Capa e contracapa do livro de Eduardo Lourenço (1923-2020), "Do Colonialismo Como Nosso Impensado" (. Organização e prefácio: Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi). Lisboa: Gradiva, 2014. 348 pp.
E se aqui fazemos uma referência ao seu nome e lamentamos o seu desaparecimento, é porque ele é também um pensador incontornável da nossa identidade, da nossa história, da aventura de Quinhentos, do nosso império, do nosso colonialismo, da nossa relação com o resto do mundo... Sem esqucer a "releitura" que fez dos nossos maiores poetas, Camões, Antero, Fernando Pessoa...
Falando do "império", ele nunca deve ter estado, que eu saiba, na Guiné, em Angola ou Moçambique (mas o seu pai, Abílio Faria, esteve, como capitão de infantaria, jukgo que SGE, no início dos anos 30, em Nampula). Mas teve um ano (1958/59), na Bahia, no nordeste brasileiro, e isso terá sido determinante na produção do seu pensamento sobre Portugal e os portugueses...
Não era das minhas relações, nunca privei com ele, terei estado duas ou três com ele ou perto dele, uma na Feira do Livro de Lisboa, em 2014, e outras duas em conferências ou colóquios, na Fundação Calouste Gulbenkian e no Centro Cultural de Belém, em datas que já não posso precisar. Foi, contudo, um privilégio poder ouvi-lo e vê-lo em vida, mesmo que acidentalmente.
Falei com ele apenas uns breves minutos, na Feira do Livro de Lisboa, em 7 de junho de 2014. Ele estava só e parecia ter todo o tempo do mundo, aos 91 anos.... Não era, naturalmente, um escritor de "best-sellers",não tinhas bichas de gente à cata de um autógrafo... Mas estava ali também para dar autógrafos, que a Feira do Livro também é uma Feira de... Vaidades...
Falei-lhe do nosso blogue, da minha condição de ex-militar na Guiné... e pedi-lhe para me autografar o seu livrinho, que acabava de sair em 2014, "Do colonialismo como nosso impensado" (*)... E foi por ele que soube que o seu pai também fora militar e que ele também passara pelo Colégio Militar, como muitos outros filhos de oficiais do exército....
Teve então a gentileza de me escrever três linhas de dedicatória, que reproduzo acima... Mas a impressão que guardei dele, mais forte, foi a de um homem, já com os seus 91 anos de "juventude", de uma humildade, afabilidade e empatia raras nos homens das letras e da academia...
Não vou repetir tudo aquilo que a comunicação social e as redes sociais têm dito deste português maior, um "príncipe da Renascença", que vai ser enterradado, hoje, na sua humilde aldeia fronteiriça de São Pedro do Rio Seco, Almeida, numa cerimónia íntima aberta apenas à família e aos seus poucos conterrâneos,
Os seus livros esgotaram-se nas lojas da FNAC. É sempre assim quando morre um um escritor famoso. Os portugueses são generosos na morte. Somos unanimistas no reconhecimento póstumo dos nossos intelectuais, e nomeadamente dos "estrangeirados",,, Só Pessoa morreu (quase) anónimo. E foi preciso alguém, como Eduardo Lourenço, "de fora", para lhe dar a dimensão universal e genial que ele, Fernando Pessoa, hoje tem...
2. Vale a pena, isso, sim, ver e ouvir a entrevista dada pelo Eduardo Lourenço, à jornalista da RTP Fátima Campos Ferreira, em 25 de abril de 2016. O programa (50' 19''), foi gravado no Centro de Arte Contemporânea da Fundação Calouste Gulbenkian. Disponível aqui, na RTP Play.
No passado dia 1, dia da sua morte, vi (ou revi) essa entrevista e, no meu diário, anotei, ao correr da pena, algumas observações de que tomo a liberdade de reproduzir aqui alguns excertos (**):
(...) Foi uma entrevista intimista. As questãoes postas não eram apenas dirigidas ao filósofo e ao ensaísta mas também, e sobretudo, ao homem, ao beirão, ao cidadão, ao português.ao europeu. (...)
(...) Entrevistadora e entrevistado, estão sentados, a uma mesa, com dois copos de água em cima do tampo. Ele é filmado muitas vezes de lado, de perfil, e de repente pareceu-me ver o perfil, também beirão, de Salazar. (...)
(...) Para um homem que esteve, inicialmente, próximo do existencialismo,as questões que lhe são postas não podiam ser mais...existencialistas: Deus, o sentido da vida, a morte, a condição humana, o amor, a liberdade, a relação com os outros, a família, o ser português... e europeu.
(...) Do Colégio Militar, guarda melancolia...Foi-lhe difícil estar um ano, fechado num colégio intermo. Tirou-lhe a alegria da família e dos irmãos. Reconhece, no entanto, que lhe dei disciplina para a vida. (...)
(...) Qual teria sido o caminhos seguido pelos outros seis irmãos ? Não se falou disso, nem nas naturais dificuldades que teria uma família numerosa, nos anos 30. O vencimento de um oficial subaltermo do exército, nessa époa, era baixo. Lembra-se de pastar cabras com a avó e a singuralidade de cada ser humano é uma das coisas que o fascina (...)
(...) Ganha uma bolsa, vai para França e aí conhece a futura mulher... O ter podido sair do país e tornar-se um 'estrangeirado', foi muito importante para a sua reflexão e para sua obra... Tem outro distancimamento crítico e afetivo que nunca teria se tivesse feito carreira académica na Universidade de Coimbra onde se licenciou em ciências histórico-filosóficas. Foi assistente do professor de filosofia Joaquim Carvalho. (...)
(...) Não fez uma carreira académica típica, nunca se doutorou, ao que eu saiba. E em França era um estrangeiro, não dominando perfeitamente a língua, logo no início... Ironia: é hoje considerado um dos grandes pensadores europeus, e o maior pensador português do século XX... Mas não dá importância aos inúmeros prémios e condecorações que recebeu em vida, em Portugal, em França e muitos outros sítios. (...)
(...) Vê-se que é um homem ponderado não é palavrosos, mede as palavras, tem um discurso bem estruturado, encantatório, poético, metafórico, aguarda um, dois ou três segundos antes de responder às perguntas da jornalista... Com o típico gesto pensador, que põe a mão direita sobre parte da testa e da face....Controla as suas emoções, o tom de voz é sereno, mesmo quando há questões que o inquietam, a crise demográfica, o declínio da Europa, a lenta mas crescente invasão da França e doutros países oriundos de outras cultutas e religiões.. Faz referência explícita aos povos islâmicos e ao terrorismo fundamentalista islâmico, preocupa-o a incapacidade da Europa para encontrar respostas, a solidão do Papa, a crise do cristianismo... E, a claro, fala da morte, a impossível experiência da nossa própria morte. (...)
Para quem quiser saber mais sobre o Eduardo Lourenço, ver aqui a
sua página oficiosa, organizada pelo Centro Nacional de Cultura.
"1941 Pensa entrar na Escola do Exército mas desiste dos cursos preparatórios militares na Faculdade de Ciências e presta provas de aptidão à Licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas, tendo sido admitido; 1944 Conclui o 4º ano da licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas; 1945 Frequenta o Curso de Oficiais Milicianos; 1946 A 23 de Julho conclui, com 18 valores, a licenciatura de Ciências Histórico-Filosóficas defendendo a tese intitulada O Idealismo Absoluto de Hegel ou O Segredo da Dialéctica; 1947 É convidado, pelo Prof. Joaquim de Carvalho, para Assistente (20 Outubro 1947-20 Outubro 1953) do Curso de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra – Presta serviço militar na Guarda, como alferes miliciano, no Batalhão de Caçadores 7"...
3. A Fundação Calouste Gulbenkian está a editar, desde há uns anos, as suas obras completas, que são numerosas. E em parte inéditas. O espólio de Eduardo Lourenço está à guarda da Biblioteca Nacioanl e está a ser estudado pelos especialistas.
O livro cuja capa reproduzimos acima é uma obra que reúne escritos de várias épocas, tendo como fio condutor uma reflexão sobre o nosso "colonialismo", e que é publicado, em 2014, com "40 anos de atraso"...
Gostaríamos, um dias destes, de poder deixar aqui a nossa "nota de leitura" pessoal dessa obra. Como dizem os organizadores, trata-se de um volume que reúne "textos publicados e inéditos, completos e fragmentários do Eduardo Lourenço sobre o 'problema colonial' português' ". O índice (resumido) dá uma ideia da riqueza do conteúdo do livro: Limiar; contornos e imagens imperiais: I. Crítica da mitologia colonialista (década de 60 até 1974); II.No labirinto dos epitáfios imperiais (1974/75 e depois); III. Heranças vivas.
(...) "Curiosamente estamos nos anos 58-59 e esse é um momento em que no mundo, em todos os continentes, se verificava o fim das descolonizações. E evidentemente percebi que Portugal estava metido numa encruzilhada por estar à beira de um precipício num ponto de vista da perda dos interesses coloniais, uma vez que Angola e Moçambique caminhavam para uma emancipação inevitável. Mas em Portugal ninguém queria realmente saber disso. Foi aqui no Brasil que, paradoxalmente, comecei a interessar-me por este tema do império, da colonização, e no fundo foi aqui que nasceu a ideia de que não se podia ter uma leitura da história portuguesa, da cultura portuguesa, sem conhecer esta outra parte do que tinha sido o império português. Em última análise, portanto, todo o 'arrière plan' do 'Labirinto da Saudade' tem a ver com a minha estadia na Bahia" (...).
______________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 17 de agosto de 2015 >
Guiné 63/74 - P15013: Notas de leitura (748): “Do Colonialismo como Nosso Impensado", Organização e Prefácio de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, Gradiva Publicações, 2014 (Mário Beja Santos)