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Cesário Verde, por Columbano (1887) |
Escreveu meia centena de poemas.... Mas que poemas!... "O sentimento de um Ocidental" é um das obras-primas da nossa poesia...
A sua genialidade só foi reconhecida "post-mortem", e logo por outros grandes poetas como o Fernando Pessoa.
Na primeira parte do poema "Nós", de que selecionei uns exertos, Cesário Verde evoca o surto de febre amarela que atingiu Lisboa em 1857 que terá contagiado entre 16 a 17 mil pessoas (perto de 10% do total da população lisboeta) e provocado mais de 5 mil mortes.E dois anos antes, tinha havido um o surto de cólera.
Se bem que o séc. XIX venha marcar o fim das grandes epidemias que, ao longo de séculos vitimaram as populações europeias, surgem novos problemas de saúde, com a industrialização e a urbanização da Europa.
Se bem que o séc. XIX venha marcar o fim das grandes epidemias que, ao longo de séculos vitimaram as populações europeias, surgem novos problemas de saúde, com a industrialização e a urbanização da Europa.
No nosso país, por exemplo, em menos de um quarto de século, e em duas ocasiões, a cólera irá fazer dezenas de milhares de vítimas mortias: cerca de 40 mil em 1833, em plena guerra civil, um terço dos quais na capital (as valas comuns deram depois origem aos cemitérios dos Prazeres e do Alto de São João); e aproximadamente 9 mil em 1855-56.
Embora as estatísticas de mortalidade, na época, possam variar de autor para autor, de fonte para fonte, a cólera tornou-se a doença epidémica, por excelência nas cidades em grande expansão, resultantes do do desenvolvimento do capitalismo industrial.
A cólera passara a ser conhecida dos portugueses com a chegada à Índia onde era endémica.
Já a febre amarela é originária da América Central. Há notícia de que terá chegado a Portugal continental no ínício da década de 1720: a primeira epidemia de febre amarela ter-se-á manifestado em Lisboa, no Outono de 1723. Ao fim de três meses terá feito mais de seis mil vírimas mortais, nas zonas de maior densidade populacional.
No caso do surto de febre amarela de 1857, as áreas mais afectadas em Lisboa foram inevitavelmente as dos bairros populares (como Alfama, Mouraria, Madragoa, Bairro Alto), onde se concentravam as chamadas classes laboriosas, misturadas com o lumpen-proletariado, e onde continuavam a ser péssimas as condições de higiene e salubridade (sobrehabitação, falta de saneamento básico, de água potável, de recolha do lixo, etc.), agravadas pela subnutrição e sistema imunitário enfraquecido.
Registam-se igualmente importantes surtos de febre tifóide e de tifo, embora estas doenças tendam a regredir a partir de 1865. Mas, mesmo ainda em 1923, Ricardo Jorge considerava Lisboa, no seu estilo tão castiço e peculiar quanto hiperbólico, como "uma das cidades mais infectamente tíficas" (sic) da Europa...
Cesário Verde era bebé aquando da epidemia de febre amarela de 1857. Mas este acontecimento ficou na memória da família Verde, que era de origem italiana. O seu pai, abastado agricultor e comerciante de ferragens na baixa lisboeta, fez aquilo que os ricos faziam na época: retirar a família para o campo. Neste caso, para a sua quinta em Linda-A-Pastora, hoje concelho de Oeiras. Aí Cesário Verde enamora-se pelas delícias do campo e dá-nos conta da modernização da agricultura da época.
_______________
NÓS
I
Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre
E o Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.
Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas
(Até então nós só tivéramos sarampo)
Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas
Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!
Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nós salvamo-nos na fuga.
Na parte mercantil, foco da epidemia,
Um pânico! Nem um navio entrava a barra,
A alfândega parou, nenhuma loja abria,
E os turbulentos cais cessaram a algazarra.
Pela manhã, em vez dos trens dos baptizados,
Rodavam sem cessar as seges dos enterros.
Que triste a sucessão dos armazéns fechados!
Como um domingo inglês na "city", que desterros!
Sem canalização, em muitos burgos ermos
Secavam dejeções cobertas de mosqueiros.
E os médicos, ao pé dos padres e coveiros,
Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!
Uma iluminação a azeite de purgueira,
De noite amarelava os prédios macilentos.
Barricas de alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons d'inferno outros arruamentos.
Porém, lá fora, à solta, exageradamente,
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica, potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade!
Num ímpeto de selva os arvoredos fartos,
Numa opulenta fúria as novidades todas,
Como uma universal celebração de bodas,
Amaram-se! E depois houve soberbos partos.
Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste d' ouvir falar em órfãos e em viúvas,
E em permanência olhando o horizonte em brasa,
Não quis voltar senão depois das grandes chuvas.
Ele, dum lado, via os filhos achacados,
Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda!
E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados,
E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!
E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos,
Desde o calor de maio aos frios de novembro! (...)
Excertos, NÓS - I, in "O Livro de Cesário Verde: 1873-1886, posfácio e fixação de texto, António Barahona. Edição definitiva. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, pp. 98-100. (Com a devida vénia...)
I
Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre
E o Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.
Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas
(Até então nós só tivéramos sarampo)
Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas
Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!
Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nós salvamo-nos na fuga.
Na parte mercantil, foco da epidemia,
Um pânico! Nem um navio entrava a barra,
A alfândega parou, nenhuma loja abria,
E os turbulentos cais cessaram a algazarra.
Pela manhã, em vez dos trens dos baptizados,
Rodavam sem cessar as seges dos enterros.
Que triste a sucessão dos armazéns fechados!
Como um domingo inglês na "city", que desterros!
Sem canalização, em muitos burgos ermos
Secavam dejeções cobertas de mosqueiros.
E os médicos, ao pé dos padres e coveiros,
Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!
Uma iluminação a azeite de purgueira,
De noite amarelava os prédios macilentos.
Barricas de alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons d'inferno outros arruamentos.
Porém, lá fora, à solta, exageradamente,
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica, potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade!
Num ímpeto de selva os arvoredos fartos,
Numa opulenta fúria as novidades todas,
Como uma universal celebração de bodas,
Amaram-se! E depois houve soberbos partos.
Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste d' ouvir falar em órfãos e em viúvas,
E em permanência olhando o horizonte em brasa,
Não quis voltar senão depois das grandes chuvas.
Ele, dum lado, via os filhos achacados,
Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda!
E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados,
E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!
E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos,
Desde o calor de maio aos frios de novembro! (...)
Excertos, NÓS - I, in "O Livro de Cesário Verde: 1873-1886, posfácio e fixação de texto, António Barahona. Edição definitiva. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, pp. 98-100. (Com a devida vénia...)
2, E depois do "Nós", leia-se "O Sentimento de um Ocidental": longo poema, de 44 estrofes, dividido rigorosamente em 4 partes de 11 estrofes cada uma; cada estrofe, por sua vez, é composta por quadras (4 versos).
As rimas são, em geral, interpoladas e emparelhadas (segundo o esquema ABBA), com 12 sílabas métricas (alexandrino) e um verso de 10 sílabas (decassílabo) no primeiro verso de cada estrofe.
As 4 partes do poema correspondem a menos de metade do dia (que vai do entardecer à noite cerrada):
- Parte I: Avé-Marias;
- Parte II: Noite fechada;
- Parte III: Ao Gás;
- Parte IV: Horas mortas.
Com Cesário Verde, a poesia abre-se a (e celebra-se com) os cinco sentidos... Fica aqui uma amostra (para ler ou reler) (a primeira quadra de cada parte; e a IV parte - Horas mortas - completa).
O sentimento de um ocidental
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. (...)
II Noite Fechada
II Noite Fechada
Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de dom! (...)
III Ao gás
E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arripia os ombros quase nus. (...)
IV Horas mortas
O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.
Por baixo, que portões! Que arruamentos! Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.
E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.
Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!
Ó nossos filhoes! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.
Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!
Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.
E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.
Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.
E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.
E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!
(A versão completa do poema pode ser encontrada aqui, mas por favor comprem o livro em papel, "O Livro de Cesário Verde: 1873-1886", edição da Assírio & Alvim, Lisboa, 2004... E leiam-no de vez em quando em voz alta e... a qualquer hora!.... E repitam, de preferência ao entardecer, no miradouro da Senhora do Monte, na Graça, em Lisboa, ao entardecer, mesmo a abarrotar de tuque-tuques e de turistas: "Se eu não morresse, nunca! E eternamente / Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas! ")...
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Último poste da série > 10 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26482: A Nossa Poemateca (8): José Gomes Ferreira (Porto, 1900 - Lisboa, 1985), por Mário Gaspar
1 comentário:
A grande poesia de Cesário Verde! Salvé, POETA.
António Graça de Abreu
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