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sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26035: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - III - (Parte II e última) (Belmiro Tavares)


CCAÇ 675
Guiné 1964 / 66


Retalhos do nosso pós-guerra - III


Belmiro Tavares

Vamos transcrever, agora, um texto da autoria do nosso médico, Alfredo Barata, onde ele relata as peripécias de duas viagens que ele fez a Farim, em dias consecutivos, para “apanhar” o avião que o levaria a Bissau; dali, seguiria para Lisboa em gozo de merecidas férias.
Apreciemos a sua escrita e o conteúdo!



A MINHA IDA À GUERRA

“Para não ter de dormir numa cama estranha, num ambiente estranho, numa terra estranha, aproveitei o transporte da LDM; resolvi deixar a bagagem em Farim e voltar, rio abaixo, até Binta. A viagem de regresso com os mesmos companheiros foi mais calma. Entardecia. A lancha empurrava as águas paradas, levantando com o seu barulho bandos de pássaros e macacos que, na margem, escolhiam poiso para aquela noite. No dia seguinte, de madrugada, embarquei novamente a caminho de Farim, Bissau e Metrópole. Desta vez ia só, sem o bulício da véspera. O dia começava a amanhecer, cinzento e húmido; mais tarde viria o sol brilhante e quente. Agora pairava uma neblina ténue junto ao tarrafo que escondia os ramos mais altos que, pouco a pouco, se ia desvanecendo com o romper da claridade. No interior do barco, a tripulação tomava o seu café. Em cima, o piloto olhava, atento, o rio pela vigia largamente aberta na cabine blindada, cortando curvas para encurtar caminho.

Encostado à torre da peça desguarnecida, eu passava os olhos pelas margens do rio sempre belo, pensando comigo mesmo: – Aqui é a foz do Caúr, mais adiante Tambato Mandinga. Mas há aqui uma aberta nas árvores das margens… Se não me engano… Que deixa ver as moranças da tabanca… Sim, é ali. (Já lá tínhamos chegado e, com efeito, era ali). De repente, ali mesmo, um clarão reluz, e outro e mais outro.

Antes que me pudesse aperceber do sucedido, caí, não sei se obedecendo ao instintivo "deitar" das instruções de combate, se por ter sentido uma pancada quente e indolor no flanco esquerdo que me puxava para o chão. As ideias de baço, de hemorragia, de esplenectomia passaram no espírito, desapareceram rapidamente; logo verifiquei que tudo não passava de um ferimento muscular parietal.

Entretanto a lancha virara de bordo, a fim de conseguir melhor posição de tiro. O artilheiro subiu ao seu posto de combate e com umas rajadas potentes de calibre de 20 mm "calou" o tiroteio inimigo. Aproveitei para acenar para o local onde deveriam estar os terroristas para que eles, quando fizessem o relatório da "operação", não dissessem que tinham abatido um alferes da tropa de Binta. A lancha voltou ao seu primeiro rumo e continuou, Cacheu acima, a caminho de Farim. Fez-se o balanço da situação. Quando souberam que tinha sido atingido de raspão, os homens da lancha excederam-se em cuidados pondo ao dispor o material de enfermagem de bordo e oferecendo café quente que aceitei com agrado. Estava em jejum e à minha volta percebia um estranho cheiro a carne assada que depois, me apercebi que provinha das minhas feridas. Discutia-se o ataque; uns diziam que tínhamos sido atingidos com uma bazuca, outros, como eu, sustentavam que os rebentamentos ouvidos não passavam de granadas de mão lançadas da margem… para "ronco". Os malandros tinham visto um oficial, a 80 metros, de pé, isolado na cobertura da lancha, feito "pato" com as mãos nos quadris e esperaram que o alvo ficasse no enfiamento de tiro para abrir fogo.

Pouco depois desembarquei em Farim. O "Dakota" já tinha chegado e, quando alcancei o Comando, já o avião se preparava para descolar. Ainda não era dessa vez que ia para Bissau. Teria de esperar mais um dia, talvez dois, e, à noite, dormi numa cama estranha, num ambiente estranho e numa terra estranha”.


********************

Vamos agora narrar uma mão cheia de acontecimentos da sua vida que são – pensamos – dignos de registo e devem ser do conhecimento dos vindouros. Vamos começar, precisamente, pelo mais antigo.

Após o seu nascimento, o senhor seu pai, deslocou-se à Conservatória do Registo Civil para proceder ao registo do seu nascimento. Após ligeira conversa, o funcionário público, ciente do seu papel, informou que ao neófito não podiam ser atribuídos quatro sobrenomes:
- Mas está certo! – respondeu o pai da criança, acrescentando: - O Meu filho chama-se Alfredo Roque e tem apenas três sobrenomes – Gameiro e Martins Barata.

E elaborou-se o registo!

O nosso bom João Semana não seguiu uma das carreiras dos seus pais, aliás como fez o mano mais velho que não descarrilou, seguindo arquitetura.

Graças a Deus! O nosso mui ilustre amigo, Dr. Alfredo Barata, não seguiu a tradição. Assim, a Medicina Portuguesa e a nossa CCaç 675 ganharam um grande médico sempre pronto a dar tudo pelos seus feridos e doentes.

Concluído o curso de medicina já casado e aprovado no COM (Curso de Oficiais Milicianos) em um dos primeiros dias de maio de 1964, apresentou-se, no RI 16, em Évora, sendo logo incorporado na CCaç 675. No dia 8 de maio, muito compenetrado, partiu connosco, no navio Uíge, rumo à Guiné longínqua e… maleitosa.

Em meados de 1965 apareceu, de surpresa, na vila de Farim, uma senhora loira que, muito confusa e perdida, no meio daquele emaranhado de itinerários variados, procurava o caminho mais curto que a conduzisse em segurança, até à aldeia mais badalada da Guiné. Talvez se falasse tanto de Guilege como de Binta mas por motivos bem diversos. Recorreu aos serviços do BCav 490 que, logo, enviaram uma mensagem via rádio a anunciar a presença de tão ilustre senhora, naquela vila. Tratava-se, apenas, da mui dedicada esposa do nosso preclaríssimo amigo, o dr. M. Barata. Como, ali, (em Farim) não havia transportes públicos (e privados também não) uma coluna de viaturas militares, partiu, imediatamente, para trazer, até Binta, a mui digna esposa do nosso conceituado médico.

Podemos afirmar que todos, sem exceção, deram o seu melhor para que aquelas férias (algo forçadas) fossem, minimamente, agradáveis; ficou hospedada, com o marido, num hotel 5 estrelas super e ninguém ousou cobrar-lhes qualquer verba pela luxuosa estada – serviço distinto… à moda da CCaç 675.

Lamentamos! Mas nem sempre foi possível evitar à ilustre veraneante um ou outro momento de certa confusão ou até aflição mas ela não se preocupou porque… o seu marido estava por perto. Era quanto lhe bastava!

O nosso médico gostava de se divertir com certas brincadeiras, mesmo que “picantes” e até com certas traquinices, mas, neste caso, apenas com graduados (oficiais). Que o diga o alferes Tavares! Este oficial sofreu de uma otite bilateral; o nosso bom Galeno tratou dele com lavagens que chegaram a ser bidiárias. Em uma destas lavagens, o dr. Barata usou, propositadamente, água fria. O Tavares sentiu umas tonturas inclementes e o Dr. Barata ria que nem um desalmado. Logo ele pediu desculpa ao seu paciente e continuaram a ser bons amigos, como teria de ser. Ele terá herdado esta veia “cómica” ou brincalhona da senhora, sua mãe.

Ele contou que na primeira vez que levou a namorada (a tal jovem loura) a jantar em casa dos seus pais, a senhora, sua mãe, serviu a sopa a todos mas, no prato da futura nora, colocou uma barata. A jovem candidata a esposa do nosso médico nada disse; pensava como haveria de sair daquela embrulhada. A senhora, mãe do nosso médico, apercebendo-se da enorme confusão que iria naquela cabecinha loira retirou o prato da sua frente e comentou:
- Apenas pretendia averiguar se gostava mesmo de Baratas!

O nosso excelente médico gostava de disputar uma sempre agradável partida de xadrez; acontece que na CCaç 675, apenas o Moura, o primeiro-cabo operador cripto, n.º 2542 (vulgo Cifra) tinha arcaboiço para o enfrentar mas… não dispunha tempos livres para aquele desporto muito especial. Aliás, ele ainda hoje participa em campeonatos de xadrês lá na sua terra natal.

O doutor Barata decidiu” viciar” o Tavares e ensinou-lhe as regras básicas daquele desporto; durante cada jogo, ele corrigia os erros e sugeria a melhor saída. Era um bom ensinador, o dr. Barata! Um belo dia, iniciaram a partida e, pouco depois, precisamente, ao terceiro lance, o Tavares alertou, contente:
- Xeque ao teu rei!
O bom do nosso médico olhou, fixamente, para o tabuleiro e, volvidos uns largos segundos perguntou escandalizado:
- Sabes o que fizeste?
- Dei xeque ao rei! - Respondeu o Tavares, eufórico.
- Não deste um xeque qualquer! Tu deste xeque-mate! Como ocorreu ao terceiro lance, chama-se “xeque Pastor”! Nunca pensei que tal pudesse acontecer-me, principalmente, com um principiante! Isto não pode repetir-se!

O Tavares nunca tinha ouvido falar em “xeque Pastor” mas… ficou entusiasmado. Com certa frequência, brindava-o com este dito:
- Olha que eu dou-te um Xeque Pastor!
Ele respondia:
- Isso nunca mais acontecerá!

Mas foram sempre bons amigos e durante a viagem de regresso, a bordo do já velhinho Uíge, passaram largas horas com o tabuleiro entre eles.

Em 1969, o Tavares pediu ao dr. Barata que o ajudasse a escrever os envelopes para a convocatória da confraternização daquele ano. Como ele tinha uma vida bastante ocupada, sugeriu que o Tavares se deslocasse ao Instituo do Cancro, durante certa noite, porque ele estava lá de serviço. Escritos os envelopes, lá mataram o vício jogando umas partidas de xadrez. Era já alta madrugada quando o Tavares saiu daquele Instituto. Foi, cremos, a última vez que se digladiaram, um de cada lado dum tabuleiro de xadrez. Nesta época, o Tavares já não era o tal principiante; no Colégio Militar havia muitos e bons xadrezistas.

Ainda em Binta, aquando do aparecimento da luz elétrica (finais de setembro de 65) cada um comprou, em Farim, uma ventoinha. Ambos defendiam que a sua soprava mais e melhor que a do outro. Para solucionar o diferendo “inventaram” um anemómetro “made in Binta”: um fio pendurado no teto da sala, com as ventoinhas frente a frente e à mesma distância do fio (medições com régua e esquadro) ligavam-nas, e em simultâneo mas… o diferendo continuava.
Alguém passou rente à janela e, ao aperceber-se daquele aparato, terá comentado:
- Coitados! Até são bons rapazes! Mas… já estão “apanhados do clima”! Se o nosso capitão não prepara para eles uma daquelas duras batidas, lá para as bandas de Sanjalo, aqueles dois ainda vão parar ao HM 241, em Bissau. Acabarão a comissão… antes do tempo!

Apesar de tudo, não chegaram a uma conclusão digna.
Decidiram, então, defender a “honra das ventoinhas” com cortantes espadas mandingas, meio ferrugentas, na mão. Alguns diriam que foi apenas para a fotografia; mas existem mesmo fotografias que comprovam que houve luta renhida mas… inconclusiva; no entanto, esqueceram-se de nomear “padrinhos”! Ficou provado que nenhum deles tinha queda para a luta com espadas… tão ferrugentas.

Um dia, o dr. Barata teve de assistir a um parto difícil; uma jovem africana (etnia mandinga) encontrava-se em sérias dificuldades para dar à luz, pela primeira vez. Dentro da “morança”, o dr. Barata tinha, à sua direita, o fur. mil. enf. Oliveira; à sua esquerda, encontrava-se uma “parteira” nativa, pronta a cortar o cordão umbilical com um ferruginoso facalhão que, só por si, infundia profundo respeito. A certa altura, o Oliveira segredou ao seu chefe:
- A sua “colega” está com ar compenetrado! Mas o seu “bisturi” mete respeito!

Todos terão rezado cada um ao seu Deus para que tudo corresse bem! Mãe e filho salvaram-se! Era o mais importante! Binta precisava de aumentar a população ativa!

O soldado n.º 2227, Henrique Cambalacho (mais conhecido por Sorna perdido e achado… estava a dormir) era um dos nossos guarda-redes. Um dia, ao fazer uma “espantosa” defesa, a bola bateu-lhe com força na cara, ou ele bateu com o pescoço no poste. Foi logo tratado e mandaram-no repousar… não fosse ele o Sorna. Acordou com grandes dificuldades para respirar e gritou por ajuda. Ninguém lhe deu troco, porque se tratava do “Sorna”. Logo, alguém se apercebeu que a cavidade bocal era demasiado pequena para uma tão grande língua. Foi levado, à pressa, para a enfermaria. O dr. Barata mal teve tempo de o submeter a uma traqueotomia… de emergência. Safou-se, à tangente!

O dr. Barata, apoiado por uns tantos voluntários, foi o responsável pelo projeto (não proviesse ele de uma família de arquitetos) e construção de um posto de socorros para os nativos, nossos vizinhos e um parque infantil para a miudagem de Binta. Entretanto, já vinha a preparar um grupo de jovens africanos que sentiam ganas de ser enfermeiros. Quando entendeu que estavam devidamente preparados, autorizou-os a dar “picas”… ao pessoal da tabanca. Inicialmente, eram supervisionados pelos nossos enfermeiros mas, em breve, passaram a trabalhar sozinhos. Sempre que se deparavam com casos mais intrincados… “passavam a bola” à nossa equipa de eficazes enfermeiros.

Há tempos, já acamado, segredou-nos que gostava de voltar à Guiné com a CCaç 675 para reviver aqueles tempos gloriosos, os anos de 1964/66.

Tinha tantas e tão admiráveis qualidades, o nosso médico! Até era saudosista, também!

E por aqui nos quedamos! Temos pressa de “chegar” aos nossos companheiros de todas as horas. Esperamos que ninguém esqueça que a Gloriosa CCaç 675 está acima de tudo e de todos.

Ninguém a esquece, a CCaç 675 merece!

Nota: Acrescentamos aqui as duas “baixas” ocorridas este ano:
- Sold. at. 2328, Joaquim Ferreira Martins, natural de Santo Tirso;
- Sol. eng. Joaquim Nunes Sequeira, natural de Sintra.

Agosto de 2024
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Nota do editor

Vd. post de 10 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26029: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - III - (Parte I) (Belmiro Tavares)

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26029: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - III - (Parte I) (Belmiro Tavares)


CCAÇ 675
Guiné 1964 / 66


Retalhos do nosso pós-guerra - III

Belmiro Tavares

2024

No dia 12 de maio de 2024, organizámos a nossa confraternização anual para os nossos antigos combatentes da zona norte. Reunimos em Águeda e éramos 35 convivas. Tudo (quase tudo) correu bem! O almoço estava otimo e foi bem servido. Tivemos direito a uma sala só para nós o que é deveras importante; estávamos, absolutamente, à vontade e não incomodámos os vizinhos.

Para esta reunião, tivemos em devida conta, facilitar a vida aos companheiros, principalmente, os que vivem a norte do Douro mas, segundo parece, a benesse não foi bem entendida. No entanto – cereja no topo do bolo – a irmã e o sobrinho do furriel Mesquita (dr.ª Teresa Mesquita e dr. - Francisco Mesquita) bem como três familiares do soldado n.º 2336, Jerónimo Justo (o filho, José Luis, a nora Maria de Lurdes e o neto, Tiago) fizeram questão de nos brindar com a sua benigna presença. 

Além disso, estes participantes anunciaram que estarão presentes também na confraternização do sul, em Benavente, no dia 22 de setembro do ano corrente. O nosso mui querido general, o Tavares, o C. Figueiredo, o Frade, o Luis Moreira e o Santo Marques percorreram mais de duzentos quilómetros para cada lado; o Gabriel Rosa e o M. Cariano palmilharam cerca de duzentos quilómetros na ida e na volta.

Caros minhotos! Tenham em devida conta que todos nós (os elos da nossa robusta corrente) nos sacrificámos imenso, durante aqueles dois longos anos de bruta guerra para criar e alimentar, até ao dia de hoje esta amizade enorme que nos une; esperamos que ninguém pretenda deitar por terra o esforço, a ousadia, a enorme coragem e a amizade que tem unido todos os robustos elos da nossa corrente. Pensem nisso! Esperamos, sinceramente, que todos pretendam que a Gloriosa CCaç 675 se mantenha viva durante muitos anos. O Tavares defende que sempre foi muito bem recebido pelo nosso pessoal do Minho – em boa verdade nunca foi mal recebido pelos antigos combatentes, em parte alguma! Pretende-se que assim continuemos por muitos e bons anos.

O comandante desta tropa especial continua a ser o nosso General Tomé Pinto que se mantém duro como o aço - se, como ele afirmou, no dia 12 de maio de 1965, em Binta, “Com tais soldados (os da CCaç 675) é fácil ser vencedor. Nós diremos que com tal comandante será impossível não ser vencedor; com ele ao nosso lado, tudo era fácil e, todos juntos, vencemos o que parecia impossível. Teremos de continuar a ser vencedores!

Mudando de rumo!
Alfredo Roque Gameiro Martins Barata (1938-2017)


Até ao dia de hoje, não temos notícias dignas de registo acerca do nosso pessoal. Assim sendo, vamos falar de uma figura ímpar da nossa CCaç 675. É certo que não pode haver comparações pois, a sua especialidade era única. Referimo-nos, claro está, ao nosso mui distinto médico, dr. Martins Barata.

Sabemos que provém de uma família de arquitetos e pintores. O seu “mano velho” também foi arquiteto; foi ele quem projetou o emblema da CCaç 675 que veio a ser considerado o mais original (e diferente) de quantos apareceram naquela Guiné tórrida e inclemente. O nosso era, na verdade, simples e simbólico: “CCaç 675 Nunca Cederá” sobre as cores da Infantaria.

Damos como certo que não vamos falar do médico porque não temos cabedal para tanto. Mas podemos afirmar que era um bom médico (muito bom mesmo) e sempre presente onde e quando necessitávamos dele. Nunca virou a cara à luta… à sua luta… que era também a nossa!

Pelo menos nos primeiros tempos de mato, ele foi muito assediado por alguns dos nossos soldados para se livrarem de uma ou outra patrulha mais assustadora. Não constou que alguém tivesse beneficiado de tais artimanhas. O nosso bom Galeno confiava nos seus alargados conhecimentos e experiência de vida e, assim sendo, não seria fácil demovê-lo ou enganá-lo.

Ainda em Bissau, os soldados lamentavam que ele receitava apenas comprimidos LM (Laboratório Militar) e que “os mesmos” serviam para debelar todos os males que os assolavam. O bom do nosso médico foi incansável a explicar que os comprimidos que usávamos eram todos preparados no mesmo laboratório mas tinham finalidades e valências próprias. Conseguiu levar a água ao seu moinho! Tudo ficou esclarecido.

Na primeira quinta-feira que passámos em Bissau, ele mandou distribuir a cada militar, à hora do almoço, um comprimido (“daraprim”, um antipalúdico, se bem me lembro); espalhou-se entre os nossos soldados (nas outras unidades terá acontecido o mesmo) que se tratava “apenas” de um remédio “para combater ou diminuir o “apetite sexual”. Foi difícil combater tal boato entre os soldados, defendendo que se tratava apenas de uma proteção contra o paludismo – uma doença tropical, ainda muito ativa na Guiné e não só. Não evitaria que se contraísse tal maleita mas, quem tomasse aquele comprimido preventivo, não seria tão fortemente atacado.

Com o tempo, tudo entrou nos eixos, devidamente, - o nosso doutor passou no exame – e, lentamente, começou a ser admirado e respeitado (sem imposição) pelos nossos soldados; aliás, ele merecia toda a admiração, consideração e respeito de todos nós.

O doutor Barata gostava de ir connosco para o mato… de vez em quando. O nosso conceituado mestre da guerrilha não gostava (mas não o proibiu) que ele se expusesse, desnecessariamente, e alegava:
- Se o doutor vier connosco de uma patrulha e se tivermos um ferido grave, o senhor não estará nas melhores condições para o tratar como estaria se tivesse ficado no quartel.

O nosso bom Galeno ouviu as palavras sensatas do nosso venerável capitão e terá reduzido o número das suas saídas para o mato… talvez.

Constou que os nossos adversários (os nacionalistas) se assustaram, fortemente, ao ver um militar da CCaç 675 com uma arma tão estranha (uma máquina fotográfica); terão pensado que se tratava de um “lança misseis” e/ou um “drone” e deram corda às sandálias; com o rabo entre as pernas, rumando aos seus esconderijos, como, usualmente, faziam.

Acontece que, no dia 28 de dezembro de 1964, dia em que fomos, severamente, atingidos por uma potente mina anticarro (foi a primeira de seis); o nosso médico estava lá – demos graças a Deus! – caso contrário, os danos poderiam ter sido bem mais graves. Ele manteve-se calmo, atuante e dominou a situação; ia aconselhando os dois cabos enfermeiros, ali presentes, os quais se comportaram como deviam. Naquele dia, de triste memória, nem o fur. mil. enf. Oliveira se encontrava entre os operacionais mas os dois cabos enfermeiros fizeram maravilhas; como soe dizer-se: das tripas fizeram coração! Seguindo o exemplo do seu chefe, iam acorrendo a todos os “focos de incêndio” e… eram tantos, meu Deus!

Sinto vontade de recordar, aqui e agora, as ousadas palavras do mui ilustre “inventor do quadrado móvel” da CCaç 675:
- O soldado português é o melhor soldado do mundo! Ele é corajoso, voluntarioso, valente e ousado. Poderá não morrer pela Pátria ou pela Bandeira, mas, de bom grado, dá a vida pelo seu chefe ou pelo companheiro do lado.
E acrescentava:
- Será que ele – “doa a quem doer”! Será que ele tem as chefias que merece?!

Nota: as palavras em itálico e entre aspas são acrescento nosso.

Voltemos ao campo da verdade!

O dr. Martins Barata conseguiu, no meio daquele inferno medonho e sem os meios adequados, elaborar diagnósticos completos e perfeitos acerca de cada sinistrado.

Agora, será de bom tom lembrar, também, a extraordinária atuação do soldado nativo n.º 108, Mamadu Bangoran (etnia fula), um soldado com muitos altos e baixos. Naquele dia, de triste memória, não fora a sua inaudita coragem e o seu arreigado portuguesismo e teríamos mais mortos, certamente, ou feridos mais graves, ainda. Ele arriscou, literalmente, a sua vida, entrando no meio daquelas chamas alterosas para retirar dali alguns feridos que, por si só, não conseguiriam livrar-se daquele inferno. Reentrou no meio daquelas chamas impetuosas para recolher espingardas, capacetes, carregadores, cantis, etc. para que não fossem parar às mãos dos independentistas vorazes. Não temeu sequer a mais que provável explosão do depósito de gasolina.

Depois disto, juntou-se aos companheiros que enfrentavam, corajosamente, os adversários que desencadearam uma severa emboscada, logo após o rebentamento da desastrosa mina. Escondidos entre o capim alto e denso, iam fustigando a nossa tropa, que, com eficácia os colocou em fuga desvairada.
Era mesmo assim, aquele jovem fula! Naquele dia, portou-se como um herói!

Que será feito de ti, companheiro, Bangoran?! A CCaç 675 fez de ti um homem e não te esquece! Tu também não nos esquecerás, certamente!

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 24 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25441: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte III e última) (Belmiro Tavares)

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26006: A CCAÇ 675 - A Gloriosa - Relação das minas que tanto nos fustigaram (Belmiro Tavares, ex-Alf Mil)



CCAÇ 675

Relação das minas que tanto nos fustigaram

Datas e consequências

As minas são, como soe dizer-se, autênticos diabos à solta; outros demónios, também estuporados, são as emboscadas e as armadilhas. De entre todas… que o diabo escolha!

A Primeira mina - que tão profundamente nos marcou - 28/12/1964 – eram 12H30 – na estrada de Bigene, entre Sansancutoto e Genicó-Mandinga. Vínhamos duma patrulha ao nosso “far-west”. A mina explodiu sob a roda de trás, direita, da segunda viatura, o unimog MG-01-86, conduzido pelo sold. cond. auto n.º 2577, Virgílio M. M. Carvalho (mais conhecido por “Malveira”). Foi seguida duma emboscada duríssima!

Provocou:
a) Um morto – o fur. mil. Álvaro M. Vilhena Mesquita; ele seguia, precisamente, sobre a roda que fez explodir a mina. Segundo a opinião abalizada do nosso Dr. Barata, no local, quando o Mesquita “aterrou” já nos tinha “abandonado”… para sempre.
b) 3 feridos muito graves:
- Sold. at. n.º 2085, António Filipe – quase quatro anos de internamento, no HMP, em Lisboa.
- 1.º cabo n.º 2231, M. Craveiro da Silva – mais de três anos no HMP.
- Sold. trans. n.º 2978, Severino D. M. Nunes – dezoito meses internado no HMP.
Nota: Enquanto esteve internado, o António Filipe fez o 5.º ano dos liceus – uma proeza digna de registo.
c) Quatro feridos ligeiros:
- Sold. at. n.º 2096, J. Tomás Marques;
- Sold. at. n.º 1909, F. Ribeiro dos Santos;
- Alf. mil. J. M. Fernandes Costa;
- Sold. nativo n.º 06/63/U- Nashastima Dum.
D) Do unimog sinistrado restou, apenas:
- Um pneu;
- O depósito da gasolina;
- Um monte de ferros retorcidos e calcinados.
Valeu-nos a presença, entre nós, do Padre Eterno… que conduzia a primeira viatura.


********************

Segunda mina – 05/01/1965, cerca das 17H00, na picada de Guidage, a meio caminho, entre Cufeu e Ujeque – precisamente, oito dias, após a primeira. Era uma ameaça incomensurável!
Vínhamos de uma badalada “operação”, na península de Sambuiá; demolimos quanto, por ali, havia de pé!

Esta mina foi detetada pelo sold. cond. auto n.º 2775, Firmino A. Carola Padre Eterno, ao volante da sua GMC.
Ele contou:
- Encabeçando a coluna, eu vinha a seguir as pegadas de uma vaca, na areia da “picada”; de repente, em vez das pegadas, apareceu o rasto dum pneu. Como a viatura não tinha travão de pé, eu usei o de mão com toda a força; a GMC parou, ficando uma roda de cada lado da mina.
O nosso furriel Pedra barafustou e eu respondi:
- “Está ali uma mina!”
Ele não acreditou e meteu lá o pé; apercebendo-se daquela bomba, ele quase virou “calhau”!
Alguém que gosta de se rir e fazer rir os outros, comentou:
- Tu seguiste as pegadas da vaca mas, na verdade, o que tu tiveste foi uma vaca… do caraças.
O indómito inventor do “quadrado móvel” provocou a explosão da mina, no local, sem riscos para ninguém.


********************

Terceira Mina – 09/03/1965, ao fim da tarde, junto ao entroncamento de Genicó – Mandinga.

Explodiu sob a roda da frente direita da 6.ª viatura – caso estranho!
- Seria telecomandada?
Suspeitou-se que sim mas – não seria, certamente! - Havendo viaturas com mais de vinte pessoas a bordo, não selecionariam uma com apenas cinco.
Provocou:
- Dois feridos muito ligeiros:
- Sold. cond. auto n.º 2569, J. Galvão de Oliveira (o Barbosa);
- Um soldado africano (ou milícia?) cujo ferimento foi tão ligeiro que o seu nome não ficou… para a história.


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Quarta Mina – dia 11/04/1965, junto à segunda ponte da bolanha de Cufeu – seriam 06H45.

Foi seguida de uma violentíssima emboscada, a partir da margem direita da bolanha.
O local foi, inteligentemente, escolhido! Os independentistas não eram burros!
No fim da bolanha, a estrada curvava, ligeiramente, à direita e os nossos adversários colocaram-se mesmo no enfiamento da estrada que sobrelevava a bolanha.
Ao entrar naquela zona alagadiça, foram criados, naturalmente, espaços significativos, entre as viaturas – contrariamente ao que já estava determinado.
Na frente, seguia a mercedes do sold. cond. auto n.º 2466, J. A. Jesus Alexandre, bastante isolada.
A mina era comanda, a distância! Temos a certeza! A explosão ocorreu antes que a roda a pisasse.
Assim, os danos no pessoal foram mínimos. O único ferido foi o condutor atrás citado – ferido ligeiro (aparentemente), num pé. Foi evacuado para o HM de Bissau e, logo, para o HMP, em Lisboa.
Em consequência… passou à disponibilidade, porque já tinha mais de quinze meses de comissão.
Devido à explosão, o motor da mercedes (pesaria mais de meia tonelada) “voou” e “mergulhou” na bolanha, onde ficou submerso; talvez se encontre lá, ainda! O mesmo aconteceu à espingarda G3 do sold. at. n.º 2176, M. Duarte Frade que seguia, ao lado do condutor.
Os independentistas, nossos adversários, abrigados atrás de árvores e no “enfiamento” da estrada, desencadearam uma violentíssima emboscada. Logo, o Frade “roubou” a espingarda a um milícia e, absolutamente sozinho, enfrentou, corajosamente, todo o “peso” brutal daquela emboscada, abrigando-se, na “cratera” provocada pela explosão da mina anticarro.
Os outros militares “avançaram por lances”, ao longo da via demasiado estreita; sentiram enormes dificuldades para, passando ao lado da viatura sinistrada, se irem juntando ao Frade; alguns rastejaram sob a mercedes para aumentar o número de combatentes, na cabeça da coluna.
Apercebendo-se que o número de soldados, lá na frente, ia aumentando e temendo poder vir a ser cercados, os guerrilheiros “deram corda aos sapatos”; terão procurado refúgio, em Sambuiá, donde terão partido – só pode!

Segundo averiguámos, haveria, ali, mais de trinta guerrilheiros; terão aguardado pela nossa tropa, durante dois ou três dias.
Hoje, não tínhamos, ali, o Padre Eterno mas… valeu-nos o Jesus Alexandre! Tínhamos sempre boas companhias!


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Quinta Mina – 13/05/1965 – cerca das 08H00, próximo de Faer, região de Sanjalo.

Provocou um ferido ligeiro (perfuração do tímpano), o sold. at. n.º 1887, António S. Gregório; não chegou a ser evacuado para o HM 241, em Bissau, porque, por si só, ou devido aos medicamentos ministrados, o tímpano regenerou-se.
A intensíssima deslocação de ar, provocada pela explosão da mina, foi tal que “enfureceu” um enxame de abelhas localizado na árvore sob a qual a mina explodiu. Alguns militares viram-se obrigados a abandonar as espingardas para se defenderem das “abelhas loucas”, à bofetada.
O senhor Ribeiro, o madeireiro de Binta, levou tantas e tão intensas picadas que o nosso médico, Dr. Barata, teve de o tratar, durante vários dias, quase em permanência.
A velha GMC (heroica resistente da segunda GG) teve de ser rebocada. Fomos bafejados pela sorte, porque era o dia de Nossa Senhora de Fátima e porque o Padre Eterno estava ao nosso lado, mais uma vez, mas… a sua viatura preferida foi pró maneta! Antes a viatura que os homens!


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Sexta Mina – Estrada de Guidage, ao lado da antiga tabanca de Ujeque – 10/02/1966, cerca das 11horas.

As viaturas passaram no local, a caminho de Guidage; como não estava prevista grande demora, aquele sempre perigoso local não ficou sob vigilância da n.t. (nossa tropa), contrariamente ao que era habitual.
O instalador de minas estaria de atalaia e, em tempo breve, tê-la-á colocado. Com a pressa ou temendo que nós aparecêssemos, a mina não terá ficado, devidamente, “camuflada” – graças a Deus!
Foi detetada e, logo, “levantada” pelos nossos “sapadores privativos” – que não tínhamos. Os tais sapadores foram substituídos por “voluntários acautelados”. A mina foi levantada… sem qualquer perigo – há horas de sorte! Era uma TM46.
Em resposta, enviámos para a base de Sambuiá, via SPM, com pedido de urgência, meia dúzia de granadas de morteiro. Pretendíamos avisar aquela base temível que estávamos todos vivos… ainda.
Aquela mina seria – pensámos nós – uma resposta dos guerrilheiros a uma “falsa e desconexada visita” àquela base, alguns dias antes.
As nossas “chefias” deveriam saber que, se decidimos “bater”, temos de agredir mesmo, em força, porque na guerra não há lugar a “cócegas” e, quem não bate… leva!

Conclusão: devemos ter em conta que as alterações que levámos a cabo para proteção do nosso pessoal, iam dando bons frutos.
O diabo não está sempre atrás da porta!
Azar desmedido na primeira! Sorte nas restantes! Coisas da vida!

Região do Oio - Localização de Binta
© Infografia Luís Graça & Camaradas da Guiné

Após a primeira mina, era necessário mudar o rumo dos acontecimentos.
Teríamos de inovar! Não podíamos esquecer o facto de termos Nossa Senhora de Fátima, o Padre Eterno e o Jesus Alexandre do nosso lado. Tivemos essas ajudas, é certo, mas teríamos de cumprir a nossa parte.
Vejamos as alterações (materiais e comportamentais) que pusemos começámos a pôr em prática, após a primeira mina.
Como sempre, a primeira palavra (inovação) pertencia ao nosso mui ilustre capitão; de seguida, era a vez dos subalternos, dos furriéis e dos próprios soldados colocarem aquelas ideias em prática. Todos nos orgulhávamos de obedecer às ordens ou sugestões de tão distinto oficial do nosso Exército.
Vejamos quais foram as decisões colocadas em prática para minimizar (ou tentar diminuir) os efeitos perniciosos das minas anticarro:
- As viaturas passam a circular sempre com pequenos intervalos entre si.
- Cada condutor tem de pisar o rasto da viatura que o precede.
- As viaturas não podem circular a mais de 30/40 km hora;

Nota: os nossos condutores terão sido ensinados, durante a instrução que, se, em alta velocidade, pisassem uma mina, quando ela explodisse, eles já estariam longe… e fora de perigo. Parece inacreditável que alguém ensinasse isso mas… era o que eles diziam. Tal ensinamento “não tinha pés nem cabeça” ou “não tinha ponta por onde se lhe pegasse” ou “não tinha pernas para andar”.
- Os estrados das viaturas vão ser cobertos com uma espessa camada de terra cuidadosamente peneirada para evitar (ou diminuir) o efeito dos estilhaços.
- Sempre que possível, as estradas serão “picadas” com estiletes metálicos para detetar minas. Aquelas barras metálicas afiladas na base eram os “detetores… dos pobres”!
- Serão colocados sacos de terra, sob os assentos, da cabina.
- O piso da cabina será coberto por uma espessa camada de terra crivada.
- Serão colocados sacos de terra sobre os guarda-lamas.
- Usaremos calhas de madeira no enfiamento dos pedais para proteger os pés dos condutores.

Enfim! Aumentámos o peso das viaturas mas as pessoas (a parte mais importante) passavam a ter mais e melhor proteção.
Coincidência ou não, as minas, como vimos, deixaram de ter os efeitos altamente perniciosos como os que sofremos com a primeira mina.
Valeu a pena!
Nada fazer (alterar) seria a maior asneira!

Lisboa, abril de 2024

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Nota do editor

Vd. post de 26 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25983: A CCAÇ 675 - A Gloriosa - Como se “inventou” e gerou o mito – verdadeiro da Gloriosa CCaç 675 (Belmiro Tavares, ex-Alf Mil)

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25983: A CCAÇ 675 - A Gloriosa - Como se “inventou” e gerou o mito – verdadeiro da Gloriosa CCaç 675 (Belmiro Tavares, ex-Alf Mil)


A CCAÇ 675

A Gloriosa

Como se “inventou” e gerou o mito – verdadeiro da Gloriosa CCaç 675


Como conseguimos os nossos objetivos com trabalho (muito trabalho), dedicação, honestidade, saber, coragem (muita coragem), valentia e ousadia q.b.

Primeira fase, em Évora, 07/01/1964 – 2.º ciclo de instrução (o 1.º foi ministrado, no ano anterior, em outras unidades).

Formação da CCaç 675

- Aperfeiçoamento físico técnico e mental para que ninguém acusasse fadiga… antes do tempo.
- Disciplina… disciplina…. Disciplina.
- Espírito de corpo – união fraterna entre todos os elementos da CCaç 675 que viria a ser a gloriosa.

Havia um cross semanal; o primeiro foi de 5 km e dezenas de soldados desistiram; o último tinha 35 km e não houve desistências.
Em tempo breve, os nossos soldados distinguiam-se de todos os outros pela disciplina, garbo, educação e respeito que exibiam em qualquer local. Todos se orgulhavam de pertencer à CCaç 675 – a Gloriosa; cada um de nós dava, diariamente, o seu melhor.
Estava lançado o mote… que se ia enraizando… Estávamos, no entanto, ainda longe de atingir os objetivos ideais que tinham sido traçados pelo nosso mui ilustre capitão.

Avançámos afoitos para a 2.ª fase:
- Bissau, 13/05/1964
- Aperfeiçoamento físico enérgico e vigoroso (quase violento) porque “a guerra é coisa séria” e encontrava-se ali ao lado da nossa porta.
- Mentalização técnica, física e psicológica – estávamos sempre na crista da onda.
- Era obrigatório saltar das viaturas, em movimento, até aos 50 km/hora.
- O nosso sábio timoneiro determinou que os subalternos não permitissem que os soldados vagueassem pela cidade (Bissau), onde encontravam um ambiente derrotista; quando fôssemos para o mato, eles já se sentiriam vencidos.
Assim os nossos soldados tinham o dia “todo ocupado”; podiam fazer o que quisessem… menos ir à cidade. O ambiente, ali, era o menos aconselhado a quem sentia ganas de vencer.

Surgiu uma nova alínea (“a cabeça” do nosso afoito capitão não parava!):
- Saltar da viatura e disparar, ainda antes de “aterrar”, porque – ensinamento do nosso douto capitão: “apenas o primeiro tiro deles é perigoso; ouvindo os nossos disparos, eles baixam a cabeça, levantam o cano da sua arma e… já não acertam”

3.ª fase – Binta 29/06/1964 – Estávamos prestes a “abrir as portas da nossa guerra”
- Organização dentro do aquartelamento.
- Preparativos para a defesa das instalações… precárias.
- Entrada na guerra, de rompante e em força, 04/07/1964.
- Demonstração de coragem, ousadia e valentia… a todas as horas; ali, a guerra era total e cobria toda a zona.
- Força, no seu máximo expoente.

Em breve, as emboscadas dos nossos adversários eram “montadas”, cada vez mais longe do “nosso itinerário” que não tínhamos e, a cada dia, com menos intensidade. Surgiu um novo parágrafo:
- “É preferível romper a sola das botas que os pneus das viaturas”.

Isto significava que era mais fiável e seguro andar a pé e fora dos caminhos e atalhos do que nas viaturas.
- Em breve, montávamos mais emboscadas que os independentistas – eles não estavam habituados a sentir tanta valentia e a ser tão pressionados.
- Instalávamos perigosas “armadilhas”, em locais criteriosamente escolhidos, provocando-lhes insegurança.

Nota: usando as viaturas, os nossos adversários sabiam onde nos encontrávamos e para onde nos deslocávamos; era fácil precaverem-se: ou montavam uma sempre perigosa emboscada ou afastavam-se… para fora da nossa zona.

- Sinalização, à entrada de uma ponte, acabada de reconstruir: “Atenção! Há armadilhas!”
Eles não acreditaram na nossa sinceridade e… pagaram caro.
- Eram forçados a viver, “sobre brasas” e … afastaram-se do nosso território.

- “PSICOSSOCIAL” junto à fronteira com o Senegal, “convidando” os guineenses ali refugiados, a regressar à terra que os viu nascer. - Garantíamos-lhe segurança e trabalho – sempre trabalho – muita amizade e proteção – Inicialmente, o regresso foi lento mas, logo, acelerou enormemente, apesar da vigilância do pessoal armado do PAIGC, para o impedir. A RECONSTRUÇÃO - a fase mais importante após a pacificação-.

No fim do primeiro ano de Guiné, 12/05/1965 o nosso capitão falou às tropas, em parada, alertando:
- Soldados! Se a nossa comissão acabasse hoje, nós seríamos apelidados de vândalos, porque, na verdade, nós limitámo-nos, quase só a destruir. Agora, vamos iniciar uma nova fase da nossa guerra; será mais complicada que a anterior mas não menos importante, tentaremos trazer de volta os antigos habitantes desta região, proporcionando-lhes segurança e trabalho… muito trabalho.

Teremos:
- Restaurar casas;
- Edificar casas novas;
- Preparar jovens para a autodefesa de pessoas e bens e da tabanca;
- Criar condições de vida;

No fim da nossa guerra, poderemos dizer aos nossos familiares e amigos:
- Nós destruímos! Mas… Nós reconstruímos e construímos!
- Faremos regressar as pessoas que foram obrigadas a abandonar as suas casas e seus haveres, refugiando-se no vizinho Senegal, onde vivem, há vários meses, em miséria extrema!

E concluiu:
- Vamos a isto, valentes companheiros! Com soldados como vós… é fácil ser vencedor!
- Autodefesa da tabanca nova:
- Militarização de jovens voluntários.
Se ocorresse um ataque a CCaç 675, logo, acorreria em seu auxílio:

Nota: o tal “imaginado” ataque nunca aconteceu, porque… os nossos adversários nos respeitavam muito e não ousavam aproximar-se da “nossa casa”.
- Desenvolvimento social e cultural
- Conversas frequentes com os “homens-grandes”, à sombra do poilão – local sagrado dos mandingas – “ali ninguém poderia mentir”.
- Construímos:
- Um posto de socorros para o povo de Binta;
- Formámos enfermeiros para ali trabalhar;
- Nota: os casos mais intrincados “passavam” para a equipa médica da CCaç 675;
- Um parque infantil;
- Um jardim escola;
- Uma escola primária – aqui, mais de meia centena de crianças aprendiam a ler, escrever e contar, na “doce língua” de Camões, sob as ordens um “professor” que trouxemos de Farim, a “expensas” nossas; a miudagem entoava o Hino Nacional, diariamente, antes do início das aulas e, mais tarde, durante o hastear da Bandeira aos domingos e feriados. Foi uma enorme surpresa para todos nós, quando tal aconteceu pela primeira vez.
- Os jovens encarregados da auto-defesa prestavam honras à Bandeira… em dias determinados;
- Restaurámos uma boa parte das “moranças” da velha Binta; os nossos militares auxiliavam em tudo o que à construção e reconstrução dizia respeito; havia, porém, uma técnica para a qual não estavam preparados:
- Elaborar as coberturas das “moranças”, com capim; esta tarefa “pertencia” aos nativos.
- Construímos muitas moranças usando a construção em “tabuleiro de Xadrez”

Assim surgiu a “VILA TOMÉ PINTO!” A povoação era, agora, enorme – já não era a vulgar tabanca; ali, viviam em segurança quase total mais milhar e meio de pessoas.

Para produzir riqueza, aquele povo necessitava de sementes e também alimentos. Aqui, o nosso já célebre capitão “colocou em risco a sua já brilhante carreira”. Não conseguindo apoios de outras entidades decidiu contactar, diretamente, o senhor governador Geral da Guiné, General Arnaldo Schulz, que compreendeu as razões do excelso capitão e em breve enviou para Binta:
- Cinquenta toneladas de arroz para semear;
- Quarenta e cinco toneladas de arroz para alimentação:
- Cinquenta toneladas de amendoim para semear.

Além disso entregou “em mão” uma verba avultada para os primeiros encargos (aquisição de ferramentas e alimentos).

Em breve as mulheres de Binta produziam uma quantidade desmedida de produtos hortícolas que vendiam aos habitantes de Farim e também à tropa, ali sediada.

Quase diariamente, ao fim da tarde, um grupo de raparigas (bajudas) aparecia junto do comando da CCaç 675; sorrindo, dengosamente, solicitavam ao glorioso capitão que lhes facultasse transporte que as levasse a Farim. Meio mundo se admirava da quantidade de produtos da horta – especialmente tomates – que a cada dia, elas comercializavam, naquela vila.

Alguém encontrou a resposta:
“Em Farim, há uma enorme carência de… tomates!”

A sementeira foi grande! Lançaram à terra a totalidade das sementes fornecidas pelo governo e ainda cerca de duas toneladas de amendoim que o célebre capitão de Binta conseguiu, gratuitamente, em Farim: oferta da Ultramarina na pessoa do seu gerente, em Farim, o sr. Júlio Pereira.
A produção de amendoim e milho era tarefa dos homens; as mulheres tratavam do arroz e da horta.
A colheita foi volumosa! A tropa ajudou na arrecadação do produto, em local seguro, e no posterior transporte para o cais.

“A venda foi total!” aquele povo massacrado nunca recebeu tanto “patacão” (dinheiro) pela venda da “mancarra” (amendoim) porque, desta vez, eles receberam o valor total da mercadoria. Agora, como dantes, um kilo de amendoim 2$00 (dois escudos) mas, desta vez, eles recebiam o valor total da mercadoria não havia desvios como dantes!

O sábio capitão alertou o representante da Ultramarina, em Binta como segue:
- Tu não recebes “mancarra” de ninguém sem a presença de um oficial ou sargento; no acto do pagamento, as contas terão de “bater certo!” Entendeste?
Não houve desvios!

Por estas e por outras (que não cabem em espaço curto) aquele povo considerava o douto capitão de Binta como… “o pai de todos”. Estas foram as palavras de Júlio Pereira, o gerente da Ultramarina, em Farim, quando ofereceu o amendoim de que dispunha, para aumentar a área semeada.
Neste ambiente de crescimento, cultural, social e económico os nossos combatentes (os europeus) não foram esquecidos.

Pusemos a funcionar:
- As aulas regimentais.

A partir de agora – fins de 1964 – a CCaç 675 já não era uma companhia… nem sequer um batalhão! Era um regimento!
Na CCaç 675 havia:
- Dois analfabetos;
- Trinta e quatro militares tinham a terceira classe de adultos – era quase o mesmo que nada!
- Os analfabetos “aprenderam qualquer coisita” o suficiente para escrever cartas aos pais e aos amigos, orgulhando-se da sua aprendizagem. Alegavam que os pais não queriam acreditar que eles já eram capazes de escrever cartas.
- Trinta e duas praças fizeram, em Farim, o exame da quarta classe.

O alf. Tavares (o responsável pelas aulas) não levou um soldado a exame por não estar devidamente preparado e outro reprovou. Um bom resultado! O “inventor daquelas aulas regimentais” alegava perante os alunos:
- Este diploma poderá não ser muito importante na vossa vida (será bom sinal, se assim acontecer) mas poderá sempre ornamentar qualquer espaço da vossa casa ou poderá ser colocado, até, sobre o aparelho de TV. Mas podem dizer aos vossos filhos, aos netos e aos amigos:
- Para conseguir aquele diploma, trabalhei muito, tirando horas, ao meu descanso diário – de manhã, espingarda na mão, ia para o mato atormentar os adversários e enviá-los para fora do nosso terreno; à tarde, lápis na mão e livro sobraçado, ia ouvir atentamente, as palavras dos nossos ensinadores, os oficiais e os furriéis da CCaç 675.


Também neste campo a CCaç 675 foi gloriosa e única.

Temos um passado – comissão na Guiné – glorioso mas no após-guerra continuamos a ser diferentes… pela positiva.
Em 1967, fizemos a primeira confraternização! Reunimos sempre com os familiares. No 1.º almoço eramos 24 antigos combatentes; no ano seguinte, reunimos 23; no 3.º ano éramos apenas 17!
Sob orientação ativa do nosso emérito capitão, sempre presente e com a prestimosa ajuda do sold. cond. auto Padre Eterno e outros, chegamos a reunir mais de 170 pessoas.

Após a pausa do Covid, a máquina entrou de novo em movimento; passámos a fazer duas reuniões anuais: - uma a norte e outra a sul. As nossas já provectas idades a isso nos obrigam.

Temos vindo a colocar lápides, nas sepulturas nos nossos mortos: - nos que morreram na guerra (os três foram trasladados) e nos que morreram cá, na peluda.

Quando e onde é que isto vai parar?

Vamos aguardando, andando, e resistindo; agora… sem grandes acelerações!

Nota: Em 2023, fizemos, em Évora a nossa confraternização anual para o pessoal do sul; o nosso general e o alf. Tavares foram de véspera para acertar agulhas. À noite, foram jantar, de surpresa, a um restaurante que pertence ao nosso companheiro Orlando Amoreirinha, primeiro-cabo n.º 2144. Após o jantar e uma agradável conversa, o Tavares sugeriu:
- Amoreirinha! Eu já não conheço estas ruas e becos; além disso, “de noite, todos os gatos são pardos”. Pega lá no teu carro e indica-nos até à messe de oficiais.

Conversámos, ali, mais um pouco e o nosso general manifestou o seu contentamento alegando:
- Fiquei muito feliz por saber que tu singraste na vida! Tens ali o teu ganha-pão e o dos teus filhos! Resposta do Amoreirinha:
- O que consegui na vida, agradeço-o ao meu general e ao meu alferes porque me deram a oportunidade de estudar e ensinaram-me para poder fazer o exame da 4.ª classe; sem esse diploma não conseguiria chegar onde cheguei.

O “inventor” daquela escola e o “responsável pelo seu funcionamento” ficaram radiantes ao ouvir aquelas palavras dum antigo aluno da “Escola Regimental” da CCaç 675, em Binta. Sem meios… mas com coragem e a vontade dos alunos… conseguimos!
Teríamos de ser vencedores! E fomos!

Acontece que o Amoreirinha já era 1.º cabo (e era dos bons) quando entrou naquela escola mas… não tinha a 4.ª classe.
Também o 1.º cabo corneteiro nº. 2446, J. Sousa Cunha, fez a 4.ª classe, naquela Escola… uns tempos depois de ser cabo.

O ousado e insigne capitão de Binta pensou e determinou! Os seus subordinados… cumpriram! E de cara alegre! O resultado é, ainda, bem visível! Há de continuar! Ninguém o esquece! A CCaç 675 merece!

Belmiro Tavares
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Nota do editor

Vd. post de 24 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25441: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte III e última) (Belmiro Tavares)

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25441: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte III e última) (Belmiro Tavares)


CCAÇ 675
Guiné 1964 / 66
Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte III)

Belmiro Tavares

2023/24


O Nascimento era um trabalhador incansável! Inteligente, como era, sabia trabalhar sem usar a força… bruta. Sabia, devido à sua experiência de vida, cumprir ordens com o menor esforço possível; estava sempre em, todas!

O Nascimento, quer no serviço intramuros quer no mato, ocupava sempre o primeiro lugar na secção e… foi esse o princípio do seu fim. Mais uma vez, ele colocou-se, no topo da coluna e fez explodir uma mina antipessoal – provavelmente teria uma carga de trotil acoplada.

Recordemos como aconteceu o pavoroso acidente que vitimou, irremediavelmente, o Nascimento naquele dia aziago, dia de triste memória para todos nós.

Naquele tempo, o alf. Tavares encontrava-se em Bissau, na consulta externa de otorrino (otorrinolaringologia) do hospital Militar; os seus ouvidos não resistiram a tantas e tão agressivas intempéries, acompanhadas de violentos rebentamentos de explosivos vários. Por esse motivo, o alf. Mendonça comandou, naquele dia, o 3.º pelotão. Como devem lembrar-se, ainda em Bissau, o Mendonça ficou sem o seu “pelotão de acompanhamento”; as suas esquadras de morteiro, de “breda” e de LGF foram distribuídas pelos outros três grupos de combate.

Nesse dia, a patrulha destinava-se à região de Buborim, o limite oeste da nossa zona. Pouco depois de Banhima, o pessoal saiu para a margem esquerda da estrada, enfronhando-se, entre o capim espesso, alto e encharcado, devido à chuva intensa que caía desde alta madrugada. O Nascimento entrou num “trilho” que a nossa tropa abrira, uns dias antes. O normal (todos sabiam mas, na hora, escolhe-se, regra geral, o caminho mais fácil) seria abrir nova vereda mas, devido às dificuldades ambientais e à falta de experiência da chefia, escolheu-se o caminho menos complicado, na aparência, mas… errado e perigoso. Percorridos poucos metros, ouve-se a enorme explosão… duma “bomba” potente, um rebentamento descomunal. O enfermeiro, Pereira, 1.º cabo n.º 2515, natural de Entre-os-Rios (entretanto, já falecido), acorreu à cabeça da coluna (local da explosão) e deparou com um acidente horroroso – estendido no capim, o Nascimento tinha apenas um pé; o outro não mais foi avistado. O profissional da Enfermagem, cumpriu cabalmente, o seu dever: um garrote para estancar a perda de sangue; um penso para proteger a zona afetada e soro para reestabelecer a pressão da corrente sanguínea. Naquele local e com os meios disponíveis, nada mais poderia fazer para reverter a situação.

Devemos ter em devida conta que os nossos enfermeiros levavam sempre, a tiracolo, uma bolsa enorme cheia de medicamentos e similares para enfrentar as situações mais complicadas. A maior carga seria a elevada quantidade de frascos de soro – e quantas vezes nos fizeram um jeitão do caraças! À saída do aquartelamento, aquela bolsa pesaria uns vinte quilos… bem medidos.

Um dia, em data que não conseguimos confirmar, patrulhávamos a região de Sanjalo; a CCav 487, de Farim, andaria, ali perto, como havia sido acordado. Detetámos um acampamento e os seus ocupantes foram obrigados a dar corda às sandálias; fugiram em direção à estrada de Farim. Minutos mais tarde, ouvimos, mais a sul, um forte tiroteio. A 487 vinha, estrada fora e teve de pagar as favas.

Corremos em direção à dita estrada onde, segundo informação do PCA, havia um ferido grave. Quando nos encontrámos com a tropa de Farim, ficámos aturdidos com aquela confusão; ninguém conseguia gerir a situação. Além do mais, eles traziam poucos medicamentos. Os nossos enfermeiros entraram em ação e a barafunda acabou. Parecia que os nossos (os de Binta) eram os “velhos” e os 487 aparentavam ser “os periquitos”. Nós sabíamos que o BCav 490 tinha participado na tão badalada “guerra do Como” que terá sido algo extremamente complicado. Avante!

Voltemos ao tema do nosso caro Nascimento! Via rádio, foi logo pedida a evacuação dum ferido tipo Y (épsilon); tratava-se duma espécie de código que significava um “ferido muito” grave. O heli não aparecia; o homem do rádio insistia. Passado “longo tempo” (naquela azáfama, um minuto parecia uma eternidade) informaram da base aérea de Bissau que, devido ao mau tempo, o heli não podia sair – o risco seria enorme! Decidiu-se voltar ao aquartelamento (Binta), em alta velocidade (a velocidade possível, em tais estradas). A cor do rosto do Nascimento e o seu comportamento faziam prever o pior. Em Binta, o dr. Barata poderia fazer mais um dos seus preciosos milagres. Era a esperança, a tábua de salvação daquele pessoal atormentado.

Durante o percurso, um solavanco mais forte desequilibrou o soldado que segurava o frasco do soro e a agulha “desenfiou-se” da veia, deixando o sinistrado sem receber soro. Tentaram reintroduzir a agulha no local devido mas… tal não foi possível. Mais à frente, falaremos de “veias bailarinas”.

Os homens do Rádio continuavam a insistir, nervosamente, na evacuação dum ferido muito grave. Estes chamamentos aflitivos chegaram aos ouvidos do piloto, Honório; sabendo tratar-se da CCaç 675, voluntariamente, ele decidiu rumar a Binta, numa avioneta; fez voo rasante, ao longo da costa e depois sobre o Cacheu, aterrando, um pouco mais tarde, em Binta e em segurança. Levava consigo um mecânico. Porquê um mecânico e não um enfermeiro? Certamente terá pensado que, no meio daquele temporal, o mecânico poderia ser-lhe mais útil, ou seria o que tinha, ali, à mão. Por outro lado, ele sabia que em Binta havia um médico ótimo e enfermeiros muito bons.

Na pista de Bissau, uma ambulância aguardava a chegada do Honório com o sinistrado. Após a aterragem, a transferência foi rápida mas, logo, se aperceberam que o garrote vinha desapertado e o Nascimento perdia sangue. Reapertado o garrote, a ambulância seguiu, em velocidade, para o HM 241. Entrou na estrada principal e… o inacreditável aconteceu! Um pneu “explodiu”! O condutor correu, até à base e trouxe outra viatura.

Depois de tantos “trancos e solavancos”, o Nascimento veio a falecer, nas escadas de acesso ao HM – um azar do caraças.

Parecia que o Nascimento pressentiu que chegara ao seu dia fatídico. O enfermeiro, Oliveira, contou que, naquele dia o soldado Nascimento foi dos últimos a entrar na formatura, às primeiras horas daquele dia estuporado. Normalmente, ele era um dos primeiros a chegar. Pediu desculpa pela demora e justificou-se: - “Estive a arrumar a correspondência”. Coincidências estranhas, em dia de tanto azar!

Nesse dia, 30 de julho, o Tavares encontrava-se, em Bissau, e de nada sabia. À tarde, casualmente, encontrou o Honório, na baixa da cidade, e ele informou:
- Fui, hoje, a Binta! Trouxe um ferido que faleceu, já no hospital!
- Onde o recolheste?
- Em Binta!
- Sabes o nome do sinistrado?
- Nascimento!
- Que grande porra! É meu!

O Tavares “pegou” um táxi para o HM. Logo, à entrada, encontrou o enfermeiro, Martins, o Rato, de quem falámos no texto anterior. Ele encontrava-se, tremendamente, nervoso, mesmo exaltado! Ele perguntou:
- Sabe o que aconteceu, meu alferes?
- Sei! A vítima fatal foi o pobre do Nascimento!

O Rato praguejava por todos os poros e comentou:
- Eu safei vários em estado bem mais grave! Não sei como isto pode ter acontecido. Será bom que se averigue!

Seguido pelo Tavares, o Rato percorreu uns corredores, abriu uma porta, sacudiu, bruscamente, um lençol e… ali estava o Nascimento, estendido sobre um colchão… sem um pé mas, inacreditavelmente, estava defunto.

O Tavares procurou o médico de serviço a quem solicitou explicações. Ele declarou:
- Sei, apenas, que o soldado morreu, antes de entrar no hospital; se ele aguentasse mais uns segundos e entrasse na sala de operações, não morreria. Nada mais sei! Nada mais posso acrescentar!

O Tavares retorquiu:
- Ainda ontem, eu vi um alferes entrar neste hospital com as duas pernas cortadas por uma rajada, a nível dos joelhos e não morreu. Como é que este não resistiu… apenas com a falta de um pé?

Eis a resposta do médico:
- Algo terá corrido mal entre a hora do acidente e a chegada a este hospital. Sobre isso, nada posso adiantar, porque desconheço, em absoluto. Se pretender outros pormenores, o melhor será seguir o caminho em sentido inverso.

Entretanto, em Binta, logo pela manhã, o dr. Barata, o nosso bom Galeno e o Oliveira, contactaram o HM 241 para saber novas do Nascimento. Receberam, de chofre, a notícia mais brutal e inesperada:
- O Nascimento morreu!

Seguindo o conselho do médico do hospital, o Tavares socorreu-se do piloto Honório para saber outros pormenores. O Honório, um grande amigo e admirador da CCaç 675, averiguou com os telegrafistas da base aérea como tudo tinha acontecido:
- O “teto baixo” atrasou e impediu o socorro, apesar das insistências…

O Tavares interrompeu, perguntando:
- O que é isso de “teto baixo”?

Explicaram:
- São nuvens e/ou nevoeiro espesso, rente ao solo; com teto baixo, o heli não pode sair.

Ninguém ordenou que o Honório partisse para Binta, de avioneta, mas ele era arrojado e, sabendo que a CCaç 675 estava em dificuldades, saiu por sua conta e risco.

De seguida, o Honório solicitou a um médico, ali presente, que ajudasse a esclarecer como aquilo teria acontecido. O médico fez várias considerações (inconclusivas). Por fim perguntou:
- Sabe se fizeram o “desbridamento”?
- Não sei o que é isso! – respondeu o Tavares.
- Quando não se consegue apanhar a veia para introduzir soro na circulação sanguínea, faz-se o “desbridamento”, ou seja, corta-se a pele onde a veia está mais à superfície, “pega-se a veia à mão” e introduz-se nela a agulha do soro.

Acrescentou que, devido a uma perda anormal de sangue, as veias tornaram-se “bailarinas”. Isto significa que, nessa altura, as veias “desviam-se” de tudo o que é metálico, “temendo” perder mais sangue, colocando-se em causa a resistência humana.

Anos mais tarde, o Tavares falou de “veias bailarinas” e “desbridamento” com o nosso amigo Oliveira ele respondeu que ouviu esses vocábulos, pela primeira vez, aquando do ferimento do Nascimento.

Acrescentou que o dr. Barata se preparava para fazer o desbridamento quando o Honório aterrou em Binta. Logo desistiu (não iniciou a operação) porque não havia tempo a perder e porque a avioneta e o piloto podiam fazer falta noutro local. Naquela hora, o mais importante era a entrada do Nascimento no hospital, o mais rapidamente possível.

Durante esta conversa, o Oliveira, ainda informou:
- Quando o Nascimento chegou a Binta, a primeira coisa que fiz foi proceder à troca do garrote. Eu tinha comigo um garrote diferente dos nossos; era usado pelos fuzileiros; era mais seguro e menos doloroso do que os que nós usávamos.

O Tavares perguntou:
- Era possível que o tal garrote se desapertasse, por si só, durante o voo?

Um “não” categórico foi a resposta.

O certo, porém, é que o Nascimento chegou à base aérea com o garrote desapertado e, portanto, a perder algum do pouco sangue que lhe restaria.

Acontece que todos nós sabíamos que os garrotes deviam ser “aliviados” de quarenta em quarenta minutos, aproximadamente. Depreende-se que o Nascimento o terá desapertado e… não conseguiu reapertá-lo.

Fatal!

Entre nós e sobre este tema lamentável, não houve mais conversa! Assunto encerrado! Em boa verdade, nada nos traria o amigo Nascimento de volta! Porca miséria! Ironias do destino Acabado de narrar este caso de triste memória, vamos transmitir uma notícia também amarga: - o Fernando Marques da Silva, mais conhecido por “Dentinho” (ele exibia um dente de ouro) faleceu, recentemente. Vivia na região de Lisboa e esteve ligado aos “caminhos de ferro”. Foi a esposa que nos transmitiu esta notícia tão danada.

Podemos afirmar que aquela senhora, nossa conhecida de longa data, foi extraordinária, avisando-nos da morte do marido. É bom que os familiares dos nossos companheiros, que vão “partindo” cumpram esta espinhosa missão. Acreditem! O Tavares não adivinha o quer que seja – tem de ser avisado! Caso contrário… não há notícias para ninguém.

Por vezes, ele recebe estas novas, quando telefona a convidar um companheiro para mais uma confraternização. Não esqueçam de “ordenar” à família que deve comunicar estes acontecimentos, por mais tristes que sejam, ao Tavares. Ele avisará os restantes companheiros. Seria bom que não ocorressem tais factos. Durante anos, o Dentinho foi um participante assíduo das nossas confraternizações.
Inicialmente, ele era condutor mas, devido a um acidente, ainda em Bissau, passou a atirador.
Ele era o sold. Cond. auto 2575; passou a soldado atirador com o mesmo número.

Quando, no dia 5 de janeiro de 1965, levámos a cabo a célebre incursão na península e base de Sambuiá, já no regresso, a poucos metros da picada de Guidage, entre Cufeu e Ujeque, o Dentinho caiu desmaiado, no meio do capim, com um princípio de insolação, devido ao gigantesco esforço despendido, à hora de maior calor. Foi, na verdade, uma tarefa tremendamente exigente. O fur. mil. Oliveira tratou dele e, pouco depois estava como novo.

Neste mesmo dia e quase à mesma hora – estávamos ao fim da tarde -; o Firmino Padre Eterno, sold. Cond. auto. n.º 2775, ao volante da sua GMC, detetou uma mina anticarro, naquela picada. Por pouco, não a fez explodir! Seria um acidente gravíssimo, principalmente, porque uma semana antes – 28 de dezembro de 1964 – uma mina semelhante destruiu o unimog do Malveira (sold. Cond. auto n.º 2577, Virgílio Manuel Martins de Carvalho). Provocou a morte imediata do companheiro, fur. mil. inf. Álvaro Manuel Vilhena Mesquita, três feridos graves e quatro feridos menos graves. Seria, para nós, extremamente gravoso sofrer um novo acidente semelhante, em tão curto espaço de tempo. Psicologicamente, seria ruinoso para nós mas, pior que o fator psicológico, seria o real… que na verdade não aconteceu, porque… tínhamos ao nosso lado, ao volante da GMC o Padre Eterno.

Digam lá que não é bom ter um Padre Eterno… como amigo – é sempre uma muito boa ajuda!

O Padre Eterno conseguiu parar a GMC (ficando a mina entre as duas rodas da frente daquela viatura, velha p’ra caraças, tinha apenas travão de mão. O de pé tinha ido pró maneta).

O Firmino contou:
- Eu vinha a seguir as pegadas de uma vaca, na areia; de repente deixei de ver as marcas das patas do animal; vi o rasto dum pneu e parei. O nosso fur Pedra barafustou comigo e eu disse-lhe que estava ali uma mina. Ele meteu lá o pé e… quase virou calhau, quando viu aquela “bomba”.

Retirada a viatura do local, o nosso sempre presente capitão fez explodir aquela mina danada… sem perigo para ninguém.

De seguida, alguém que gosta de se rir e fazer rir os outros, disse ao Padre Eterno, o homem do dia:
- Tu vinhas a seguir as marcas das patas da vaca mas, o que tu tiveste foi… uma “vaca”… do caraças!

Assim terminamos a nossa tarefa de hoje. Será retomada se, antes do fim do ano, surgir outro assunto que mereça ser tratado.

Nota: retomamos a escrita porque, entretanto, soubemos que o 1.º cabo n.º 2133, Filipe Manuel Ferreira dos Santos, do 3.º pelotão faleceu em 2015. A informação foi prestada pelo companheiro Ataíde (o do morteiro) que foi (quase) o dono da CP. Ele conhecia um cunhado do Filipe Santos que lhe deu a triste nova. Dessa vez a esposa “esqueceu-se” de nos avisar. O Filipe trabalhou na Lisnave mas, há anos, foi vítima de um AVC e ficou debilitado… para o resto da sua vida. Assim, perdemos mais um elemento de grande qualidade. Aquando do ferimento do 2.º sarg. Gouveia Marques, em Caurbá, o Santos passou a comandar a 1.ª secção; fê-lo com brilhantismo até à chegada do fur. mil. Andrade. Fazia uma boa equipa com o 1.º cabo João Moura, n.º 2137.

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Nota do editor:

Posts anteriores de:

22 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25425: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte I) (Belmiro Tavares)
e
23 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25431: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte II) (Belmiro Tavares)

terça-feira, 23 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25431: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte II) (Belmiro Tavares)


CCAÇ 675
Guiné 1964 / 66
Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte II)

Belmiro Tavares

2023/24


Na época em que procurávamos cativar os guineenses que viviam na miséria mais execranda, no Senegal e convencê-los a instalar-se em segurança quase total, em Binta, o chefe da ex-tabanca de Ujeque informou que, quase em frente à sua tabanca e perto de Guidage, havia um acampamento de pessoal não combatente – não tinham armas em sua posse.

O 3.º pelotão da CCaç 675, o do alf. Tavares, foi enviado àquela zona para encontrar e desativar o tal acampamento. O 3.º GComb seguiu, em viaturas, até Ujeque; ali, o pessoal apeou-se os veículos rumaram a Guidage onde permaneceriam até serem chamados.

O pessoal do 3.º pelotão, logo, se embrenhou no capim e, em breve, avistou um jovem encarrapitado num morro de bagabaga; seria um sentinela afastado. O 3.º pelotão aproximou-se, cautelosamente, do sentinela; quando já não era possível acercar-se do vigia sem serem vistos, o Tavares ordenou ao guia, Malan, que o convidasse a vir até nós. Houve troca de palavras entre os dois; logo, nas calmas, o sentinela desceu do morro e… seguiu, sem correrias, em direção ao acampamento. Um soldado perguntou ao seu alferes:
- Atiro?
- Não! – respondeu o alferes
- Ele vai avisar os outros!
- Tanto melhor! Eles debandam e não há mortos! É melhor assim!

Em breve chegámos ao acampamento… já despovoado. Havia ali panelas ao lume (faltavam toalhas e talheres nas mesas… que não vimos); o pessoal havia debandado, em segurança.

Retirámos todos os seus pertences das barracas e colocámo-los onde as chamas não chegariam. O acampamento foi destruído – não queríamos intrusos no nosso território! Mais tarde, eles voltariam ao local para recolher os seus bens não danificados.

Os nossos carregadores (milícias) vieram de mãos a abanar. Não houve pilhagem! O mais importante aconteceu: não houve mortos e aquelas pessoas não perderam os seus parcos pertences. Uns tempos mais tarde, aquele pessoal rumou a Binta, onde se instalou para iniciar uma nova vida, sob a proteção da nossa tropa – encontraram, ali, a sua “terra prometida”.

Conclusão: uma guerra sem mortos será quase inconcebível mas aconteceu, naquele mísero acampamento, entre Ujeque e a fronteira do Senegal. Há dias de sorte!

Em sentido contrário, vamos contar um caso miserável, aberrante, que ocorreu já perto de Buborim numa das primeiras vezes, em que nos aproximámos do limite oeste da nossa zona. A claridade matinal já inundava, afavelmente, a floresta densa. O silêncio era quase total! Três pelotões seguiam, paulatinamente, quase sem ruídos, rumo ao limite oeste da nossa zona. Eis que os soldados da frente avistam três homens (pessoal desarmado) que, despreocupadamente, caminhavam, estrada fora, em nossa direção. Iriam procurar fruta e hortaliça que iam crescendo nas aldeias abandonadas. Os soldados da cabeça da coluna ocultam-se entre o capim. Alguém (crê-se que apenas um combatente) dispara cruelmente: um morreu logo, outro ficou gravemente ferido e o terceiro (cremos que ileso) conseguiu fugir daquele local azarento. Alguém desobedeceu, estupidamente, às ordens do nosso benigno capitão.

O fur. mil, Oliveira, começou a tratar, desveladamente, o ferido, embora o seu estado aparentasse ser muito grave.

O nosso afoito capitão estava inconsolável! Não dizemos de “cabeça perdida” porque tal nunca aconteceu! Pior ficou quando ouviu o ferido clamar, repetidamente:
- “Quero falar com o capitão!”

Pouco depois, o nativo entregou a alma a Allah!
Nós não sabemos, com certeza, quem foi o autor dos disparos… já não interessa!

No texto anterior, falámos de uma figura catita da CCaç 675; desta vez, vamos falar de outra ou outras personagens com certo carisma e que nos acompanharam na Guiné durante dois anos muito longos – ponham longo nisso! Não há regras para tal escolha mas falaremos de muitos, certamente. Não interessa a ordem. O próximo caso será aquele a quem o fur. mil. enf. Oliveira, já falecido, também, apelidou de “homem tranquilo”. Este epíteto assentava-lhe que nem uma luva! Como devem calcular, trata-se do soldado n.º 2326, Jerónimo Justo (o seu nome completo) que pertenceu ao pelotão do nosso caríssimo amigo, alf. Santos. Era um soldado extremamente calmo, educado e bem-falante. Colocava as palavras com rara precisão. Faleceu há uns anos mas os filhos (Natália e José Luis) passaram a acompanhar-nos. Em 2022, o filho, José Luis a sua esposa, Maria de Lurdes e o filho, Tiago estiveram connosco em Famalicão e em Évora.

Devido à ausência forçada da nossa cobradora habitual, Maria Luisa Figueiredo, a nora do soldado Justo acompanhou o Tavares na cobrança e cumpriu cabalmente a sua missão. Até parecia, já, um velho elemento da CCaç 675; afinal era a primeira vez que ela se via entre a nossa rapaziada. Em setembro de 2023, repetiu a dose – agora é já um elo inquebrantável da CCaç 675.

Em 2023, a filha do soldado Justo, Natália (agora Cardoso) compareceu em Santo Tirso; trouxe o filho, Ruben e a sua namorada, futura neta do nosso companheiro. O Ruben é um “velho” conhecido. Quando o vimos pela primeira vez, ele teria quatro anos; era o companheiro do avô, já acamado. Hoje, abeira-se dos trinta e trouxe a namorada, Denise – é a mais nova aquisição da CCaç 675. Foi “obrigada” a prometer que não mais faltará às nossas confraternizações. Nós não pagamos trespasses nem ordenados chorudos! Isso acontece no futebol! Nós queremos dar e receber amor, fraternidade, amizade pura e camaradagem: estas são as nossas moedas.

Voltemos ao soldado, Justo. Cerca de um ano, após a sua morte nos ter sido anunciada – obra de um companheiro que vive na zona de Gondomar, sold. at. n.º 412, Manuel Cardoso – fomos (o Oliveira, o Moreira e o Tavares) colocar a lápide na sua sepultura, no cemitério de Gondomar. Após várias tentativas falhadas para encontrar o seu sepulcro (o cemitério era grande e disforme e uma parte encontrava-se em obra de ampliação) pedimos ajuda a um coveiro, ali presente. A sepultura do Justo estava, ali, ao lado. Ficámos aturdidos! Totalmente desconcertados! Se tivéssemos ido colocar a lápide, logo que soubemos do desenlace, tê-la-íamos entregado ao próprio… ainda vivo. O Justo tinha sido sepultado, precisamente uma semana antes da nossa ida ao cemitério. Nunca soubemos como aconteceu tal engano. Agora não interessa. Já lá vão tantos anos e… o crime (?) já prescreveu.

Estávamos os três companheiros a conversar com o coveiro, quando este anunciou que a viúva do Justo se aproximava, trazendo um braçado de flores frescas para substituir as que lá colocara na véspera.

Segundo o coveiro, ela ia, lá, diariamente. Perante esta informação, o Tavares dirigiu-se à senhora, anunciando-se. Ela ficou enormemente surpreendida por ter, à sua frente, os velhos amigos do seu marido. Ela comentou, textualmente:
- Recordo, perfeitamente, o seu nome. Quando o senhor telefonava ao meu marido, eu atendia e passava-lhe o telefone. Quando isto acontecia, ele ficava tão contente! As suas cartas eram o maior tesouro dele; ele guardava-as religiosamente, em memória dele, eu guardo-as todas com muito carinho.

Anos volvidos, a viúva do Justo acompanhada por toda a família, encontrou-se connosco, num restaurante, em Santo Tirso, onde realizámos mais uma confraternização com as gentes do norte. O fur. enf., Oliveira esteve presente, também. Esta “mini” foi organizada pelo companheiro Mário Pinto que não se poupou a esforços e nada falhou. Antes do repasto, o Tavares ligou ao nosso general, anunciando que “a ala norte da CCaç 675 está reunida”. O telefone passou de mão em mão e todos falaram com o nosso magnífico comandante.

Já é tempo de falarmos mais um pouco do nosso amigo e companheiro, Jerónimo Justo – antes que seja demasiado tarde.

Ele era, sem sombra de dúvida, o militar mais calmo da companhia; era também um dos mais cumpridores, apenas… porque sim. Nunca foi visto exaltado com quem quer que seja; qualquer desaguisado que, porventura surgisse, era resolvido no diálogo e sem qualquer irritação. A sua voz muito gutural nunca subia de tom. Não era necessário impor-lhe nada, porque ele, sabendo o que deveria ser feito, dedicava-se de alma e coração a qualquer tarefa a que o serviço obrigasse e levava os companheiros na sua cola. Para ele, o serviço era sempre “coisa séria” e ele cumpria a contento. Quer no aquartelamento quer em pleno mato ele dava nas vistas pela sua calma e serenidade. Como lhe assentava bem o epíteto “homem tranquilo” que o nosso dileto amigo fur. mil. Oliveira, (era também o nosso cronista-mor) lhe atribuiu.

A sua roupa andava sempre impecável! Ou ele tinha um ferro de engomar sabia usá-lo ou Malan Turé tratava melhor da roupa do Justo do que da dos outros. Era exemplarmente cuidadoso e apresentava-se sempre devidamente fardado.

Mesmo em pleno mato, onde podíamos ser surpreendidos com tiros, a qualquer momento, se o Justo necessitava limpar o nariz ou o suor do rosto, ele não tinha pressa: desdobrava “tranquilamente” o lenço, limpava o nariz ou o rosto sem o amarrotar; logo, o dobrava, impecavelmente, antes de o introduzir no bolso. Era caso único! Enquanto procedia a tais tarefas se, algum dia, ouviu tiros, cremos que ele não deixaria de dobrar, devidamente, o seu lenço antes de o reintroduzir no bolso; depois, responderia ao fogo dos adversários, se fosse necessário. Era quase inacreditável mas era mesmo assim!

Se se encontrava no aquartelamento, meia-hora antes do almoço ou do jantar, o Justo iniciava a lavagem cuidada da sua marmita; depois da refeição, ele procedia a nova à lavagem da mesma, que era o seu prato de todos os dias. Poderíamos dizer que era a sua imagem de marca! Nunca mudou o seu comportamento, durante aqueles dois longos anos, desde maio de 1964 a fins de abril de 1966. Foram longos para caramba! Mas ele não alterou em nada a sua maneira de ser!

Para amenizar o ambiente pesadíssimo em que vivíamos, o nosso pessoal, nos intervalos da guerra, arranjava maneira de se divertir e fazer rir os companheiros. Outras vezes, inventavam artimanhas para poupar dinheiro que, naqueles tempos, era tremendamente caro e era sempre pouco.

Aproveitamos para lembrar que, na Guiné um soldado ganhava cerca de 2.500$00 mensais; como podia deixar à família, até 60% daquele montante recebia, lá, cerca de “900 pesos” (peso era o escudo da Guiné). Este montante não era fixo; variava de acordo com o número de dias de cada mês. Um soldado ganhava mais em janeiro que em abril; para ele, o pior mês do ano era fevereiro.

Um dia falei disto com uns adolescentes. Um deles, mais perspicaz, argumentou, com certa razão e alguma ironia:
- Se bem percebi, um soldado ia para a guerra, arriscava a vida, durante 24 horas por dia e recebia, mensalmente, algo como €4.50 (quatro euros e cinquenta cêntimos).
- É verdade! Respondemos: Mas tinha cama, mesa e roupa lavada (se a lavasse), uma espingarda para se defender ou atacar os adversários e não pagava as munições que gastava; o bilhete para viajar nas viaturas militares com assentos de ripas… duras para caramba… era gratuito.
- Mesmo assim, era uma barbaridade! Se, como disse, uma cerveja custava dez escudos, se o soldado bebesse uma mísera cerveja por dia, gastava quase a totalidade do salário. E o resto? Ele teria outras necessidades!
- É verdade! Mas, antes de mais, não deves falar em “mísera cerveja”, pois tratava-se de uma garrafa de 0.70 ctl (70 centilitros) era o dobro da capacidade das de cá; por outro lado, com novecentos escudos, um soldado podia comprar trezentos maços de tabaco de qualidade acima da média. Hoje, com €4.50, tu podes comprar apenas um maço, se… não abusares na qualidade.

Podemos concluir, brincando, que Salazar não pagava tão mal quanto parece mas… enviou-nos para aquela guerra miserável de má memória. Fomos enviados para a Guiné! Este era, de longe, o pior destino. - Divertindo-nos mais um pouco. A guerra serviu, acima de tudo, para “desemburrar” os nossos jovens, principalmente, os que nasceram na província profunda, lá, onde Judas poderia perder as botas se por lá passasse, algum dia. Naquele tempo – dizia-se – “o país vivia fechado, isolado da civilização”; a maioria dos mancebos ia à tropa mas, regra geral, quedava-se, num dos quarteis do distrito.

Recordo um conterrâneo (uns quinze anos mais velho que eu) que assentou praça em Abrantes. Que absurdo! Foi parar ao fim do mundo! Durante meses, todas as mães daquela aldeia reuniam-se, à tarde, em casa da mãe daquele azarado magala e rezavam para que ele voltasse, em breve, são e salvo; consideravam que Abrantes ficaria “sete cabos de machado” para além do inferno que, só por si, já ficaria incrivelmente afastado do mundo.

Normalmente, os jovens casavam na aldeia, onde nasciam ou num qualquer lugarejo vizinho. A guerra “libertou-os”! Depois do regresso, muitos emigravam – a França era o destino da maioria. No entanto, cremos que não deveria ser necessário “inventar” uma guerra ou responder a quem a criou para abrir os olhos aos jovens.

Nós, os componentes da CCaç 675, aos quais, por sorteio, coube um capitão como não havia outro, conseguimos criar uma família com 160 elementos “dantes quebrar que torcer”, amigos de todas as horas e muito mais do que isso. Se não tivéssemos ido à guerra e, se não pertencêssemos à CCaç 675, não estaríamos, hoje, aqui, a confraternizar e honrar os nossos mortos. No entanto, será aconselhável esquecer as coisas más da vida, preservando o lado bom porque… tristezas não pagam dívidas!

Depois de tanto divagar, voltemos ao nosso tema: - os ardis dos nossos rapazes para economizar uns magros cinquenta escudos por mês e a dividir por dois, não podem ser lançados à feras.

Dois dos nossos companheiros engendraram um estratagema para poupar uns “pesos” na lavagem da roupa. Marcaram a roupa de um com uma linha e apenas um enviava a roupa dos dois para a lavadeira. Tudo correu como esperado, durante algum tempo mas, eis que a lavadeira descobre a marosca, talvez porque a roupa marcada seria de tamanho diferente da outra ou porque este militar enviava para a lavadeira mais roupa que qualquer outro. A “negrinha” (lavadeira) não era tão inexperiente como eles pensavam. Os dois bons malandros começaram a pagar cinquenta escudos cada um, como os outros, e não apenas 25$00. E há quem diga que a lavadeira “não tem esperto nos cabeça!”. Tiveram sorte porque ela não sabia, ainda, o que eram retroativos. Os “engenhocas” nem sempre são bem sucedidos.

Quem foram os espertalhões? Podem acusar-se porque não será aplicada qualquer punição. O caso há muito, já prescreveu mas teve a sua graça. Esta quase anedota “viveu”, na clandestinidade, durante mais de cinquenta anos, mas… agora, encontrou a luz do dia. Iniciou uma nova vida! Avante, valentes da Gloriosa CCaç 675!

Mudando um pouco o azimute… lembram-se do soldado n.º 2169, João Nunes do Nascimento, do 3.º pelotão? Que foi o nosso último morto em combate. Pois bem! Lá, na sua aldeia, natal, Sarzedas, às barbas de Castelo Branco, a junta de freguesia decidiu prestar uma singela mas honrosa e merecida homenagem ao jovem herói da terra, morto em combate, em defesa da Pátria, na Guiné, no dia 30 de julho de 1965. Faltavam quase nove meses para o fim da nossa comissão! O que aconteceu era impensável, naquela época. Ninguém imaginaria que tal coisa, ou algo semelhante, pudesse acontecer-nos! Mas a vida é feita de surpresas!

Lá, no meio da aldeia, existe um pequeno largo e a Junta decidiu dar a essa “praça” o nome do nosso companheiro e amigo. Alguém terá alvitrado que o tal largo seria demasiado pequeno para perpetuar a memória dum jovem que, sem regatear, deu a vida pela Pátria.

À margem daquela praça, havia uma casa que pertencera aos pais do Nascimento. Os irmãos do nosso companheiro decidiram doar o imóvel à Junta para que a praça pudesse ser alargada, adquirindo, assim, uma maior dimensão e uma aparência mais significativa. Os herdeiros prestaram assim uma significativa homenagem ao irmão, João, o nosso companheiro. É louvável a atitude dos irmãos, principalmente, porque, na província, as pessoas são muito ciosas dos seus bens, particularmente, dos que herdaram dos seus maiores. Neste caso, os irmãos esqueceram a parte material, dando prioridade ao espiritual.

Cabe aqui lembrar (ou informar) que os pais do Nascimento, na companhia de uma filha, tomaram parte em duas das primeiras cinco reuniões que tiveram lugar em Lisboa – missa na Igreja da Luz e almoço, no restaurante Ferro de Engomar, na estrada de Benfica. Pediram desculpa e deixaram de comparecer, devido à sua idade já avançada e… às dificuldades de transporte.

Anos mais tarde, a mesma irmã, o marido e outro irmão do Nascimento tomaram parte em várias reuniões – a última das quais, em Aveiro, de triste memória pela maneira como fomos, ali, tratados e… estávamos num quartel de paraquedistas! Enorme bronca! Hoje, a irmã do Nascimento vive num asilo e o irmão já faleceu. A lápide, em memória do Nascimento foi colocada na sua sepultura pela irmã (de quem falámos) na companhia do Santo Marques, o apontador de morteiro, ferido em Caurbá e do Tavares. Certamente, esta nossa atitude terá despoletado a decisão da Junta… ou talvez não…

Sabemos que as obras de alargamento e remodelação estão em andamento mas são obras públicas e, nas pequenas freguesias do interior o dinheiro não abunda; por vezes surgem obras mais ou menos prementes e tudo se complica. Convenhamos que, em nosso modesto entendimento, a homenagem a um herói da Pátria não deveria – não poderia, em acaso algum, ser relegada para segundo plano. No entanto, sabemos que, nos tempos que correm, tudo pode acontecer. Basta mudar a cor política dos membros da junta. As justificações inócuas e um tanto estapafúrdias surgem fora de tempo e… o carro não se move. Aguardemos por melhores dias!

Falemos um pouco sobre este nosso companheiro. Como sabem, era natural de Casal das Águas de Verão um nome claramente bucólico – freguesia de Sarzedas. Um outro companheiro, o soldado n.º 2179, Francisco Lopes Mendes, chamava-lhe “Sarrazedas” – eram bons amigos e, lá na santa terrinha eram quase vizinhos; pelo menos agiam como tal. Creio que já se conheciam antes da tropa.

O Nascimento era frontal mas respeitador e educado. Estava sempre disponível para qualquer serviço dentro ou fora do aquartelamento.

Um dia o alf. Tavares “teve” de ir para o mato, comandando o 1.º pelotão, o do alferes Costa, durante uma patrulha, lá para bandas de Sanjalo, quando o alf. Foitinho comandava a CCaç 675, devido ao ferimento gravíssimo do nosso mui ilustre capitão. Enquanto deglutia uns goles de café, o Tavares transmitiu ao Costa:
- Logo, à hora determinada, tu sais com o meu pelotão para nos recolher, junto à ponte sobre o rio Caur. Tal como não quero que o teu grupo saia sem um oficial, também não gosto que tal aconteça com o meu!

O alf. Costa respondeu que, à hora prevista, já estaria melhor e, de qualquer modo, sairia com o 3.º pelotão. Assim aconteceu.

O alf. Tavares recorda que o pessoal do 1.º pelotão se comportou, naquele dia, como gente adulta; parecia que já tinham andado, longos tempos sob as ordens do Tavares. Este alferes afirma que os seus subordinados, olhando para ele e pelo movimento dos lábios e dos olhos, entendiam o que ele pretendia que se fizesse. Com os soldados do 1.º pelotão, tal não poderia acontecer, pois era a 1.ª vez que atuavam sob o seu comando. No entanto, todos se comportaram como deviam e como o Tavares pretendia… não houve falhas! A boa vontade supriu a habituação. Faltava esta nota de agradecimentos aos militares do 1.º pelotão, pelo seu comportamento exemplar, naquele dia… e não só!

Mais ou menos à hora pré-determinada, os nossos três grupos de combate encontravam-se junto à ponte atrás citada, na margem esquerda do rio. Logo, o Tavares transmitiu ao Costa, como segue:
- Toma conta dos teus soldados; eu vou juntar-me ao meus.

O Tavares subiu para uma das viaturas e, logo, o Nascimento se colocou em sentido; disciplinada e educadamente, perguntou:
- Meu alferes! Dá licença?
- Sim! - Respondeu o Tavares.

Ele começou:
- Nós temos um alferes para sair connosco para o mato! Não queremos ser comandados por outro, a não ser que o senhor, por qualquer motivo válido, esteja impedido de o fazer. Se tal voltar a acontecer, certamente, nós não sairemos para o mato com outro oficial e… seja o que Deus quiser!

O Tavares argumentou:
- Hoje, antes da saída, aconteceram coisas muito desagradáveis! Não houve tempo para vos avisar e, mesmo assim, saímos com mais de meia hora de atraso. Isto, como sabem, é sempre perigoso, porque pode comprometer a segurança do grupo.

O Nascimento pretendeu desabafar (algo estava atravessado na sua garganta) e voltou à carga:
- O nosso alf. Costa não estava em condições de ir para o mato, a comandar os seus soldados mas teve condições para passar o resto da noite e manhã a agredir os dois subordinados que apenas fizeram o mesmo que ele. Isso é que nos fez sair do sério! Conduziu-nos a esta situação muito desagradável.

O Figueiras, um algarvio ciclista, sold. Nº 2033, entrou na conversa, alegando:
- Já cá não está quem falou! Está tudo devidamente esclarecido! Creio que devemos encerrar este assunto! Se possível, devemos esquecê-lo!

Em boa verdade, aquele tema passou à história, excepto, o que aconteceu, umas horas mais tarde.

(continua)

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Nota do editor

Vd. post anterior de 22 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25425: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte I) (Belmiro Tavares)