que ainda hoje se vende nas feiras das nossas vilas e aldeias) (Lemos, 1991; Mira, 1947).
Com o Regimento do Físico-Mor do Reino de 1521, os boticários passaram, por sua vez, a estar sujeitos à obrigação geral de exame de aprovação (Sobre a história da farmácia em Portugal, ver o excelente o site de J. P. Sousa Dias, alojado nas páginas da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa).
A intervenção régia neste domínio (complementada pela acção do município de Lisboa, por exemplo através do regimento de 26 de Agosto de 1497 que vem exigir a existência, nas boticas, de livros de registo das receitas aviadas, de tabela de preços, de pesos e medidas apropriados, etc. ) deixa adivinhar a natureza e a amplitude da indisciplina que continuava a reinar na época, tanto ao nível do exercício da prática médica (vd. Caixa 2) como da produção, distribuição, venda e consumo de medicamentos Daí provavelmente a origem e a razão de ser de provérbios como:
- "Antes (gastar) aqui que na farmácia"
- "Dourar a pílula";
- "Em ferreiro não pegues, em farmácia não proves, em sapateiro não sentes";
- "Há de tudo como na botica";
- "Remédio caro faz sempre bem, se não ao doente, ao boticário" (Quadro IX).
Objecto | Provérbio |
Botica/ Farmácia |
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Boti-cário/ Farma-cêutico |
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Medica-mento/ Remédio |
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Cura/ Terapêu-tica |
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Caixa 1 - O legado hipocrático e arábico-galénico |
A medicina hipocrática tem de ser entendida no contexto do desenvolvimento da filosofia grega (e sobretudo dos filósofos naturalistas). Neles foi Hipócrates (c. 460 - c. 377 a.C.) basear-se para construir a sua famosa teoria dos quatro humores e do seu indispensável equilíbrio para explicar a doença e manter a saúde (Mossé, 1885; Sournia, 1995). Em termos sintéticos:
Hipócrates é mais conhecido pelo célebre juramento que lhe é atribuído, ao que parece indevidamente (pelo menos na redacção que chegou até nós). Também se sabe muito pouco sobre a sua vida, a não ser que (i) nasceu na ilha de Cós, (ii) era descendente de uma família de médicos, (iii) viajou muito no seu tempo e (iv) teve inúmeros discípulos. Sabe-se também muito pouco da sua teoria e da sua prática clínica:
O contributo da escola hipocrática terá sido sobretudo o de elaborar uma medicina racional (e não propriamente científica), constitutiva do acto médico, em que a prognosis precedia a diagnosis, e esta a decisão terapêutica e o tratamento. No entanto, sendo a saúde um estado de equilíbrio dinâmico, as drogas tinham um papel limitado na medicina hipocrática. Aliás, o próprio livro dos Aforismos começa com estas palavras, evocando a especificade e os limites da própria medicina: "A vida é curta e a arte [ de curar, ou seja a medicina] é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganadora, o juízo difícil" (tr. para o francês de E. Littré, cit. por Sournia, 1995.47). Mas o mais famoso dos médicos da Antiguidade Clássica não é Hipócrates mas, sim, Galeno, do séc. II (c.129- c.n199). Os seus escritos irão constituir as bases essenciais do ensino médico medieval até à reforma da universidade, já em pleno Ancien Régime, tal como de resto a obra de Dioscórides (c. 60). Por exemplo, as prescrições constantes da obra mais conhecida de Dioscórides, De materia medica (donde constam numerosas aplicações terapêuticas, baseadas em produtos minerais, vegetais e animais), serão copiadas e recopiadas durante 18 séculos, ou seja, até ao Séc. XIX (!). Aliás, a farmacologia enquanto disciplina autónoma entrará só muito tardiamente na universidade: em 1891 é nomeado o primeiro professor de farmacologia nos EUA (John Jakob Abel, Universidade de Ann Arbor) e em 1905 na Inglaterra (University College London, Artur Cushney)(Lyons e Petrucelli, 1991). De Galeno sabe-se o seguinte:
Da sua vasta obra (cerca de 400 livros), resta cerca de um quarto. O seu ensino manteve-se praticamente intacto até à Renascença. O facto da sua autoridade ter sido reconhecida pela própria Igreja, fez com que se tornasse uma espécie de bíblica médica, para o melhor e para o pior. E todos aqueles que posteriormente ousaram contestar os seus ensinamentos de Galeno serão perseguidos, excomungados ou até mortos. Não reconhecendo a força terapêutica que Hipócrates atribuía à natureza, o maior contributo de Galeno para o desenvolvimento da medicina ocidental terá sido a ideia de que os vários sintomas de doença podiam ser estudados e individualmente tratados, dependendo esse tratamento dos órgãos afectados pela doença. Esta concepção organicista da doença ainda constitui ainda hoje o essencial do paradigma biomédico da saúde/doença (Sournia, 1995). Há um provérbio popular que reflete a fama (mas também a divergência) entre os dois médicos mais famosos da Antiguidade Clássica: "Hipócrates diz que sim, Galeno diz que não". Dos arabistas (mais do que dos árabes propriamente ditos, já que o termo se aplica a todos os autores que escreviam em árabe, incluindo os persas e os judeus), há que destacar Avicena (980-1037), o conhecido autor do Cânone da medicina. Todavia, o mais famoso médico da Idade Média terá infelizmente sucumbido, na opinião de Sournia (1995. 89), à "embriaguez de um unicismo total": Para Avicena, "é o movimento dos astros que regula a data das sangrias e o prognóstico das doenças, a geometria dos polígonos determina a cicatrização das feridas, e o pulso, contado através da clépsidra de água, orienta o diagnóstico" . |
Caixa 2 - Evolução do estatuto socioprofissional dos médicos e cirurgiões |
Em princípio, poderiam exercer medicina todos aqueles que fossem diplomados (bacharéis) pela universidade portuguesa ou por universidade estrangeira, no respectivo curso. A prática abusiva da medicina por indivíduos sem a necessária qualificação levará, entretanto, D. João I (1357-1433) a ordenar, por carta real de 28 de Junho de 1392, que nenhum homem ou mulher, cristão, mouro ou judeu, pratique a arte de curar sem primeiro se submeter a um exame de provas práticas feito perante o físico-mor (um cargo de nomeação régia que só será extinto em 1836). Aqueles que eram aprovados no exame, obtinham uma carta autenticada com o selo real que lhes conferia o direito de exercer legalmente a prática da medicina. Previam-se já pesadas sanções pelo exercício ilegal da medicina, muito embora essa disposição não tivesse provavelmente grandes efeitos práticos. Esta carta real é considerada "a primeira disposição legislativa em relação ao exercício da medicina", segundo Lemos (1991, Vol. I. 73). No Regimento do Físico-Mor, de 15 de Outubro de 1476, esse exame passa a estender-se aos próprios diplomados pela universidade, portuguesa ou estrangeira, o que não deixa de ser sintomático (Graça, 1996):
Nesta época, a cirurgia era um simples ofício que se aprendia com a prática e experiência dos mais velhos, não estando o seu exercício regulamentado. Era, aliás, uma arte considerada menor, que exigia sobretudo força e destreza manuais, e como tal desprezada pelos médicos diplomados. Era praticada sobretudo pelos barbeiros (até a meados do Século XVIII). Recorde-se que, segundo o Juramento de Hipócrates (vd. tradução de Littré, cit.por Sournia, 1995. 47-48), ao médico estava interdito o uso da faca (ou do bisturi): "Não praticarei a operação de corte, mas deixá-la-ei para as pessoas que dela se ocupam". Só com o Regimento do Cirurgião-Mor, datado de 25 de Outubro de 1448, no tempo de D. Afonso V, é que passa igualmente a ser obrigatória a prestação de provas de habilitação para a prática da cirurgia. O exercício indevido da cirurgia passava também a ser punido com prisão. O ofício de cirurgião só a partir do Século XVI é que começa a ser técnica e socialmente valorizado . Por exemplo, um alvará de 26 de Julho de 1559 vem restringir o seu exercício aos que fizessem ou tirassem o curso de dois anos do Hospital Real de Todos os Santos (HRTS), com excepção dos diplomados pelas Universidades de Coimbra, Salamanca ou Guadalupe. Esta disposição não é, no entanto, confirmada pelo Regimento do Cirurgião-Mor, de 12 de Dezembro de 1631. Entretanto, no final do Séc. XVII, irão ser tomadas algumas providências relativas ao curso de cirurgia do HRTS:
Em 1758, o cirurgião-mor Soares Brandão volta a reiterar as exigências para admissão ao curso de cirurgia, ministrado naquele hospital: Saber ler e escrever, ter conhecimentos de ortografia e gramática da língua portuguesa, entre outros requisitos (Mira, 1947). Recorde-se que, contrariamente aos tratados médicos que eram obrigatoriamente escritos em latim, as obras sobre cirurgia e anatomia eram publicadas nas línguas vernáculas. Daí o professor de anatomia P. Dufau, no HRTS, ter aconselhado o seu brilhante aluno Manuel Constâncio, por volta de 1750, a estudar a "língua francesa para se aproveitar das excelentes obras que nela havia escritas" (Lemos, 1991, Vol. II.77). Uma das saídas profissionais dos diplomados com o curso de cirurgia do HRTS era a marinha mercante, alistando-se como facultativos da tripulação, ou então o exército e a marinha de guerra, como facultativos militares. Além Pirinéus, em França, a evolução do estatuto dos cirurgiões irá ser mais célere e, portanto, mais favorável à reunificação da profissão médica (o que em Portugal só acontece tardiamente, muito depois da criação, em 1836, das Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto):
Aliás, já meio século antes, por decreto real de 23 de Abril de 1723, era reconhecida, em França, a profissão de cirurgião. Em pleno Século das Luzes, P.-J. Desault (1738-1795) irá depois desenvolver o ensino da cirurgia à cabeceira do doente hospitalizado, podendo ser considerado o Boherhaave da cirurgia setecentista (Sournia, 1995). Não obstante os progressos da prática clínica, e continuará a persistir, até ao final do Antigo Regime, uma dicotomia entre teoria e prática no campo da medicina. A maior parte da prática médica não era, de resto, controlada pelos próprios médicos, mesmo em país como a Inglaterra e a França onde o associativisno médico estava mais desenvolvido. Num texto significativo, L' Anarchie médicinale, publicado por um médico de Lyon, em 1772, pode ler-se: "La plus grande branche de la médecine pratique est entre les mains de gens nés hors du sein de l'art; les femmelettes, les dames de miséricorde, les charlatans, les mages, les rhabilleurs, les hospitalières, les moines, les religieuses, les droguistes, les herboristes, les chirurgiens, les apothicaires, traitent beaucoup plus de maladies, donnent beaucoup plus de remèdes que les medecins" (cit. por Foucault, 1972. 325. Itálicos nossos). Entretanto, com a revolução francesa vão operar-se algumas mudanças decisivas no ensino e na prática da medicina e da cirurgia:
Com o laicismo abre-se o caminho à inovação, à investigação e à independência científica. A pouco e pouco os ventos revolucionários acabam por chegar a toda a Europa, mesmo com um atraso de décadas, como acontecerá entre nós. Recorde-se nomeadamente o papel das Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto (Mira, 1947):
Por outro lado, em 1841 ainda continuava o lento processo de secularização da Universidade de Coimbra, com a nomeação do seu primeiro reitor não eclesiástico...
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Nota do editor:
(*) ~Ultimo poste da série > 20 de março de 2023 Guiné 61/74 - P24155: Manuscrito(s) (Luís Graça) (217): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIA: 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro"
1 comentário:
Depois de um historial tão basto com tantas curiosidades interessantes, lembra-nos facilmente o que era a saúde em Portugal antes do actual SNS de 1979.
Que depois desta data, o SNS terá sido a conquista das conquistas do 25 de Abril.
Isto, para o povo que nós, portugueses sempre fomos, sem direito a quase nada.
Passámos a ter como que este luxo de saúde.
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