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sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27348: Notas de leitura (1855): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Outubro de 2025:

Queridos amigos,
Ecos Coloniais não é nem um guia de viagem nem um almanaque de curiosidades histórico-culturais onde as memórias coloniais e imperiais se interpenetram. Juntaram-se académicos, ativistas, museólogos e jornalistas e fazem uma apreciação desses espaços, lugares, monumentos, instituições onde pulsam as tais reverberações que dão ensejo a encarar a História de Portugal na faceta que as marcas do Império nos arrastam à compreensão da nossa identidade, na dimensão do passado. Começámos no Arquivo Histórico Ultramarino, estamos hoje em frente ao monumento a Sá da Bandeira, vamos até ao Forte do Bom Sucesso, o monumento aí é outro, homenageiam-se os combatentes mortos nas guerras do Ultramar, seguimos depois para o Museu Nacional da Etnologia. Dá-se esta obra como relevante, é um exercício original para debates sobre passado e o presente, mostra como o património colonial está obrigatoriamente associado a uma memória inapagável.

Um abraço do
Mário



Império e colonialismo: reverberações na Lisboa atual - 3

Mário Beja Santos

Ecos Coloniais resulta de um exercício coletivo de investigação sobre o património histórico e cultural, aqui se interrogam instituições, entidades, monumentos, obras de arte, palácios onde se interseccionam a história colonial e imperial portuguesa, do passado ao presente, edição ilustrada com fotografias de Pedro Medeiros e o acervo de textos tem a coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto, edição Tinta-da-China 2022. Logo na introdução, os organizadores referem que este levantamento é uma obra consciente e que há muito por investigar e por saber, importa evitar generalidades e simplismos mobilizadores para escapar aos engenheiros e empreendedores da “história” e da “memória”.

Encaminhamo-nos agora para o monumento a Sá da Bandeira, sito ali perto do Mercado da Ribeira e da Marconi, tendo a Avenida 24 de julho pela frente. O bravo Marechal, de nome Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo, de bravura incontestável, liberal e irredutível, está ligado à abolição da escravatura em Portugal. Como escrevem os autores deste texto, “Na década de 1850, quando vários decretos vão progressivamente libertando os escravos do Estado e das misericórdias, quando se estabelece o conceito da liberdade do ventre e aqueloutro de ‘libertos’. São estes dois bons exemplos de carácter gradual, feito de concessões e cedências, e hesitações, que marcou não só o abolicionismo português como a própria figura de Sá da Bandeira (…) A estátua de celebração do Marquês Sá da Bandeira não se esgota no movimento abolicionista. No sope, uma outra estátua, de uma mulher africana evoca aquilo que era um tropo na altura: o agradecimento do continente e seus habitantes, ao abolicionismo protagonizado pelas classes esclarecidas dos países ‘civilizados’. O problema da escravatura enquanto injunção moral que os poderes imperiais projetavam sobre si mesmo havia sido transformada num novo instrumento de geopolítica. A escravatura, real, que existia ainda no continente africano, apesar das várias ‘abolições’, era então identificada como problema congénito das sociedades locais a que estavam associados outros: poligamia, canibalismo, uso imoderado de álcool, predisposição para a indolência. A escravatura, alimentada que tinha sido ao ponto de alcançar uma dimensão quase industrial na sua versão transatlântica, era agora apresentada como o resultado do atavismo e violência de grupos socioculturais tidos por atrasados.”

O marechal e aquela mulher africana com a criança ao colo, no significado que a época lhe deu, representa a homenagem do país a quem deu a liberdade aos escravos, mas num quadro ideológico de tornar estes libertos indígenas com possibilidade de aceder à civilização.

Tomámos agora o rumo para Belém, vamos até ao monumento aos Combatentes do Ultramar. Diz a autora do texto: “Numa instrumentalização da dor, os monumentos aos mortos de guerra revelam que a morte não dá igualdade. A abstração do morto aniquila as diferenças dos que lutaram integrando-as num processo hegemónico.” Anteriormente, a autora apresentara assim o monumento inaugurado em 5 de fevereiro de 2000:
“Ao Forte do Bom Sucesso foram adicionadas placas talhadas com os nomes, dispostos cronologicamente, de cerca de 10 mil soldados mortos na Guerra Colonial, incluindo soldados africanos das Forças Armadas Portuguesas. A associação dos mortos procura fortalecer, por um lado, a ideia de uma linearidade histórica, sem as ruturas que momentos de crise como as guerras poderiam causar e, por outro lado, a integração orgânica dos membros do corpo nacional, onde também se encontra o colonial. A 11 de novembro de 2015, no 97.º aniversário do Armistício, foi integrado ao conjunto memorial o Soldado Desconhecido caído na Guiné durante a Guerra Colonial, depositado na Capela do Combatente. Tal como em 1921, o morto anónimo é colocado no centro do palco. O herói não identificado, figura idealizada e transversal, é chamada à função de regenerar a nação e transladado para o Panteão Nacional.”

Um monumento que esteve envolvido em controvérsia, e que tem a estatura de uma ferida histórica, há quem o encare como espelho de memória de uma descolonização acabada. Com o passar dos anos, este espaço público vai gerando o sentimento de uma memória comum, ganha o papel de reconciliador, torna-se numa memória comum, o país ajustou-se à veneração dos seus mortos, já são muito poucos os que, por razões ideológicas, pretendem instrumentalizar a dor.

A última viagem é ao Museu Nacional de Etnologia, a autora do texto revela-se bastante crítica quanto ao teor da exposição permanente e releva o papel do multiculturalismo que em Portugal se agigantou com as sucessivas vagas de imigração, logo a dos “retornados” após a revolução do 25 de abril, o que está patente no Museu oculta o lado violento e racista do colonialismo português, abre espaço para exibir narrativas como a panaria de Cabo Verde e Guiné Bissau, e a autora destaca a importância do Serviço Educativo que valoriza as coleções a partir do presente, contribuindo para a construção de relações recíprocas, tal serviço educativo volta-se hoje para a população afrodescendente, contribuindo de forma crítica para o combate à marginalização de grupos sociais que buscam sentido de cidadania, fora da ética dos Descobrimentos. “Coleções como as do Museu Nacional da Etnologia constituem uma oportunidade única para conhecer uma história profundamente desumana, permitindo-nos ativar práticas reparadoras no campo das temporalidades, das materialidades e da dignidade, e compreender melhor o mundo em que vivemos, para podermos assumir o compromisso de contribuir para a construção de um presente melhor.”

Ecos Coloniais, vale a pena repetir, debruça-se sobre um eco diversificado de espaços, atores, instituições e símbolos, permitem-nos ver ou refletir sobre histórias imperiais e coloniais que podemos ver em Lisboa e arredores. É um trabalho coletivo, envolve uma equipa em que há autores e um fotógrafo. Impondo-se uma súmula ou resenha desses espaços e lugares, falando de um quadro que está no Museu Nacional de Arte Contemporânea, “os Pretos de Serpa Pinto”, iremos depois ao Porto de Lisboa e à Sociedade de Geografia de Lisboa.

Monumento aos combatentes do Ultramar, junto do Forte do Bom Sucesso
Museu Nacional de Etnologia, objetos em exposição
Os Pretos de Serpa Pinto, Catraio e Mariana, por Miguel Ângelo Lupi, 1879, Museu Nacional de Arte Contemporânea

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 17 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27326: Notas de leitura (1852): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 20 de outubro de 2025 >
Guiné 61/74 - P27336: Notas de leitura (1854): "Um Império de Papel", por Leonor Pires Martins; posfácio de Manuela Ribeiro Sanches; Edições 70, 2.ª edição, 2014 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27326: Notas de leitura (1852): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Outubro de 2025:

Queridos amigos,
Continuando a viagem por Lisboa onde há reminiscências imperiais desde arquivo, ao nome de ruas, monumentos alusivos, praças, museus, palácios, e muito mais. Os organizadores deste interessantíssimo projeto escolheram até pontos de encruzilhada entre o antes, o durante e o depois, é o caso da estação Terreiro do Paço, que conheci pelo nome de Sul e Sueste, como se podia ter escolhido o comboio da linha de Sintra, onde arribam e partem afrodescendentes e imigrantes aos magotes. Desta feita a viagem começa no Banco Nacional Ultramarino, na Baixa Lisboeta, seguimos para o Palácio Burnay, na Junqueira, onde funcionou o ISCSPU, a última escola de preparação da elite administrativa colonial; e procurámos visualizar o que poderá vir a ser o Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, no antigo Campo das Cebolas, hoje Largo José Saramago. Seguiremos depois para um lugar não muito longe deste, o Monumento a Sá da Bandeira, ali ao lado do Mercado da Ribeira.

Um abraço do
Mário


Império e colonialismo: reverberações na Lisboa atual - 2

Mário Beja Santos

Ecos Coloniais resulta de um exercício coletivo de investigação sobre o património histórico e cultural, aqui se interrogam instituições, entidades, monumentos, obras de arte, palácios onde se interseccionam a história colonial e imperial portuguesa, do passado ao presente, edição ilustrada com fotografias de Pedro Medeiros e o acervo de textos tem a coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto, edição Tinta-da-China 2022. Logo na introdução, os organizadores referem que este levantamento é uma obra consciente e que há muito por investigar e por saber, importa evitar generalidades e simplismos mobilizadores para escapar aos engenheiros e empreendedores da “história” e da “memória”.

Já se andou pelo Arquivo Histórico Ultramarino, pela Associação Comercial de Lisboa e pelo Bairro das Colónias, vamos começar a itinerância de hoje no Banco Nacional Ultramarino. A sua sede na Baixa Lisboeta tinha a dimensão de um quarteirão inteiro, hoje é o MUDE – Museu do Design e da Moda. O BNU foi durante mais de cem anos o instrumento e a imagem do financiamento do Fomento Ultramarino; constituiu-se em 1864, é, pois, contemporâneo do crescente interesse pela nossa presença em África. À cabeça dos promotores figurava Oliveira Chamiço, ligado a uma família de negociantes do Porto e educado em Inglaterra.

Era um Banco privado que recebeu do Estado importantes prerrogativas: privilégio exclusivo de constituição e administração de instituições bancárias e de emissão de notas nos territórios ultramarinos, tinha isenção de impostos e funcionava como caixa do Estado. Nas listas de acionistas figuraram grandes negociantes com interesse em África, mas a maioria das participações eram puras aplicações financeiras. Um Banco que sofreu várias crises, sobreviveu com auxílio do Estado. Não é despiciendo falar numa triangulação entre a Sociedade de Geografia de Lisboa, a Associação Comercial de Lisboa e o BNU, era gente que se conhecia e sonhava com negócios em África.

O BNU fomentou a agricultura em São Tomé. Na administração de João Ulrich (1918-1931) a expansão da atividade foi acompanhada pelo alargamento das instalações, prosperou, internacionalizou-se com sucursais em Inglaterra, França e no Brasil e, tirando Angola, tinha delegações em todas as parcelas ultramarinas. Chegou a estar à beira da falência em 1931, o Governo ordenou o resgate, foi uma intervenção que durou vinte anos. Em 1951 começou uma nova fase na vida do BNU, preparou-se para as celebrações do centenário remexendo no exterior e no interior da grande construção na Baixa. O BNU não sobreviveu à descolonização, mas continuou a funcionar por trinta anos, então na órbita da Caixa Geral de Depósitos, transferiu-se para a Avenida 5 de Outubro, um projeto de Tomás Taveira. O edifício da Baixa está a ser gradualmente recuperado, o visitante tem oportunidade de admirar vestígios da antiga grandiosidade.

Podíamos apanhar um elétrico em direção a Algés e sair no Palácio Burnay, na Junqueira, onde funcionou o ISCSPU – Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina que para aqui se transferiu em novembro de 1962. Este foi o espaço escolhido para acolher os formandos do Corpo Administrativo do Império Colonial Português, acolhia à época o Conselho Ultramarino, este datava do início do século XVIII. Este Palácio andou de mão em mão entre proprietários civis e eclesiásticos até ser comprado à família Burnay pelo então Ministério das Colónias, em 1940, aqui foram instalados o Conselho Técnico de Fomento Colonial, a Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, a Inspeção Superior de Administração Colonial, para além do então designado Conselho do Império Colonial, posteriormente Conselho Ultramarino.

A formação do corpo administrativo colonial deu passos com a criação da Escola Colonial, que começou a funcionar na Sociedade de Geografia de Lisboa. Foi depois Escola Superior Colonial, na década de 1920, andou pelo Palacete Anjos, no Príncipe Real e daqui transferiu-se para a Junqueira. É indiscutível que a Instituição teve um papel relevante na formação de uma elite de funcionários. A um nível institucional elevado, é de destacar a colaboração cientifico-social empreendida no quadro da Comissão de Cooperação Técnica na África ao sul do Saara – organismo criado em 1950 pelos governos de França, Reino Unido, Portugal, Bélgica, União da África do Sul e Rodésia do Sul, como se compreenderá para procurar responder à era da descolonização. Deu-se na formação dos funcionários coloniais a incorporação das ciências sociais. Criou-se o Centro de Estudos Políticos e Sociais, em 1956, na Junta de Investigações do Ultramar para funcionar junto do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos. Com o 25 de abril, a instituição mudou de look e natureza, o Palácio Burnay ficou vazio.

Falando agora do Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, com projeto aprovado do artista angolano-português Kiluanji Kía Henda, que tem dado tanta controvérsia, faz agora aqui, faz agora acolá, tem como lugar escolhido o Largo José Saramago, o antigo Campo da Cebolas, com sobejas ligações aos tempos coloniais, fabricação de navios, mercado de bens comerciais, etc. O Memorial surge pela iniciativa da Djass – Associação de Afrodescendentes, beneficiará de apoios camarários. A obra que ganhou o concurso chama-se Plantação do já referido artista angolano-português, ele propõe um lugar de memória aberto à reflexão. Trata-se de uma instalação de 540 canas-de-açúcar de três metros de altura e oito centímetros de diâmetro, em alumínio preto, dispostas na forma de triângulo, em representação do comércio triangular entre África, América e Europa.

Numa entrevista dada ao Público, em março de 2020, Henda afirma que o memorial representa uma floresta em luto uma memória para todos, pois é uma singela homenagem que nos evita cair numa amnésia coletiva. O monumento constituirá um espaço para “poder compreender as origens do racismo contemporâneo e as continuidades históricas que existem entre o que foi o período de escravatura do projeto colonial português e o racismo contemporâneo.” Recorde-se que Lagos foi o primeiro porto de chegada de pessoas escravizadas, Zurara, na sua Crónica dos Feitos da Guiné, dá-nos uma descrição pungente. Em 2009, foram encontrados restos de 158 corpos de pessoas escravizadas que foram abandonados num depósito de lixo fora dos muros medievais da cidade. Em Lagos foi criado o “Núcleo Museológico Rota da Escravatura – Mercado de Escravos” no lugar onde foram comercializadas as primeiras pessoas provenientes de África. Este pequeno museu é muito criticado pela falta de uma leitura ampla, reforçando a instrumentalização da escravidão em lugar de a questionar.

A nossa próxima viagem começará no Monumento a Sá da Bandeira, mesmo ao lado do Mercado da Ribeira, seguiremos depois para Belém para o monumento aos mortos da guerra colonial.

Era assim o nosso principal Banco Imperial.
Imagem retirada do blogue Restos de Coleção, com a devida vénia
Sala do administrador. Daciano da Costa assinou o projeto de arquitetura e mobiliário.
Imagem retirada do blogue Restos de Coleção, com a devida vénia
O Palácio Burnay já conheceu melhores dias, há movimentos de cidadãos a pedir a sua reabilitação
O que se pensa vir a ser o Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas

(continua)
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Notas do editor:

Vd. post anterior de 10 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27304: Notas de leitura (1849): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 14 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27315: P27259: Notas de leitura (1851): "Os Có Boys (Nos Trilhos da Memória)", de Luís da Cruz Ferreira, ex-1º cabo aux enf, 2ª C/BART 6521/72 (Có,1972/74) - Parte III: de Leiria a Coimbra, e da Carregueira a Penafiel, a caminho do CTIG (Luís Graça)

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27304: Notas de leitura (1849): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Outubro de 2025:

Queridos amigos,
Só agora descobri este interessantíssimo livro editado pela Tinta-da-China em 2022, trata-se de um projeto coletivo envolvendo académicos, ativistas, museólogos, jornalistas que interrogam Lisboa através de um quadro sólido de instituições, entidades, espaços públicos, monumentos, infraestruturas e até nomes de ruas e que são ecos, e mesmo reminiscências, da nossa presença colonial. Dedica-se hoje atenção ao Arquivo Histórico Ultramarino, à Associação Comercial de Lisboa e ao Bairro das Colónias, o primeiro é um lugar fundamental de uma imensidade de estudos, para aqui convergiram documentos multisseculares, os arquivos do Ministério das Colónias, do Arsenal da Marinha, entre outros, deram-se muitas alterações, quando andei a pesquisar João Vicente Santana Barreto, tenente médico que esteve em Cabo Verde e prestou meritíssimos serviços na Guiné, pensei que o seu processo estivesse no Arquivo Geral do Exército, não senhor, o melhor que encontrei foi mesmo aqui; a Associação Comercial de Lisboa esteve ligada a nomes bem representativos de negócios africanos caso de Angola e São Tomé; e o Bairro das Colónias é assim tratado por toda a gente, só resiste a outro tratamento a antiga Praça do Ultramar, hoje Praça das Novas Nações, é um Bairro altamente miscigenado, tem a Farmácia Colonial e o Restaurante Sabores de Goa...

Um abraço do
Mário



Império e colonialismo: reverberações na Lisboa atual - 1

Mário Beja Santos

Ecos Coloniais resulta de um exercício coletivo de investigação sobre o património histórico e cultural, aqui se interrogam instituições, entidades, monumentos, obras de arte, palácios onde se interseccionam a história colonial e imperial portuguesa, do passado ao presente, edição ilustrada com fotografias de Pedro Medeiros e o acervo de textos tem a coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto, edição Tinta-da-China 2022. Logo na introdução, os organizadores referem que este levantamento é uma obra consciente e que há muito por investigar e por saber, importa evitar generalidades e simplismos mobilizadores para escapar aos engenheiros e empreendedores da “história” e da “memória”.

A viagem começa no Arquivo Histórico Ultramarino, instituição criada na década de 1930, pensado desde o início como o arquivo histórico do Império. O seu próprio nome é revelador da profunda ligação que este projeto manteve com uma visão histórica do Império Colonial. Era intento do Estado Novo moldar a memória colonial para se obter uma narrativa oficial sobre o passado de Portugal enquanto nação imperial. Os autores do artigo contam a história deste arquivo que está instalado no Palácio dos Condes da Ega, na Calçada da Boa Hora n.º 30, na Junqueira, lembram a convergência de outros arquivos para aqui, a grande preocupação era a do investimento ideológico no controlo da memória e do discurso histórico sobre o Império. Prevendo-se, após a II Guerra Mundial, o surto da descolonização rebatizou-se o Arquivo Histórico Colonial de Ultramarino.

Depois do 25 de abril, o arquivo conheceu várias tutelas até que em 2015 foi incorporado na Universidade de Lisboa, está integrado na Direção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas. Há vários discursos e narrativas estratégicas na vida deste arquivo e fala-se agora muito de que é um património arquivístico comum da lusofonia. Observam os autores:
“É fundamental que a inventariação da enorme massa documental do Arquivo seja acompanhada por uma sensibilidade crítica relativamente à sombra que esta genealogia continua a projetar sobre o Arquivo”, e advertem que “convém ter presente que os sistemas coloniais de classificação documental podem ocultar certos sujeitos ou certos temas tidos no passado por secundários ou, de algum modo, irrelevantes ou inconvenientes”.
Os autores também referem que também se está a proceder na atualidade a um levantamento dos fundos do Conselho Ultramarino.

Passamos agora para a Associação Comercial de Lisboa, edifício projetado pelo arquiteto Álvaro Augusto Machado, o mesmo da Sociedade Nacional de Belas Artes, aqui se alojou inicialmente um espaço de diversão noturna, o Club Palace, quando este fechou as portas, foi aqui que a Associação se estabeleceu. Esta Associação transferira-se em 1895 para o antigo Palácio Seiscentista dos Condes de Povolide, o Ateneu Comercial de Lisboa. No século XIX fora constituída a Associação Mercantil Lisbonense, muitos dos seus dirigentes estavam ligados a negócios coloniais. “Entre os seus fundadores, muito poucos vinham dos tempos anteriores à abertura dos portos do Brasil à navegação estrangeira, em 1808. A regularização das relações comerciais com o Brasil, sobre as quais a direção solicitava ao Rei providências urgentes, foi uma das suas primeiras preocupações. O mesmo sucedeu com a promoção do comércio com as colónias de África. Logo em 1835, o Conselho da Associação apreciou o memorando sobre a situação de Angola após a abolição do tráfico de escravos. Após ter mudado de denominação para Associação Comercial de Lisboa, em 1855, a Associação formou várias comissões especializadas, uma das quais dedicadas às questões ultramarinas.”

Refere o autor as ligações da Associação com o Banco Nacional Ultramarino, com donos de roças São Tomé e Príncipe e Angola, entre outras, e escreve:
“É impressionante a identificação, durante quase um século entre a direção da Associação e os interesses coloniais. E ainda hoje, passadas décadas sobre a descolonização, embora se concentre mais nas suas funções de Câmara de Comércio e Indústria, a memória dessa relação vive no percurso de vida do atual presidente. À frente da Associação desde 2005, Bruno Pinto Basto Bobone viveu quase toda a sua infância em Moçambique, de onde só regressou depois do 25 de abril.”
Conclui nestes termos:
“Investigar organizações como a Associação Comercial de Lisboa, o processo de recrutamento dos seus dirigentes e de formação das suas posições, enquanto instituições que representam, no plano político, os mesmos interesses económicos coletivos ao longo do tempo, mas sondá-las também como lugares de encontro de indivíduos e de grupos, contribui-se certamente para compreender como mesmo na sociedade de hoje, se seguem certos rumos e se tomam certas opções.”

Da rua das Portas de Santo Antão, passamos para o Bairro das Colónias. Mudou o nome da Praça do Ultramar para Praça das Novas Nações, o nome das ruas mantém-se, há mesmo uma placa de trânsito a indicar o Bairro das Ex-Colónias. Este local corresponde a uma etapa da urbanização da cidade, foi um dos últimos bairros construídos em torno da Avenida Almirante Reis, resultou de um projeto apresentado à Câmara Municipal para urbanizar o espaço que restava da Quinta da Mineira e da Quinta da Charca, era um terreno que se situava entre dois bairros recentes, o Bairro Andrade e o Bairro de Inglaterra. O Bairro das Colónias começou a ser construído na década de 1930.

“Uma das forças mais eficazes na normalização da nomenclatura do Bairro das Colónias é o negócio imobiliário. Se alguém consultar as principais empresas imobiliárias com a intenção de comprar ou arrendar uma casa não encontrará nenhuma oferta no Bairro das Novas Nações. Já no Bairro das Colónias as possibilidades são diversas.”

As transformações do Bairro, a avalanche de nossos compradores levou a alterar o perfil do comércio; é verdade que ainda existe a Farmácia Colonial, o restaurante central das Colónias, a oficina de automóveis Auto-Colonial ou a Pastelaria Nova Ultramarina, mas este imaginário tem vindo a dar lugar a negócios geridos por imigrantes, sobretudo os provenientes do Nepal, do Bangladesh, do Paquistão e da Índia, o Bairro dispõe de massagens tailandesas, de um café com serviços para imigrantes, ostentam-se nos prédios bandeiras da Guiné-Bissau, do Nepal, do Senegal e da Roménia. E para concluir diz o autor:
“Com mais de noventa anos de história, maioritariamente vividos em democracia, o Bairro das Colónias passou por mudanças significativas, mas o seu anacrónico nome permanece sem aparente contestação”.

O autor recorda que o Bairro Africano de Berlim conheceu um movimento de contestação nacional e internacional que propôs a renomeação das ruas do Bairro, que mantinham alusões às antigas colónias e a colonialistas de renome. A não existência em Lisboa de movimentos semelhantes aos de Berlim não deveria suster a ação urgente dos poderes autárquicos locais, começando eventualmente pelas placas de trânsito. Num processo que deveria conduzir à tão necessária mudança do Bairro, seria igualmente relevante considerar que as populações que lá viveram e alguns dos que ficaram, escapando à fúria dos imobiliários, associam este nome às suas geografias sentimentais. Bem explicada, a ideia de que não se deve celebrar um regime colonial e predador será certamente compreendida pela maioria.

Regressamos falando do Banco Nacional Ultramarino e de vários monumentos espalhados pela cidade.

Palácio da Ega, Arquivo Histórico Ultramarino
Associação Comercial de Lisboa - Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa
Rua de Angola, Bairro das Colónias, imagem de Jorge Ferreira, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 7 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27293: Notas de leitura (1848): "O capelão militar na guerra colonial", de Bártolo Paiva Pereira, capelão, major ref - Parte IV: "Até 1966 eram todos voluntários" (Luís Graça)

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27270: Agenda cultural (903): Convite para a Conferência Círculo do Mar - "Dar Voz Às Guarnições" - Ultramar 1961-1974, dia 16 de Outubro de 2025, pelas 17 horas, a ter lugar na Sociedade Histórica da Independência de Portugal, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, Lisboa (José Maria Monteiro, ex-Marinheiro Radiotelegrafista)

1Mensagem do nosso camarada José Maria Monteiro, ex-Marinheiro Radiotelegrafista (LFP Bellatrix, 1969/71 e Comando Naval da Guiné, 1971/73) com data de 29 de Setembro de 2025:

Meu ilustre camarada.
Se entenderes fazer a publicidade a esta CONFERENCIA - Círculo do Mar - convidando todos os camaradas, em especial todos os marinheiros a estarem presentes no dia 16 de Outubro de 2025, pelas 17h00, na Sociedade Histórica da Independência de Portugal, seria excelente.

O meu Abraço
José Maria Monteiro
(um dos mais jovens combatentes do Mundo e dos exércitos portugueses desde a fundação da nacionalidade até à presente data. (c/16 anos).
Cascais, 29/09/2025


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Nota do editor

Último post da série de 26 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27258: Agenda cultural (902): "Venham Mais Cinco", o olhar estrangeiro sobre a revolução portuguesa, 1974-1975, exposição fotográfica para ver até 23 de Novembro de 2025, no Parque Tecnológico da Mutela, Almada (Mário Beja Santos)

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27247: Agenda cultural (901): Convite da Liga dos Combatentes para a Festa do Livro, a decorrer entre os dias 25 e 28 de Setembro nos Jardins do Palácio de Belém, conforme o programa


LIGA DOS COMBATENTES NA FESTA DO LIVRO

JARDINS DO PALÁCIO DE BELÉM

25 A 28 DE SETEMBRO

CONVITE

Exmos/as Senhores/as,

A Biblioteca da Liga dos Combatentes convida todos os interessados a participar na Festa do Livro nos Jardins do Palácio de Belém, que decorrerá entre 25 e 28 de setembro de 2025 (quinta-feira a domingo).

Pela primeira vez, a Liga dos Combatentes marcará presença com uma banca de venda de livros (a preços especiais) para divulgação das memórias dos Combatentes desde a Grande Guerra à Guerra do Ultramar.

O acesso à Festa do Livro é efetuado pela Loja do Museu da Presidência da República ou pelo Jardim Botânico Tropical e a ENTRADA É LIVRE! O programa é vasto mas damos nota de alguns dos destaques:

- Quinta-feira, 25 de setembro

16h00 – Abertura ao público

18h00 – Inauguração oficial da Festa do Livro em Belém 2025, com a presença de Sua Excelência o Presidente da República

19h30 – MÚSICA | Concerto de Carolina Deslandes

21h00 – Encerramento das bancas de livros

21h30 – MÚSICA | Concerto de Rui Veloso


- Sexta-feira, 26 de setembro

10h00 – Abertura ao público & Emissão em direto do Programa “Casa Feliz” da SIC c/ Diana Chaves e João Baião

21h00 – Encerramento das bancas de livros

21h30 – MÚSICA | Concerto de Bárbara Tinoco


- Sábado, 27 de setembro

11h00 – Abertura ao público

16h00 – DEBATE | «Portugal e o Futuro» | Oradores: Manuela Ferreira Leite e António Barreto | Moderador: Pedro Mexia

21h00 – Encerramento das bancas de livros

21h30 – MÚSICA | Concerto de Fernando Daniel


- Domingo, 28 de setembro

11h00 – Abertura ao público

21h00 – Encerramento das bancas de livros

21h30 – MÚSICA | Concerto de Xutos & Pontapés


Mais informação em: https://www.ligacombatentes.org/festa-do-livro-em-belem-25-28-de-setembro/

João Horta
Direção Central | Depto. Bibliotecas e Museus
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Nota do editor

Último post da série de 10 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27203: Agenda cultural (900): Antestreia da série documental guineense "Martcha", do realizador e produtor Unkaff (pseudónimo de Onésio Caetano Soda, n. 1991): sexta, dia 12, 18h00, no Espaço Mbongi67, Praceta António Sérgio, nº 4, Queluz

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27231: Notas de leitura (1839): A Festa do Outono de 1956 no Campo Grande, eu estive lá (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Setembro de 2025:

Queridos amigos,
Começa-se a remexer numa banca de livros e entre um romance de Pearl Buck e um catálogo de uma exposição de Bela Silva encontrei uma publicação sobre a Festa do Outono no Campo Grande, em outubro de 1956. Era uma organização da União do Grémio dos Lojistas de Lisboa e o Governo Civil, iniciativa de beneficência para os pobres de Lisboa. Comecei por folhear a publicidade da época, a pasta dentífrica Binaca, os eletrodomésticos Westinghouse, a Agência Mundial de Viagens, a Aguardente Macieira, a Farinha Fubá, a Casa Hipólito, o Gazcidla, a Sapataria Hélio... e muito mais. Já tinha esquecido a Casa Leonel, na Rua do Carmo 71, uma loja chiquérrima, com cristais importados, lustres, faqueiros, entrava para mirar. Mas o que me tocou nestas Festas do Outono foi recordar o Campo Grande da minha infância e juventude e a batalha de flores a que assisti, a 28 de outubro. Um Campo Grande com farta história, por ali se passearam exércitos, passaram manadas de touros e gado destinado ao matadouro; terá sido o espaço da mais opulenta feira de Lisboa do século XIX. Matei saudades e lembrei-me daquele Campo Grande florido que atravessei todos os dias úteis no período escolar, quando estudei no Colégio Moderno. Muito mais tarde apareceu a Biblioteca Nacional, onde beneficiei de leituras e continuo a beneficiar de exposições. Felizmente ainda tenho pernas para o percorrer em duas direções e, não é incomum, meter o nariz no Museu Rafael Bordalo Pinheiro ou no Museu da Cidade.

Abraço do
Mário



A Festa do Outono de 1956 no Campo Grande, eu estive lá

Mário Beja Santos

Dia de sorte na Feira da Ladra, encontro uma publicação com a programação das Festas do Outono promovida pelo Governo Civil de Lisboa e a União de Grémios de Lojistas da Cidade, ocasião para lembrar aos munícipes que o Campo Grande tinha arreigadas tradições, a Festa do Cavalo, por aqui se passeou o exército que D. Sebastião levou para a tragédia de Alcácer Quibir, igualmente por aqui cavalgou a Rainha D. Amélia, depois aqui se prantou enorme jardim arborizado e florido, aqui houve feira e mercado que fez história, vale a pena recordar.

No final do século XV, o Campo Grande e o Campo Pequeno denominavam-se, respetivamente, Alvalade-o-Grande ou Alvalade-o-Longo, e Alvalade-o-Pequeno. De um Campo Grande inculto criou-se um passeio público no princípio do século XIX, no tempo do Príncipe Regente D. João, futuro D. João VI. Plantou-se arvoredo em 1802 e 1803, abriu-se uma casa de pasto no fim do novo passeio. Quem adiantou dinheiro para o ajardinamento e plantações foi o 1º Barão de Porto Covo de Bandeira, aquele mesmo senhor que montou palacete na Rua de S. Domingos à Lapa, onde este a Embaixada da Grã-Bretanha e está hoje a Companhia de Seguros Lusitânia. Assim começou a vida turbulenta do passeio público por onde andaram tropas francesas e o exército inglês. E apareceu a Feira com as suas rixas e desordens, barraqueiros que vendiam comida em dias de jejum. Em 1830, o Campo Grande possuía terras de semeadura, fazendo-se uma eira defronte do Palácio Pimenta, onde está hoje o Museu da Cidade. Em meados do século por aqui se efetuavam corridas de cavalos e em 1869 principiaram os trabalhos de embelezamento com as escavações do grande lago.

A atual igreja construída com a receita da venda de bilhetes da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e com o produto de uma feira livre no Campo Grande, autorizada por um alvará de 1778.

O sítio era a redondeza de Lisboa, tornou-se agradável andar por aqui aos domingos e dias santificados, vinha-se para passear às “hortas”. Os alfacinhas vinham ver as esperas de touros, apareceram as casas de petiscos e os chamados “retiros”, de que resta o “Quebra-bilhas”. O Campo Grande estava rodeado de muros baixos e as famílias que para ali iam veranear juntavam-se regularmente no jardim. Não faltava o fado nas casas de comes e bebes. Foi assim que apareceu a feira, tinha lugar em outubro de cada ano, chegou a prolongar-se até dois meses. Efetuava-se perto da Igreja dos Santos Reis Magos e do chafariz. Uma feira com uma certa opulência: transações em ourivesaria e relojoaria; aqui se podiam comprar linhos, algodões, louça de ferro, ferramentas, cutelarias. A par de tudo isto, encontravam-se os negociantes de castanhas, passas, nozes e frutas verdes, não faltavam galináceos nem queijaria. Completavam a feira as barracas de quinquilharias, figuras de cera, vendedores ambulantes de bolos, pão de milho, capilé e copo com água. Não havia circo, mas havia ursos que faziam habilidades ao toque do pandeiro e as ciganas liam a sina. Quando, em 1932, se transferiu a feira para o Lumiar, morreu o movimento, a transferência foi um golpe de misericórdia. Claro está que ganharam outra dimensão feiras existentes em Lisboa.

Cheguei ao Bairro de Alvalade em 8 de maio de 1952, vinha de Algés e frequentava a primeira classe no Colégio Portugal, no fim da Avenida das Descobertas, perto daquela enorme rotunda onde pontificava uma praça de touros, cercada de ervas daninhas. Nunca tinha visto uma fila de prédios, com uma rua alcatroada à frente, e esta encostada a uma quinta com muros antiquíssimos, a quinta do Visconde de Alvalade, enorme, vinha lá muito de cima, onde está hoje a Avenida dos EUA e estendia-se até ao monumento dedicado aos heróis da Guerra Peninsular, um extenso olival já muito mal tratado, onde anos depois se levantaram prédios de cor verde, havia barracões que confinavam com a moradia onde funcionava a esquadra da polícia do Campo Grande, foi tudo demolido para dar lugar à Clínica de S. João de Deus.

Frequentei a Escola Primária n.º 151, ela ainda lá está de pé, toda retocada, o principal lazer da pequenada era brincar nos logradouros ou percorrer a estruturas ainda em cimento dos prédios da Avenida dos EUA, que foram sendo construídos até à estação da CP Roma-Areeiro. Passeios no Campo Grande só na companhia da minha mãe ou da minha avó ou com os meus irmãos; ou nas idas à catequese na Igreja dos Santos Reis Magos.

Tenho, pois, onze anos quando vamos em magote, pequenada e pais, ao fundo do Campo Grande ouvir as bandas de música, os cortejos e no derradeiro dia da festa, a 28 de outubro, ver a “Batalha das Flores”. O Campo Grande tinha belos jardins, dois lagos, como hoje, foi aparecendo estatuária, havia o ringue de patinagem, apareceu um café junto do lago maior, onde há barcos, o café tinha uma bela peça de cerâmica assinada por Júlio Pomar, junto do lago pequeno apareceu mais tarde uma biblioteca ao ar livre, o jardim era muito mais amplo do que hoje, do lado esquerdo de quem desce em direção ao Museu da Cidade havia muita habitação e até uma fábrica de massas, a continuidade de edifícios era interrompida por um vasto campo onde está hoje a Biblioteca Nacional de Portugal, novamente mais prédios, depois a Estrada de Malpique, tendo já ao fundo o Colégio Moderno, depois um largo caminho, ainda não tinha nascido a Cidade Universitária, mais moradias, a Fábrica Nally, que produzia cosméticos, ia-se por ali fora passando por moradias até ao Palácio Pimenta. No fundo do Campo Grande, surgia uma soberba alameda com palmeiras, espaço de grandes passeios.

Mantive (e ainda mantenho) uma excelente relação com o Campo Grande. Muitos dos meus passeios pedestres orientam-se para ali. O jardim mingou, estreitou, em benefício do rei automóvel. O jardim são manchas de verde, compactas, com muitas patas de cavalo e arborização que deve custar pouco em termos de jardinagem. O Caleidoscópio, que tinha uma bela livraria, perto do lago do Campo Grande, deu lugar a um espaço de estudo e uma loja McDonald’s; a Avenida das Palmeiras continua de pé e sente-se a muita animação da gente que vem jogar ténis e padel; por razões de pudor, fujo de olhar para o ringue de patinagem, tal é a carga de saudades dos tempos festivos que ali passei. E sempre que posso visito quer o Museu Rafael Bordalo Pinheiro ou o Museu da Cidade, dois espaços culturais magnificentes. Mas nunca mais houve a Feira do Outono e o jardim não tem coreto de música. Soube-me muito bem recordar aquele dia de outubro de 1956, que aqui partilho convosco.

Lisboa de antigamente, o Campo Grande em frente à Igreja dos Santos Reis Magos, senhoras de chapéu, criada a tomar conta da menina, meninos embarretados e descalços, fachadas de prédios do início do século XX, ao fundo, o chafariz era presença obrigatória
Quando a feira do Campo Grande era a mais importante de Lisboa
Um jardim do Campo Grande em que o elétrico era o transporte rei
Era assim a primitiva ponte sobre o lago do Campo Grande
A igreja dos Santos Reis Magos, à esquerda ainda com muro, à direita com um conjunto de anexos que depois desapareceram; só conheci a igreja sem muro e sem anexos
O bairro onde vivi de 1952 a 1968 e de 1982 a 1994. A grande superfície ajardinada desapareceu, na rotunda está a estátua de S. António, toda a praça tem edifícios, lá ao fundo nasceu o centro comercial de Alvalade e encostado àquele prédio da Avenida de Roma nasceu outro prédio onde está hoje a ADSE. Vê-se ao fundo no ponto alto a torre do relógio da Escola Primária, a n.º 33, a minha escola era a nº 151, a uma escassa distância de centenas de metros
Lembro-me perfeitamente deste Campo Grande da década de 1950, tinha a faixa para autocarros e automóveis e nas margens a linha do elétrico. Vemos dois prédios do fim da Avenida da Igreja, a nova arborização a ladear a faixa rodoviária e aquele prédio de 1.º andar tinha sido ocupado por operários que trabalhavam na fábrica onde hoje se localiza a Universidade Lusófona, desapareceu há poucos anos, deu lugar a mais um hotel
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Nota do editor

Último post da série de 15 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27221: Notas de leitura (1838): "Uma Outra Perspectiva", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2023 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27201: Agenda Cultural (899): Ciclo de Cinema - Imagens da Guiné-Bissau: Memória, Consciência e Futuro, a levar a efeito entre 23 de Setembro e 18 de Outubro de 2025, no Museu Nacional de Etnologia, Lisboa


De 23 de setembro a 18 de outubro, o Museu Nacional de Etnologia recebe, em parceria com a Casa da Cultura da Guiné-Bissau, o Ciclo de Cinema “Imagens da Guiné-Bissau: Memória, Consciência e Futuro” com uma seleção de filmes que refletem essencialmente sobre a História da Guiné Bissau. A seleção de filmes teve a curadoria de Onésio Soda e Welket Bungé e inclui filmes realizados por Flora Gomes, Sana Na N’Hada, José Magro, José Bolama, Djalma Fettermann e Josefina Lopes Crato.

Em cada sessão, para além das exibições, haverá também um momento de conversa com convidados especiais, com espaço para reflexão e partilha de memórias, consciência e futuros possíveis.

Entrada Livre

Sessões:

23.09.25

- 18h30 “A Pegada de Todos os Tempos”, Flora Gomes, 2009, 5’;
“A República di Mininus”, Flora Gomes, 2012, 78’
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27.09.25

- 16h00 “NOME”, Sana Na N’Hada, 2023, 118’
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04.10.25

- 15h00 “Nha fala”, Flora Gomes, 2002, 112’;
“Bissau d’Isabel, Sana Na N’Hada, 2005, 55’
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11.10.25

- 16h00 “Kadjike”, Sana Na N’Hada, 2013, 115’
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18.10.25

- 16h00 “Nha Sunhu”, José Magro, 2021, 21’ ;
“O Regresso de Cabral”, Sana Na N’Hada, Flora Gomes, José Bolama, Djalma Fettermann, Josefina Lopes Crato, 1976, 33’

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Nota do editor

Último post da série de 10 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27106: Agenda Cultural (898): Foi lançada em Julho a 2.ª edição do livro "Dados Biográficos do coronel Henrique Manuel Gonçalves Vaz - Último Chefe do Estado-Maior do CTIG/CCFAG", da autoria do nosso Grã-Tabanqueiro Luís Gonçalves Vaz, filho do biografado

sábado, 19 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27033: Os nossos seres, saberes e lazeres (690): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (213): Uma deriva no Atlântico, a flamejante, trepidante, contemporaneidade na Arte (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Maio 2025:

Queridos amigos,
Trata-se de uma exposição permanente a ver no Centro Cultural de Belém, mas apresentada como exposição permanente em permanente transformação, fala-se no Atlântico, sobretudo a partir dos meados do século XX, verdadeiramente um espaço de trânsitos e exílios. Um dos aspetos marcantes da exposição é pôr o confronto entre os artistas portugueses e os demais, gera no visitante uma tremenda inquietação, parece que foi deliberado dar saltos cronológicos, obrigar o visitante a ir atrás , à procura de amarras nesta deriva que mete pintura, escultura, desenho, instalação e artes gráficas, é um percurso em ciclorama, para não nos esquecermos que na arte estão plasmadas as transformações sociais, artísticas e tecnológicas. Exposição a não perder, prometo que não haverá deceções com a altíssima qualidade da apresentação destas belíssimas obras de arte.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (213):
Uma deriva no Atlântico, a flamejante, trepidante, contemporaneidade na Arte


Mário Beja Santos

Mais do que um espetáculo para os sentidos e um desfrute estético, a exposição Uma Deriva Atlântica. As artes do século XX a partir da Coleção Berardo, tendo como curadora Núria Enguita, diretora artística do Museu da Arte Contemporânea e Centro de Arquitetura do Centro Cultural de Belém implicam o visitante a procurar permanentemente as ligações num tremendo caleidoscópico de obras de arte, apercebendo-se rapidamente que a cronologia dos movimentos artísticos de toda esta plástica é coisa inexistente. Aliás, como se pode ler na abertura da exposição, temos aqui um arco temporal de 1909 a 1977, há como que uma provocação ou um desafio, a exposição tende a desarrumar ideias feitas, pois dissocia as referências e as formas artísticas: “Segue uma cronologia inconstante, mostrando ligações e confrontos entre as margens europeia e americana para indicar possíveis relações e derivas por vezes esquecidas ou ausentes da história de arte. Enquanto remontagem da coleção permanente, Uma deriva atlântica apresenta uma seleção de artistas portugueses e internacionais, entre pintura, escultura, desenho, instalação e artes gráficas, assim se exprime a arte na história do mundo e se mostra a modernidade enquanto eclosão múltipla de importantes transformações sociais, artísticas e tecnológicas".

Há momentos em que nos sentimos numa sala de espelhos, entre Picasso e Amadeo de Souza-Cardoso, Lourdes Castro e Marcel Duchamp, Lucio Fontana e Ana Hatherly. Num total de 170 artistas, é um percurso que começa antes da Primeira Guerra Mundial e se estende até à descolonização da década de 1970. A exposição só foi possível com o concurso de várias coleções em depósito e com obras emprestadas. É, no mínimo, uma apreciação original entre o que de mais incendiário se produziu na Europa e na América do Norte, ficamos perplexos com esta viagem das ideias estéticas, os trânsitos e os exílios, as novas afinidades geopolíticas, tudo como tendo berçário aquela Paris de cubistas, expressionistas, futuristas. Importa não esquecer que Amadeo de Souza-Cardoso, antes da guerra, expôs em Chicago, conjuntamente com alguns dos nomes mais sonantes das artes plásticas do seu tempo. Sugiro ao leitor que não perca esta exposição.

Não há que enganar, é um mobile de Alexander Calder, conheci esta obra de arte quando a Coleção Berardo assentou arraiais no antigo Casino de Sintra, a partir daí não o perdi de vista.
Sem título (Ponte), de Amadeo Souza-Cardoso, c. 1914. Observo a José-Augusto França que o melhor do génio do pinto de Manhufe se situa entre 1916 e 1917, mas olhando esta ponte persente-se o gérmen cubista, que ele soube tratar de uma forma muito singular.
Obras de Lyubov Popova.
No panorama artístico russo do começo do século XX, Lyobov Popova destaca-se pela procura de um vocabulário artístico que respondesse aos princípios do construtivismo a partir da pintura. Para Popova, a construção pictórica, entendida como “composição” de planos, era precursora da verdadeira construção tridimensional. Nas suas pinturas e colagens, mas também no trabalho em design têxtil, abordou a forma geométrica através do dinamismo e contraste que é criado pelas inter-relações entre formas semelhantes ou diferentes.
Tête de femme, por Pablo Picasso, 1909.
Tête de femme é um exemplo claro dos estudos que Pablo Picasso fez na procura da representação de tridimensionalidade por meios pictóricos, dando a ver diferentes perspetivas ao mesmo tempo. Aqui é possível observar múltiplas facetas que definem a cabeça da figura feminina, bem como um uso da cor e do traço que vinca e fragmenta superfícies. As zonas distintas que compõem o rosto e a definição dos seios compõem formas geométricas nítidas, constituindo uma espécie de grelha que se permite ao artista concentrar a sua atenção na estruturação formal do espaço, construída a partir da sobreposição de vários planos.
La petite, de Eduardo Viana, 1916.
É uma das personalidades mais apaixonantes do modernismo português, simultaneamente atraído por formas novas, tratando na sua pintura quer temas populares, mostrando em retratos a verdade do retratado, os seus nus opulentos foram um ponto de partida para essa longa viagem da desconstrução da figura.
Autorretrato, de Sonia Delaunay, 1916.
Apaixonou-se por Portugal, tal como o marido, Robert Delaunay, ele é sempre tratado como artista mais inovador do que ela, mas estes discos encantatórios, esta vibração da cor, são lhe muito próprios, vê-se e prontamente se diz: é da Sonia, não pode ser de outra pessoa.
Composição (amarelo, preto, azul, vermelho e cinzento), por Piet Mondrian, 1923. Temos poucos quadros deste gigante da pintura mundial, quando procuro deliciar-me com a trajetória de Picasso, Matisse e Mondrian, o meu coração balança, é fascinante tudo o que este holandês produziu, cedo remexeu nas formas e abandonou o figurativismo, viveu entusiasmado com a associação entre a arte e a arquitetura e nos últimos anos da sua vida injetou na telas estes quadrados de código labiríntico.
O abismo prateado, por René Magritte, 1926. Não há surrealista como ele, ponto final.
Hospital de bonecas, por Fernando Lemos, 1949-1952. Lemos ficará na história da arte portuguesa como um fotógrafo surrealista ímpar.
Conchas flores, por Max Ernst, 1929. Sim, é um dos génios do surrealismo, mas pôde gabar-se de tudo ter procurado experimentar, desde a fulgência das cores até ao imprevisto das formas, obriga-nos a interrogar onde está a concha ou se esta não passa de um botão de flor naquele enigmático fundo de horizonte.
O poeta diverte-se, ou o poeta e a sua musa, por Mário Botas, 1978. Ainda bem que os organizadores da exposição se lembraram desta figura invulgar do surrealismo português, olho para estas figuras e só vejo tormento, Botas era médico e não tinha ilusões da doença devastadora que o liquidou. Para esta inolvidável exposição escolhi o Botas e esta sua forma de olhar a vida e do destino que lhe coube.
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Nota do editor

Último post da série de 13 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27013: Os nossos seres, saberes e lazeres (689): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (212): Um dia na rota da cereja, Fundão e Castelo Novo (Mário Beja Santos)

sábado, 5 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P26986: Os nossos seres, saberes e lazeres (688): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (211): Visita ao novo acervo permanente no Museu Nacional de Arte Contemporânea – 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Abril 2025:

Queridos amigos,
Cônscio de que há para aqui um certo percurso errático, entendi que devia vir um pouco atrás, ao século XIX, onde efetivamente começa o acervo permanente do museu e daí mostrar aquela bela parede onde se expõe o retrato, manifestação capital do século XIX para o século XX; sem perda de demora passei por dois modernismos para preparar o cenário que irá conduzir às alterações das décadas de 1960 a 1980. Vejo-me aflito quando chego às últimas salas do acervo permanente, desentendo-me com câmaras escuras e coisas parecidas, a minha fronteira é aquele João Tabarra, por ironia a fotografia foi vista, durante gerações, pelos estetas como uma arte bonitinha mas que devia ocupar um espaço à parte, os Eduardo Gageiro, Victor Palla ou Gérard Castello-Lopes que fiquem no arquivo fotográfico, não tem direito a competir com as artes plásticas, abre-se uma exceção para o Jorge Molder, escusam de me perguntar porquê. Tudo somado, é indispensável vir até este acervo permanente, tem uma leitura, um discurso pedagógico, que nos faz entender a palpitante viagem que começou em 1910. Portanto, uma visita obrigatória.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (211):
Visita ao novo acervo permanente no Museu Nacional de Arte Contemporânea – 2


Mário Beja Santos

Recapitulando, era diretora do Museu Nacional de Arte Contemporânea Emília Ferreira e procedeu-se à reformulação do chamado acervo permanente, que isto dizer que o visitante do museu tem sempre em exposição um histórico do seu património, independentemente de exposições que estejam a acontecer. Entra-se no museu e a partir da Sala dos Fornos tem-se uma mostra do que melhor do século XIX o museu conserva, não faltam os românticos, os naturalistas, e assim caminhamos para a transição que será trazida pelos chamados modernistas.

Quem concebeu a exposição teve a feliz ideia de pôr de alto a baixo a parede de mudança de piso o chamado encontro de gerações, ali pontifica o retrato. Como escreve uma das responsáveis pela exposição, Maria de Aires Silveira temos ali mestres académicos, registos de elegância mundana, a densidade do retrato camoniano, assim se chega a Columbano, ali podemos ver o retrato de Teixeira de Pascoais, também está presente mestre Malhoa. E refere esta conservadora que por 1910 o autor portuense António Carneiro introduz a modernidade através da pintura Noturno, que aqui mostrámos no texto anterior. É igualmente nesta época que irrompem as ruturas com o academismo no século XIX. Percorremos essa sequência histórica de autores que vão desde a primeira geração modernista até ao neorrealismo e surrealismo, não esquecendo, porém, que em plena década de 1940 Fernando Lanhas abre caminho ao abstracionismo. É dentro desta recapitulação que pretendo repescar artistas de mérito até à transição que vai ocorrer a partir dos anos 1960. Veja-se Júlio dos Reis Pereira que usou de um traço e de um contexto grotesco, deliberadamente ingénuo, e numa atmosfera estética singular, isto numa época em que as artes plásticas se modernizavam mas dentro de um figurativismo que mantinha as regras do equilíbrio do traço.

O pescador de sereias, por Júlio dos Reis Pereira, 1929
Sabat – Dança de roda, António Pedro, 1936

António Pedro trilhou o surrealismo, figura polifacetada, homem de teatro, escritor de relevo. Fez objetos, escultura, cerâmica, galerista. Num tempo em que Leal da Câmara fora grande desenhador de humor em Paris e Amadeo Souza-Cardoso ganhara notoriedade internacional, em 1935, em Paris, Pedro assinou um manifesto ao lado de alguns dos nomes mais sonantes do tempo como Marcel Duchamp, Delaunay, Kandinsky, Miró, Picabia, Arp e Calder. No tempo da Exposição do Mundo Português, de 1940, era inaugurada no Chiado uma exposição por ele organizada, exposição surrealizante, ele, António Dacosta e a escultora inglesa Pamela Boden. Temos aqui neste Sabat - Dança de roda quatro corpos ou troncos, cruzam-se num espaço, envolvendo braços e seios e as quatro cabeças calvas fixam-nos em espanto. Quadro de uma grande violência carnal, como observará José-Augusto França.
Cais 44, Fernando Lanhas, 1943-1944

Ainda não sabia, mas era uma revolução silenciosa, nada de figuras, linhas geometrizantes, mas, para desconforto do espírito académico e mesmo dos modernistas havia nesta conjugação de cores uma luminescência que era impossível refutar não se tratar de uma grande arte.
Sombra projetada de René Bertholo, Lourdes Castro, 1964

Estamos a entrar numa nova era, o neorrealismo deu sinais de esgotamento, o próprio surrealismo segue um caminho autónomo e algo de profundo iria acontecer com as bolsas da Fundação Calouste Gulbenkian, ir-se-ão impondo novos nomes, caso de Lourdes Castro, Helena Almeida, Bartolomeu Cid, Sá Nogueira, uns motivados pelos temas da sociedade de consumo, outros experimentando o uso da sua própria figura como modelo dentro da obra, será o caso de Helena Almeida como mais tarde Jorge Molder. O fundamental a reter é que a partir de agora a abertura a outras estéticas não será tão demorada como no princípio do século, isso ver-se-á nos trabalhos de Paula Rego ou de Menez. O museu pode orgulhar-se de ter obras de grande significado destas gerações, como abaixo se exemplifica.
A Noiva, por Paula Rego, 1972
Sem título, Menez, 1985
Sem título, João Vieira, 1972
Da série TV, Jorge Molder, 1995
This is not a drill (No Pain No Gain), João Tabarra, 1999

As artes plásticas, como é óbvio, não estavam nem ficaram insensíveis seja à erupção de novos meios de comunicação e ao aproveitamento de novas tecnologias. A fotografia voltou a ganhar estatuto de nobreza, as instalações, as performances entraram na ordem do dia, de algum modo já tinha sido assim com o Op, a arte cinética, mas a dimensão tecnológica foi tão avassaladora que trouxe uma alteração profunda aos conceitos estéticos. Isto para já não falar nos aparatos espetaculares como o uso de detritos humanos, materiais da construção civil, etc.
Não sei para onde caminhamos, a minha fronteira do gosto acaba aqui.

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Nota do editor

Último post da série de 28 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26966: Os nossos seres, saberes e lazeres (687): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (210): Visita ao novo acervo permanente no Museu Nacional de Arte Contemporânea – 1 (Mário Beja Santos)