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sábado, 5 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P26986: Os nossos seres, saberes e lazeres (688): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (211): Visita ao novo acervo permanente no Museu Nacional de Arte Contemporânea – 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Abril 2025:

Queridos amigos,
Cônscio de que há para aqui um certo percurso errático, entendi que devia vir um pouco atrás, ao século XIX, onde efetivamente começa o acervo permanente do museu e daí mostrar aquela bela parede onde se expõe o retrato, manifestação capital do século XIX para o século XX; sem perda de demora passei por dois modernismos para preparar o cenário que irá conduzir às alterações das décadas de 1960 a 1980. Vejo-me aflito quando chego às últimas salas do acervo permanente, desentendo-me com câmaras escuras e coisas parecidas, a minha fronteira é aquele João Tabarra, por ironia a fotografia foi vista, durante gerações, pelos estetas como uma arte bonitinha mas que devia ocupar um espaço à parte, os Eduardo Gageiro, Victor Palla ou Gérard Castello-Lopes que fiquem no arquivo fotográfico, não tem direito a competir com as artes plásticas, abre-se uma exceção para o Jorge Molder, escusam de me perguntar porquê. Tudo somado, é indispensável vir até este acervo permanente, tem uma leitura, um discurso pedagógico, que nos faz entender a palpitante viagem que começou em 1910. Portanto, uma visita obrigatória.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (211):
Visita ao novo acervo permanente no Museu Nacional de Arte Contemporânea – 2


Mário Beja Santos

Recapitulando, era diretora do Museu Nacional de Arte Contemporânea Emília Ferreira e procedeu-se à reformulação do chamado acervo permanente, que isto dizer que o visitante do museu tem sempre em exposição um histórico do seu património, independentemente de exposições que estejam a acontecer. Entra-se no museu e a partir da Sala dos Fornos tem-se uma mostra do que melhor do século XIX o museu conserva, não faltam os românticos, os naturalistas, e assim caminhamos para a transição que será trazida pelos chamados modernistas.

Quem concebeu a exposição teve a feliz ideia de pôr de alto a baixo a parede de mudança de piso o chamado encontro de gerações, ali pontifica o retrato. Como escreve uma das responsáveis pela exposição, Maria de Aires Silveira temos ali mestres académicos, registos de elegância mundana, a densidade do retrato camoniano, assim se chega a Columbano, ali podemos ver o retrato de Teixeira de Pascoais, também está presente mestre Malhoa. E refere esta conservadora que por 1910 o autor portuense António Carneiro introduz a modernidade através da pintura Noturno, que aqui mostrámos no texto anterior. É igualmente nesta época que irrompem as ruturas com o academismo no século XIX. Percorremos essa sequência histórica de autores que vão desde a primeira geração modernista até ao neorrealismo e surrealismo, não esquecendo, porém, que em plena década de 1940 Fernando Lanhas abre caminho ao abstracionismo. É dentro desta recapitulação que pretendo repescar artistas de mérito até à transição que vai ocorrer a partir dos anos 1960. Veja-se Júlio dos Reis Pereira que usou de um traço e de um contexto grotesco, deliberadamente ingénuo, e numa atmosfera estética singular, isto numa época em que as artes plásticas se modernizavam mas dentro de um figurativismo que mantinha as regras do equilíbrio do traço.

O pescador de sereias, por Júlio dos Reis Pereira, 1929
Sabat – Dança de roda, António Pedro, 1936

António Pedro trilhou o surrealismo, figura polifacetada, homem de teatro, escritor de relevo. Fez objetos, escultura, cerâmica, galerista. Num tempo em que Leal da Câmara fora grande desenhador de humor em Paris e Amadeo Souza-Cardoso ganhara notoriedade internacional, em 1935, em Paris, Pedro assinou um manifesto ao lado de alguns dos nomes mais sonantes do tempo como Marcel Duchamp, Delaunay, Kandinsky, Miró, Picabia, Arp e Calder. No tempo da Exposição do Mundo Português, de 1940, era inaugurada no Chiado uma exposição por ele organizada, exposição surrealizante, ele, António Dacosta e a escultora inglesa Pamela Boden. Temos aqui neste Sabat - Dança de roda quatro corpos ou troncos, cruzam-se num espaço, envolvendo braços e seios e as quatro cabeças calvas fixam-nos em espanto. Quadro de uma grande violência carnal, como observará José-Augusto França.
Cais 44, Fernando Lanhas, 1943-1944

Ainda não sabia, mas era uma revolução silenciosa, nada de figuras, linhas geometrizantes, mas, para desconforto do espírito académico e mesmo dos modernistas havia nesta conjugação de cores uma luminescência que era impossível refutar não se tratar de uma grande arte.
Sombra projetada de René Bertholo, Lourdes Castro, 1964

Estamos a entrar numa nova era, o neorrealismo deu sinais de esgotamento, o próprio surrealismo segue um caminho autónomo e algo de profundo iria acontecer com as bolsas da Fundação Calouste Gulbenkian, ir-se-ão impondo novos nomes, caso de Lourdes Castro, Helena Almeida, Bartolomeu Cid, Sá Nogueira, uns motivados pelos temas da sociedade de consumo, outros experimentando o uso da sua própria figura como modelo dentro da obra, será o caso de Helena Almeida como mais tarde Jorge Molder. O fundamental a reter é que a partir de agora a abertura a outras estéticas não será tão demorada como no princípio do século, isso ver-se-á nos trabalhos de Paula Rego ou de Menez. O museu pode orgulhar-se de ter obras de grande significado destas gerações, como abaixo se exemplifica.
A Noiva, por Paula Rego, 1972
Sem título, Menez, 1985
Sem título, João Vieira, 1972
Da série TV, Jorge Molder, 1995
This is not a drill (No Pain No Gain), João Tabarra, 1999

As artes plásticas, como é óbvio, não estavam nem ficaram insensíveis seja à erupção de novos meios de comunicação e ao aproveitamento de novas tecnologias. A fotografia voltou a ganhar estatuto de nobreza, as instalações, as performances entraram na ordem do dia, de algum modo já tinha sido assim com o Op, a arte cinética, mas a dimensão tecnológica foi tão avassaladora que trouxe uma alteração profunda aos conceitos estéticos. Isto para já não falar nos aparatos espetaculares como o uso de detritos humanos, materiais da construção civil, etc.
Não sei para onde caminhamos, a minha fronteira do gosto acaba aqui.

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Nota do editor

Último post da série de 28 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26966: Os nossos seres, saberes e lazeres (687): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (210): Visita ao novo acervo permanente no Museu Nacional de Arte Contemporânea – 1 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26931: Manuscrito(s) (Luís Graça) (269): o azul, o preto e o vermelho, aliás, carmesim








Lisboa > 8 de junho de 2025 > O mês da feira do livro e dos jacarandás

Fotos: © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O azul, o preto e o vermelho, aliás, carmesim

por Luís Graça



Não gostavas de escrever a azul.
Também não gostavas de escrever a vermelho.
Sempre gostaste de escrever a preto.
Em papel liso.

Sempre detestaste as linhas
mas nem sempre havia papel liso
nem esferográficas pretas.

Vermelho, não, carmesim (*),
como se dizia antigamente,
no tempo em que o vermelho era proibido
nas repartições públicas do Estado de Direito.
E muito menos
nos registos paroquiais 
de batizados, casamentos e óbitos.

Carmesim e não vermelho,
era a cor das vestes dos cardeais.
Carmesim flamejante.

Também se usava o carmesim
nas provas tipográficas dos livros 
no tempo em que os tipógrafos eram anarcossindicalistas
e tinham três ódios de estimação:
Deus, o Rei e o Capital.

Branca e azul era a bandeira.
Depois passou a ser verde e vermelha,
Por pudor dizia-se verde-rubra.
Rubra da cor das faces das moçoilas do povo
que era pouco republicano
e muito temente a Deus.
Rubra como o tomate saloio.

Deus que, nesse tempo,
escrevia direito por linhas tortas.
Mas sempre a azul,  celestial.
Deus, Pátria e Família
também só podiam ser escritos a azul.
Era a única tinta que se usava
na tua Escola Conde Ferreira.

Gostavas de escrever à mão.
Mas às vezes não tinhas esferográficas pretas,  à mão.
E, depois, nem todas as esferográfica pretas prestavam.
Nem todas eram válidas e fiáveis.
Cmo as escalas,
biométricas, psicométricas e até sociométricas,
deviam ser.

Ficavas pior que estragado 
quando o bico (ou a ponta ?)
arranhava o papel liso do teu bloco de notas gráfico.
Dizia-se bico (e náo ponta) no tempo da Bic.
Gostavas da Bic, passe a publicidade.
Mas depois a Bic passou a ser feita em países
que eram pouco fiáveis mas que tinham futuro.

O teu país era fiável,
no tempo em que o ouro se mordia com os dentes.
Mas  depois, dizia-se, deixou de ter  futuro.
Há 500 anos que perdia a bússola
e passava a navegar à bolina,
em linguagem náutica.
Ou à deriva,
 em termos mais comesinhos.

Do azul só gostavas das flores dos jacarandás.
Não gostavas do azul
no tempo em que se embrulhava um homem 
em papel selado.
Que era azul, e tinha linhas,
25 linhas.
E não havia tira-linhas, só tira-nódoas.

Não gostavas do papel selado.
Azul, de 25 linhas.
Não gostavas do azul 
nem do vermelho, aliás, carmesim.
Do tempo em que os coronéis da censura
usavam lápis azuis e vermelhos, aliás, carmesins.

Quando foste para a tropa,
gostavas do preto.
Usavas boina preta, 
camisola preta, 
calças pretas, 
luvas pretas...
E esferográfica preta.

Mas depois, disseram-te, 
que era  politicamente incorreto,  o preto.
Por causa não-sei-quê-de-conotações-racistas.
Dizia-se negro, e não preto.
Mas houve uma altura em que o preto dava  jeito.
E, depois, dizia o capelão,
no princípio era o mundo.
E o mundo era a preto e negro.

Ainda te lembravas das fitas 
a preto e vermelho, aliás, carmesim,
com que batias à máquina
poemas sem pés nem cabeça,
só com tronco e braços decepados.
No tempo em que era proibido escrever a vermelho,´
por isso dizia-se carmesim.
E até os sinais de proibição do código da estrada
eram a carmesim.
Não se podia dizer nem escrever
vermelho.

E os próprios jornais, sobretudo os do reviralho,
só podiam publicar títulos de caixa alta
a carmesim.
Em dias de festa.
Ficava cara a impressão.
O preto não era cor, logo era mais barato.
Mas o azul também não vendia jornais.

O preto era a ausência de cor.
Não havia o preto na paleta das cores do arco-íris,
explicava-te o teu professor de química.

Os espanhóis, esses, eram daltónicos
e  foram mais pragmáticos:
só havia os rojos e os blancos.
E mataram-se uns aos outros.


Lisboa, Feira do Livro, 8 de junho de 2025


© Luís Graça (2025)

Nota do autor:

(*) carmesim

carmesim
(car·me·sim)

Imagem

Gradação muito carregada da cor vermelha.

nome masculino

1. Gradação muito carregada da cor vermelha.

adjectivo de dois géneros

2. Que tem essa cor.

Origem etimológica: árabe qirmezi, tingido de vermelho, de qirmiz, vermelhão, encarnado.

"carmesim", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2025, https://dicionario.priberam.org/carmesim.
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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de março de 2025  > Guiné 61/74 - P26599: Manuscrito(s) (Luís Graça) (268): A velha Amura dos tugas, agora panteão nacional...

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26865: Agenda Cultural (887): Visitas guiadas à exposição "Imaginários da Guiné-Bissau - O Espólio da Álvaro de Barros Geraldo (1955-1975)", patente de 8 de maio a 31 de agosto de 2025, no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, Rua da Escola Politécnica 56, Lisboa (Catarina Laranjeiro)


1. Mensagem de Catarina Laranjeiro, investigadora no Instituto de História Contemporânea da NOVA (FCSH), com data de hoje, 30 de Maio de 2025, dando conta das visitas guiadas à Exposição "Imaginários de Guiné-Bissau", no Museu Nacional de História Natural e da Ciência:

Boa tarde,
Gostaria muito de contar com vocês nas visitas comentadas da exposição Imaginários da Guiné-Bissau: O Espólio de Álvaro de Barros Geraldo, no Museu Nacional de História Natural e da Ciência.
A primeira visita é já este domingo!

A exposição, que contou com a curadoria minha e da Inês Vieira Gomes, parte do espólio de Álvaro de Barros Geraldo para questionar o argumento da “manutenção da paz” num território em guerra.
Através de imagens de emboscadas, cerimónias e iniciativas militares e sociais, propõe-se uma leitura crítica desse discurso e dos seus legados pós-coloniais, neste ano em que celebramos os 50 anos das independências das antigas colónias portuguesas.
O Museu é um espaço fresco, com um belo jardim para quem vier com crianças.

Aqui ficam as datas das visitas comentadas, sempre às 11h00:

01.06 (domingo): Visita comentada por Daniel Barroca e João Egreja
29.06: Visita comentada por Catarina Mateus e Inês Vieira Gomes
13.07: Visita comentada por Ariana Furtado e Catarina Laranjeiro
27.07: Visita comentada por Aurora Almada e Santos e Paulo Catrica
31.08: Visita comentada e debate com Amadu Dafé e Onésio Soda

Um abraço
Catarina

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Nota do editor

Último post da série de 24 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26840: Agenda Cultural (886): Entrada livre... O nosso grão-tabanqueiro, luso-guineense, Mamadu Baio & Amigos (incluindo o João Graça, violino, mais 5 guineenses), amanhã, dia 25, no Palácio Baldaya, Estrada de Benfica, 701, Lx, às 17h30, na 16ª edição do festival "Junta-Te Ao Jazz"... Encerra, às 18h30, com o grande Paulo Flores, a voz angolana do kizomba, do semba, da resiliência e da esperança

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26828: (In)citações (271): Eu vivo na Lisboa que amo (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)


1. Em mensagem  de 20 de Abril de 2025, o nosso camarada Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74), fala-nos de Lisboa:


Lisboa

A recordação mais antiga que tenho de Lisboa é a vista que do rio, se alcançava de uma pequena janela da casa dos meus tios. Ficava à janela vendo o vai e vem dos barcos. De vez enquanto passava um grande navio majestoso que à distância parecia de brincar. A casa ficava na Rua da Saudade, onde era visita assídua, bem como ao Castelo de São Jorge que quase servia de recreio, tão perto que rapidamente se alcançava.

Dali também era ponto de partida para ir ao cinema ali para os lados dos Restauradores, ou ir a pé percorrer as ruas até ao Tejo, ali na Praça do Comércio, não resistindo ao chamariz das lojas com roupas que os jovens gostavam em especial os Porfírios, ou até ao cais do Sodré para apanhar o comboio da linha até Paço D’Arcos onde tinha família e com quem ia à praia, ou simplesmente gozava da sua companhia.

Lisboa era assim um local de diversão e descoberta para um jovem oriundo da província com horizontes muito limitados.

Foram-se passando os anos até gravar a fogo a minha partida para África, para o serviço militar obrigatório, num dia de nevoeiro, uma cidade cinzenta, apática e triste de tão habituada estar a ver-nos partir, já não se sobressaltava nem dignava a olhar. Regressei 27 meses depois a uma Lisboa soalheira e luminosa onde em meados de Abril, numa madrugada um grupo de soldados corajosos, devolveu a cidade, e o país, ao povo que encheu as ruas e foi a festa da minha vida. Milhões onde os corações em uníssimo exultaram pela a democracia e a Paz. Quem tinha chegado da Guiné saboreava a paz, como um sabor doce que se estendia a todos os sentidos.

Passaram-se 50 anos, até que vim viver para onde a cidade se confunde com os lugares que formam a grande metrópole de várias cores e aromas, que lhe dão aquela imagem de ter o Mundo todo dentro de si. Lisboa é descoberta, são jovens e idosos, já não há pregões, frequenta-se hipermercados na vez de jardins, ainda sobrevivem esplanadas, algumas onde se dança normalmente música brasileira na sua alegria contagiante. De noite ouvem-se as sirenes a provar que a cidade não dorme na sua dolência morena de miscigenação através da memória do tempo.

Eu vivo na Lisboa que amo

Há quem a queira tornar só branca, retirar-lhe o mistério, apagar os sons e os sabores de outras paragens, acabando com os contornos que os séculos levaram a desenhar.

Os ignorantes nunca sabem o que fazem na verdade.

20 de Maio 2025
Juvenal Sacadura Amado


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Nota do editor

Último post da série de 20 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26823: (In)citações (270): Um abraço forte, fraterno e amigo, ao cor inf ref Vasco Lourenço (Eduardo Estrela, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2592 / CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71)

terça-feira, 1 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26639: Agenda cultural (880): Lançamento do livro "Quatro Personagens À Procura De Abril", da autoria de Luís Reis Torgal, a levar a efeito no próximo dia 8 de Abril de 2025, às 18h00, na Casa Municipal de Cultura, em Coimbra. O livro será apresentado no dia 10 de Abril, pelas 18h00, na Sede da Associação 25 de Abril

1. Mensagem do Professor Luís Reis Torgal, enviada hoje, 1 de Abril de 2025, ao nosso Editor:

Caro Amigo, Colega e Camarada

O meu livro "Quatro personagens à procura de Abril" tem como origem a minha mobilização para a Guiné em 1968-1969 e, entre essas duas "personagens" (como lhe chamo, num título pirandelliano), estão o Padre Mário de Oliveira e o então Major Carlos Fabião. Estou certo que lhe interessa e ao seu blogue. Por isso lhe envio os dois convites para a apresentação do livro.

Grande abraço
Luís Reis Torgal





SINOPSE

As personagens a que se refere o título deste livro são pessoas reais com que o autor contactou como leitor, cidadão ou militar na «Metrópole» e na Guiné: Luís de Sttau Monteiro, do domínio da literatura e também da política; Santos Simões, da política mas também da cultura; Mário de Oliveira, da religião mas também da política; e Carlos Fabião, da área militar e política, que o autor seguiu nos caminhos infindáveis da Descolonização e da construção da Democracia.

São personalidades por vezes esquecidas ou só episodicamente lembradas, porque acompanharam a vitória de Abril, mas também foram, de modo diferente em cada caso, vencidas, pelos princípios que assumiram, pelo seu carácter e temperamento, pelas circunstâncias e pelo tempo.



SOBRE O AUTOR

Luís Reis Torgal
Professor catedrático aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, foi fundador do Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra – CEIS20. É Sócio Honorário da Academia Portuguesa da História.
Foi professor convidado de várias universidades, escolas superiores e instituições de cultura, entre outras: em França, onde foi directeur d'études invite da École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris; na Inglaterra, em que foi visiting professor da British Academy na University of Birmingham; no Japão, na University of Foreign Studies de Quioto; e no Brasil, em que é doutor honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Tem-se dedicado a diversos temas desde o século XVII ao século XX, especialmente no âmbito da História Política e das Ideias, da História da Universidade, da História da História e da Teoria da História. Recebeu vários prémios e foi-lhe concedida, em 2016, a medalha de Mérito em Ciência pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.
Na Temas e Debates, publicou:
- O Liberalismo (coord.), vol. 5 da História de Portugal, dirigida por José Mattoso;
- História da História em Portugal (em colaboração);
- António José de Almeida e a República (em colaboração);
- O Cinema sob o Olhar de Salazar (coord.);
- História… Que História?;
- Essa Palavra Liberdade… Revolução liberal e contrarrevolução absolutista (1820-1834);
- Brandos Costumes…. O Estado Novo, a PIDE e os Intelectuais (coord.); e
- Vigias da Inquisição, distinguido em 2024 com o Prémio Joaquim Veríssimo Serrão, da Academia Portuguesa da História – Fundação Eng.º António de Almeida.


(Textos com a devida vénia a WOOK)
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Nota do editor

Último post da série de 1 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26638: Agenda cultural (879): Congresso Internacional "Das Guerras ao Pós-25 de Abril - Os Militares em Territórios em Conflito", que decorrerá no Anfiteatro III da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa de 2 a 4 de Abril de 2025 (Mário Beja Santos)

sábado, 8 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26564: Os nossos seres, saberes e lazeres (672): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (195): Ia passear ao Jardim Botânico, acabei numa exposição sobre fotografia colonial (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Por aqui andei a bisbilhotar tudo, à procura de fotografias da delimitação das fronteiras da Guiné, não tive sorte, encontrei somente um vídeo que abordava a escravatura e o trabalho forçado, mas não gostei nada de certas perguntas da entrevistadora sobre as expressões fechadas dos fotografados, seguramente que esta senhora não faz a menor ideia que um africano adulto fica sempre numa pose séria perante uma câmara, é um dado cultural, basta folhear as milhares de fotografias do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa e até as crianças, na maior parte dos casos, mostram um semblante onde não pairam sorrisos. Estas exposições que decorrem sob a égide da chamada lógica dos estudos pós-coloniais, tenho para mim, é mais uma moda do que uma categoria científica séria, trabalha-se com o passado com uma leitura de mentalidade do presente, é um processo subliminar tosco de querer pôr a História em tribunal, não dou para esta missa.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (195):
Ia passear ao Jardim Botânico, acabei numa exposição sobre fotografia colonial


Mário Beja Santos

Um dos mais agradáveis passeios que conheço em Lisboa é percorrer a pé a rua da Escola Politécnica, entrar no Jardim Botânico, sentar-me debaixo do caramanchão do jardim do Príncipe Real onde Sean Connery é aliciado para uma operação de espionagem em Moscovo, há lá um cientista dissidente cujos trabalhos interessam aos principais serviços secretos britânico e norte-americano. Sean Connery acaba por se apaixonar por uma russa, a atriz Michelle Pfeiffer, tudo vai acabar maravilhosamente em Lisboa, o romance é de John le Carré, intitula-se A Casa da Rússia, Fred Schepisi realizou o filme. Feita esta pausa vou disfrutar o miradouro de S. Pedro de Alcântara e regresso a penates. Acontece que naquele domingo houve um imprevisto, chamou-me à atenção que havia uma exposição intitulada O Impulso Fotográfico (Des)Arrumar o Arquivo Colonial, que está patente até finais de dezembro de 2024 no Museu Nacional de História Natural e da Ciência. É sobre esta exposição que vos quero falar, vem na sequência de outra intitulada Visões do Império, que decorreu no Padrão dos Descobrimentos, em 2021, e deu origem a um livro-guia, já aqui referenciado.

Acampamento no Incomati (fronteira), Delimitação das Fronteiras, de Lourenço Marques, 1890-91. Freire de Andrade, de fato branco, no centro esquerdo, e os restantes adjuntos, surgem representados ao centro, ladeados pelos trabalhadores africanos negros que constituem o pessoal da comissão. De modo muitas vezes irrefletido, a organização das pessoas num retrato coletivo, entre centro e periferia, segue a organização social.
Retrato de Freire de Andrade ao estilo africanista, 1890-91. Género de retrato colonial que consistia numa forma de apresentação de si em trajes de colonizador, de cor clara e chapéu, como figura central, ladeado de membros da cultura local
Soldados de Escolta, Comissão da Delimitação de Fronteiras Luso-Belga do Dilolo, 1914-15. Estes soldados eram forças policiais ou militares formadas por africanos negros que obedeciam às políticas de assimilação e eram designados por Sipaios. As políticas de assimilação foram medidas legislativas que promoviam o aportuguesamento dos africanos.
Georgina de Carvalho Ribas (Ambriz, 1882 – Lisboa, 1951). Destacou-se como uma feminista negra e dirigente de organizações como o Partido Nacional Africano, a Liga das Mulheres Africanas ou o Grémio Ké-Aflikana. Diplomou-se em piano pelo Conservatório Nacional de Música e foi uma figura central no movimento de afirmação da cultura africana e emancipação das mulheres negras em Portugal.
Mário Domingues (1900-1977, nascido na Ilha do Príncipe), veio muito cedo para Lisboa, ligou-se na juventude à defesa dos direitos de África e foi porta-voz da Associação de Estudantes Negros e da Liga Académica Internacional dos Negros. Sabe-se hoje que legou uma obra prodigiosa, na ficção escreveu livros de Western e romances do estilo negro, para ganhar a vida produziu obras biográficas de divulgação, nas Edições Romano Torres, não lhe escaparam os principais reis de Portugal e figuras dominantes.
Trabalhos de Campo e Trabalhos de Gabinete. A exposição faz esta representação cenográfica da prática científica inspirada nos dioramas (apresentação artística tridimensional). É uma reconstituição de cenas da vida das expedições, campanhas e depois o trabalho pericial no gabinete, indispensável para apresentar resultados em conferências e/ou publicações.
Imagem de uma expedição com carregadores e militares

Um dos focos que considero mais relevantes desta expedição, que apresenta mais situações, competindo ao visitante extrair também conclusões por conta própria, tem a ver com este conjunto de campanhas antropológicas e não só, prende-se com teses que vigoraram sobre a necessidade de fazer o estudo das raças, esta dimensão científica quase que se apaga instantaneamente depois da derrota do nazismo, nunca mais se levantou uma voz científica favorável à existência de raças e à procura do conhecimento do que distinguia o homem superior do das raças inferiores.
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Nota do editor

Último post da série de 1 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26540: Os nossos seres, saberes e lazeres (671): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (194): From Southeast to the North of England; and back to London (13) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26280: Humor de caserna (88): Será que no Pu...erto, no Natal de 2024, ainda se fala "grosso" como no nosso tempo da tropa ? Aqui vai um excerto do "dicionário Lisboa-Porto" (com a devida vénia ao doutor José João Almeida, da Universidade do Minho, autor desse livro meritório e patriótico , que é o "Dicionário de Calão e Expressões Idiomáticas", Lx., Guerra e Paz, 2019, 192 pp.)

1. Na Guiné toda malta do Sul (genericamente, os "mouros") achavam piada aos nossos camaradas do "Pu...erto" e arredores, o mesmo era dizer do Norte.  

Nesse tempo viajava-se pouco. Afinal, quem tinha carro ? E graveto ? E estaleca ? E namorada a 300 km de distância ? 

A malta só se conhecia quando havia guerra, e os do Sul iam pró Norte e os do Norte pró Sul... Era preciso a tropa (e a guerra) para uns e outros começarem  a gostar-se mutuamente, a namorar-se (salvo seja!), a casar e a misturar os genes... 

A emigração também foi um bom laboratório para a miscegenação: uns e outros encontravam-se em Paris, Luxemburgo, Estrasburgo, Toulouse, Lyon, Bruxelas, Toronto, Nova Jérsia, etc. 

E antes disso a CP - Caminhos de Ferro de Portugal... Aponta aí a CP, que uniu o Norte e o Sul, o litoral e o interior...Os gaj0s de Baião iam p'ró Barreiro e os da Fuseta para o Pocinho... Factores, manobradores, um ou outro maquinista, chefe de estação, revisor, inspetor, etc.

E, não sejamos injustos, o Movimento Nacional Feminino e os milhões de madrinhas de guerra que a "Cilinha" arranjou para os nossos bravos do Ultramar...600 milhões de cartas e aerograms baralharam línguas, corações, SPM, topónimos, rua, largos, praças, pracetas, lugares, casaism aldeias, vilas, cidades... E às tantas eles elas já trocavam os pés pelas mãos, e os vês pelos bês...E as alftacinhas passaram a amar o Porto que os primos e amigos, com dor de corno, diziam que era uma cidade de granito, escura, austera, suja e fria...

De facto, até então, até à tropa, até ao grande êxodo rural, até à emigração, à CP e a à Cilinha,  quem é que, do Sul, sabia onde ficava a Pasteleira e a Ribeira?!... E os gajos do Norte ainda não tinham o mapa do Google, nem muito menos GPS,  para descobrir a localização do Casal Ventoso ou de Alfama ou de Cacilhas... 

Resultado: o desconhecimento mútuo era atroz, alfacinhas e tripeiros falavam sozinhos quando, de repente, embarcaram nos T/T Niassa, Uíge, Ana Malfada, etc.,  a caminho da Guiné... E viram-se à brocha, de G3 em punho contra as Kalash do 'Nino'...

Mas uma vez lá, aprenderam a falar crioulo, p0nto de partida para começarem a entender-se minimamente... embora com recurso, de vez em quando, ao "Dicionário de calão e expressões idiomáticas" (Lisboa, Editora Guerra e Paz, 2019, 192 pp),  do José João Almeida, da Universidade do Minho, finalmente editado em livro, uma obra meritória e patriótica, que há 50/60 anos ou mais deveria já a ser livro obrigatório na Academia Militar, bem como nos centros de instrução militar...

Em formato digital, em pdf, a obra está também disponível (para os falantes, estudiosos e curiosos) em:

Almeida, José João - Dicionário aberto de calão e expressões idiomáticas (recolha de José João Almeida,. Universidade do Minho. 2024, 287 pp.
Disponível em https://natura.di.uminho.pt/~jj/pln/calao/dicionario.pdf
 

2. E aqui vai um "cheirinho", uma "prendinha e Natal", tudo "por  mor" da melhoria da comunicação Norte-Sul e vice-versa... Excerto pp. 84.

dicionário Lisboa Porto

Lisboa: 

– Não tenho a certeza se vai ser possível!

 Porto: 

Nem que tu te f*das!

Lisboa: 

 – A sério? E incrível! Diria mesmo impressionante!

 Porto: 

– P*ta que o p*riu!

Lisboa: 

– Claro que isso não me preocupa!

Porto: 

Tou-me a c*g*r e a andar!

 Lisboa: 

Eu não estava envolvido nesse projeto!

 Porto: 

Mas que c*r*lho é que eu tenho a ver com essa m*rda?

 Lisboa: 

Interessante, hein?

 Porto: 

F*da-se!

 Lisboa: 

Será difícil concretizar a tarefa no tempo estipulado!

 Porto: 

Não vai dar nem que me f*da todo!

Lisboa:  

– Precisamos melhorar a comunicação interna!

Porto:

 – P*ta de m*rda!... Não há nenhum c*ralho que me responda???

 Lisboa: 

Talvez eu possa trabalhar até mais tarde!

 Porto:

 – E no c*?... Não queres levar no c* também???!!!

 Lisboa: 

Não está familiarizado com o problema!

 Porto:

 Cala-te, c*r*lho!

Lisboa: 

– Desculpe!

Porto:

 – Vai pá p*ta que te p*riu!

 Lisboa: 

 Desculpe, senhor!

 Porto: 

Vai pá p*ta que te p*riu, seu p*neleiro!

 Lisboa: 

Acho que não posso ajudar!

Porto:

 – F*de-te praí sozinho!

 Lisboa:

 Adoro desafios!

Porto:

 –  P*ta trabalhinho de c*rno!

  Lisboa:

 Finalmente reconheceram a tua competência!

 Porto: 

Foste ao c* a quem?

Lisboa: 

É necessário um treino para o pessoal antes de ligarem a máquina!

Porto: 

– Vou partir os c*rnos a quem mexer nesta m*rda!

Lisboa: 

– Eles não ficaram satisfeitos com o resultado do trabalho!

Porto: 

– Bando de filhos da p*ta!

Lisboa: 

– Por favor, refaça o trabalho!

Porto: 

Enfia  essa m*rda no c*, está uma bela m*rda!

Lisboa: 

– Precisamos reforçar nosso programa de treino!

Porto: 

– Se sei quem foi o filho da p*ta que fez isso...!

◦ Lisboa: 

E necessário melhorarmos nossos índices de produtividade!

Porto: 

E se fossem bater a p*nheta pró meio da rua???!!!

 Lisboa: 

Que pena. Teremos outra não conformidade!

Porto: 

C*r*lho! vai sair c*g*da outra vez!

Lisboa: 

Vamos negociar o projecto com mais determinação!

Porto: 

Vou enfiar isto pela goela abaixo desses filhos da p*ta!

Lisboa: 

Desculpe, eu poderia ter avisado!

Porto: 

Eu sabia que ia dar m*rda!

Lisboa: 

Os índices de produtividade da empresa estão a apresentar uma queda sensível!

Porto: 

Esta m*rda tá a ir pró c*r*lho!

Lisboa: 

Esse projecto não vai gerar o retorno previsto!

Porto: 

 Tá tudo f*dido!

(Seleção, Revisão / fixação de texto, asteriscos, negritos, itálicos: LG)


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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26274: Humor de caserna (87): A virilidade lusitana: das bagas do Sambaro ao estoicismo do Sousa (Jorge Cabral, 1944-2021)

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26272: Notas de leitura (1755): "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", por José Brás; Chiado Books, 2024 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
O José Brás/Filipe Bento volta a vindimar com a sua escrita assombrosa, creio que traz recados e avisos solenes de que isto de fazer a vindima vai até o lavar dos cestos, ou seja, que nós combatentes não fiquemos no belo recato de ler o que os outros escrevem atirando para trás das costas as tais memórias da guerra colonial que não se apagam. É um livro comprometedor, a arquitetura vem dos tempos do seu belíssimo romance Vindimas no Capim, mas o que agora nos oferece é mais o sinal dos tempos, constrói-se pelo poder da memória, revisitam-se lugares, gentes, pesadelos e solidariedades e posso-vos dizer que dentro deste processo de escrita onde se fala em termos litúrgicos, como antífona, a oração sobre as oblatas, a oração dos fiéis, despede-se de nós com um solene aviso: compete-nos também o registo de deixar para os outros aquilo que sentimos não foi em vão que por ali andámos a penar para tudo cair no esquecimento.

Um abraço do
Mário



Filipe Bento volta a fazer vindima e diz-nos que do capim há memórias que não se apagam (1)

Mário Beja Santos

A década de 1980 revelou que a literatura da guerra colonial estava a dar um salto qualitativo, entrara-se num período de acalmia e o pulsar da memória levedou numa quase inesperada ficção, podia aqui citar um conjunto de influentes romances, até ensaios, obras de historiografia, poesia, alguma investida memorial, mas fixo-me num surpreendente romance, justamente premiado pela Associação Portuguesa de Escritores, "Vindimas no Capim", de José Brás, então um autor desconhecido. Tratava-se de um romance de formulação invulgar, uma permanente conversa com o leitor, como se estive a acirrá-lo com perguntas, dando ele próprio respostas exclamativas, uma autobiografia de alguém que passara a sua juventude em meios agrícolas, e depois no Sul da Guiné, aqui as vindimas foram outras, havia Guileje, Mejo, Gandembel, lá ao fundo, sempre próximo do Corredor da Morte, havia Cacoca, Sangonhá e Cameconde, lá em cima Balana e, claro está, Aldeia Formosa, Filipe Bento estacionará em Mejo e noutros lugares de permanente sobressalto, confessará as suas dores e amargores, escreverá de forma inequívoca aquilo que muitos de nós já sabíamos e que se veio a comprovar: há memórias da guerra colonial que não se apagam. Mas nas "Vindimas no Capim" sentia-se aquela onda de calor em comunicar a quem quer que seja que aqueles jovens saídos de terras pobres, ordenados numa vida áspera, tinham sido lançados na defesa de uma parcela colonial, acoitados nuns fortins improvisados, a experimentar as penas do inferno. E Filipe Bento perguntava vezes sem fim porque é que tinha andado naquela vindima de pesadelo e porquê tudo por que passara estava agora tão esquecido, quem iria ganhar com o desmemoriamento de tanta luta inglória.


É nisto que o octogenário José Brás salta do esquecimento em que caiu tanta vindima e nos vem alertar do seguinte modo: “Na liturgia das vinhas a vindima seria o seu último salmo. Todavia, na voz do povo se diz que não acaba a missa no corte do último cacho; na derradeira lagarada; no bago que fecha o tonel, e que muita vindima há ainda por fazer até ao lavar dos cestos. Nas courelas que restaram deste anacrónico império, depois da colheita, quantos cestos continuam melados com o mosto das repisadas uvas brancas e tintas?” Presumo que aquilo que ele nos quer dizer é que temos todos a obrigação de fazermos a nossa vindima até ao lavar dos cestos, é assim o dever de memória para que as novas gerações guardem na sua identidade um sofrimento inaudito dos seus ancestrais, participantes num desastre anunciado.

Temos agora o "Lavar dos Cestos", José Brás e Chiado Books, 2024, Filipe Bento regressa ao Sul da Guiné, quartel de Guileje, estão a ouvir-se estrondos em Gandembel, quem aqui está vive o pesadelo, um quotidiano de infortúnio, fez-se um octógono que até parece inexpugnável, ali no Corredor da Morte, o PAIGC não se intimida com aquele fortim solitário, espicaça quem lá vive com tormentosas flagelações, Filipe acordou arrelampado com tanto estrondo, reflete em voz alta:
“Mejo e Guileje, buracos abertos na mata subtropical do Sul da chamada província ultramarina da Guiné, quadrados de cem, cento e poucos metros de lado, paliçada a todo o perímetro construída por duas paredes de cibes, rijíssimas árvores cortadas a propósito e sobrepondo-se, tronco deitado sobre tronco, deitado até uma altura de um homem baixo, separadas as ditas paredes por cerca de um meio metro de vazio que seria cheio de terra, finalmente, quando não mesmo, muitas vezes ainda, e com isso, nesses casos, lá fica desasada a palavra finalmente, muitas vezes ainda, volto a dizer, cosida exteriormente a chapa dos dois lados, lata recuperada dos bidões de duzentos litros da gasolina que alimentava as viaturas, unimogs, jipes e GMC’s, e o gerador elétrico do local destas praças militares portuguesas intervaladas por postos e aquartelamentos do inimigo a escassas distâncias, quatro, cinco, sete quilómetros de mata densa e alta.”

Pode parecer absurdo um inimigo, feroz e destemido, altamente motivado, estar posicionado a tão curta distância, mas as coisas passaram-se assim, aquele corredor da morte era um cordão umbilical para abastecimentos do PAIGC, de gentes, armamento, coisas de hospital e farmácia e mantimentos para a boca. E Filipe Bento já sonha com a passagem para Bolama, mas para ali chegar há que percorrer uma boa distância até Gadamael-Porto, e então, por lancha ou batelão e rio abaixo até Bolama. Mas, ó gente, vamo-nos preparar porque Filipe Bento tem histórias passadas para contar, fez recruta e especialidade, passou pela Carregueira, vai-nos contar ao pormenor e com palavreado da caserna, tudo quanto ali viveu, nas Caldas da Rainha ou em Tavira, entra em cena o major Leiria, associado àquele território onde ele passou a juventude, o pessoal das vinhas. O segredo desta vibração da escrita passa pela recuperação da arquitetura que o José Brás já utilizara em "Vindimas no Capim", a interpelação que tanto desassossega o leitor, ora estamos no quartel ora na taberna, e até se aproveita a circunstância para se dar ensinamento ao leitor urbano:
“Se vocês pensavam que uma enxada era assim uma coisa tão simples, só uma enxada, sem mais nada, a bendizer só a palavra, desenganem-se!
Enxada de dois ferros, um pouco mais curta na chapa, a fim de realizar uma cava mais funda com duas enxadadas no mesmo exato lugar. Enxada de um ferro, mais compridita para cavar num só golpe, não tão fundo, mas envolvendo uma amplitude maior de terra. Enxada de dois bicos que, como o nome indicia, alongava a meia-lua nos bicos, mais grossa e pesada, com um cabo direito para cavar terra seca e amontoar levas atrás do cavador a fim de facilitar a entrada da luz do Sol até mais fundo.”


Umas vezes estamos lá na terra das vindimas, outras vezes nas Caldas, em Tavira ou em Caçadores de Infantaria. Mas importa que se saiba onde vivia Filipe Bento antes de pegar em armas:
“A aldeia é pequena. Apesar de ser sede de Freguesia, de ter igreja paroquial, procissão dos passos anualmente, duas mercearias, festas de verão, escola de rapazes e raparigas, tem apenas a rua principal que sobe desde o cemitério, mesmo ao pé das abegoarias do Manel, outro Manel, Cortador, dono do talho, perto também da forja do Tóino Ferreiro, e passa pela farmácia, à esquerda, sempre a subir e do mesmo lado, a loja debaixo, o casarão apalaçado do Zé Fernandes, os Figueiras com a padaria.” E a descrição vai até ao largo, ficamos também a saber que o caminho que nos levaria à Seteirinha se à Seteirinha quiséssemos ir, tínhamos duas casas grandes do lado direito de quem entra, subindo como vínhamos subindo, olhando as fachadas, tentando perceber a gente que atrás delas vive. No canto direito do limite do largo, a loja de cima que fica por baixo da escola dos rapazes.

E depois, o Filipe Bento vai-nos falar de vinhas e enxertias e até de podas, prepare-se o leitor para uma exaltação das magnificências do que se extrai da terra, que beleza de escrita.
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Aspecto geral da Sala
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do Coronel Carlos Matos Gomes
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do nosso camarada Mário Beja Santos


Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro Lavar dos Cestos, por José Brás > Actuação do Grupo Coral Fora D'Oras

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 8 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26125: Agenda cultural (865): Convite para o lançamento do livro "Lavar dos Cestos - Liturgia de Vinhas e de Guerra", da autoria de José Brás, a levar a efeito no próximo dia 1 de Dezembro, pelas 15h00, na Casa do Alentejo, Rua das Portas de S. Antão, 58 - Lisboa. Com a participação do Coronel Carlos Matos Gomes, representante da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo e do Grupo Coral Fora D'Oras (Cante)

“LAVAR DOS CESTOS - Liturgia de Vinhas e de Guerra” pode ser adquirido na rede de livrarias independentes espalhadas por todo o país;
É também comercializado Online na seguinte rede:
- AtlanticBookshop.pt
- Fnac.pt
- Bertrand.pt
- Wook.pt
- e ainda a pedido via mensagem na página Facebook do autor ou e-mail jasbras1@sapo.pt e enviado via correio CTT.

Último post da série de 13 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26263: Notas de leitura (1754): Ex-combatentes açorianos da Guiné falam das suas tatuagens (Mário Beja Santos)