© Luís Graça (2005)
Estrada de Bambadinca-Mansambo. Eu e o Dalot, o Diniz G. Dalot, seguramente o melhor condutor de GMC que eu alguma vez conheci (!). Berliet e GMC nas mãos dele, carregadas de sacos de arroz (bianda), não ficavam atoladas na famosa estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole, a menos que rebentassem debaixo de uma mina. Eu dizia que era preciso ser maluco para conduzir uma GMC. Ele ofendia-se: era o mais profissional dos nossos condutores auto. (vd. também post de 20 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXII: O inferno das colunas logísticas na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho).
1. Há dias de sorte: na vida, na guerra, no jogo, no amor… Recordo-me bem desta operação logística, abaixo descrita, em que perdemos uma heróica GMC do tempo da guerra da Coreia (daquelas que gastavam 100 aos 100, lembram-se ?).
O Dalot adorava conduzi-las. Ninguém melhor do que ele para livrar uma GMC de cair na cratera de uma mina coberta de água da chuva ou de atolar-se na berma da estrada… Ninguém melhor do que ele para conduzir este mamute de ferro, carregado com três toneladas de sacos de arroz… Ninguém melhor do que ele, enfim, para desatascar outras viaturas, civis ou militares… Só não tinha faro para as minas, que isso era tarefa dos picadores. Aliás, na galeria dos heróis desta guerra (há sempre heróis em todas as guerras), eu poria também as GMC, os condutores das GMC e os picadores…
O que aconteceu exactamente nesse já longíquo dia 18 de Setembro de 1969 ? Tínhamos saído, na véspera, de Bambadinca, de manhã muito cedo, como de costume, para fugir ao inferno do calor e da humidade do dia. Estava-se em plena época das chuvas. Era um enorme coluna de viaturas militares carregadas de material para três companhias, unidades de quadrícula, em Mansambo (CART 2339), Xitole (CART 2413) e Saltinho (CAÇ 2406).
Ao todo viviam nestas unidades e seus destacamentos cerca de meio milhar de homens, fora a população local que dependia inteiramente dos abastecimentos feitos pela tropa. Nós levávamos-lhes praticamente tudo, até o correio: o gasóleo (para as viaturas e o gerador eléctrico), o petróleo (para os frigoríficos), o arroz, a massa, o feijão, a carne, o bacalhau, as batatas, as bebidas em garrafa e em lata, e os demais mantimentos para um mês ou um mês e meio. Além dos cunhetes de munições, as granadas de morteiro, bazuca e obus, etc.
Um dia seria interessante publicar a lista completa dos artigos e as respectivas quantidades que faziam parte dos nossos comboios de reabastecimento. Na galeria dos heróis desta guerra também estão os que alimentavam o nosso ventre insaciável , os homens da manutenção militar e os que faziam chegar os mantimentos, desde Bissau em LDG até ao Xime (no caso da Zona Leste) e depois daí em colunas até às sedes de sector ou comando operacional (Bambadinca, Bafatá, Nova Lamego…). Era um comboio com várias dezenas de viaturas. As Berliet e as GMC (e, mais tarde, as camionetas civis) transportavam a carga, mas o condutor levava sempre escolta, uma secção ou menos.
Para se chegar a qualquer uma das unidades acima referidas não havia mais nenhuma alternativa (terrestre). A estrada de Galomaro-Saltinho estava interdita, pelo que as NT ali colocadas dependiam do abastecimento feito a partir de Bambadinca. No entanto, a própria estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole estivera interdita entre Novembro de 1968 e Agosto de 1969. O Op Belo Dia, a 4 de Agosto, já aqui sumariamente descrita (vd. post de 30 de Julho de 1969 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas ) destinou-se justamente a reabrir esse troço fundamental para as ligações do comando do sector L1 com as suas unidades a sul. Um mês e tal depois fez-se uma segunda operação para novo reabastecimento, patrulhamento ofensivo e reconhecimento .
2. São as peripécias dessa operação (Op Belo Dia II) que se relatam aqui. Mas ainda a propósito de meios de transporte, convirá referir que só Bambadinca possuía uma pista, com cerca de 150 metros, permitindo a aterragem de aeronaves como a Dornier. No meu tempo o sargento piloto Honório, caboverdiano, era uma figura muito popular entre as NT, por que nos trazia o correio e alguns víveres. A sua fama era lendária, pela sua coragem e destreza. Era capaz de aterrar numa nesga de terra. Em Mansambo só havia heliporto. No Xitole, também havia pista para avionetas.
De qualquer modo, o helicóptero só era usado para fins estritamente militares: apoio de helicanhão, transporte de tropas especiais e heli-assaltos, evacuações Y para o hospital militar de Bissau. Argumentava-se que o helicóptero era um luxo, custando 15 contos por hora (o ordenado mensal de dois alferes)…
Em contrapartida, as colunas de abastecimento da guerrilha e das suas populações eran feitas por carregadores, a pé, descalços, em bicha de pirilau, incluindo mulheres e até crianças e muitas vezes sem escolta militar, correndo o risco de serem interceptados pelas NT, como acontecia com alguma frequência na região de Missirá, a norte do Rio Geba (vd. relato do que se passou em Chicri, a 12 de Setembro de 1969: muitas vezes as NT não faziam a distinção entre combatentes, armados, e elementos civis da população controlada pelo PAIGC que servia de carregadores; neste caso, levavam artigos comprados nas nossas barbas, em Bambadinca, onde só havia duas lojas, nas mãos de tugas, a loja do Rendeiro e a loja do Zé Maria)…
Porquê falar em sorte ? É que eu ia justamente à frente da viatura que accionou a mina, justamente do lado do pendura, com uma perna de fora… À turista, como quem vai num alegre e matinal safari algures num parque no Quénia… A pouco e pouco, o periquito ia ganhando confiança… Com três meses e meio de Guiné, e baptismo de fogo ainda muito recente (na Op Pato Real, a 7 de Setembro, na região do Xime, Ponta do Inglês: vd a propósito o post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) considerava-me já quase um veterano…
Recordo-me da viatura: um Unimog 404… Apesar da relativa tranquilidade que nos davam a experiente equipa de 12 picadores que iam à nossa frente com dois grupos de combate apeados, eu tinha recomendado ao condutor do Unimog que seguisse milimetricamente o rodado da viatura da frente… Um desvio de um milímetro podia ser fatal para o artista… O Dalot, que ia a atrás de mim, levava um bicho que tinha dez rodas, dois rodados duplos atrás, várias toneladas de ferro, mais três de arroz… Daquela vez vez foi ele e a sua GMC que voaram… Eu fiquei para a próxima, já lá mais para o fim da comissão..
A estrada (se é que se podia chamar estrada aquilo!), invadida pela floresta, as bolanhas e os afluentes de diversos risos, era mais estreita que as viaturas em certos pontos… Uma delícia para os sapadores do PAIGC, um quebra-cabeça para os nossos picadores, um stresse desgraçado para aqueles de nós que faziam guarda de flancos… Em suma, gastávamos uma boa parte da nossa energia mensal a abastecer-nos uns aos outros em vez de fazer a guerra ao IN…
(3) Setembro/69 (II Parte): Uma GMC destruída por uma mina anticarro
Fonte: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: CCAÇ 12. Cap. II. 13-16.
Na segunda quinzena de Setembro realizar-se-ia outra operação a nível de batalhão afim de escoltar uma coluna logística do BCAÇ 2852 para as companhias de Xitole e Saltinho (Op Belo Dia II).
Dois Gr Comb [Grupos de Combate] da CCAÇ 12 (2º e 3º), um da CART 2339 [Mansambo] e o Pel Caç Nat 53 (que seguiria depois com o Dest B para o Saltinho) formavam o Dest [Destacamento] A cuja missão, além da picagem do itinerário, era escoltar a coluna até ao limite da ZA Zona de Acção da CART 2339 [Mansambo] onde se efectuaria o transbordo da carga para outra coluna da CART 2413 [Xitole].
Desenrolar da acção:
A coluna que chegou a Mansambo às 17.30 do dia 17 [de Setembro], proveniente de Bambadinca, prosseguiria no dia seguinte, tendo-se processado sem incidentes de maior até à ponte do Rio Jago, a cerca de 3 km do aquartelamento de Mansambo, altura em que se fez um alto para recompor a carga da viatura que seguia em 3º lugar.
Ao retomar-se a marcha, o rodado intermédio direito da GMC (MG-17-21) que vinha imediatamente a seguir àquela, e que pertencia à CCAÇ 12, accionou uma mina A/C (anticarro) reforçada, tendo-se voltado espectacularmente. A viatura ficou muito danificada, tendo-se inutilizado parte da sua carga de 3.000 kg de arroz. Em virtude de ter sido projectado, ficou gravemente ferido um cabo do Pel Caça Nat 53 (1). O condutor (soldado Dalot) saiu ileso.
A mina não fora detectada pela equipa de 12 picadores, seguida de 2 Gr Comb que progrediam na frente.
Alguns quilómetros à frente, junto à ponte do Rio Bissari foram detectadas e levantadas mais 3 minas (A/P) que deveriam fazer parte do campo de minas implantado pelo IN posteriormente à Op Belo Dia I, e das quais 7 já sido levantadas até então.
Pelas 13h [do dia 18 de Setembro] deu-se finalmente o encontro dos 2 Dest, tendo-se procedido ao transbordo da carga.
No regresso a coluna foi sobrevoada várias vezes por uma parelha de FIAT (2) cujo apoio estava previsto na ordem de operações. Mansambo foi atingido pelas 17 h, depois de se ter armadilhado a viatura cuja remoção se verificou ser impossível com os meios disponíveis na ocasião (3).
O IN também se manifestaria no [regulado do ] Cuor, flagelando duas vezes Missirá e atacando Finete, um destacamento de milícia situado a 3 km a NW de Bambadinca, do outro lado do Rio Geba. O ataque, efectuado ao anoitecer do dia 20 por um bigrupo, durou cerca de uma hora, obrigando o 2º Gr Comb da CCAÇ 12 a intervir em socorro do destacamento.
Tendo combado o rio em canoas, a força de intervenção foi progredindo ao longo da estrada da bolanha, nalguns pontos com água quase pela cintura, e quando chegou a escassos 500 metros da tabanca, começou a bater com morteiro 60 e bazuca as posições do IN que estava instalado do lado de Maladin, e que ripostou, aliviando a pressão sobre o destacamento. Apoiados pelo morteiro 81 que fazia fogo do quartel de Bambadinca (4), os grupos de intervenção acabaram por silenciar as posições do IN, obrigando-o a retirar. As NT tiveram apenas um ferido (milícia).
Entretanto, uma semana antes, a 12 de Setembro, durante um patrulhamento levado a efeito com o Pel Caç Nat 52 na região de Missirá-Biassa-Nascente do Rio Biassa – Chicri – Gambana – Maná, o 4º Gr Comb [ da CCAÇ 12] surpreendeu no trilho de Chicri um grupo de carregadores que vinha da direcção de Nhabijões.
A secção do Pelotão de Milícia de Finete (5), que reforçava as NT, abriu fogo precipitadamente e sem ordem expressa, tendo feito feridos confirmados. Na fuga, o IN que muito provavelmente não trazia escolta armada, abandonou todo o carregamento, constituído por esteiras, tabaco em folha, mosquiteiros e aguardente de cana, além de uma certa quantidade em dinheiro (6).
Por outro lado, as constantes patrulhas de reconhecimento aos núcleos populacionais de Nhabijões, sob duplo controlo (6), não obstaram a que a tabanca de Bedinca (balantas mansoanques) fosse assaltada em 23, à 1 hora da noite, por um grupo IN que teria espancado alguns nativos e roubado arroz e gado, segundo a versão do chefe de tabanca. Feito o reconhecimento no dia seguinte, verificou-se apenas que o grupo IN (bastante numeroso) retirara para norte, tendo cambado o Rio Geba em canoa na direcção de S. Belchior.
A 10 [de Setembro], o 3º Gr Comb e o Pel Rec Info, reforçados por 1 secção do Pel Caç Nat 53, tinham realizado um cerco e rusga à tabanca de Nhabijão Bulobate, sem resultados nem vestígios do IN, tendo capturado no entanto 3 homens balantas que se verificou apenas serem “ladrões de gado” (7) no Enxalé (Op Grampo).
Durante o mês, a CCAÇ 12 (a 2 Gr Comb) efectuaria ainda um patrulhamento ofensivo, com as forças da CART 2339 [Mansambo] a fim de detectar vestígios IN na região de Boló (Op Glutão).
Notas de L.G.
(1) O Pelotão de Caçadores Nativos nº 53, normalmente sedeado em Bambadinca, estava, na altura, em reforço temporário ao Saltinho. Havia mais outros Pel Caç Nat no Secor L1: 52 (Missirá), 63 (Fá)...
(2) Avião a jacto, subsónico, que equipava a nossa força aérea (Fiat G-91). Era fabricado pela FIAT.
(3) A Guiné-Bissau deve ser, ainda, um cemitério de sucata, como viaturas (militares e civis) abandonadas pelas NT, destruídas por minas e roquetadas... Não tenho a certeza se esta viatura, a GMC MG-17-21, foi posteriormente desarmadilhada e rebocada para Bambadinca... Os custos de uma tal operação eram sempre elevados.
(4) Na altura, Bambadinca ainda não tinha artilharia (obus 140 mm).
(5) Pelotão de Milícias nº 102. Havia diversos no Sector L1: 103 (Quirafo), 104 (Taibatá), 105 (Drembataco), 145 (Amedalai), 146 (Madina Bonco)...
(6) A aguardente de cana era particularmente apreciada pelos balantas de Nhabijões. Estes eram um conjunto de tabancas (aldeias) ribeirinhas, de maioria balanta, dispostas ao longo do Geba Estreito. Colaboravam abertamente com o IN, fornecendo-lhe homens e abastecimentos. As ligações de parentesco com os homens do mato (os guerrilheiros do PAIGC) reforçavam essa colaboração. Havia cinco núcleos populacionais dos quais 4 balantas (Cau, Bulobate, Bedinca e Imbumbe) e um mandinga. Esses núcleos populacionais irão depois transformar-se em aldeias estratégicas, através do seu reordenamento forçado (em que esteve envolvida uma equipa da CCAÇ 12, a partir de Novembro de 1969). Haveremos de falar deste assunto, na devida altura.
(7) O roubo de gado aos vizinhos (e nomeadamente aos fulas) é uma prova (difícil, arriscada e por vezes mortal) a que se tem de submeter qualquer mancebo balanta, para poder chegar à idade adulta, fazendo por isso parte dos ritos de passagem e da cultura deste grupo étnico, o maior da Guiné e que era dominante no núcleo populacional de Nhabijões.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 11 de agosto de 2005
Guiné 63/74 - P149: Antologia (15): Lembranças do chão manjaco (Do Pelundo ao Canchungo) (João Tunes)
Texto de João Tunes (2004) (ex-alferes milicano no Pelundo e, depois, em Catió). Reproduzido com a devida vénia. Do seu Blogue > Bota Acima
1 de Abril de 2004 > Memória de Teixeira Pinto / Canchungo (Guiné-Bissau – 1970)
Meto-me no jipe e faço-me à estrada que liga Pelundo a Teixeira Pinto (hoje Canchungo). O tempo está quente e muito húmido. A camisa está quase colada ao corpo e os braços e a cara estão peganhentos por causa do suor que não se evapora. Não estranho, já estou habituado.Vou sozinho no jipe. A estrada sempre foi segura. A zona está mais que controlada. Seria um mero passeio se não tivesse uma missão a cumprir.
Levo comigo a inseparável G3 (a noiva negra dos tempos de guerra) e uma espingarda de pressão de ar de fabrico polaco que comprei na última ida a Bissau e que convem ter à mão para apanhar rolas que possam servir de base para um petisco de convívio no dia seguinte. A missão é de rotina. Tinha de trocar os códigos de cifras desactualizadas por outros novos. Tenho tempo de chegar e de voltar. Dá para encher os olhos com o verde vivo do arvoredo cerrado e as milhentas espécies de aves de muitas cores.
Conduzo devagar, apenas com uma mão a segurar o volante. A outra mão assenta no joelho mas bem perto da coronha da G3. Não é por nada. A zona é segura mas aqueles sítios são magníficos para uma emboscada. Olá se são. Levo as cifras comigo, e embora estejam desactualizadas, nunca fiando porque elas, mesmo assim, dariam jeito ao PAIGC. Sem problemas. Tirando o calor e a humidade.
Entro no comando militar da zona, trato do que tenho a tratar. Os oficiais convidam-me para almoçar, o que já contava. Aceito com gosto. Malta porreira e com pessoas que é um encanto conversar. Para mais, em Teixeira Pinto, a comida era óptima para os padrões da colónia. Spínola tinha levado, para Teixeira Pinto, a sua elite de oficiais, na aposta de transformar o "chão manjaco" num caso de sucesso de adesão das populações à sua política e de contenção da guerrilha.
O comando era ocupado pelo Coronel Paraquedista Alcino, um bonacheirão e homem que muito sabia de guerra. Abaixo dele, havia o Major Passos Ramos, responsável pelas operações, o Major Pereira da Silva, responsável pelas informações militares e o Major Osório, condecorado com Torre e Espada e várias Cruzes de Guerra, que era o homem dos combates.
Na parte guerreira, vários oficiais fuzas, todos eles recheados de condecorações por bravura em combate. A seguir ao almoço, havia sempre um convívio relax no bar de oficiais, onde dava para se descontraírem as conversas, pondo-se a escrita em dia enquanto se bebiam uns (infindáveis) digestivos.
Não me diziam grande coisa os oficiais de combate. Com eles, as histórias andavam por repetição de feitos em golpes de mão ocorridos algures. Ainda por cima, agora tinham pouco para contar, porque a zona estava tranquila e as operações especiais eram só de quando em vez para os casos de haver informações de movimentos entre bases da guerrilha ou de infiltração desta nalguma aldeia. Até se mostravam um pouco nervosos com a inércia a que estavam amarrados.
Um dos dois tenentes fuzileiros (ia na terceira comissão na Guiné, sempre como voluntário) dizia até que, se aquilo continuasse assim, não queria mais Guiné e ia mas era oferecer-se como voluntário para o Vietname. Ele gostava e queria guerra. Ambos os tenentes fuzileiros (Brito e Benjamim) haveriam de fazer, mais tarde, outras guerras em serviço spinolista como a célebre sublevação de 11 de Março de 1975 e, depois, entrariam nas operações do MDLP sob a direcção de Alpoim Galvão.
Quanto ao Major Osório, sempre de t-shirt branca, pouco falava mas era muito respeitado. Aquilo era gente de acção e quando a não tinham, cediam à espera tensa e ansiosa de mais acção. Em resumo, eram guerreiros em descanso forçado. Além da bravura na guerra, só lhes sobrava bravura para descarregarem o sexo numa ou noutra adolescente a quem deitavam mão e que se limitavam a abrir as pernas e os olhos, num misto de espanto, de medo e de ausência de prazer.
O Major Pereira da Silva, de enormes bigodes revirados, não parecia um militar. Mal enfiado dentro da farda, o homem era um intelectual. Falava todos os dialectos usados na zona, conhecia de fio a pavio todos os usos e costumes das tribos da Guiné, andava sempre pelas aldeia a completar os seus conhecimentos e a farejar informações úteis. Em colaboração com a Pide, dirigia a rede de informadores e era o negociador com os cisionistas do PAIGC, dispostos a entregarem-se. Era um comunicador excelente e um homem completíssimo em cultura(s) africana(s). Dava gosto ouvi-lo e aprender com ele, tanto mais que tinha, para com os africanos, uma autêntica reverência cultural, particularmente quando se tratava dos manjacos.
O Major Passos Ramos era o crâneo do comando militar. O pensador de toda a estratégia e o homem que fazia as sínteses do cumprimento da missão para toda a zona. Excelente conversador e homem culto, o Major Passos Ramos irradiava encanto e inteligência. Era um oposicionista manifesto e assumido ao regime e tinha, inclusive, participado na Revolta da Sé. Quando encontrava um miliciano chegado de fresco ou vindo de férias, ele imediatamente rumava a conversa para as actividades oposicionistas e pedia previsões sobre quando o regime iria cair.Spínola estava encantado com o andamento das coisas no “chão manjaco”.
Tudo ia bem ou parecia andar. E os oficias de Teixeira Pinto eram mesmo a sua nata. Eram militares profissionais de primeira água que faziam a guerra o melhor que sabiam e podiam. A meio da tarde, regressei a Pelundo. Sem problemas. Apenas com mais suor que aquele que tinha levado na ida. Mas sem rolas, porque faltara pachorra para caçadas. Passado pouco tempo, desterraram-me para o Sul da Guiné, onde a guerra era bem mais quente. Efeito subsidiário da pena de prisão de três dias que apanhara por me ter recusado a cumprir a ordem de um Tenente-Coronel para bater num Cabo.
Fiz, então, a última viagem de jipe do Pelundo até Teixeira Pinto para apanhar o avião que me levaria, em trânsito, até Bissau. Mas, antes de embarcar no avião, não faltaram os três majores na pista para darem abraços de despedida (e de solidariedade).
O adeus do major Passos Ramos foi o mais emotivo porque tinha ganho uma especial empatia comigo, alimentada de cumplicidade política e de estima pessoal. Ainda hoje me parece sentir nas costas o toque afectivo das palmas das suas mãos. Foi a última vez que vi Pelundo e Teixeira Pinto. E os três majores.
Já colocado em Catió, tive notícias dos três majores e meus amigos. Notícias que correram mundo.Toda a guerrilha do PAIGC, no "chão manjaco" e noutras zonas do norte,” tinha decidido” render-se e passar para o lado do exército colonial. Era a cereja no cimo do bolo. Estava tudo tratado até ao pormenor. Havia fardas portuguesas já prontas para os guerrilheiros vestirem logo que chegassem a Teixeira Pinto e estava tudo tratado sobre patentes e instalações das famílias. Cada antigo guerrilheiro teria casa e comida e o soldo correspondente à sua nova patente e em igualdade com os militares europeus. Aquela seria a grande vitória política e militar do General Spínola. Precisamente na altura em que quase toda a gente considerava a guerra na Guiné como já perdida.
Os guerrilheiros colocaram uma única condição. Fariam a sua rendição em plena mata, junto a Pelundo, mas os oficiais portugueses que fossem receber os guerrilheiros teriam de comparecer desarmados. Como prova de confiança. Várias fontes confirmam que Spínola quis ir em pessoa presidir à rendição e só foi disso dissuadido no último minuto. A delegação para aceitar a rendição das forças do PAIGC foi constituída pelos Majores e meus amigos Osório, Pereira da Silva e Passos Ramos. Foram ao encontro dos guerrilheiros, ultraconfiantes, sem armas, num jipe vulgar e sem qualquer escolta. Felizes pelo sucesso iminente.
Chegados ao local de encontro, os três majores foram retalhados a tiro de kalashnikov e acabados de matar à catanada. Sem dignidade e com requintes de barbárie. Spínola, o seu estado-maior e os majores tinham-se enganado sobre o PAIGC. A manha e a paciência dos guerrilheiros tinha sido maior que as tecidas pelas melhores inteligências do exército colonial e da Pide. Spínola perdeu os seus três melhores oficiais na Guiné de uma única vez. Eu perdi três amigos. Sem honra nem glória.
O “chão manjaco” voltou ao ferro e ao fogo adormecidos. Os tenentes fuzileiros de Teixeira Pinto interromperam a ociosidade mal-amada. Não faltavam, agora, oportunidades de fazerem o gosto ao gatilho, à granada e à faca de mato. Era a hora de matar pretos, as fodas nas pretas que esperassem. Tudo tem o seu tempo.
Recebi a notícia com o mesmo espanto que toda a gente. Como tinha sido possível? Ali estava uma pergunta sem resposta e que me ecoa até aos dias de hoje. Não podia ter resposta mas isso não evitou um frémito de emoção profunda. Verdade que guerra é guerra, e quem lá vai, dá e leva. Mas ainda hoje sinto uma enorme tristeza de saudade das conversas que nunca se irão repetir com os Majores Pereira da Silva e Passos Ramos.
No 25 de Abril de 1974, senti uma enorme frustação por não os abraçar nas ruas de Lisboa e, em vez disso, ter de ver o focinho patibular de Spínola na Televisão a presidir à Junta de Salvação. Resta-me a memória de Teixeira Pinto. Perdão, de Canchungo.
João Tunes (1).
Notas de L.G.
(1) Há mais posts deste autor sobre a Guiné e a guerra colonial. Por exemplo:
João Tunes > Bota Acima > 29 de Abrld e 2004 > Pelundo I e Pelundo II (inclui fotos do aquartelamento)
João Tunes > Bota Acima > 7 de Abril de 2004 > Jogo de Cartas (Texto delicioso onde relata as noites, chatas p'ra burro, em que era obrigado a jogar king com os eu comandante, o tenente-coronel Romeira;as bravatas sexuais dos tugas; e a porrada que apanhou por recusar bater num cabo de transmissões sob o seu comando, porrada essa que o levou do Pelundo até ao Catió).
(2) O blogue Bota Acima deu origem a outros: por exemplo, Água Lisa (que vai na 3ª edição)
1 de Abril de 2004 > Memória de Teixeira Pinto / Canchungo (Guiné-Bissau – 1970)
Meto-me no jipe e faço-me à estrada que liga Pelundo a Teixeira Pinto (hoje Canchungo). O tempo está quente e muito húmido. A camisa está quase colada ao corpo e os braços e a cara estão peganhentos por causa do suor que não se evapora. Não estranho, já estou habituado.Vou sozinho no jipe. A estrada sempre foi segura. A zona está mais que controlada. Seria um mero passeio se não tivesse uma missão a cumprir.
Levo comigo a inseparável G3 (a noiva negra dos tempos de guerra) e uma espingarda de pressão de ar de fabrico polaco que comprei na última ida a Bissau e que convem ter à mão para apanhar rolas que possam servir de base para um petisco de convívio no dia seguinte. A missão é de rotina. Tinha de trocar os códigos de cifras desactualizadas por outros novos. Tenho tempo de chegar e de voltar. Dá para encher os olhos com o verde vivo do arvoredo cerrado e as milhentas espécies de aves de muitas cores.
Conduzo devagar, apenas com uma mão a segurar o volante. A outra mão assenta no joelho mas bem perto da coronha da G3. Não é por nada. A zona é segura mas aqueles sítios são magníficos para uma emboscada. Olá se são. Levo as cifras comigo, e embora estejam desactualizadas, nunca fiando porque elas, mesmo assim, dariam jeito ao PAIGC. Sem problemas. Tirando o calor e a humidade.
Entro no comando militar da zona, trato do que tenho a tratar. Os oficiais convidam-me para almoçar, o que já contava. Aceito com gosto. Malta porreira e com pessoas que é um encanto conversar. Para mais, em Teixeira Pinto, a comida era óptima para os padrões da colónia. Spínola tinha levado, para Teixeira Pinto, a sua elite de oficiais, na aposta de transformar o "chão manjaco" num caso de sucesso de adesão das populações à sua política e de contenção da guerrilha.
O comando era ocupado pelo Coronel Paraquedista Alcino, um bonacheirão e homem que muito sabia de guerra. Abaixo dele, havia o Major Passos Ramos, responsável pelas operações, o Major Pereira da Silva, responsável pelas informações militares e o Major Osório, condecorado com Torre e Espada e várias Cruzes de Guerra, que era o homem dos combates.
Na parte guerreira, vários oficiais fuzas, todos eles recheados de condecorações por bravura em combate. A seguir ao almoço, havia sempre um convívio relax no bar de oficiais, onde dava para se descontraírem as conversas, pondo-se a escrita em dia enquanto se bebiam uns (infindáveis) digestivos.
Não me diziam grande coisa os oficiais de combate. Com eles, as histórias andavam por repetição de feitos em golpes de mão ocorridos algures. Ainda por cima, agora tinham pouco para contar, porque a zona estava tranquila e as operações especiais eram só de quando em vez para os casos de haver informações de movimentos entre bases da guerrilha ou de infiltração desta nalguma aldeia. Até se mostravam um pouco nervosos com a inércia a que estavam amarrados.
Um dos dois tenentes fuzileiros (ia na terceira comissão na Guiné, sempre como voluntário) dizia até que, se aquilo continuasse assim, não queria mais Guiné e ia mas era oferecer-se como voluntário para o Vietname. Ele gostava e queria guerra. Ambos os tenentes fuzileiros (Brito e Benjamim) haveriam de fazer, mais tarde, outras guerras em serviço spinolista como a célebre sublevação de 11 de Março de 1975 e, depois, entrariam nas operações do MDLP sob a direcção de Alpoim Galvão.
Quanto ao Major Osório, sempre de t-shirt branca, pouco falava mas era muito respeitado. Aquilo era gente de acção e quando a não tinham, cediam à espera tensa e ansiosa de mais acção. Em resumo, eram guerreiros em descanso forçado. Além da bravura na guerra, só lhes sobrava bravura para descarregarem o sexo numa ou noutra adolescente a quem deitavam mão e que se limitavam a abrir as pernas e os olhos, num misto de espanto, de medo e de ausência de prazer.
O Major Pereira da Silva, de enormes bigodes revirados, não parecia um militar. Mal enfiado dentro da farda, o homem era um intelectual. Falava todos os dialectos usados na zona, conhecia de fio a pavio todos os usos e costumes das tribos da Guiné, andava sempre pelas aldeia a completar os seus conhecimentos e a farejar informações úteis. Em colaboração com a Pide, dirigia a rede de informadores e era o negociador com os cisionistas do PAIGC, dispostos a entregarem-se. Era um comunicador excelente e um homem completíssimo em cultura(s) africana(s). Dava gosto ouvi-lo e aprender com ele, tanto mais que tinha, para com os africanos, uma autêntica reverência cultural, particularmente quando se tratava dos manjacos.
O Major Passos Ramos era o crâneo do comando militar. O pensador de toda a estratégia e o homem que fazia as sínteses do cumprimento da missão para toda a zona. Excelente conversador e homem culto, o Major Passos Ramos irradiava encanto e inteligência. Era um oposicionista manifesto e assumido ao regime e tinha, inclusive, participado na Revolta da Sé. Quando encontrava um miliciano chegado de fresco ou vindo de férias, ele imediatamente rumava a conversa para as actividades oposicionistas e pedia previsões sobre quando o regime iria cair.Spínola estava encantado com o andamento das coisas no “chão manjaco”.
Tudo ia bem ou parecia andar. E os oficias de Teixeira Pinto eram mesmo a sua nata. Eram militares profissionais de primeira água que faziam a guerra o melhor que sabiam e podiam. A meio da tarde, regressei a Pelundo. Sem problemas. Apenas com mais suor que aquele que tinha levado na ida. Mas sem rolas, porque faltara pachorra para caçadas. Passado pouco tempo, desterraram-me para o Sul da Guiné, onde a guerra era bem mais quente. Efeito subsidiário da pena de prisão de três dias que apanhara por me ter recusado a cumprir a ordem de um Tenente-Coronel para bater num Cabo.
Fiz, então, a última viagem de jipe do Pelundo até Teixeira Pinto para apanhar o avião que me levaria, em trânsito, até Bissau. Mas, antes de embarcar no avião, não faltaram os três majores na pista para darem abraços de despedida (e de solidariedade).
O adeus do major Passos Ramos foi o mais emotivo porque tinha ganho uma especial empatia comigo, alimentada de cumplicidade política e de estima pessoal. Ainda hoje me parece sentir nas costas o toque afectivo das palmas das suas mãos. Foi a última vez que vi Pelundo e Teixeira Pinto. E os três majores.
Já colocado em Catió, tive notícias dos três majores e meus amigos. Notícias que correram mundo.Toda a guerrilha do PAIGC, no "chão manjaco" e noutras zonas do norte,” tinha decidido” render-se e passar para o lado do exército colonial. Era a cereja no cimo do bolo. Estava tudo tratado até ao pormenor. Havia fardas portuguesas já prontas para os guerrilheiros vestirem logo que chegassem a Teixeira Pinto e estava tudo tratado sobre patentes e instalações das famílias. Cada antigo guerrilheiro teria casa e comida e o soldo correspondente à sua nova patente e em igualdade com os militares europeus. Aquela seria a grande vitória política e militar do General Spínola. Precisamente na altura em que quase toda a gente considerava a guerra na Guiné como já perdida.
Os guerrilheiros colocaram uma única condição. Fariam a sua rendição em plena mata, junto a Pelundo, mas os oficiais portugueses que fossem receber os guerrilheiros teriam de comparecer desarmados. Como prova de confiança. Várias fontes confirmam que Spínola quis ir em pessoa presidir à rendição e só foi disso dissuadido no último minuto. A delegação para aceitar a rendição das forças do PAIGC foi constituída pelos Majores e meus amigos Osório, Pereira da Silva e Passos Ramos. Foram ao encontro dos guerrilheiros, ultraconfiantes, sem armas, num jipe vulgar e sem qualquer escolta. Felizes pelo sucesso iminente.
Chegados ao local de encontro, os três majores foram retalhados a tiro de kalashnikov e acabados de matar à catanada. Sem dignidade e com requintes de barbárie. Spínola, o seu estado-maior e os majores tinham-se enganado sobre o PAIGC. A manha e a paciência dos guerrilheiros tinha sido maior que as tecidas pelas melhores inteligências do exército colonial e da Pide. Spínola perdeu os seus três melhores oficiais na Guiné de uma única vez. Eu perdi três amigos. Sem honra nem glória.
O “chão manjaco” voltou ao ferro e ao fogo adormecidos. Os tenentes fuzileiros de Teixeira Pinto interromperam a ociosidade mal-amada. Não faltavam, agora, oportunidades de fazerem o gosto ao gatilho, à granada e à faca de mato. Era a hora de matar pretos, as fodas nas pretas que esperassem. Tudo tem o seu tempo.
Recebi a notícia com o mesmo espanto que toda a gente. Como tinha sido possível? Ali estava uma pergunta sem resposta e que me ecoa até aos dias de hoje. Não podia ter resposta mas isso não evitou um frémito de emoção profunda. Verdade que guerra é guerra, e quem lá vai, dá e leva. Mas ainda hoje sinto uma enorme tristeza de saudade das conversas que nunca se irão repetir com os Majores Pereira da Silva e Passos Ramos.
No 25 de Abril de 1974, senti uma enorme frustação por não os abraçar nas ruas de Lisboa e, em vez disso, ter de ver o focinho patibular de Spínola na Televisão a presidir à Junta de Salvação. Resta-me a memória de Teixeira Pinto. Perdão, de Canchungo.
João Tunes (1).
Notas de L.G.
(1) Há mais posts deste autor sobre a Guiné e a guerra colonial. Por exemplo:
João Tunes > Bota Acima > 29 de Abrld e 2004 > Pelundo I e Pelundo II (inclui fotos do aquartelamento)
João Tunes > Bota Acima > 7 de Abril de 2004 > Jogo de Cartas (Texto delicioso onde relata as noites, chatas p'ra burro, em que era obrigado a jogar king com os eu comandante, o tenente-coronel Romeira;as bravatas sexuais dos tugas; e a porrada que apanhou por recusar bater num cabo de transmissões sob o seu comando, porrada essa que o levou do Pelundo até ao Catió).
(2) O blogue Bota Acima deu origem a outros: por exemplo, Água Lisa (que vai na 3ª edição)
quarta-feira, 10 de agosto de 2005
Guiné 63/74 - P148: Humor de caserna: 'A minha vida, contada, dava um filme' (Vítor Junqueira)
© Vitor Junqueira (2005)
1. Texto de Vitor Junqueira , que é membro do nossa tertúlia de ex-combatentes da Guiné (ex-alferes miliciano, CCAÇ 2753, Mansabá, 1970/72):
Entre os meus papéis encontrei esta lista com os títulos dos filmes que passavam nos principais cinemas do país nos finais da década de 60. Alguém estabeleceu um elo de ligação, irónico, entre esses títulos e certos momentos importantes da vida de um combatente. Quero partilhar o "achado" convosco.
Vitor Junqueira.
2. Comentário de L.G.
Eu já tive ocasião de dizer ao Vitor que este documento era uma maravilha!... De facto, quem disse que nós, os tugas, não tínhamos sentido de humor ? Eu acho que o humor é, além de um sinal de inteligência, uma forma muito nossa de ser e de estar que nos ajuda a enfrentar e aguentar as situações difíceis…
Para um mancebo a tropa sempre constituiu, entre nós, um verdadeiro ritual de passagem. Para os mancebos da nossa geração, a passagem implicava também em 90 e tal por cento dos casos (tirando os filhos de algo, mais os cegos, os surdos e os mudos) um bilhete de ida (e nem sempre de volta) até ao Ultramar, a uma das três frentes da guerra colonial: Angola, Guiné, Moçambique...
O documento que o Vitor nos mandou é constituído por duas imgens, em formato.jpg, de uma lista, dactilografada, que tem por título "A Vida de um Militar na Guiné Atravez (sic) do Cinema". A qualidade da digitalziação não é boa, pelo que transcrevo as duas partes, corrigidindo alguns erros de ortografia e/ou dactilografia. A segunda parte da lista (continuação) é aqui inserida sob a forma de imagem, a título meramente exemplificativo.
Esta lista, bem humorada, faz sobretudo a equivalência entre as situações do dia-a-dia de uma aquartelamento no mato e os títulos dos filmes que passavam na época nos nossos cinemas... Ainda me lembro de alguns!
Desconhece-se o autor. Possívelmente era alguém de transmissões, que tinha tempo e vagar para estas coisas... Talvez um cabo operador cripto, um especialista que não esconde a sua crítica à hierarquia e aos pequenos privilégios que davam as divisas e os galões: Clube de Sargentos = Casino Royal (possível referência à tendendência para a jogatana e a batota por parte de furriéis e sargentos); Clube de Oficiais = Hotel Internacional (as instalações dos oficiais eram, sempre, apesar de tudo, melhores do que as barracas e os abrigos onde dormia o Zé Soldado); Oficiais = Os insaciáveis; Especialistas = Milionários sem vintém... Também transparece aqui que a ideia de que ser sargento de messe (= golpe de mestre à napolitana) era uma forma rápida... e socialmente aceite ou tolerada de aumentar o pé de meia durante a comissão!
O autor é também possivelmente alguém que esteve numa zona quente, junto à fronteira norte ou sul, já que o turra é indentificado com o "perigo que vem da fronteira"... Curiosamente não há tanta referência à vida concreta dos operacionais no mato: a emboscada, a mina, o rocket, a costureirinha, o capim, os feridos, os mortes, o golpe de mão, etc.
Não deixa também de ser interessante a representação da enfermeira (paraquedista): "o amor desceu em paraquedas"... Durante a comissão toda (= noites sem fim), a enfermeira-paraquedista era a única mulher branca que o Zé Soldado podia ver, ao vivo, embora de camuflado e de relance, em caso de evacuação de um ferido grave, quer no mato, quer no aquartelamento... Era, para muitos, uma visão quase celestial e sobretudo altamente erótica...
Ainda me lembro a perturbação e a excitação que causava, entre os "básicos" de Bambadinca, a chegada de um helicóptero com uma enfermeira-paraquedista... Em contrapartida, o furriel enfermeiro da unidade era associado a carniceiro e assassino... No caso da CCAÇ 12, o pessoal era mais gentil, embora brincalhão e travesso, pelo que o nosso furriel enfermeiro Martins era simplesmente o Pastilhas (um profissional competentíssimo... mas o que ele sofreu connosco!).
Outra das obsessões do militar na Guiné era a contagem dos dias que faltavam para a chegada dos periquitos e para o fim da comissão...E, por fim, inevitamente, a referência à ida às tabancas (= sarilho de fraldas), o convívio com as bajudas (= amor sem barreiras), o taquinho e o copos (= amores clandestinos), o tempo de lazer e de prazer do Zé Soldado...
A vida de um militar na Guiné através do cinema (1):
Partida de Lisboa = Passaporte para o desconhecido
Chegada à Guiné = As duas faces do perigo
Transmissões = O perigo é a minha profissão
Comissão = Noites sem fim
Apresentações = Eu, eu... e os outros
Alojamento = Este é o meu mundo
Messe = Por favor não comam os malmequeres
Clube de Especialistas = A grande vitória
Clube de Sargentos = Casino Royal
Clube de Oficiais = Hoel Internacional
Enfermaria = As loucuras do dr. Jerry
Secretaria dos TAP = Por favor não incomode
Secção de Fardamento = Pijama para dois
Comunicações = Este difícil amor
Metereologia = E tudo o vento levou
Linha da Frente = Com jeito vai
Grupo Operacional Aéreo = Os gloriosos malucos das máquinas [voadoras]
Companhia de Transportes = A ultrapassagem
Oficiais = Os insaciáveis
Sargentos = Os profissionais
Praças = A família Trapp
Especialistas = Milionários sem vintém
Oficial de Dia = Sua Excelência, o Mordomo
Enfermeiras = O amor desceu em paraquedas
Enfermeiros = O assassino
Médico = O homem da mala preta
A vida de um militar na Guiné através do cinema (continuação):
Sargento de messes = Golpe de mestre à napolitana
Formaturas = Eram duzentos irmãos
Saída à porta de armas = Duelo ao pôr do sol
Ordem de serviço = Os Dez Mandamentos
Justiça e disciplina = Arquivo K
Condecorações = A Cruz de Ferro
Castigos = Adeus ilusões
Prisão = Longe da multidão
Dispensas = Uma réstea de azul
Recolher = Servidão humana
Não ir de férias = Restos de um pecado
Ir de férias = O prémio
Avião semanal = A esperança nunca morre
TAP = O último recurso
Bissau = Vida sem rumo
Tabancas = Sarilho de fraldas
Bajudas = Amor sem barreiras
Vinho, tabaco, etc. = Amores clandestinos
Ida ao mato = Um campista em puros
Turras = O perigo vem da fronteira
Ataque ao quartel = A visita
Fim da comissão = Com a felicidade na alma
Louvor = Não sou digno de ti
Substituto = O espião que veio do frio
Último dia da Guiné = O dia mais longo
Partida para Lisboa = África adeus
Chegada a Lisboa = Europa de noite
Primeira noite em Lisboa = Um homem e uma mulher
Passagem à disponibilidade = O adeus às armas
1. Texto de Vitor Junqueira , que é membro do nossa tertúlia de ex-combatentes da Guiné (ex-alferes miliciano, CCAÇ 2753, Mansabá, 1970/72):
Entre os meus papéis encontrei esta lista com os títulos dos filmes que passavam nos principais cinemas do país nos finais da década de 60. Alguém estabeleceu um elo de ligação, irónico, entre esses títulos e certos momentos importantes da vida de um combatente. Quero partilhar o "achado" convosco.
Vitor Junqueira.
2. Comentário de L.G.
Eu já tive ocasião de dizer ao Vitor que este documento era uma maravilha!... De facto, quem disse que nós, os tugas, não tínhamos sentido de humor ? Eu acho que o humor é, além de um sinal de inteligência, uma forma muito nossa de ser e de estar que nos ajuda a enfrentar e aguentar as situações difíceis…
Para um mancebo a tropa sempre constituiu, entre nós, um verdadeiro ritual de passagem. Para os mancebos da nossa geração, a passagem implicava também em 90 e tal por cento dos casos (tirando os filhos de algo, mais os cegos, os surdos e os mudos) um bilhete de ida (e nem sempre de volta) até ao Ultramar, a uma das três frentes da guerra colonial: Angola, Guiné, Moçambique...
O documento que o Vitor nos mandou é constituído por duas imgens, em formato.jpg, de uma lista, dactilografada, que tem por título "A Vida de um Militar na Guiné Atravez (sic) do Cinema". A qualidade da digitalziação não é boa, pelo que transcrevo as duas partes, corrigidindo alguns erros de ortografia e/ou dactilografia. A segunda parte da lista (continuação) é aqui inserida sob a forma de imagem, a título meramente exemplificativo.
Esta lista, bem humorada, faz sobretudo a equivalência entre as situações do dia-a-dia de uma aquartelamento no mato e os títulos dos filmes que passavam na época nos nossos cinemas... Ainda me lembro de alguns!
Desconhece-se o autor. Possívelmente era alguém de transmissões, que tinha tempo e vagar para estas coisas... Talvez um cabo operador cripto, um especialista que não esconde a sua crítica à hierarquia e aos pequenos privilégios que davam as divisas e os galões: Clube de Sargentos = Casino Royal (possível referência à tendendência para a jogatana e a batota por parte de furriéis e sargentos); Clube de Oficiais = Hotel Internacional (as instalações dos oficiais eram, sempre, apesar de tudo, melhores do que as barracas e os abrigos onde dormia o Zé Soldado); Oficiais = Os insaciáveis; Especialistas = Milionários sem vintém... Também transparece aqui que a ideia de que ser sargento de messe (= golpe de mestre à napolitana) era uma forma rápida... e socialmente aceite ou tolerada de aumentar o pé de meia durante a comissão!
O autor é também possivelmente alguém que esteve numa zona quente, junto à fronteira norte ou sul, já que o turra é indentificado com o "perigo que vem da fronteira"... Curiosamente não há tanta referência à vida concreta dos operacionais no mato: a emboscada, a mina, o rocket, a costureirinha, o capim, os feridos, os mortes, o golpe de mão, etc.
Não deixa também de ser interessante a representação da enfermeira (paraquedista): "o amor desceu em paraquedas"... Durante a comissão toda (= noites sem fim), a enfermeira-paraquedista era a única mulher branca que o Zé Soldado podia ver, ao vivo, embora de camuflado e de relance, em caso de evacuação de um ferido grave, quer no mato, quer no aquartelamento... Era, para muitos, uma visão quase celestial e sobretudo altamente erótica...
Ainda me lembro a perturbação e a excitação que causava, entre os "básicos" de Bambadinca, a chegada de um helicóptero com uma enfermeira-paraquedista... Em contrapartida, o furriel enfermeiro da unidade era associado a carniceiro e assassino... No caso da CCAÇ 12, o pessoal era mais gentil, embora brincalhão e travesso, pelo que o nosso furriel enfermeiro Martins era simplesmente o Pastilhas (um profissional competentíssimo... mas o que ele sofreu connosco!).
Outra das obsessões do militar na Guiné era a contagem dos dias que faltavam para a chegada dos periquitos e para o fim da comissão...E, por fim, inevitamente, a referência à ida às tabancas (= sarilho de fraldas), o convívio com as bajudas (= amor sem barreiras), o taquinho e o copos (= amores clandestinos), o tempo de lazer e de prazer do Zé Soldado...
A vida de um militar na Guiné através do cinema (1):
Partida de Lisboa = Passaporte para o desconhecido
Chegada à Guiné = As duas faces do perigo
Transmissões = O perigo é a minha profissão
Comissão = Noites sem fim
Apresentações = Eu, eu... e os outros
Alojamento = Este é o meu mundo
Messe = Por favor não comam os malmequeres
Clube de Especialistas = A grande vitória
Clube de Sargentos = Casino Royal
Clube de Oficiais = Hoel Internacional
Enfermaria = As loucuras do dr. Jerry
Secretaria dos TAP = Por favor não incomode
Secção de Fardamento = Pijama para dois
Comunicações = Este difícil amor
Metereologia = E tudo o vento levou
Linha da Frente = Com jeito vai
Grupo Operacional Aéreo = Os gloriosos malucos das máquinas [voadoras]
Companhia de Transportes = A ultrapassagem
Oficiais = Os insaciáveis
Sargentos = Os profissionais
Praças = A família Trapp
Especialistas = Milionários sem vintém
Oficial de Dia = Sua Excelência, o Mordomo
Enfermeiras = O amor desceu em paraquedas
Enfermeiros = O assassino
Médico = O homem da mala preta
A vida de um militar na Guiné através do cinema (continuação):
Sargento de messes = Golpe de mestre à napolitana
Formaturas = Eram duzentos irmãos
Saída à porta de armas = Duelo ao pôr do sol
Ordem de serviço = Os Dez Mandamentos
Justiça e disciplina = Arquivo K
Condecorações = A Cruz de Ferro
Castigos = Adeus ilusões
Prisão = Longe da multidão
Dispensas = Uma réstea de azul
Recolher = Servidão humana
Não ir de férias = Restos de um pecado
Ir de férias = O prémio
Avião semanal = A esperança nunca morre
TAP = O último recurso
Bissau = Vida sem rumo
Tabancas = Sarilho de fraldas
Bajudas = Amor sem barreiras
Vinho, tabaco, etc. = Amores clandestinos
Ida ao mato = Um campista em puros
Turras = O perigo vem da fronteira
Ataque ao quartel = A visita
Fim da comissão = Com a felicidade na alma
Louvor = Não sou digno de ti
Substituto = O espião que veio do frio
Último dia da Guiné = O dia mais longo
Partida para Lisboa = África adeus
Chegada a Lisboa = Europa de noite
Primeira noite em Lisboa = Um homem e uma mulher
Passagem à disponibilidade = O adeus às armas
terça-feira, 9 de agosto de 2005
Guiné 63/74 - P147: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga (Luís Graça)
Excertos do Diário de um Tuga. L.G.
Guiné. Bambadinca. 3 de Setembro de 1969 (revisto)
Malan Mané. Vinte e poucos anos ? Vinte ? Menos de vinte ? Talvez da idade dos nossos soldados mais novos. Temos alguns com dezasseis ou dezassete. Não tenho qualquer jeito para advinhar a idade dos africanos. Mas ele próprio não saberia responder. Aqui ninguém tem certidão de nascimento, cédula pessoal ou bilhete de identidade. Para a tropa, do recrutamento local, é-se escolhido a olhómetro: altura, peso, massa muscular… A idade não conta. Experiência de combate, quase todos a têm, os fulas desta região…
Malan Mané. Mandinga do regulado do Cuor, lá para os lados do Enxalé. Podia ter sido nosso soldado. Temos dois mandingas na nossa companhia [CCAÇ 12]: Malan Nanqui e Ussumane Sissé… Mas há mais outros dois Malan, de etnia fula: Malan Baldé e Malan Jau…
Malan Mané. Roqueteiro do bigrupo de Mamadu Indjai, um comandante de guerrilha famoso, também ele de etnia mandinga. Veste um dolmen, velho, de cor já irreconhecível. Calças rotas no joelho. Apresenta-se descalço. Está deprimido, talvez aterrorizado. Cair, vivo, nas mãos dos tugas é pior desgraça do que do que ser morto em combate – deve ter ele pensado muitas vezes no mato. Ou se calhar nunca pensou nisso. É uma pergunta que não ele entende ou a que não quer responder. Pelo menos, em público, neste cenário de circo, enjaulado como um animal selvagem, rodeado de hominídeos... Os paras, esses, não tiveram grande dificuldade em desatar-lhe a língua. Bastou-lhes encostar a faca de mato à barriga. Foi apanhado com o seu RPG-2 na mata do Rio Biesse, na região de Camará, lá para os lados de Candamã, quando o céu desabou em cima dele (1).
Está agora às ordens do comando do sector [L1]. De mãos algemadas, metido numa gaiola de jardim zoológico. Espectáculo degradante. A Convenção de Genebra sobre os prisioneiros de guerra não se aplica aqui . Oficialmente o meu país não está em guerra com ninguém, com nenhum outro estado soberano. Oficialmente não há nem pode haver prisoneiros de guerra no meu país, do Minho a Timor, passando pela Guiné.
Malan Mané é bandido. Homem do mato. Turra (2). Faz-me lembrar o Gungunhana, passeado em gaiola por Lisboa, em 1896, como troféu de caça do Mouzinho de Albuquerque. Está aqui mesmo ao lado das instalações do rancho [refeitório dos praças]. Entre a escola e o posto administrativo.
Há um correpio de gente que vem ver o turra (sic) capturado pelos paras [na Op Nada Consta, em 28 de Agosto, no sub-sector de Mansambo] (1). Participámos na operação. Mas a nós, ao Pelotão de Caçadores Nativos e aos gajos de Mansambo coube-nos fazer o papel da tropa-macaca.
Básicos, cozinheiros, padeiros, pintores, carpinteiros, fiéis de depósito de géneros, faxinas de bar, maqueiros, corneteiros, mecânicos auto-rodas, desempanadores, condutores auto, escriturários, amanuenses, quarteleiros, sapadores, ajudantes de capelania, operadores de transmissões, radiolegrafistas, cabos cripto, municiadores e apontadores de metralhadora Browning, caçadores e suas presas, todo o mundo tem hoje espectáculo de borla. Até a senhora professora, a única branca que reside dentro do perímetro do aquartelamento, espreita à janela da escola. Deve estar a olhar para o prisioneiro como o bicho do mato que lhe apareceu nos pesadelos nocturnos. Ou talvez não. Nunca lhe soube a idade nem o nome. Vejo-a agora de relance. E pergunto-me como terá reagido ela ao ataque ao aquartelamento em 28 de Maio de 1969. Se calhar portou-se com mais dignidade do que alguns dos militares que deveriam saber defender a sua unidade (3).
Intriga-me a situação desta estranha personagem: uma mulher branca, mestre escola, talvez à beira da reforma, que insiste em viver aqui, no cú do mundo. Numa terra inóspita. Não sei donde veio. O chefe de posto é de Cabo Verde, como manda a tradição. Desde, pelo menos, os tempos de Honório Pereira Barreto, comendador da Ordem de Cristo, tenente-coronel de Artilharia de segunda linha, governador de Bissau, de Cacheu e da província da Guiné, por carta de 24 de Janeiro de 1885...
Na realidade, a Guiné é (ou foi) uma colónia de Cabo Verde. Missionários e missionárias, oriundos da Europa, nem sequer os há aqui. Comerciantes tugas, só dois, perfeitamente cafrealizados, como se dizia no vocabulário colonial e racista dos europeus do Séc. XIX que exploravam estas paragens inóspitas.
Os dois tugas vivem fora do perímetro do quartel. Um deles tem um bando de filhos, de mãe negra. O Rendeiro. Já nos convidou para lá ir comer a sua famosa galinha à cafriela. Fala dos filhos com ternura. Uma das raparigas está a estudar na Metrópole. Contou-nos a sua história. Veio da Murtosa, salvo erro, muito jovem ainda. Aos dezassete anos. Compra mancarra, vende arroz. Procura cultivar boas relações com a tropa. Acho-o demasiado afável.
Mas voltando ao Malan Mané: uns mandam-lhe piropos, outros dão-lhe um cigarro. Ou oferecem-lhe uma garrafa de cerveja, que ele recusa, delicadamente, como bom muçulmano que deve ser. Não entende as provocações que lhe dirigem:
- Então, pá, quantos tugas já mataste com o teu rocket ?
Há ordens, do comando, para o tratar bem. Tem-se mostrado colaborante. E para começar nada como um bom prato de bianda, arroz com mafé. Come com dignidade. No mato a vida é dura. Uma refeição por dia, um maço de cigarros por mês. Farda e botas novas só para os chefes. Bajudas, manga di sabe, também só para os chefes, imagino. Todos iguais, mas uns mais iguais do que outros.
Tinha começado a aprender o português há pouco tempo. Sabe algumas letras do alfabeto latino. Não sei se chegou a aprender o Alcorão. Com a guerra, a sociedade mandinga desintegrou-se. Muitos mandingas foram no mato. Com os balantas e os beafadas. Mas só fala o crioulo e o seu dialecto mandinga O crioulo é a língua tanto do colonizador como do PAIGC. Ninguém se entende nesta Babel sem o crioulo que é uma genial criação dos homens, de diferentes grupos étnicos, que querem comunicar entre si. O exército não faz, porém, qualquer esforço para nos ensinar o crioulo.
Malan fala pouco, a custo. As suas respostas às minhas perguntas são lacónicas, arrancadas a ferro e misturadas com um leve sorriso resignado. Procuro transmitir-lhe sinais de simpatia e de compaixão.
Foi no mato ainda djubi [não posso precisar a idade]. Não deve ter conhecido outra vida. Chefe da tabanca levara menino e mulher para o Morès com medo de avião dos tugas. Primeiro deram-lhe uma semi-automática Simonov (uma arma bem melhor que a nossa velha Mauser que está distribuída ao pessoal das tabancas em autodefesa). Começou como milícia: fazia segurança à tabanca e ao pessoal que ia lavrar a bolanha. Mais tarde, é promovido a combatente como municiador do RPG-2. Passou depois a apontador. Há um ano atrás foi ferido em combate, no Xime, quando atacava lancha grande em Ponta Varela.
Sabia quem era o novo homem grande Bissau.
- E homem grande di bó ?, perguntei-lhe eu.
- Amílcar Cabral. – Respondeu-me, de pronto, não sem uma certa expressão de orgulho (ou foi impressão minha ?). Não, nunca o tinha visto. Só o conhecia de nome e de retrato. Comissário político falava dele e da "luta di partido africano".
O intérprete é o Abibo Jau, o bom gigante epiléptico com o seu metro e noventa e tal de altura e os seus mais de 100 quilos de peso. Não sei quem lhe descobriu o seu talento para torcionário. Pertence ao 3º Gr Comb, do Alferes Rodrigues. É visível o medo que o Abibo inspira ao Malan Mané. Um fula e um mandinga, frente a frente. Velhos ajustes de contas com a memória colectiva de cada grupo vêm provavelmente ao de cima.
Fulas e mandingas já foram os donos destas terras. Cada um, no seu tempo. Teixeira Pinto vingou os aristocráticos mandingas, ao subjugar os fulas. Em contrapartida, deixou a estes os papéis subalternos, mais sujos, do aparelho de repressão administrativo-militar. Os pobres dos fulas tornam-se os maus da fita, aos olhos dos outros povos da Guiné. Aqui, pelo menos na zona leste, os mandingas e os balantas têm um ódio de estimação aos fulas. Um ódio que é recíproco. O poder sempre soube dividir (e aterrorizar) para reinar.
Malan é franzino e frágil, embora de estatura normal. Uma criança crescida na guerra. Procuro tranquilizá-lo. Mas não adianta. Vêm buscá-lo para mais interrogatórios. O interrogador do BCAÇ 2852 é o famigerado sargento do cavalo marinho do PEL REC INFO. Não posso com estes gajos. Fazem o trabalho sujo. Trabalham em estreita colaboração com os pides de Bafatá.
Explorando-se o seu estado físico e psicológico, e muito provavelmente sob tortura ou ameaças físicas, o Malan Mané acabou por dar com a língua nos dentes e revelar mais algumas informações preciosas, comprometendo a segurança dos seus companheiros. Foi a minha primeira grande decepção em relação aos guerrilheiros do PAIGC. Ingenuamente, julgava-os da estatura humanal, moral e até intelectual de um Che Guevara ou de um Amílcar Cabral.
Acredito que a escola de guerrilha do PAIGC tenha formado já grandes combatentes e comandantes. Mas o pobre do Malan Mané não é muito diferente dos meus soldados e de mim próprio: fomos todos apanhados na rede como cães vadios; somos todos vítimas da História; nascemos no sítio e na data errados… Se eu fosse guinéu, muito provavelmente estaria a combater, com ou sem convicção, num dos dois lados da barricada.
PS – O Malan Mané, se eu hoje ainda for vivo, terá por volta de 55 anos. Há muito que ultrapassou a esperança média de vida, à nascença, estimada para os homens da sua geração. Se alguém o descobrir, lá para os lados do Enxalé ou nalguma outra tabanca do antigo regulado do Cuor, mandem-lhe um abraço meu.
A última vez que o vi, ia preso por uma corda, à guarda do Iero Jau (4). Foi gravemente ferido por um diligrama nosso, no assalto a um acampamento da guerrilha na Ponta do Inglês. Na madrugada do dia 7 de Setembro de 1969 (4). Não sei se sobreviveu aos ferimentos. O Iero Jau morreu. Morreu a meu lado. O Malan, também a meu lado, ficou gravemente ferido e foi evacuado para Bissau. Mesmo que tenha sobrevivido e chegado a ver a independência da sua terra por que lutou, não sei o que lhe terá acontecido depois. Não sei como é que o PAIGC, organizado à boa maneira marxista-leninista, terá lidado com este e outros casos de colaboracionismo de antigos combatentes, feitos prisioneiros. Colaboracionismo ? Delação ? Traição ?
Um homem não nasce herói. Mas eu posso testemunhar que o Malan Mané tentou resistir, tentou ludibriar-nos. Não demos com o acampamento à primeira, em 25 de Agosto de 1969. Ele alegou que o capim estava muito alto e que se perdera. O tanas! O tipo conhecia aquilo de cor e salteado, de olhos vendados. Resistiu enquanto pôde, o pobre diabo. Só lá voltámos, à toca do lobo, no dia 7 de Setembro (Op Pato Real).
Os espíritos da floresta (bons ou maus, quem sabe distingui-los ?) não lhe perdoaram. Se ele morreu, de morte natural, em consequência dos seus ferimentos, ou de morte matada, dentro da lógica infernal dos movimentos revolucionários que acabam sempre por devorar os seus filhos, espero ao menos que o seu fantasma continue a vaguear, agora mais tranquilo, pela orla da bolanha do Poidon, com o seu RPG-2 ao ombro, ou a sua velha Simonov a tiracolo, guardando desta vez os bons espíritos da terra. Para que eles iluminem o presente e o futuro daquela terra onde um dia nasceu uma criança, de seu nome, Malan Mané, e a quem cedo, talvez demasiado cedo, deram uma arma e uma bandeira. E onde nós fomos soldados contra a nossa própria guerra. Eu, pelo menos, fui. L.G. (10.08.2005)
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Notas (L.G.)
(1) Sobre a Op Nada Consta, vd. post de 30 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969)
(2) Vd. post de 25 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXI: Cartazes de propaganda dirigidos aos "homens do mato"
(3) Bambandinca foi atacada ("flagelada", segundo a expressão, mais light, das autoridades militares locais), no dia 28 de Maio de 1969, "durante 40 minutos", por um grupo de uma centena de guerrilheiros ("elementos IN"), usando um forte dispositivo militar que incluiu, entre outros, 3 canhões sem recuo, além de vários morteiros, lança-rockets e armas automáticas. Apesar da envergadura do ataque, houve apenas 2 feridos entre as NT. Por razões disciplinares, todos os oficiais superiores do BCAC 2852 foram punidos pelo Com-Chefe, na sequência desta ousada iniciativa do PAIGC, conduzida em resposta à grande operação de limpeza no Sector L1 a que foi dado o nome de código Op Lança Afiada (8 a 18 de Março de 1969).Vd. post de 31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)
(4) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12
Guiné. Bambadinca. 3 de Setembro de 1969 (revisto)
Malan Mané. Vinte e poucos anos ? Vinte ? Menos de vinte ? Talvez da idade dos nossos soldados mais novos. Temos alguns com dezasseis ou dezassete. Não tenho qualquer jeito para advinhar a idade dos africanos. Mas ele próprio não saberia responder. Aqui ninguém tem certidão de nascimento, cédula pessoal ou bilhete de identidade. Para a tropa, do recrutamento local, é-se escolhido a olhómetro: altura, peso, massa muscular… A idade não conta. Experiência de combate, quase todos a têm, os fulas desta região…
Malan Mané. Mandinga do regulado do Cuor, lá para os lados do Enxalé. Podia ter sido nosso soldado. Temos dois mandingas na nossa companhia [CCAÇ 12]: Malan Nanqui e Ussumane Sissé… Mas há mais outros dois Malan, de etnia fula: Malan Baldé e Malan Jau…
Malan Mané. Roqueteiro do bigrupo de Mamadu Indjai, um comandante de guerrilha famoso, também ele de etnia mandinga. Veste um dolmen, velho, de cor já irreconhecível. Calças rotas no joelho. Apresenta-se descalço. Está deprimido, talvez aterrorizado. Cair, vivo, nas mãos dos tugas é pior desgraça do que do que ser morto em combate – deve ter ele pensado muitas vezes no mato. Ou se calhar nunca pensou nisso. É uma pergunta que não ele entende ou a que não quer responder. Pelo menos, em público, neste cenário de circo, enjaulado como um animal selvagem, rodeado de hominídeos... Os paras, esses, não tiveram grande dificuldade em desatar-lhe a língua. Bastou-lhes encostar a faca de mato à barriga. Foi apanhado com o seu RPG-2 na mata do Rio Biesse, na região de Camará, lá para os lados de Candamã, quando o céu desabou em cima dele (1).
Está agora às ordens do comando do sector [L1]. De mãos algemadas, metido numa gaiola de jardim zoológico. Espectáculo degradante. A Convenção de Genebra sobre os prisioneiros de guerra não se aplica aqui . Oficialmente o meu país não está em guerra com ninguém, com nenhum outro estado soberano. Oficialmente não há nem pode haver prisoneiros de guerra no meu país, do Minho a Timor, passando pela Guiné.
Malan Mané é bandido. Homem do mato. Turra (2). Faz-me lembrar o Gungunhana, passeado em gaiola por Lisboa, em 1896, como troféu de caça do Mouzinho de Albuquerque. Está aqui mesmo ao lado das instalações do rancho [refeitório dos praças]. Entre a escola e o posto administrativo.
Há um correpio de gente que vem ver o turra (sic) capturado pelos paras [na Op Nada Consta, em 28 de Agosto, no sub-sector de Mansambo] (1). Participámos na operação. Mas a nós, ao Pelotão de Caçadores Nativos e aos gajos de Mansambo coube-nos fazer o papel da tropa-macaca.
Básicos, cozinheiros, padeiros, pintores, carpinteiros, fiéis de depósito de géneros, faxinas de bar, maqueiros, corneteiros, mecânicos auto-rodas, desempanadores, condutores auto, escriturários, amanuenses, quarteleiros, sapadores, ajudantes de capelania, operadores de transmissões, radiolegrafistas, cabos cripto, municiadores e apontadores de metralhadora Browning, caçadores e suas presas, todo o mundo tem hoje espectáculo de borla. Até a senhora professora, a única branca que reside dentro do perímetro do aquartelamento, espreita à janela da escola. Deve estar a olhar para o prisioneiro como o bicho do mato que lhe apareceu nos pesadelos nocturnos. Ou talvez não. Nunca lhe soube a idade nem o nome. Vejo-a agora de relance. E pergunto-me como terá reagido ela ao ataque ao aquartelamento em 28 de Maio de 1969. Se calhar portou-se com mais dignidade do que alguns dos militares que deveriam saber defender a sua unidade (3).
Intriga-me a situação desta estranha personagem: uma mulher branca, mestre escola, talvez à beira da reforma, que insiste em viver aqui, no cú do mundo. Numa terra inóspita. Não sei donde veio. O chefe de posto é de Cabo Verde, como manda a tradição. Desde, pelo menos, os tempos de Honório Pereira Barreto, comendador da Ordem de Cristo, tenente-coronel de Artilharia de segunda linha, governador de Bissau, de Cacheu e da província da Guiné, por carta de 24 de Janeiro de 1885...
Na realidade, a Guiné é (ou foi) uma colónia de Cabo Verde. Missionários e missionárias, oriundos da Europa, nem sequer os há aqui. Comerciantes tugas, só dois, perfeitamente cafrealizados, como se dizia no vocabulário colonial e racista dos europeus do Séc. XIX que exploravam estas paragens inóspitas.
Os dois tugas vivem fora do perímetro do quartel. Um deles tem um bando de filhos, de mãe negra. O Rendeiro. Já nos convidou para lá ir comer a sua famosa galinha à cafriela. Fala dos filhos com ternura. Uma das raparigas está a estudar na Metrópole. Contou-nos a sua história. Veio da Murtosa, salvo erro, muito jovem ainda. Aos dezassete anos. Compra mancarra, vende arroz. Procura cultivar boas relações com a tropa. Acho-o demasiado afável.
Mas voltando ao Malan Mané: uns mandam-lhe piropos, outros dão-lhe um cigarro. Ou oferecem-lhe uma garrafa de cerveja, que ele recusa, delicadamente, como bom muçulmano que deve ser. Não entende as provocações que lhe dirigem:
- Então, pá, quantos tugas já mataste com o teu rocket ?
Há ordens, do comando, para o tratar bem. Tem-se mostrado colaborante. E para começar nada como um bom prato de bianda, arroz com mafé. Come com dignidade. No mato a vida é dura. Uma refeição por dia, um maço de cigarros por mês. Farda e botas novas só para os chefes. Bajudas, manga di sabe, também só para os chefes, imagino. Todos iguais, mas uns mais iguais do que outros.
Tinha começado a aprender o português há pouco tempo. Sabe algumas letras do alfabeto latino. Não sei se chegou a aprender o Alcorão. Com a guerra, a sociedade mandinga desintegrou-se. Muitos mandingas foram no mato. Com os balantas e os beafadas. Mas só fala o crioulo e o seu dialecto mandinga O crioulo é a língua tanto do colonizador como do PAIGC. Ninguém se entende nesta Babel sem o crioulo que é uma genial criação dos homens, de diferentes grupos étnicos, que querem comunicar entre si. O exército não faz, porém, qualquer esforço para nos ensinar o crioulo.
Malan fala pouco, a custo. As suas respostas às minhas perguntas são lacónicas, arrancadas a ferro e misturadas com um leve sorriso resignado. Procuro transmitir-lhe sinais de simpatia e de compaixão.
Foi no mato ainda djubi [não posso precisar a idade]. Não deve ter conhecido outra vida. Chefe da tabanca levara menino e mulher para o Morès com medo de avião dos tugas. Primeiro deram-lhe uma semi-automática Simonov (uma arma bem melhor que a nossa velha Mauser que está distribuída ao pessoal das tabancas em autodefesa). Começou como milícia: fazia segurança à tabanca e ao pessoal que ia lavrar a bolanha. Mais tarde, é promovido a combatente como municiador do RPG-2. Passou depois a apontador. Há um ano atrás foi ferido em combate, no Xime, quando atacava lancha grande em Ponta Varela.
Sabia quem era o novo homem grande Bissau.
- E homem grande di bó ?, perguntei-lhe eu.
- Amílcar Cabral. – Respondeu-me, de pronto, não sem uma certa expressão de orgulho (ou foi impressão minha ?). Não, nunca o tinha visto. Só o conhecia de nome e de retrato. Comissário político falava dele e da "luta di partido africano".
O intérprete é o Abibo Jau, o bom gigante epiléptico com o seu metro e noventa e tal de altura e os seus mais de 100 quilos de peso. Não sei quem lhe descobriu o seu talento para torcionário. Pertence ao 3º Gr Comb, do Alferes Rodrigues. É visível o medo que o Abibo inspira ao Malan Mané. Um fula e um mandinga, frente a frente. Velhos ajustes de contas com a memória colectiva de cada grupo vêm provavelmente ao de cima.
Fulas e mandingas já foram os donos destas terras. Cada um, no seu tempo. Teixeira Pinto vingou os aristocráticos mandingas, ao subjugar os fulas. Em contrapartida, deixou a estes os papéis subalternos, mais sujos, do aparelho de repressão administrativo-militar. Os pobres dos fulas tornam-se os maus da fita, aos olhos dos outros povos da Guiné. Aqui, pelo menos na zona leste, os mandingas e os balantas têm um ódio de estimação aos fulas. Um ódio que é recíproco. O poder sempre soube dividir (e aterrorizar) para reinar.
Malan é franzino e frágil, embora de estatura normal. Uma criança crescida na guerra. Procuro tranquilizá-lo. Mas não adianta. Vêm buscá-lo para mais interrogatórios. O interrogador do BCAÇ 2852 é o famigerado sargento do cavalo marinho do PEL REC INFO. Não posso com estes gajos. Fazem o trabalho sujo. Trabalham em estreita colaboração com os pides de Bafatá.
Explorando-se o seu estado físico e psicológico, e muito provavelmente sob tortura ou ameaças físicas, o Malan Mané acabou por dar com a língua nos dentes e revelar mais algumas informações preciosas, comprometendo a segurança dos seus companheiros. Foi a minha primeira grande decepção em relação aos guerrilheiros do PAIGC. Ingenuamente, julgava-os da estatura humanal, moral e até intelectual de um Che Guevara ou de um Amílcar Cabral.
Acredito que a escola de guerrilha do PAIGC tenha formado já grandes combatentes e comandantes. Mas o pobre do Malan Mané não é muito diferente dos meus soldados e de mim próprio: fomos todos apanhados na rede como cães vadios; somos todos vítimas da História; nascemos no sítio e na data errados… Se eu fosse guinéu, muito provavelmente estaria a combater, com ou sem convicção, num dos dois lados da barricada.
PS – O Malan Mané, se eu hoje ainda for vivo, terá por volta de 55 anos. Há muito que ultrapassou a esperança média de vida, à nascença, estimada para os homens da sua geração. Se alguém o descobrir, lá para os lados do Enxalé ou nalguma outra tabanca do antigo regulado do Cuor, mandem-lhe um abraço meu.
A última vez que o vi, ia preso por uma corda, à guarda do Iero Jau (4). Foi gravemente ferido por um diligrama nosso, no assalto a um acampamento da guerrilha na Ponta do Inglês. Na madrugada do dia 7 de Setembro de 1969 (4). Não sei se sobreviveu aos ferimentos. O Iero Jau morreu. Morreu a meu lado. O Malan, também a meu lado, ficou gravemente ferido e foi evacuado para Bissau. Mesmo que tenha sobrevivido e chegado a ver a independência da sua terra por que lutou, não sei o que lhe terá acontecido depois. Não sei como é que o PAIGC, organizado à boa maneira marxista-leninista, terá lidado com este e outros casos de colaboracionismo de antigos combatentes, feitos prisioneiros. Colaboracionismo ? Delação ? Traição ?
Um homem não nasce herói. Mas eu posso testemunhar que o Malan Mané tentou resistir, tentou ludibriar-nos. Não demos com o acampamento à primeira, em 25 de Agosto de 1969. Ele alegou que o capim estava muito alto e que se perdera. O tanas! O tipo conhecia aquilo de cor e salteado, de olhos vendados. Resistiu enquanto pôde, o pobre diabo. Só lá voltámos, à toca do lobo, no dia 7 de Setembro (Op Pato Real).
Os espíritos da floresta (bons ou maus, quem sabe distingui-los ?) não lhe perdoaram. Se ele morreu, de morte natural, em consequência dos seus ferimentos, ou de morte matada, dentro da lógica infernal dos movimentos revolucionários que acabam sempre por devorar os seus filhos, espero ao menos que o seu fantasma continue a vaguear, agora mais tranquilo, pela orla da bolanha do Poidon, com o seu RPG-2 ao ombro, ou a sua velha Simonov a tiracolo, guardando desta vez os bons espíritos da terra. Para que eles iluminem o presente e o futuro daquela terra onde um dia nasceu uma criança, de seu nome, Malan Mané, e a quem cedo, talvez demasiado cedo, deram uma arma e uma bandeira. E onde nós fomos soldados contra a nossa própria guerra. Eu, pelo menos, fui. L.G. (10.08.2005)
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Notas (L.G.)
(1) Sobre a Op Nada Consta, vd. post de 30 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969)
(2) Vd. post de 25 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXI: Cartazes de propaganda dirigidos aos "homens do mato"
(3) Bambandinca foi atacada ("flagelada", segundo a expressão, mais light, das autoridades militares locais), no dia 28 de Maio de 1969, "durante 40 minutos", por um grupo de uma centena de guerrilheiros ("elementos IN"), usando um forte dispositivo militar que incluiu, entre outros, 3 canhões sem recuo, além de vários morteiros, lança-rockets e armas automáticas. Apesar da envergadura do ataque, houve apenas 2 feridos entre as NT. Por razões disciplinares, todos os oficiais superiores do BCAC 2852 foram punidos pelo Com-Chefe, na sequência desta ousada iniciativa do PAIGC, conduzida em resposta à grande operação de limpeza no Sector L1 a que foi dado o nome de código Op Lança Afiada (8 a 18 de Março de 1969).Vd. post de 31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)
(4) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12
segunda-feira, 8 de agosto de 2005
Guiné 63/74 - P146: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12 (Luís Graça)
Extractos de: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II. 11-13. Selecção e notas de L.G.
Resumo: A CCAÇ 2590/CCAÇ 12, composta por quadro metropolitanos, chegados à Guiné em finais de Maio de 1969 (1), e por soldados africanos, praticamente todos oriundos do chão fula que tinham feito a sua instrução básica e de especialidade em Contuboel (2), é dada como operacional, a partir de 18 de Julho de 1969.
Colocada em Bambadinca (Sector L1), como unidade de intervenção, fica pronta a actuar às ordens de qualquer um dos sectores da Zona Leste da Guiné (em especial dos Sectores L1, L3 e L5). Tem o seu baptismo de fogo logo imediatamente a seguir, em Madina Xaquili, no sub-sector de Galomaro (3).
3. Setembro/69 (Parte I) – Op Pato Rufia ou primeiro assalto a um objectivo IN
O guerrilheiro [Malan Mané] que foi aprisionado pelos paraquedistas [na Op Nada Consta, realizada em conjunto com a CCAÇ 12 e outras forças] (4) ficou depois à disposição do BCAÇ 2852 [, na sede do sector L1, em Bambadinca ]. Explorando-se o seu estado psicológico, obtiveram-se informações que levariam à localização de um outro acampamento IN no sub-sector do Xime.
Tratava-se de um destacamento avançado a escassas horas do Xime, composto por 5 cubatas paralelamente à estrada Xime-Ponta do Inglês, do lado oeste, internadas na mata 150 metros.
Um RPG-2, com o respectivo porta-granadas. Em russo: Ruchnoi Protivotankovii Granatomet (RPG-2). Uma temível arma que data do princípio dos anos 50. Deixou, entretanto, de ser usada pelo exército russo. Mas foi muito popular entre os exércitos de guerrilha em todo o mundo. Era a bazuca dos pobres... É uma arma muito leve (tubo= 2,86kg.; tubo + granada= 4,48 kg.) e de fácil manobra. Alcance efectivo= 100 metros. Fonte: The Sword of Motherland Foundation (2005), com a devida vénia.
O prisioneiro estivera lá três meses antes, e na altura os efectivos eram de cerca de 40 homens, incluindo um grupo especial de roqueteiros que todas as manhãs se deslocavam para a Ponta Varela afim de atacar as embarcações em circulação no Rio Geba. O armamento era constituído por RPG-2 (seis) e armas ligeiras (5).
Com base nestas informações planeou-se imediatamente Op Pato Rufia afim de executar um golpe de mão sobre o acampamento em referência, com o prisioneiro a servir de guia.
O início do golpe de mão estava previsto para a madrugada do dia 25 de Agosto, mas o guia [, o prisioneiro Malan Mané,] perdeu-se devido à escuridão e à altura do capim sendo mais [recomendável fazer um, ilegível ] prévio reconhecimento da área.
A 27 de Agosto, o 2º Gr Comb [da CCAÇ 12] e forças da CART 2520 [Xime] detectariam uma casa de mato abandonada e uma granada de morteiro 60 que não foi levantada por não apresentar garantias de segurança, a escassas centenas de metros do acampamento IN cujos trilhos de acesso foram devidamente reconhecidos pelo prisioneiro.
No regresso ao Xime verificou-se que o trilho, feito pelas NT dois dias antes, estava minado nos pontos de confluência com a estrada da Ponta do Inglês, tendo os picadores detectado cinco minas anti-pessoal. Tornava-se evidente que o IN fora alertado e que [redobrara] de vigilância a partir de então.
A 7 de Setembro, repetia-se a Op Pato Rufia, com a seguinte composição e articulação das forças:
(i) Dest A: CCAÇ 12 a 3 Gr Comb (+);
(ii) Dest B: CART 2520 a 2 Gr Comb (+);
(iii) Dest C: PEL CAÇ NAT 53, 63 e 52 (-).
Desenrolar da acção:
A progressão iniciou-se pelas 1.30h da noite, atingindo-se as proximidades do local do acampamento já perto da madrugada. Os Dest B e C dirigiram-se para os seus locais de emboscada, enquanto o Dest A formava em linha paralelamente à estrada.
Sabia-se que o IN tinha uma sentinela avançada e que os elementos do grupo dormiam com as armas à cabeceira. A aproximação através do capim alto e da mata densa facilmente denunciava as NT.
E, de facto, ainda mal o Dest A tinha iniciado a progressão en linha quando foi alvejado por duas rajadas de pistola-metralhadora que deram o sinal de alarme. Imediatamente as NT começaram a ser batidas por fogo de lança-rockets e armas automáticas a que reagiram prontamente.
Foi nessa altura que um dilagrama, ao ser descavilhado, rebentou à boca da arma, por deficiência da alavanca de segurança, tendo atingido o prisioneiro Malan Mané (6) e o Soldado Iero Jau (2º Gr Comb) que o conduzia e que teve morte quase instantânea. Entretanto já tinham sido feridos o 1º Cabo Mateus (3º Cr Comb) com um tiro no joelho e dois picadores da milícia [do Xime].
Continuando a progressão, e tendo ficado 1 Gr Comb (-) a montar segurança aos feridos, atingiu-se o acampamento constituído por 9 cubatas, para quatro a cinco homens cada, e que o IN tinha abandonado precipitadamente. Na fuga urn pequeno grupo foi cair na zona de emboscada do Dest B que abriu fogo, tendo o IN reagido com um disparo de RPG-2 que causou vários feridos ligeiros às NT.
Entretanto já os Gr Comb do Dest A tinham literalmente saqueado as casas de mato, recolhendo documentos, livros didácticos, folhetos de propaganda e objectos pessoais (inclusive maços de tabaco russo), além de material de guerra.
À ordem, as forças dos 3 Dest reuniram-se no local do acampamento e colaboraram numa batida minuciosa à zona a fim de detectar os vestígios deixados pelo IN que retirou, disperso, em debandada, na direcção de Buruntoni e Ponta Varela.
Além de vários feridos prováveis, o IN sofreu 2 mortos confirmados (posteriormente).
Feita a evacuação dos feridos, os 3 Dest receberam ordem de retirar. Entre Gundagué Beafada e Madina Colhido foram vários rebentamentos na área do acampamento. Presumindo que as NT ainda estivessem no local, o IN fizera fogo de reconhecimento na direcção do Buruntoni.
Por volta das l6h, as nossas forças chegavam ao aquartelamento do Xime, tendo o Dest A transportado em maca o cadáver do soldado Iero Jau (7).
O material capturado pelo Dest A (CCAÇ 12), no valor de 10.825$00, foi o seguinte:
Granadas de LGFog-RPG-2= 30
Granadas de Mort 60 = 6
Granadas de mão defensivas = 2
Minas anti-pessoal = 3
Munições 7,62 Pist Metr PPSH = 610
Munições 7,62 Esp Aut Kalashnikov e Met Lig Degtyarev = 88
Carregadores Esp Aut Kalashikov c/bolsa = 3
Carregadores Metr Lig Degtyarev=2
Carregadores Pist Metr. PPSH = 2
Cartuchos propulsores = 2
Cargas suplementares de RPG-2 = 34
Saco de campanha = 1
Cantil = 1
Marmita = 1
Almotolias =2
Até ao fim do mês, os grupos IN do Xime manifestar-se-iam três vezes:
(i) a 24 emboscando na área de Poindon/Ponta Varela forças da CART 2520 que tiveram um ferido;
(ii) a 28, flagelando em Darsalame Baio com costureirinhas [pistolas metralhadoras PPSH] e rockets o 1º e o 3º Gr Comb da CCAÇ 12 durante a Op Prato Raso;
(iii) e a 29, desencadeando uma emboscada contra forças da CART 2339 [Mansambo] que sofreram um morto e um ferido grave, na estrada Mansambo-Bambadinca.
(Continua)
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Notas (L.G.)
(1) Vd. post de 23 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXVI: (i) A bordo do Niassa; (ii) Chegada a Bissau .
Vd. ainda +post, com a mesma data > Guiné 69/71 - LXXIV: A nossa mobilização para o CTI da Guiné (CCAÇ 12)
(2) Vd. post de 29 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVI: No 'oásis de paz' de Contuboel (1969)
(3) Vd. post de 29 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVIII: O baptismo de fogo da CCAÇ 12, em farda nº 3, em Madina Xaquili (Julho de 1969)
(4) Vd. post de 30 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969)
(5) Sobre o armamento da guerrilha, vd. post de 16 de maio de 2005 > Guiné 69/71 - XIX: O festival das kalash, das 'costureirinhas', dos rockets e dos katiousha .
Uma apresentação e uma descrição minuciosas do RPG-2, o temível lança-rockets usado pelos guerrilheiros do PAIGC, podem ser lidos no sítio russo, em inglês, dedicado à história militar da Rússia (The Sword of Motherland Foundation).
(6) O dilagrama que provocou este trágico acidente era empunhado por um graduado da CCAÇ 12, que não era apontador habitual de diligrama do seu grupo de combate. No relatório omite-se, por conveniência ou cumplicidade, este facto grave. O Iero Jaló, de etnia fula, morreu ao meu lado. O Malan Mané, o prisioneiro, de etnia mandinga, foi gravemente ferido, tendo sido evacuado para Bissau. Gostaria de saber o que é feito dele hoje: se conseguiu sobreviveu aos ferimentos, se ainda é vivo, se se lembra, à distância de 36 anos, destes loucos meses de Agosto e Septembro de 1969...
(7) Fomos no dia seguinte enterrá-lo na sua aldeia, no regulado do Cossé (se não me engano...). Teve honras militares. Lembro-me do ridículo atroz da cerimónia...
Resumo: A CCAÇ 2590/CCAÇ 12, composta por quadro metropolitanos, chegados à Guiné em finais de Maio de 1969 (1), e por soldados africanos, praticamente todos oriundos do chão fula que tinham feito a sua instrução básica e de especialidade em Contuboel (2), é dada como operacional, a partir de 18 de Julho de 1969.
Colocada em Bambadinca (Sector L1), como unidade de intervenção, fica pronta a actuar às ordens de qualquer um dos sectores da Zona Leste da Guiné (em especial dos Sectores L1, L3 e L5). Tem o seu baptismo de fogo logo imediatamente a seguir, em Madina Xaquili, no sub-sector de Galomaro (3).
3. Setembro/69 (Parte I) – Op Pato Rufia ou primeiro assalto a um objectivo IN
O guerrilheiro [Malan Mané] que foi aprisionado pelos paraquedistas [na Op Nada Consta, realizada em conjunto com a CCAÇ 12 e outras forças] (4) ficou depois à disposição do BCAÇ 2852 [, na sede do sector L1, em Bambadinca ]. Explorando-se o seu estado psicológico, obtiveram-se informações que levariam à localização de um outro acampamento IN no sub-sector do Xime.
Tratava-se de um destacamento avançado a escassas horas do Xime, composto por 5 cubatas paralelamente à estrada Xime-Ponta do Inglês, do lado oeste, internadas na mata 150 metros.
Um RPG-2, com o respectivo porta-granadas. Em russo: Ruchnoi Protivotankovii Granatomet (RPG-2). Uma temível arma que data do princípio dos anos 50. Deixou, entretanto, de ser usada pelo exército russo. Mas foi muito popular entre os exércitos de guerrilha em todo o mundo. Era a bazuca dos pobres... É uma arma muito leve (tubo= 2,86kg.; tubo + granada= 4,48 kg.) e de fácil manobra. Alcance efectivo= 100 metros. Fonte: The Sword of Motherland Foundation (2005), com a devida vénia.
O prisioneiro estivera lá três meses antes, e na altura os efectivos eram de cerca de 40 homens, incluindo um grupo especial de roqueteiros que todas as manhãs se deslocavam para a Ponta Varela afim de atacar as embarcações em circulação no Rio Geba. O armamento era constituído por RPG-2 (seis) e armas ligeiras (5).
Com base nestas informações planeou-se imediatamente Op Pato Rufia afim de executar um golpe de mão sobre o acampamento em referência, com o prisioneiro a servir de guia.
O início do golpe de mão estava previsto para a madrugada do dia 25 de Agosto, mas o guia [, o prisioneiro Malan Mané,] perdeu-se devido à escuridão e à altura do capim sendo mais [recomendável fazer um, ilegível ] prévio reconhecimento da área.
A 27 de Agosto, o 2º Gr Comb [da CCAÇ 12] e forças da CART 2520 [Xime] detectariam uma casa de mato abandonada e uma granada de morteiro 60 que não foi levantada por não apresentar garantias de segurança, a escassas centenas de metros do acampamento IN cujos trilhos de acesso foram devidamente reconhecidos pelo prisioneiro.
No regresso ao Xime verificou-se que o trilho, feito pelas NT dois dias antes, estava minado nos pontos de confluência com a estrada da Ponta do Inglês, tendo os picadores detectado cinco minas anti-pessoal. Tornava-se evidente que o IN fora alertado e que [redobrara] de vigilância a partir de então.
A 7 de Setembro, repetia-se a Op Pato Rufia, com a seguinte composição e articulação das forças:
(i) Dest A: CCAÇ 12 a 3 Gr Comb (+);
(ii) Dest B: CART 2520 a 2 Gr Comb (+);
(iii) Dest C: PEL CAÇ NAT 53, 63 e 52 (-).
Desenrolar da acção:
A progressão iniciou-se pelas 1.30h da noite, atingindo-se as proximidades do local do acampamento já perto da madrugada. Os Dest B e C dirigiram-se para os seus locais de emboscada, enquanto o Dest A formava em linha paralelamente à estrada.
Sabia-se que o IN tinha uma sentinela avançada e que os elementos do grupo dormiam com as armas à cabeceira. A aproximação através do capim alto e da mata densa facilmente denunciava as NT.
E, de facto, ainda mal o Dest A tinha iniciado a progressão en linha quando foi alvejado por duas rajadas de pistola-metralhadora que deram o sinal de alarme. Imediatamente as NT começaram a ser batidas por fogo de lança-rockets e armas automáticas a que reagiram prontamente.
Foi nessa altura que um dilagrama, ao ser descavilhado, rebentou à boca da arma, por deficiência da alavanca de segurança, tendo atingido o prisioneiro Malan Mané (6) e o Soldado Iero Jau (2º Gr Comb) que o conduzia e que teve morte quase instantânea. Entretanto já tinham sido feridos o 1º Cabo Mateus (3º Cr Comb) com um tiro no joelho e dois picadores da milícia [do Xime].
Continuando a progressão, e tendo ficado 1 Gr Comb (-) a montar segurança aos feridos, atingiu-se o acampamento constituído por 9 cubatas, para quatro a cinco homens cada, e que o IN tinha abandonado precipitadamente. Na fuga urn pequeno grupo foi cair na zona de emboscada do Dest B que abriu fogo, tendo o IN reagido com um disparo de RPG-2 que causou vários feridos ligeiros às NT.
Entretanto já os Gr Comb do Dest A tinham literalmente saqueado as casas de mato, recolhendo documentos, livros didácticos, folhetos de propaganda e objectos pessoais (inclusive maços de tabaco russo), além de material de guerra.
À ordem, as forças dos 3 Dest reuniram-se no local do acampamento e colaboraram numa batida minuciosa à zona a fim de detectar os vestígios deixados pelo IN que retirou, disperso, em debandada, na direcção de Buruntoni e Ponta Varela.
Além de vários feridos prováveis, o IN sofreu 2 mortos confirmados (posteriormente).
Feita a evacuação dos feridos, os 3 Dest receberam ordem de retirar. Entre Gundagué Beafada e Madina Colhido foram vários rebentamentos na área do acampamento. Presumindo que as NT ainda estivessem no local, o IN fizera fogo de reconhecimento na direcção do Buruntoni.
Por volta das l6h, as nossas forças chegavam ao aquartelamento do Xime, tendo o Dest A transportado em maca o cadáver do soldado Iero Jau (7).
O material capturado pelo Dest A (CCAÇ 12), no valor de 10.825$00, foi o seguinte:
Granadas de LGFog-RPG-2= 30
Granadas de Mort 60 = 6
Granadas de mão defensivas = 2
Minas anti-pessoal = 3
Munições 7,62 Pist Metr PPSH = 610
Munições 7,62 Esp Aut Kalashnikov e Met Lig Degtyarev = 88
Carregadores Esp Aut Kalashikov c/bolsa = 3
Carregadores Metr Lig Degtyarev=2
Carregadores Pist Metr. PPSH = 2
Cartuchos propulsores = 2
Cargas suplementares de RPG-2 = 34
Saco de campanha = 1
Cantil = 1
Marmita = 1
Almotolias =2
Até ao fim do mês, os grupos IN do Xime manifestar-se-iam três vezes:
(i) a 24 emboscando na área de Poindon/Ponta Varela forças da CART 2520 que tiveram um ferido;
(ii) a 28, flagelando em Darsalame Baio com costureirinhas [pistolas metralhadoras PPSH] e rockets o 1º e o 3º Gr Comb da CCAÇ 12 durante a Op Prato Raso;
(iii) e a 29, desencadeando uma emboscada contra forças da CART 2339 [Mansambo] que sofreram um morto e um ferido grave, na estrada Mansambo-Bambadinca.
(Continua)
________
Notas (L.G.)
(1) Vd. post de 23 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXVI: (i) A bordo do Niassa; (ii) Chegada a Bissau .
Vd. ainda +post, com a mesma data > Guiné 69/71 - LXXIV: A nossa mobilização para o CTI da Guiné (CCAÇ 12)
(2) Vd. post de 29 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVI: No 'oásis de paz' de Contuboel (1969)
(3) Vd. post de 29 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVIII: O baptismo de fogo da CCAÇ 12, em farda nº 3, em Madina Xaquili (Julho de 1969)
(4) Vd. post de 30 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969)
(5) Sobre o armamento da guerrilha, vd. post de 16 de maio de 2005 > Guiné 69/71 - XIX: O festival das kalash, das 'costureirinhas', dos rockets e dos katiousha .
Uma apresentação e uma descrição minuciosas do RPG-2, o temível lança-rockets usado pelos guerrilheiros do PAIGC, podem ser lidos no sítio russo, em inglês, dedicado à história militar da Rússia (The Sword of Motherland Foundation).
(6) O dilagrama que provocou este trágico acidente era empunhado por um graduado da CCAÇ 12, que não era apontador habitual de diligrama do seu grupo de combate. No relatório omite-se, por conveniência ou cumplicidade, este facto grave. O Iero Jaló, de etnia fula, morreu ao meu lado. O Malan Mané, o prisioneiro, de etnia mandinga, foi gravemente ferido, tendo sido evacuado para Bissau. Gostaria de saber o que é feito dele hoje: se conseguiu sobreviveu aos ferimentos, se ainda é vivo, se se lembra, à distância de 36 anos, destes loucos meses de Agosto e Septembro de 1969...
(7) Fomos no dia seguinte enterrá-lo na sua aldeia, no regulado do Cossé (se não me engano...). Teve honras militares. Lembro-me do ridículo atroz da cerimónia...
domingo, 7 de agosto de 2005
Guiné 63/74 - P145: Bissalanca, Bambadinca, Anura... ou três fotos com legenda (1) (Marques Lopes)
Textos e fotos avulsos, enviados pelo A. Marques Lopes, coronel, DFA, na situação de reforma, e membro da tertúlia dos ex-combatentes da Guiné:
1. Este avião foi capturado à Guiné-Conakry em 27 de Março de 1968. Estava eu, nos princípios de Maio desse ano, à espera da DO [Dormier] que me havia de levar a Barro quando o vi.
O sentinela da Polícia Aérea que estava a montar guarda explicou-me o que era. Preparei-me para tirar uma fotografia, mas ele disse:
Não pode tirar fotografia, meu alferes, é proibido!". Perante isso, disse-lhe simplesmente:
- Vira a cara para o lado e já não vês nada... - E tirei a fotografia.
2. Almoço no Clube de Caça da Anura, em 1998. Eu sou o segundo do lado direito, no primeiro plano. O segundo do lado esquerdo, no primeiro plano, é o Rocha, economista casado com a Juvelina Cabral (irmã do Amílcar Cabral), que moravam na altura em Bissau (estão actualmente em Angola).
Mesmo de frente, o homem de bigodes é o comandante do navio mercante que trouxe os portugueses quando se deu o golpe de Ansumane Mané; ao seu lado direito está o gestor da GUIPOR (empresa detentora da exploração do Porto de Bissau, na altura em mãos de portugueses).
3. Alô, pessoal que esteve em Bambadinca!
Em 1998, passei também por Bambadinca. Esta é a Casa do Camilo. Lembram-se? Ele já está lá, pelo menos, há várias dezenas de anos... Estou com a minha amiga Lita. O rapaz negro [noutra foto, não inserida aqui] é o tal Cinq, meu companheiro de várias viagens.
Comentário do Humberto Reis (ex-furriel miliciano, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71, e também membro da nossa tertúlia):
Eu, com esse nome, Camilo, só me lembro de uma casa comercial em Bafatá, ao lado da fábrica do gelo.
Em Bambadinca só me recordo de dois comerciantes portugueses: (i) o Zé Maria cá em baixo próximo do cais, do lado esquerdo de quem ia para o aquartelamento; (ii) e lá em cima, mas do lado direito, o Rendeiro. Este último lembro-me de o ver na RTP, em 74/75, na época dos retornados, em Castelo Branco ou na Covilhã.
PS - O Didinho deu-me conhecimento destes novos portais sobre a Guiné-Bissau. São portais sedeados em Portugal, como vêem, embora se apresentem, ou se façam apresentar, como sendo de cariz oficial do Governo da Guiné-Bissau. Que se estará a preparar?
Têm em comum o facto de a concepção, o desenho, a edição e a publicação serem da responsabilidade do nosso já conhecido Fernando Casimiro (Didinho). a Vale a pena ir consultando (os três sítios), para ver as semelhanças... e as diferenças.
Os endereços dos dois novos portais são os seguintes:
Portal Nacional da República da Guiné-Bissau
Guiné-Bissau: Portal do Governo
1. Este avião foi capturado à Guiné-Conakry em 27 de Março de 1968. Estava eu, nos princípios de Maio desse ano, à espera da DO [Dormier] que me havia de levar a Barro quando o vi.
O sentinela da Polícia Aérea que estava a montar guarda explicou-me o que era. Preparei-me para tirar uma fotografia, mas ele disse:
Não pode tirar fotografia, meu alferes, é proibido!". Perante isso, disse-lhe simplesmente:
- Vira a cara para o lado e já não vês nada... - E tirei a fotografia.
2. Almoço no Clube de Caça da Anura, em 1998. Eu sou o segundo do lado direito, no primeiro plano. O segundo do lado esquerdo, no primeiro plano, é o Rocha, economista casado com a Juvelina Cabral (irmã do Amílcar Cabral), que moravam na altura em Bissau (estão actualmente em Angola).
Mesmo de frente, o homem de bigodes é o comandante do navio mercante que trouxe os portugueses quando se deu o golpe de Ansumane Mané; ao seu lado direito está o gestor da GUIPOR (empresa detentora da exploração do Porto de Bissau, na altura em mãos de portugueses).
3. Alô, pessoal que esteve em Bambadinca!
Em 1998, passei também por Bambadinca. Esta é a Casa do Camilo. Lembram-se? Ele já está lá, pelo menos, há várias dezenas de anos... Estou com a minha amiga Lita. O rapaz negro [noutra foto, não inserida aqui] é o tal Cinq, meu companheiro de várias viagens.
Comentário do Humberto Reis (ex-furriel miliciano, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71, e também membro da nossa tertúlia):
Eu, com esse nome, Camilo, só me lembro de uma casa comercial em Bafatá, ao lado da fábrica do gelo.
Em Bambadinca só me recordo de dois comerciantes portugueses: (i) o Zé Maria cá em baixo próximo do cais, do lado esquerdo de quem ia para o aquartelamento; (ii) e lá em cima, mas do lado direito, o Rendeiro. Este último lembro-me de o ver na RTP, em 74/75, na época dos retornados, em Castelo Branco ou na Covilhã.
PS - O Didinho deu-me conhecimento destes novos portais sobre a Guiné-Bissau. São portais sedeados em Portugal, como vêem, embora se apresentem, ou se façam apresentar, como sendo de cariz oficial do Governo da Guiné-Bissau. Que se estará a preparar?
Têm em comum o facto de a concepção, o desenho, a edição e a publicação serem da responsabilidade do nosso já conhecido Fernando Casimiro (Didinho). a Vale a pena ir consultando (os três sítios), para ver as semelhanças... e as diferenças.
Os endereços dos dois novos portais são os seguintes:
Portal Nacional da República da Guiné-Bissau
Guiné-Bissau: Portal do Governo
Guiné 63/74 - P144: Bibliografia de uma guerra (11): Salgueiro Maia (Jorge Santos)
Selecção e notas de Jorge Santos.
AUTOR: Salgueiro Maia
TÍTULO: Capitão de Abril – Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril
EDITORA: Editorial Notícias
ANO: 1994
SINOPSE: “A minha geração, talvez por ter nascido ainda com o cheiro da Segunda Guerra Mundial, teve a característica de ser saudavelmente gregária; assim, e em confronto com as novas gerações, o sentimento colectivo dominava o individual; desde os bancos da escola que nos organizámos de modo a fazer face ao inimigo comum, os professores e todo o tipo de autoridade; este sentimento foi a base de tudo o que fizemos a seguir”.
Nota sobre o autor: Fernando José Salgueiro Maia, o Capitão de Abril, nasceu a 1 de Julho de 1944, em Castelo de Vide, filho de Francisco da Luz Maia e de Francisca Silvéria Salgueiro. Fez a instrução na escola primária de São Torcato, em Coruche; e os estudos secundários, em Tomar e em Leiria, para onde se desloca com o pai, empregado da CP (Caminhos de Ferro).
Fonte: Centro de Documentação 25 de Abril (© 1996)
Aos vinte anos, em Outubro de 1964, Salgueiro Maia entra para a Academia Militar, em Lisboa. Em 1966 apresenta-se na EPC (Escola Prática de Cavalaria), em Santarém, para frequentar o tirocínio. Parte, em 1968, para o Norte de Moçambique integrado na 9ª Companhia de Comandos. Promovido a capitão em 1970, parte em Julho de 1971 para a Guiné à frente da Companhia de Cavalaria 3420. Esteve em Bula. Foi director do jornal da sua unidade, Os Progressitas. (vd. post de 7 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCVI: Salgueiro Maia, director de jornal de caserna).
Regressou a Portugal em 1973, e ficou colocado na EPC. Começam então as reuniões do MFA (Movimento das Forças Armadas). Salgueiro Maia, delegado da arma de Cavalaria, faz parte da Comissão Coordenadora do Movimento.
Em 25 de Abril de 1974, comanda a coluna de carros de combate que, partindo de Santarém, foi cercar os ministérios no Terreiro do Paço, em Lisboa. Comandou a seguir o cerco ao Quartel do Carmo onde se encontrava refugiado Marcelo Caetano forçando-o à rendição. A sua acção no cerco ao Quartel do Carmo constitui uma das mais belas imagens do 25 de Abril de 1974.
Como aconteceu com muitos outros militares de Abril, a hierarquia militar acabou por discriminá-lo, ao colocá-lo nos Açores de onde só regressará em 1979 para comandar o Presídio Militar de Santa Margarida.
Por fim, em 1984 regressou à sua unidade EPC. Faleceu em 4 de Abril de 1992. Está sepultado em Castelo de Vide, no talhão dos combatentes. Logo após o 25 de Abril, o então largo Oliveira Salazar em Castelo de Vide passou a ser designado por Largo Capitão Maia.
No 25º aniversário do 25 de Abril (1999), a Direcção do Grupo de Amigos de Castelo de Vide, ciente de representar, neste particular o sentir dos seus conterrâneos, depositou cravos na sua sepultura, juntamente com um texto de agradecimento pelo seu papel na restituição da Liberdade aos portugueses. Esse grupo de amigos não esconde o orgulho ter entre os seus conterrâneos um dos mais generosos capitães de Abril, que recusou honrarias e cargos políticos.
Outros sítios sobre Salgueiro Maia (1944-1992):
Vidas Lusófonas > Salgueiro Maia, militar, capitão de Abril: 1944-1992, por Carlos Loures
AUTOR: António Sousa Duarte
TÍTULO: Salgueiro Maia - Fotobiografia
EDITORA: Âncora
ANO: 2004
SINOPSE: Incluem-se nesta obra artigos de jornais (por exemplo,a notícia da sua partida para a Guiné, em Julho de 1971) bem como cartas e outros documentos pessoais do capitão de Abril. E também testemunhos da sua actividade cultural, as viagens, as licenciaturas que fez em Sociologia e em Antropologia, a concepção de um pequeno museu militar na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém.
Mas nesta obra, que contém fotos de Rui Ochôa e Alfredo Cunha, é retratado o homem dedicado, informal nas cerimónias públicas como nos piqueniques familiares, irónico e dono de uma lucidez implacável. O o mesmo que pede à sua mulher, Natércia, que o fotografe com as cicatrizes na barriga, após uma operação a que foi sujeito e no decorrer da doença que viria vitimá-lo. Fonte: Nair Alexandra, in revista «Actual» (Expresso), de 22/5/2004.
AUTOR: António Sousa Duarte
TÍTULO: Salgueiro Maia – Um Homem da Liberdade
EDITORA: Âncora
ANO: 2000
SINOPSE: "Na modéstia e isenção do seu comportamento e na honradez do seu carácter, foi uma referência. Compreendeu como poucos o papel que deve caber aos militares numa sociedade democrática. Deveria, por isso, ter sido melhor apreciado na instituição militar. A melhor maneira de honrarmos a sua memória é continuarmos a construir o país de liberdade e solidariedade, sem discriminações nem injustiças, que ele sonhou para todos os portugueses". Mário Soares (in Prefácio)
FADO SALGUEIRO MAIA
Traz a tua força, amigo,
Traz também o coração
Que nós estamos contigo
P'ra cumprir a revolução.
Traz também teus olhos verdes,
Luz de uma esperança calada,
Traz também a tua aura,
De homem puro, madrugada.
Meu amor, livro de História,
Nobre raíz de imbondeiro,
Trazes no fundo do peito,
O grito da liberdade, Salgueiro
Maia, dum Maio maduro,
Fruto de Abril conquistado,
Maia, passo de coragem
Dum Portugal bem fadado.
(Letra e Música- Valéria Mendez)
AUTOR: Salgueiro Maia
TÍTULO: Capitão de Abril – Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril
EDITORA: Editorial Notícias
ANO: 1994
SINOPSE: “A minha geração, talvez por ter nascido ainda com o cheiro da Segunda Guerra Mundial, teve a característica de ser saudavelmente gregária; assim, e em confronto com as novas gerações, o sentimento colectivo dominava o individual; desde os bancos da escola que nos organizámos de modo a fazer face ao inimigo comum, os professores e todo o tipo de autoridade; este sentimento foi a base de tudo o que fizemos a seguir”.
Nota sobre o autor: Fernando José Salgueiro Maia, o Capitão de Abril, nasceu a 1 de Julho de 1944, em Castelo de Vide, filho de Francisco da Luz Maia e de Francisca Silvéria Salgueiro. Fez a instrução na escola primária de São Torcato, em Coruche; e os estudos secundários, em Tomar e em Leiria, para onde se desloca com o pai, empregado da CP (Caminhos de Ferro).
Fonte: Centro de Documentação 25 de Abril (© 1996)
Aos vinte anos, em Outubro de 1964, Salgueiro Maia entra para a Academia Militar, em Lisboa. Em 1966 apresenta-se na EPC (Escola Prática de Cavalaria), em Santarém, para frequentar o tirocínio. Parte, em 1968, para o Norte de Moçambique integrado na 9ª Companhia de Comandos. Promovido a capitão em 1970, parte em Julho de 1971 para a Guiné à frente da Companhia de Cavalaria 3420. Esteve em Bula. Foi director do jornal da sua unidade, Os Progressitas. (vd. post de 7 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCVI: Salgueiro Maia, director de jornal de caserna).
Regressou a Portugal em 1973, e ficou colocado na EPC. Começam então as reuniões do MFA (Movimento das Forças Armadas). Salgueiro Maia, delegado da arma de Cavalaria, faz parte da Comissão Coordenadora do Movimento.
Em 25 de Abril de 1974, comanda a coluna de carros de combate que, partindo de Santarém, foi cercar os ministérios no Terreiro do Paço, em Lisboa. Comandou a seguir o cerco ao Quartel do Carmo onde se encontrava refugiado Marcelo Caetano forçando-o à rendição. A sua acção no cerco ao Quartel do Carmo constitui uma das mais belas imagens do 25 de Abril de 1974.
Como aconteceu com muitos outros militares de Abril, a hierarquia militar acabou por discriminá-lo, ao colocá-lo nos Açores de onde só regressará em 1979 para comandar o Presídio Militar de Santa Margarida.
Por fim, em 1984 regressou à sua unidade EPC. Faleceu em 4 de Abril de 1992. Está sepultado em Castelo de Vide, no talhão dos combatentes. Logo após o 25 de Abril, o então largo Oliveira Salazar em Castelo de Vide passou a ser designado por Largo Capitão Maia.
No 25º aniversário do 25 de Abril (1999), a Direcção do Grupo de Amigos de Castelo de Vide, ciente de representar, neste particular o sentir dos seus conterrâneos, depositou cravos na sua sepultura, juntamente com um texto de agradecimento pelo seu papel na restituição da Liberdade aos portugueses. Esse grupo de amigos não esconde o orgulho ter entre os seus conterrâneos um dos mais generosos capitães de Abril, que recusou honrarias e cargos políticos.
Outros sítios sobre Salgueiro Maia (1944-1992):
Vidas Lusófonas > Salgueiro Maia, militar, capitão de Abril: 1944-1992, por Carlos Loures
AUTOR: António Sousa Duarte
TÍTULO: Salgueiro Maia - Fotobiografia
EDITORA: Âncora
ANO: 2004
SINOPSE: Incluem-se nesta obra artigos de jornais (por exemplo,a notícia da sua partida para a Guiné, em Julho de 1971) bem como cartas e outros documentos pessoais do capitão de Abril. E também testemunhos da sua actividade cultural, as viagens, as licenciaturas que fez em Sociologia e em Antropologia, a concepção de um pequeno museu militar na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém.
Mas nesta obra, que contém fotos de Rui Ochôa e Alfredo Cunha, é retratado o homem dedicado, informal nas cerimónias públicas como nos piqueniques familiares, irónico e dono de uma lucidez implacável. O o mesmo que pede à sua mulher, Natércia, que o fotografe com as cicatrizes na barriga, após uma operação a que foi sujeito e no decorrer da doença que viria vitimá-lo. Fonte: Nair Alexandra, in revista «Actual» (Expresso), de 22/5/2004.
AUTOR: António Sousa Duarte
TÍTULO: Salgueiro Maia – Um Homem da Liberdade
EDITORA: Âncora
ANO: 2000
SINOPSE: "Na modéstia e isenção do seu comportamento e na honradez do seu carácter, foi uma referência. Compreendeu como poucos o papel que deve caber aos militares numa sociedade democrática. Deveria, por isso, ter sido melhor apreciado na instituição militar. A melhor maneira de honrarmos a sua memória é continuarmos a construir o país de liberdade e solidariedade, sem discriminações nem injustiças, que ele sonhou para todos os portugueses". Mário Soares (in Prefácio)
FADO SALGUEIRO MAIA
Traz a tua força, amigo,
Traz também o coração
Que nós estamos contigo
P'ra cumprir a revolução.
Traz também teus olhos verdes,
Luz de uma esperança calada,
Traz também a tua aura,
De homem puro, madrugada.
Meu amor, livro de História,
Nobre raíz de imbondeiro,
Trazes no fundo do peito,
O grito da liberdade, Salgueiro
Maia, dum Maio maduro,
Fruto de Abril conquistado,
Maia, passo de coragem
Dum Portugal bem fadado.
(Letra e Música- Valéria Mendez)
Guiné 63/74 - P143: A imprensa militar (Marques Lopes)
Texto do A. Marques Lopes:
Há tempos o Jorge Santos mandou-nos uma lista dos títulos da imprensa militar publicada na Guiné durante a guerra. Eu próprio digitalizei as referências bibliográficas completas desssas publicações, constantes do livro Imprensa Militar Portuguesa - Catálogo da Biblioteca do Exército. Trata-se de uma edição da Biblioteca do Exército de 2003. A responsabilidade da edição é do coronel Alberto Ribeiro Soares, então Director da Biblioteca (não sei se ainda é).
Como podem ver pelos dois que aqui deixo, cada jornal tem o nome da unidade que o publicava, o director da publicação, o anos em que foi publicado, os exemplares existentes na Biblioteca do Exército e, no final, a referência, para quem quizer fazer consultas.
Existem outra publicações das unidades que estiveram em Angola, Moçambique, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, Timor e, até, em tempo mais recuados, das que estiveram na Índia.
É um belíssimo trabalho da responsabilidade do coronel Ribeiro Soares e uma base muito importante para quem quizer estudar a psicologia e o sentimento dos combatentes, tendo, embora em conta que a maior parte destas publicações eram dirigidas pelos comandantes das unidades. Mas alguma coisa hão-de dizer.
Há tempos o Jorge Santos mandou-nos uma lista dos títulos da imprensa militar publicada na Guiné durante a guerra. Eu próprio digitalizei as referências bibliográficas completas desssas publicações, constantes do livro Imprensa Militar Portuguesa - Catálogo da Biblioteca do Exército. Trata-se de uma edição da Biblioteca do Exército de 2003. A responsabilidade da edição é do coronel Alberto Ribeiro Soares, então Director da Biblioteca (não sei se ainda é).
Como podem ver pelos dois que aqui deixo, cada jornal tem o nome da unidade que o publicava, o director da publicação, o anos em que foi publicado, os exemplares existentes na Biblioteca do Exército e, no final, a referência, para quem quizer fazer consultas.
Existem outra publicações das unidades que estiveram em Angola, Moçambique, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, Timor e, até, em tempo mais recuados, das que estiveram na Índia.
É um belíssimo trabalho da responsabilidade do coronel Ribeiro Soares e uma base muito importante para quem quizer estudar a psicologia e o sentimento dos combatentes, tendo, embora em conta que a maior parte destas publicações eram dirigidas pelos comandantes das unidades. Mas alguma coisa hão-de dizer.
Guiné 63/74 - P142: Antologia (14): Invasão de Conacri, o último combate da marinha portuguesa (Jorge Santos)
Este texto chegou à nossa caixa de correio por mão do Jorge Santos, sempre atento a tudo o que se diz e escreve sobre a guerra colonial.
Foi publicado num jornal semanário, da comunidade luso-americana. Reproduzi-lo aqui, com a devia vénia:
Eduardo Mayone Dias: Carta da Califórnia: Último Combate da Marinha Portuguesa. Portuguese Times, New Bedford, Mass. nº 1706, de 3 de Março de 2004.
________
Em 1958 a Guiné-Conakry conseguiu a independência e Sekou Touré tornou-se o seu Presidente, instituindo um governo de nítido carácter esquerdista. A sua política ditatorial levou a uma forte resistência dentro do país.(1) É pois fácil compreender que este governo se oporia a qualquer sistema colonialista e se mostraria favorável a apoiar movimentos autonomistas, como era o PAIGC.
Foi pois nestas circunstâncias que esta nação se tornou a principal base logística e de treino dos guerrilheiros chefiados por Amílcar Cabral. As quatro vedetas do PAIGC, com uma deslocação de 66 toneladas, podiam atingir uma velocidade superior a 40 nós. Estavam armadas com duas peças anti-aéreas e dois tubos lança-torpedos. Dada a sua mobilidade e poder de fogo constituíam evidentemente uma grave ameaça para Portugal. De facto não lhes seria difícil acercar-se durante a noite ao porto de Bissau sem serem detectadas e afundar qualquer navio aí atracado, incluindo um dos paquetes então utilizados como transportes de tropas. Entre estas unidades contava-se
o Niassa (I), o primeiro navio mercante a ser requisitado para esse serviço, com
capacidade para receber mais de 3000 homens.
Foi por esta altura que o Capitão-Tenente Alpoim Calvão, especializado em operações de mergulhadores-sapadores, concebeu um plano para pôr fora de acção estas vedetas, tanto as da Guiné-Conakry como as do PAIGC. O método consistiria em conduzir equipas de homens-rãs em lanchas, durante a noite, até ao porto de Conakry. Aí os militares portugueses aporiam minas-lapa no costado das vedetas potencialmente inimigas.
Terminada a sua missão, esse contingente regressaria a Bissau, ainda a coberto das trevas. Dentro de poucas horas as minas explodiriam. Uma vez afundadas as vedetas, esperava-se que a autoria da operação não fosse determinada. No fundo era um plano que deveria ser desenvolvido com a maior discrição, já que Portugal não se encontrava em estado de guerra com a Guiné-Conakry e portanto não seria, sob um ponto de vista legal, justificável um ataque às suas forças.
O projecto mereceu o apoio do então Brigadeiro António de Spínola, Governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, o que possivelmente contribuiu para que fosse também aprovado pelo Chefe do Estado-Maior da Armada, decerto com a aquiescência de entidades superiores. Com o caminho agora aberto, Alpoim Galvão deslocou-se à Áfrical do Sul na companhia de um inspector da Direcção Geral de Seguraça (DGS), a sucessora da PIDE. Tratava-se de adquirir nesse país as minas necessárias para a execução desta audaciosa empresa. (Recorde-se que a União Sul-Africana foi o único país deste Continente que de forma activa cooperou com Portugal na luta contra os movimentos autonomistas.) Obtido o material desejado, Alpoim Galvão escondeu-o na sua bagagem e assim o levou para Lisboa, de onde depois
seguiu para a Guiné.
A fase seguinte consistia em obter dados sobre as instalações portuárias de Conakry. Nem em Lisboa nem em Bissau se tornou possível encontrar uma planta da cidade, de modo que houve que optar por uma observação in loco. Para isso destinou-se uma lancha que durante a noite entraria no porto, camuflada como pertencendo ao PAIGC. A unidade escolhida, a meados de Setembro de 1969, foi a lancha Sagitário. Para manter a ilusão, determinou-se que no caso de a embarcação ser avistada, apenas tripulantes africanos pudessem ser vistos na coberta. Um cabo de fuzileiros (2), ostentando boné de oficial, aparentaria ser o comandante.
Dando uma volta para simular ter vindo do sul, a lancha entrou no porto de Conakry às duas horas da noite de 17 de Setembro sem qualquer incidente, embora no seu trajecto se houvesse cruzado com alguns barcos de pesca. O seu radar pôde determinar a localização exacta dos cais. Tudo correu bem e preparavam-se para iniciar o regresso quando deixou de funcionar o gerador da lancha, o que obrigou a que fosse fundeada ainda dentro do porto. Criaram-se naturalmente momentos de grande tensão a bordo mas conseguiu-se reparar a avaria sem grande demora e a embarcação pôde atingir Bissau a são e salvo.
O magnífico êxito desta operação incentivou Alpoim Galvão a alargar o escopo da seguinte, a que seria dado o nome de código "Mar Verde" (II). Havia conhecimento da existência em Conakry de 26 prisioneiros de guerra portugueses (3) e o empreendedor oficial propôs a Spínola tentar a sua libertação, proposta com que o Comandante-Chefe entusiasticamente concordou. Mais do que isso, alvitrou também a destruição das instalações do PAIGC no porto.
O plano da "Mar Verde" iria no entanto continuar a ser ampliado. Já desde 1964 as autoridades portuguesas tinham mantido contactos com o FNLG, o Front de Libération National Guinéen, uma organização que fortemente se opunha ao regime de Sekou Touré. Pensava-se mesmo em autorizar o FNLG a criar bases em território da Guiné Portuguesa para daí lançar operações militares.
Encarou-se então a hipótese de usar forças armadas do FNLG para colaborarem na Operação "Mar Verde", o que, esperava-se, poderia levar à deposição de Sekou Touré e à instalação de um governo mais avesso a uma hostilidade a Portugal. De novo Spínola, agora já promovido ao posto de general, alinhou com esta iniciativa. Pouco a pouco a operação ia assumindo um decidido carácter de bola de neve.
A utilização de forças do FLNG neste empreendimento implicava vários problemas. Um deles consistia nas desfavoráveis repercussões internacionaisde um golpe de estado fomentado num país estrangeiro pelo Governo Português.Também os elementos da organização se encontravam dispersos por vários países africanos e tornava-se imperioso reuni-los e trazê-los sob o maior sigilo até ao território da Guiné Portuguesa, onde seriam treinados. Uma vez aí foram levados à ilha de Soga, de onde não lhes era permitido sair, a fim de que se mantivesse absoluto silêncio sobre a sua presença. Embora muitos deles houvessem já servido no exército colonial francês ou no da Guiné-Conakry, foram submetidos a uma intensa preparação, dirigida por
instrutores portugueses, que durou de Janeiro a Novembro de 1970. Conseguido o assentimento do Presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano, com a condição de que não fosse deixado em Conakry qualquer indício da intervenção portuguesa, tudo estava preparado para lançar a "Mar Verde", apesar dos graves riscos políticos que poderia desencadear.
Ao fim da tarde de 19 de Novembro zarpou da ilha de Soga (III) uma força naval comandada por Alpoim Galvão e constituída por quatro lanchas de fiscalização e duas de desembarque. A bordo seguiam uns 200 homens do FLNG, fuzileiros guineenses e uma companhia de comandos também africanos.
Apoiadas por um avião da Força Aérea Portuguesa, estas unidades navegaram para o sul e conseguiram atingir as imediações de Conakry, sem a sua presença ter sido observada, pelas vinte horas do dia 21 de Novembro. As lanchas fundearam depois em pontos diferentes, esperando a hora do desembarque, marcada para a uma e trinta da madrugada de domingo, dia 22.
O primeiro passo a ser dado era o da neutralização de todas as vedetas, o que também impediria qualquer resistência séria. Dessa missão encarregou-se uma equipa de catorze fuzileiros africanos, comandados por um jovem oficial europeu. Em absoluto silêncio tomaram lugar em botes de borracha. A um lado de um pontão encontraram as quatro vedetas do PAIGC, amarradas entre si, e do lado oposto as três da Guiné-Conakry. No pontão avistaram uma sentinela, que se lhes afigurou estar adormecida. Um grumete aproximou-se em silêncio e matou a sentinela com uma punhalada. Vieram em seguida os restantes membros da equipa, que através das escotilhas lançaram para o interior das vedetas granadas de mão que liquidaram os tripulantes que aí se encontravam e causaram vários incêndios. Isso alertou um posto instalado no telhado de um armazém da doca, de onde começou a ser feito fogo de metralhadora.
Apesar de ter sofrido alguns feridos, a equipa pôde regressar aos botes, deixando em chamas as vedetas, que pouco mais tarde explodiram. Pela uma e quarenta largaram de outras lanchas dez botes transportando uma equipa destinada a tomar posse de um complexo militar a perto de sete quilómetros da cidade. Alguns dos botes embaraçaram-se em armações de pesca, o que atrasou o desembarque. A equipa dividiu-se então em três grupos. O primeiro encaminhou-se para a prisão La Montaigne, onde se encontravam
detidos os prisioneiros portugueses. Após um breve combate com os guardas, os prisioneiros foram libertados.
O objectivo do segundo grupo era o ataque a instalações do PAIGC, o que foi alcançado com a destruição de cinco edifícios e algumas viaturas. Também foram abatidos alguns militantes do partido.
O terceiro grupo, após um violento combate com os defensores, arrasou um complexo de milícias e uma residência de férias de Sekou Touré. Poderá admitir-se que o ataque ao segundo alvo teria sido concebido com o fim de eliminar o Presidente, o que não aconteceu.
De outra lancha largaram três equipas. A primeira assaltou o quartel da Guarda Republicana e libertou cerca de 400 presos políticos, alguns dos quais pegaram em armas e se juntaram aos atacantes. Essa lancha atracou ao cais do Yacht Club e desembarcou as outras duas equipas. Uma delas ocupou a central eléctrica e cortou a energia para a cidade, com o propósito de desorientar os defensores e facilitar a retirada dos atacantes. O terceiro grupo ocupou sem resistência um campo militar e destroçou uma coluna motorizada que acorrera ao local. Pelas quatro da manhã haviam sido alcançados com êxito e apenas ligeiras baixas os objectivos situados na parte norte da cidade.
Já na parte sul a acção não decorreu com tanto sucesso. Uma equipa vinda para terra à uma da manhã, comandada por um alferes guineense e encarregada de ocupar a estação emissora de rádio, não conseguiu chegar ao seu destino por falta de orientação. Sete outras equipas todavia cumpriram as suas missões no interior da cidade sem grande resistência, com a excepção da encontrada no quartel da Gendarmerie. Neste recontro foi destruída uma coluna de blindados. No palácio presidencial também não foi possível encontrar Sekou Touré.
Ainda outra equipa, a que fora dada ordem de ocupar o aeroporto e destruir os aviões de caça Mig que se deviam aí encontrar fracassou no seu intento. A caminho, um tenente guineense desertou, levando consigo vinte homens.(5) O comandante da equipa, um capitão pára-quedista europeu, prosseguiu no seu trajecto mas teve a surpresa de não encontrar no aeroporto os Migs, que dias antes haviam sido transferidos para outro local.
O propósito inicial de Alpoim Galvão era de permanecer em Conakry até que o governo de Sekou Touré fosse derrubado. Considerando contudo que como os Migs não tinham sido destruídos, o que poderia constituir um grave perigo para as suas embarcações, decidiu-se por uma rápida retirada. Aliás soube-se mais tarde que os aparelhos não estavam operacionais, dada a falta de preparação dos seus pilotos. Desanimou-o também a constatação de que o FLNG não reunia as condições para um eficaz apoio popular na sua tentativa de subir ao poder.
A partida de Conakry teve lugar já depois do nascer do sol e o regresso a Bissau processou-se sem obstáculos de maior, embora tivessem sido feitos quatro tiros de morteiro em direcção a uma das lanchas. A flotilha aportou à ilha de Soga no dia seguinte, a meio da tarde.
A meticulosidade com que a Operação "Mar Verde" foi planeada e executada revelou-se verdadeiramente notável ao nível militar. As vedetas foram postas fora de combate, várias instalações do PAOGC inutilizadas e os prisioneiros portugueses libertados. O custo humano orçou apenas por três mortos e três feridos graves. No plano político resultou no entanto num estrondoso fracasso. Sekou Touré continuou no poder e Amílcar Cabral não foi aprisionado ou abatido, como seria decerto o secreto desejo de muitos.
É contudo curioso notar que "Mar Verde" representou a única acção de envergadura realizada em qualquer das três frentes das campanhas coloniais por forças de combate predominantemente africanas. (5) De todos os modos, no fundo foi um esforço tão inútil como todos os outros levados a efeito durante os longos anos da guerra colonial, rematada pela via política sem se terem obtido os resultados propostos.
__________
NOTAS
(1) Através da sua obra Poèmes militants (1978), Sekou Touré tornou-se também conhecido como poeta.
(2) Recorde-se que o Corpo de Fuzileiros Navais faz parte da Marinha de Guerra Portuguesa.
(3) O aprisionamento de militares portugueses em África era um segredo rigorosamente imposto pela censura aos meios de comunicação social.
(4) Parece que este oficial foi mais tarde executado por ordem de Sekou Touré.
(5) A deserção do tenente guineense com os seus homens constituiu um incidente que ilustra a continuada relutância portuguesa de empregar forças africanas em missões de combate contra a guerrilha.
__________
Notas de L.G.
(I) Vd. pot de 23 de Junho de 2005> Guiné 69/71 - LXXVI: (i) A bordo do Niassa; (ii) Chegada a Bissau
(II) Vd. post de 4 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXVII: Antologia (12): Op Mar Verde
(III) No arquipélago dos Bijagós: vd. mapa da Guiné-Bissau
Foi publicado num jornal semanário, da comunidade luso-americana. Reproduzi-lo aqui, com a devia vénia:
Eduardo Mayone Dias: Carta da Califórnia: Último Combate da Marinha Portuguesa. Portuguese Times, New Bedford, Mass. nº 1706, de 3 de Março de 2004.
________
Em 1958 a Guiné-Conakry conseguiu a independência e Sekou Touré tornou-se o seu Presidente, instituindo um governo de nítido carácter esquerdista. A sua política ditatorial levou a uma forte resistência dentro do país.(1) É pois fácil compreender que este governo se oporia a qualquer sistema colonialista e se mostraria favorável a apoiar movimentos autonomistas, como era o PAIGC.
Foi pois nestas circunstâncias que esta nação se tornou a principal base logística e de treino dos guerrilheiros chefiados por Amílcar Cabral. As quatro vedetas do PAIGC, com uma deslocação de 66 toneladas, podiam atingir uma velocidade superior a 40 nós. Estavam armadas com duas peças anti-aéreas e dois tubos lança-torpedos. Dada a sua mobilidade e poder de fogo constituíam evidentemente uma grave ameaça para Portugal. De facto não lhes seria difícil acercar-se durante a noite ao porto de Bissau sem serem detectadas e afundar qualquer navio aí atracado, incluindo um dos paquetes então utilizados como transportes de tropas. Entre estas unidades contava-se
o Niassa (I), o primeiro navio mercante a ser requisitado para esse serviço, com
capacidade para receber mais de 3000 homens.
Foi por esta altura que o Capitão-Tenente Alpoim Calvão, especializado em operações de mergulhadores-sapadores, concebeu um plano para pôr fora de acção estas vedetas, tanto as da Guiné-Conakry como as do PAIGC. O método consistiria em conduzir equipas de homens-rãs em lanchas, durante a noite, até ao porto de Conakry. Aí os militares portugueses aporiam minas-lapa no costado das vedetas potencialmente inimigas.
Terminada a sua missão, esse contingente regressaria a Bissau, ainda a coberto das trevas. Dentro de poucas horas as minas explodiriam. Uma vez afundadas as vedetas, esperava-se que a autoria da operação não fosse determinada. No fundo era um plano que deveria ser desenvolvido com a maior discrição, já que Portugal não se encontrava em estado de guerra com a Guiné-Conakry e portanto não seria, sob um ponto de vista legal, justificável um ataque às suas forças.
O projecto mereceu o apoio do então Brigadeiro António de Spínola, Governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, o que possivelmente contribuiu para que fosse também aprovado pelo Chefe do Estado-Maior da Armada, decerto com a aquiescência de entidades superiores. Com o caminho agora aberto, Alpoim Galvão deslocou-se à Áfrical do Sul na companhia de um inspector da Direcção Geral de Seguraça (DGS), a sucessora da PIDE. Tratava-se de adquirir nesse país as minas necessárias para a execução desta audaciosa empresa. (Recorde-se que a União Sul-Africana foi o único país deste Continente que de forma activa cooperou com Portugal na luta contra os movimentos autonomistas.) Obtido o material desejado, Alpoim Galvão escondeu-o na sua bagagem e assim o levou para Lisboa, de onde depois
seguiu para a Guiné.
A fase seguinte consistia em obter dados sobre as instalações portuárias de Conakry. Nem em Lisboa nem em Bissau se tornou possível encontrar uma planta da cidade, de modo que houve que optar por uma observação in loco. Para isso destinou-se uma lancha que durante a noite entraria no porto, camuflada como pertencendo ao PAIGC. A unidade escolhida, a meados de Setembro de 1969, foi a lancha Sagitário. Para manter a ilusão, determinou-se que no caso de a embarcação ser avistada, apenas tripulantes africanos pudessem ser vistos na coberta. Um cabo de fuzileiros (2), ostentando boné de oficial, aparentaria ser o comandante.
Dando uma volta para simular ter vindo do sul, a lancha entrou no porto de Conakry às duas horas da noite de 17 de Setembro sem qualquer incidente, embora no seu trajecto se houvesse cruzado com alguns barcos de pesca. O seu radar pôde determinar a localização exacta dos cais. Tudo correu bem e preparavam-se para iniciar o regresso quando deixou de funcionar o gerador da lancha, o que obrigou a que fosse fundeada ainda dentro do porto. Criaram-se naturalmente momentos de grande tensão a bordo mas conseguiu-se reparar a avaria sem grande demora e a embarcação pôde atingir Bissau a são e salvo.
O magnífico êxito desta operação incentivou Alpoim Galvão a alargar o escopo da seguinte, a que seria dado o nome de código "Mar Verde" (II). Havia conhecimento da existência em Conakry de 26 prisioneiros de guerra portugueses (3) e o empreendedor oficial propôs a Spínola tentar a sua libertação, proposta com que o Comandante-Chefe entusiasticamente concordou. Mais do que isso, alvitrou também a destruição das instalações do PAIGC no porto.
O plano da "Mar Verde" iria no entanto continuar a ser ampliado. Já desde 1964 as autoridades portuguesas tinham mantido contactos com o FNLG, o Front de Libération National Guinéen, uma organização que fortemente se opunha ao regime de Sekou Touré. Pensava-se mesmo em autorizar o FNLG a criar bases em território da Guiné Portuguesa para daí lançar operações militares.
Encarou-se então a hipótese de usar forças armadas do FNLG para colaborarem na Operação "Mar Verde", o que, esperava-se, poderia levar à deposição de Sekou Touré e à instalação de um governo mais avesso a uma hostilidade a Portugal. De novo Spínola, agora já promovido ao posto de general, alinhou com esta iniciativa. Pouco a pouco a operação ia assumindo um decidido carácter de bola de neve.
A utilização de forças do FLNG neste empreendimento implicava vários problemas. Um deles consistia nas desfavoráveis repercussões internacionaisde um golpe de estado fomentado num país estrangeiro pelo Governo Português.Também os elementos da organização se encontravam dispersos por vários países africanos e tornava-se imperioso reuni-los e trazê-los sob o maior sigilo até ao território da Guiné Portuguesa, onde seriam treinados. Uma vez aí foram levados à ilha de Soga, de onde não lhes era permitido sair, a fim de que se mantivesse absoluto silêncio sobre a sua presença. Embora muitos deles houvessem já servido no exército colonial francês ou no da Guiné-Conakry, foram submetidos a uma intensa preparação, dirigida por
instrutores portugueses, que durou de Janeiro a Novembro de 1970. Conseguido o assentimento do Presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano, com a condição de que não fosse deixado em Conakry qualquer indício da intervenção portuguesa, tudo estava preparado para lançar a "Mar Verde", apesar dos graves riscos políticos que poderia desencadear.
Ao fim da tarde de 19 de Novembro zarpou da ilha de Soga (III) uma força naval comandada por Alpoim Galvão e constituída por quatro lanchas de fiscalização e duas de desembarque. A bordo seguiam uns 200 homens do FLNG, fuzileiros guineenses e uma companhia de comandos também africanos.
Apoiadas por um avião da Força Aérea Portuguesa, estas unidades navegaram para o sul e conseguiram atingir as imediações de Conakry, sem a sua presença ter sido observada, pelas vinte horas do dia 21 de Novembro. As lanchas fundearam depois em pontos diferentes, esperando a hora do desembarque, marcada para a uma e trinta da madrugada de domingo, dia 22.
O primeiro passo a ser dado era o da neutralização de todas as vedetas, o que também impediria qualquer resistência séria. Dessa missão encarregou-se uma equipa de catorze fuzileiros africanos, comandados por um jovem oficial europeu. Em absoluto silêncio tomaram lugar em botes de borracha. A um lado de um pontão encontraram as quatro vedetas do PAIGC, amarradas entre si, e do lado oposto as três da Guiné-Conakry. No pontão avistaram uma sentinela, que se lhes afigurou estar adormecida. Um grumete aproximou-se em silêncio e matou a sentinela com uma punhalada. Vieram em seguida os restantes membros da equipa, que através das escotilhas lançaram para o interior das vedetas granadas de mão que liquidaram os tripulantes que aí se encontravam e causaram vários incêndios. Isso alertou um posto instalado no telhado de um armazém da doca, de onde começou a ser feito fogo de metralhadora.
Apesar de ter sofrido alguns feridos, a equipa pôde regressar aos botes, deixando em chamas as vedetas, que pouco mais tarde explodiram. Pela uma e quarenta largaram de outras lanchas dez botes transportando uma equipa destinada a tomar posse de um complexo militar a perto de sete quilómetros da cidade. Alguns dos botes embaraçaram-se em armações de pesca, o que atrasou o desembarque. A equipa dividiu-se então em três grupos. O primeiro encaminhou-se para a prisão La Montaigne, onde se encontravam
detidos os prisioneiros portugueses. Após um breve combate com os guardas, os prisioneiros foram libertados.
O objectivo do segundo grupo era o ataque a instalações do PAIGC, o que foi alcançado com a destruição de cinco edifícios e algumas viaturas. Também foram abatidos alguns militantes do partido.
O terceiro grupo, após um violento combate com os defensores, arrasou um complexo de milícias e uma residência de férias de Sekou Touré. Poderá admitir-se que o ataque ao segundo alvo teria sido concebido com o fim de eliminar o Presidente, o que não aconteceu.
De outra lancha largaram três equipas. A primeira assaltou o quartel da Guarda Republicana e libertou cerca de 400 presos políticos, alguns dos quais pegaram em armas e se juntaram aos atacantes. Essa lancha atracou ao cais do Yacht Club e desembarcou as outras duas equipas. Uma delas ocupou a central eléctrica e cortou a energia para a cidade, com o propósito de desorientar os defensores e facilitar a retirada dos atacantes. O terceiro grupo ocupou sem resistência um campo militar e destroçou uma coluna motorizada que acorrera ao local. Pelas quatro da manhã haviam sido alcançados com êxito e apenas ligeiras baixas os objectivos situados na parte norte da cidade.
Já na parte sul a acção não decorreu com tanto sucesso. Uma equipa vinda para terra à uma da manhã, comandada por um alferes guineense e encarregada de ocupar a estação emissora de rádio, não conseguiu chegar ao seu destino por falta de orientação. Sete outras equipas todavia cumpriram as suas missões no interior da cidade sem grande resistência, com a excepção da encontrada no quartel da Gendarmerie. Neste recontro foi destruída uma coluna de blindados. No palácio presidencial também não foi possível encontrar Sekou Touré.
Ainda outra equipa, a que fora dada ordem de ocupar o aeroporto e destruir os aviões de caça Mig que se deviam aí encontrar fracassou no seu intento. A caminho, um tenente guineense desertou, levando consigo vinte homens.(5) O comandante da equipa, um capitão pára-quedista europeu, prosseguiu no seu trajecto mas teve a surpresa de não encontrar no aeroporto os Migs, que dias antes haviam sido transferidos para outro local.
O propósito inicial de Alpoim Galvão era de permanecer em Conakry até que o governo de Sekou Touré fosse derrubado. Considerando contudo que como os Migs não tinham sido destruídos, o que poderia constituir um grave perigo para as suas embarcações, decidiu-se por uma rápida retirada. Aliás soube-se mais tarde que os aparelhos não estavam operacionais, dada a falta de preparação dos seus pilotos. Desanimou-o também a constatação de que o FLNG não reunia as condições para um eficaz apoio popular na sua tentativa de subir ao poder.
A partida de Conakry teve lugar já depois do nascer do sol e o regresso a Bissau processou-se sem obstáculos de maior, embora tivessem sido feitos quatro tiros de morteiro em direcção a uma das lanchas. A flotilha aportou à ilha de Soga no dia seguinte, a meio da tarde.
A meticulosidade com que a Operação "Mar Verde" foi planeada e executada revelou-se verdadeiramente notável ao nível militar. As vedetas foram postas fora de combate, várias instalações do PAOGC inutilizadas e os prisioneiros portugueses libertados. O custo humano orçou apenas por três mortos e três feridos graves. No plano político resultou no entanto num estrondoso fracasso. Sekou Touré continuou no poder e Amílcar Cabral não foi aprisionado ou abatido, como seria decerto o secreto desejo de muitos.
É contudo curioso notar que "Mar Verde" representou a única acção de envergadura realizada em qualquer das três frentes das campanhas coloniais por forças de combate predominantemente africanas. (5) De todos os modos, no fundo foi um esforço tão inútil como todos os outros levados a efeito durante os longos anos da guerra colonial, rematada pela via política sem se terem obtido os resultados propostos.
__________
NOTAS
(1) Através da sua obra Poèmes militants (1978), Sekou Touré tornou-se também conhecido como poeta.
(2) Recorde-se que o Corpo de Fuzileiros Navais faz parte da Marinha de Guerra Portuguesa.
(3) O aprisionamento de militares portugueses em África era um segredo rigorosamente imposto pela censura aos meios de comunicação social.
(4) Parece que este oficial foi mais tarde executado por ordem de Sekou Touré.
(5) A deserção do tenente guineense com os seus homens constituiu um incidente que ilustra a continuada relutância portuguesa de empregar forças africanas em missões de combate contra a guerrilha.
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Notas de L.G.
(I) Vd. pot de 23 de Junho de 2005> Guiné 69/71 - LXXVI: (i) A bordo do Niassa; (ii) Chegada a Bissau
(II) Vd. post de 4 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXVII: Antologia (12): Op Mar Verde
(III) No arquipélago dos Bijagós: vd. mapa da Guiné-Bissau
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