sábado, 15 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10389: Bibliografia de uma guerra (64): Heróis do Ultramar, de Nuno Castro (Maria Teresa Almeida)

1. Mensagem da nossa amiga tertuliana D. Teresa Almeida (Liga dos Combatentes) com data de 11 de Setembro de 2012:

Boa Tarde meu Estimado Combatente Dr. Luís Graça
Verifico agora que o Livro HERÓIS DO ULTRAMAR, que peço divulgação no blog, tem depoimentos escritos dos nossos Amigos e Combatentes na Guiné: José Eduardo Oliveira, Belmiro Tavares, do Sr. General Tomé Pinto e vários.

Um abraço muito amigo
Teresa Almeida


Sinopse*:

Entre 1961 e 1974, centenas de milhares de portugueses combateram em Angola, em Moçambique e na Guiné. Mas, como acontece em todos os conflitos, só alguns combatentes se destacaram. Heróis do Ultramar traça o retrato de um punhado de homens que se distinguiram nos campos de batalha da Guerra Colonial e que ainda hoje são recordados pela sua bravura extrema. Portugueses que, independentemente do curso da História, da política ditada pelo governo de Lisboa, das suas próprias convicções e até das suas personalidades por vezes polémicas, demonstraram uma extraordinária capacidade de liderança debaixo de fogo e uma determinação inabalável perante a adversidade e o terror que só uma guerra consegue despertar. Escrito a partir de vários testemunhos e das memórias dos combatentes, Heróis do Ultramar reúne alguns dos episódios mais ousados e dramáticos das três frentes do conflito português em África, na perspectiva dos seus principais protagonistas no terreno.

Autor: Nuno Castro
Editora: Oficina do Livro
Lançamento: Agosto de 2012
N.º páginas: 192
Encadernação: Capa mole

(*) Com a devida vénia a Site da FNAC
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10266: Bibliografia de uma guerra (63): Uma foto de 1972 que documenta a visita da Cilinha a Cufar (Armando Faria)

Guiné 63/74 - P10388: Do Ninho D'Águia até África (9): Orquídea Negra da lama da bolanha (Tony Borié)

1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D´Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (9)

Orquídea Negra da lama da Bolanha

O Cifra, desde que foi ferido com estilhaços de granada de morteiro, tinha um projecto em mente que queria realizar. Era a construção de um abrigo com alguma segurança, próximo do centro cripto. Falou com os outros companheiros do centro cripto, e nas horas de folga começaram a escavar a terra numa certa área, onde ainda não havia construção. Os seus superiores, ao vê-los em tal projecto, apoiaram a ideia, e recomendaram que usassem alguns prisioneiros para os ajudarem.

Tanto o Cifra, como os companheiros, pensaram que seria boa ideia, pois deste modo sempre estariam pelo período de algumas horas ao ar livre, onde podiam fazer alguns exercícios físicos. Assim, pela manhã, quase todos os dias, alguém iam buscar dois ou três prisioneiros, dos mais jovens e melhor porte físico, para os ajudarem nessa tarefa.

Passado uns dias de convivência com os ditos prisioneiros, um dos mais novos que falava um pouco de português, dizia ao Cifra, mais ou menos isto:
- Mi, não saber porque estar preso. Mi, querer ser militar do Portugal, como Cifra. Mãe, e irmãs necessita de mi, para trabalhar bolanha e trazê manga de arroz para pessoal comê. Mi, viver próximo do quartel da tropa. Não é justiça estar preso, já não ter pai, quando família necessita de mi

Uma série de palavras que deixou o Cifra a pensar. Num dos próximos dias, ao entregar uma mensagem decifrada, directamente ao comandante, o Cifra, na sua inocência e boa fé, contou a história do prisioneiro.

O comandante, depois de ouvir o Cifra, dá-lhe uma tremenda repreensão, dizendo numa voz um pouco alterada:
- Isto é uma ordem, não deves falar com os prisioneiros, isso são assuntos que não te dizem respeito, nem a mim tu deves falar nesses assuntos, e a partir de hoje, não usas mais esse prisioneiro na escavação do abrigo. Entendidos?

A palavra “entendidos”, foi dita lá de cima, do lugar de comandante, a falar para as tropas. No entanto, tomou nota do nome do prisioneiro.

O Cifra era um militar razoável, mas um fraco guerreiro. Ficou com algum receio do comandante e nos dias seguintes tentava não o enfrentar, procurando todos os truques possíveis. Entregava as mensagens decifradas a qualquer militar, no comando, que trabalhassem junto dele, e que lha fizesse chegar às mãos, o que lhe importava era que assinassem a folha de entregas.

Passado um tempo, quando o Cifra vai ao comando entregar uma mensagem decifrada, sempre tentando evitá-lo, o comandante ouve a sua voz, sai do seu gabinete, e entre outras palavras diz-lhe:
- Anda cá, oh Cifra, vem aqui ao meu gabinete.

O Cifra, não levava nada vestido, a não ser uns calções, já um pouco coçados, ficou ainda mais embaraçado, e a muito custo entrou no gabinete do comandante. Fez uma saudação muito mal feita, dizendo:
- Dá-me licença meu comandante!. Vossa Excel...

O comandante não o deixou acabar a palavra, e diz-lhe:
- Deixa-te de salamaleques e vamos ao que interessa. Põe-te à vontade, parece que o teu comandante já não existe. Ouve bem, pois tenho uma missão para ti. Vamos libertar o prisioneiro, de quem tu me falaste, e se ele vive perto do aquartelamento, tenta visitá-lo, ele já te conhece, se vires alguma coisa suspeita, como visitas, armas ou qualquer outro objecto, lá na sua casa ou à sua volta, que te desperte a atenção, informa-me, talvez não seja como ele diz, pelo menos as informações que temos são diferentes, mas vamos ver como as coisas correm.

As coisas correram perfeitamente.

O Cifra, passou a ser amigo dele. Tinha duas irmãs. Ambas tinham os olhos azuis, talvez descendentes dos padres da ordem religiosa francesa que existiu na área, antes das tropas portuguesas se instalarem na povoação. As duas gostavam do Cifra e faziam tudo para lhe agradar, mas uma delas, de nome Cumba, é que afirmava a pés juntos que era a lavadeira do Cifra e era com essa que o Cifra mais simpatizava. Lavava e passava a ferro as camisas, calções e meias do Cifra, que andava sempre limpo, o que levava a que o Curvas, alto e refilão, comentasse:
- Porra, que o Cifra agora anda vestido, como se fosse um “Maricas”!.

Ela colocava sempre uma flor de cheiro em cima da roupa lavada. Enfim, “era um amor de rapariga”, como se dizia na sua aldeia do vale do Ninho d’Águia, e se a sua mãe Joana, visse a maneira com que ela cuidava da roupa, e não só, de tudo o que dizia respeito ao Cifra, com certeza que diria, “mas que rapariga mais prendada o meu filho arranjou”. Naquele tempo, as mães tinham alguma influência nas decisões dos filhos. Isto tudo, sem ter visto os dotes físicos com que o Criador a beneficiou.

Mas continuando com a narração, o Cifra bebia aguardente de palma, comia papaia fresca e fruta de caju, andava pela beira do rio a ver as raparigas a lavarem a roupa na maré cheia. Andava durante o dia, e numa certa área, à volta do aquartelamento, sem arma ou qualquer protecção, ia para a “bolanha”, que era o pântano onde crescia o arroz, na companhia do amigo, da sua Cumba, da irmã e da mãe, e ajudava-os, algumas vezes, em algumas tarefas. Também andava de canoa, na altura da maré cheia, o que bastante o divertia, enfim, parecia que tinha uma família, e algumas vezes fechando os olhos, pensava que estava na sua aldeia em Portugal. O Setúbal, sempre que estava livre, ia com ele, pois simpatizava com a outra irmã.

Quando iam para a “bolanha” trabalhar, a bonita e apaixonada Cumba, sempre a brincar e com um ar sensual, com uma mão cheia de lama, pintava a cara ao Cifra dizendo que assim era mais parecido com ela, tal qual um africano, e abraçava-o, ficando os dois corpos quase nús, colados um ao outro, encharcados em lama, que caíam abraçados e felizes, ficando por algum tempo juntos, rebolando-se na água e na lama da “bolanha”, tal como dois animais selvagens da savana africana, em plena época do cio, beijando-se e mordendo-se, e das suas gargantas saíam uivos e gritos de dor e prazer. Nessa altura o sabor e o cheiro, feminino e sensual daquilo a que se podia chamar “Orquídea Negra da lama da Bolanha”, ferravam tal como um demónio, as mais profundas entranhas do corpo do Cifra, para não mais sair, durante o resto da sua vida. Quando isto acontecia, o amigo, a outra irmã e a mãe, fugiam para longe, falando uma linguagem alegre, pensando que tudo o que eles faziam devia ser feito, em paz, sem olhares indiscretos e no mais profundo silêncio, somente interrompido pelos seus uivos e gritos de dor e prazer, que saíam das suas gargantas.

Os leitores vão por certo perdoar a maneira como descrevo esta fase de recordações da juventude, passada na guerra, que talvez não faça parte do contexto da história da guerra vivida em África, mas isto é um retrato da verdade, os povos amam-se, sómente os governos se guerreiam, e pensando bem até faz parte dessa mesma guerra, pois todos nós combatentes, talvez pelo isolamento a que estivemos sujeitos, quando havia contacto com a população, e havendo raparigas, tivemos a nossa pequena ou grande aventura de amor em África, e quando há amor, também há dor e sofrimento, por isso estávamos a sofrer, num lugar de conflito, é isso que a nossa história nos diz. Mas continuando com a narrativa, durante o tempo em que o Cifra conviveu com esta família, nunca suspeitou de nada, ou algum contacto fora do normal com forças de guerrilheiros, do movimento de libertação, ou talvez o Cifra não visse, pois era uma fase da sua vida, em que andava feliz.

Tanto o Cifra como o Setúbal, uma vez por semana, esperavam que abrissem as latas de chouriço de conserva que se consumiam no aquartelamento, e levavam parte de uma lata, com o consentimento do sargento da messe, que era amigo do Cifra, para a família. Pão, levavam quase todos os dias, a princípio, não gostavam do pão, mas depois já queriam mais. Também levavam comida do aquartelamento, sempre que sobrava. O Comandante ia perguntando ao Cifra por novidades, e o Cifra respondia:
- Meu comandante, se Vossa Excel... E o comandante, não o deixava terminar e dizia:
- Deixa-te de salamaleques, e diz-me com vão as coisas. E então o Cifra dizia:
- Eu não percebo nada de espionagem, mas nunca me apercebi de nada fora do normal, e duma coisa estou certo, durante o dia, pois não sei o que se passa durante a noite, e principalmente nas horas que passo com a família, são das coisas melhores que me aconteceram na guerra. Ainda não reparou, como agora ando limpinho!. Até já uso camisa.

O comandante mostrava um pequeno sorriso e mantinha-se calado. Algum pessoal, no comando que ouvia esta conversa, ria-se pela calada, e alguns, até mandavam piadas ao Cifra.

Passou algum tempo, até que um pelotão de reconhecimento regressa ao fim da tarde ao aquartelamento, com um guerrilheiro que tinham encontrado, por casualidade, deitado debaixo de uma árvore, dando a intender que adormeceu mascando “cola”, pois eram esses os indícios que vinham da sua boca, ou talvez se tenha deixado mesmo adormecer, esperando pela noite, para continuar com a sua missão. Estava fardado, trazia uma metralhadora e uma catana segura na sua cinta, e era possuidor de diversos documentos e alguma quantidade de dinheiro, dando a entender que devia ser mesmo um mensageiro.

Chegados ao aquartelamento com o guerrilheiro, que estava com as mãos amarradas com uma corda, vão ver o comando, onde aparece um major que fazia parte do serviço de operações especiais, a quem o Cifra nunca viu um sorriso na face durante os dois anos de comissão, e que para ele todos os naturais eram “terroristas”, se não eram agora, iriam ser no futuro, pelo menos era o que diziam a seu respeito, que ao ver o guerrilheiro fardado, aproxima-se, e no momento em que o guerrilheiro, talvez vendo as divisas de major, diz mais ou menos isto, num português que se compreendia:
- Sou um guerrilheiro do movimento de libertação PAIGC.., e quero ser tratado como um prisioneiro de guerra.

Alguns militares, não percebendo a mensagem, riram-se, e o major, aproxima-se mais um pouco e desfere uma enorme bofetada na cara do guerrilheiro, que parecia mais um soco, pois o guerrilheiro com as mãos amarradas, desiquilibrado, caiu no chão imediatamente, dizendo com uma voz de fúria, mal contida:
- Levem este “terrorista” para o local dos interrogatórios.

Resultado do interrogatório.

Este guerrilheiro, que devia ser um mensageiro que fazia a ligação entre as diferentes bases do movimento de libertação que actuavam na zona, pois trazia dinheiro em alguma quantidade e documentos que comprometiam o tal amigo do Cifra que queria ser militar de Portugal, cuja a irmã era a lavadeira, e que era nem mais nem menos, que o informador dos guerrilheiros que actuavam na zona do aquartelamento.

Veio também a saber-se que parte da comida, que o Cifra e o Setúbal levavam para a família, à noite, era entregue a alguns guerrilheiros, sendo este um deles.

Também informava os guerrilheiros de toda a movimentação das tropas que saíam e entravam no aquartelamento. Antes de conhecer o Cifra e ser preso a primeira vez, quando houve um ataque ao aquartelamento, em que o Cifra e outros militares foram feridos por granadas de morteiro, era ele que dava o sinal, com tiros de pistola, por código, mais para o sul, ou mais para o norte, de modo a acertar com mais precisão no alvo, que neste caso era o aquartelamento. Imediatamente uma secção de combate foi recapturar o dito amigo do Cifra, que muito admirado com a atitude dos militares, em o levarem preso de novo para o aquartelamento, dizia mais ou menos isto:
- Que quer o pessoal da tropa de mim? O Cifra está no quartel da tropa?

Interrogado na frente deste guerrilheiro e perante os documentos que o comprometiam, confessou e explicou que sentia orgulho no que tinha feito, pois era africano e esta era a sua terra. Mais disse, que a base de onde recebia ordens era em determinado local, mas que já deviam de ir tarde para a destruírem. Nomeou por diversas vezes o nome do Cifra, sem nunca o comprometer ou o acusar, mas que o queria ver. 

Ainda hoje o Cifra está para saber porque é que ele, vendo chegar o guerrilheiro mensageiro, que ele devia conhecer, preso no meio dos militares que regressaram ao aquartelamento, pois vigiava todos os movimentos das tropas, não fugiu. Talvez pensasse que estava protegido pelo Cifra e que nada lhe ia acontecer. O Cifra ainda hoje lamenta se ele pensou assim, pois não tinha qualquer influência, era um simples militar que tentava sobreviver em ambiente de guerra e considerava o tempo que passou com a sua família, uma dádiva do destino, pois o Cifra, também se entregou com o coração e nunca pensou que talvez estivesse a ser usado, e o comando, que tratava os guerrilheiros por “terroristas”, não lhe ia perdoar, pelo que ele tinha feito antes.

Continuando, portanto já não queria ser “militar do Portugal”, como dizia anteriormente ao Cifra, agora era africano e esta era a sua terra. Toda esta informação do interrogatório, ninguém sabe como, mas correu de boca em boca, pelo aqurtelamento, alguns militares brincavam com o Cifra e com o Setúbal, dizendo:
- O vosso amiguinho afinal era guerrilheiro. Que era africano já nós sabíamos, pois a cor não enganava. Quanto às irmãs, ainda vão ficar viúvos, coitadinhos...

Alguns, como era o caso do Curvas, o tal soldado atirador, alto e refilão, não escondia a sua reles linguagem e dizia:
- Se eu tiver oportunidade, eu faço-lhe a folha. Então o filho da puta era o que dava os tais sinais de pistola! Porque é que eu não o matei antes?

Ninguém sabe se era coincidência ou não, mas durante o tempo em que o Cifra e o Setúbal conviveram com essa família, o aquartelamento nunca foi atacado pelos guerrilheiros. Passado algum tempo, e quando os guerrilheiros começaram de novo a atacar o aquartelamento, levou a que o Cifra fosse interrogado pela tal polícia do Estado, que tinha a sua central na capital da província mas que se passeava por algumas áreas do aquartelamento, umas vezes de passagem de rotina, outras vezes convocadas para interrogatórios de grau elevado, que quase sempre acabava em morte dos interrogados, e metia o nariz em tudo o que no seu entender lhe parecia suspeito. Alguns até diziam que esta polícia mandava mais que o comando e andava por ali para o fiscalizar. Numa dessas passagens pelo aquartelamento chamaram o Cifra ao local onde era costume fazerem os interrogatórios, onde foi bombardeado com perguntas por dois arrogantes polícias durante uns longos vinte minutos, tempo esse que o Cifra considerou um dos momentos mais difíceis e humilhantes da sua passagem por este cenário de guerra. As perguntas não eram do género do polícia bom e do polícia mau, eram perguntas com frases já feitas e escritas num papel, que tanto um como outro queriam pôr na boca do Cifra e que finalizavam quase sempre com as palavras “anda confessa", "diz que sim” ou “nós sabemos que tu sabes, diz que sim”. Isto tudo intervalado com algumas perguntas estúpidas a respeito de sexo. Quando estas perguntas eram feitas os olhos brilhavam à espera de resposta, dizendo sempre qualquer coisa como “elas eram boas, não eram, até tinham olhos azuis”, dando a entender que estes miseráveis polícias não deviam ter tido sexo há um milhão de anos. O comandante, talvez por obra do destino ou porque alguém o avisou do que se estava a passar, aparece no local e diz:
- Quem autorizou todo este interrogatório? Terminem imediatamente com este disparate, pois fui eu que lhe dei ordens para conviver com o prisioneiro e sua família, pois havia um plano que entretanto abortou, mas mais tarde ficou completo com a chegada de novas informações.

O Cifra nunca chegou a saber que plano era esse e se iria servir de cobaia nesse referido plano, mas pensou que o comandante se referia à prisão definitiva, do seu suposto amigo, irmão da lavadeira. Por uma fracção de segundos ainda pensou se o comandante não entraria no interrogatório, fazendo de polícia bom, mas não, o comandante veio pôr as mãos nas costas do Cifra e tentou levá-lo para fora do local dos interrogatórios.O Cifra, ouvindo estas palavras do comandante, recuperou alguma coragem e disse, sem qualquer controle, tudo o que lhe ia na alma, usando a linguagem do Curvas, alto e refilão, e terminando mais ou menos assim, referindo-se aos polícias:
- ...vocês, são os maiores filhos da puta que encontrei em toda a minha vida!

Para alguma tristeza do Cifra e do Setúbal, as duas irmãs e a mãe, pois o pai há muito que tinha falecido com uma doença que lhe comeu parte das pernas, diziam que era a lepra ou coisa parecida, desaparecem da aldeia na noite em que o suposto amigo do Cifra foi de novo levado pelos militares. Passado um tempo houve informações, que passaram pela mão do Cifra, que os guerrilheiros, informados da prisão do irmão e do guerrilheiro mensageiro, vieram buscá-las, e claro, mudaram imediatamente a localização das suas bases na região.

O Cifra, a partir desse momento, ficou com quase a certeza que elas já eram guerrilheiras, mesmo antes de conhecerem o Cifra e tinham recebido treino, sendo instruídas e mentalizadas para fazerem tudo, mesmo tudo, sem qualquer restrição, a favor do seu movimento de libertação, vendo no Cifra uma potencial fonte de informação, mas nesse aspecto não tinham sido bem treinadas, pois o Cifra era um razoável militar, embora fosse um fraco guerreiro, que exercia o seu trabalho com seriedade e todo o sigilo, para que tinha sido treinado, nem ele sabia porquê, mas tinha assimilado essa vertente do treino. Mas voltando ao assunto, sem querer cortar o fio à meada, o comando, imediatamente, organiza uma operação para destruir a base que o suposto amigo do Cifra citou e também para verificar se era verdade o que ele tinha dito. Uma operação destas não era simples, mas também não era complicada. Normalmente incluía a força aérea e algumas unidades do exército. Esta começou com parte de um pelotão de morteiros e de uma companhia de intervenção, onde actuavam alguns militares africanos, onde ia o suposto amigo do Cifra que seria o principal guia, forçado, claro. Talvez com promessas de libertação.

(A história de acção, que se segue, foi descrita por alguns intervenientes, após chegada ao aquartelamento, contudo o relatório oficial, que seguiu para o comando territorial, na capital da província, era um pouco diferente.)

Saíram ao amanhecer do aquartelamento, pois de noite ninguém circulava em viaturas auto. Quando próximo do objectivo, e em lugar que entendessem ser de alguma segurança, deixaram as viaturas, onde ficou parte da força militar a manter a sua segurança. Os restantes militares seguiram a pé por pouca distância, comunicaram à força aérea, que fez deslocar um avião que largou umas bombas que normalmente continham napalma, que praticamente destruíu o objectivo. Depois é só esperar que o fogo, que as bombas produziram termine, e segue-se o serviço de limpeza e recuperacão de algum material do inimigo que ainda possa ter sobrevivido às explosões das bombas, como armas, documentos ou qualquer outros objectos que possam ter interesse militar. Mas normalmente depois da actuação das bombas do avião, nada ficava que fosse possível recuperar.

(Creio que na altura havia um ou dois aviões na base aérea da capital da província que largavam estas bombas e que uma organização internacional com o nome de ONU, a que o governo de Portugal pertencia, tinha proibido esse mesmo governo de usar esses aviões neste cenário de guerra de guerrilha. Nessa altura já não tinha o suporte de um terço dos seus membros, para lhe dar essa legitimidade, não sei se estou certo, mas creio que sim. Na altura passaram pelas mãos do Cifra mensagens com alguma informação nesse sentido, por ocasião de uma possível visita de enviados ao território para inspecção, por essa organização internacional. Talvez os meus camaradas, mais bem informados e ainda vivos, possam esclarecer com mais detalhes).

Mas continuando com a narração, por vezes o pelotão de morteiros era fundamental com o lançamento de algumas granadas quando havia alguma força de guerrilheiros em actividade, o que não era o caso nesta situação, porque se houvesse actividade, e se por tal motivo fosse necessário, tinha vindo uma força de tropas pára-quedistas, ou até um grupo de comandos da capital da província, que nessa altura se estavam a formar, e que era composto quase na sua totalidade, por naturais. Diziam que estes comandos, como grupo de tropas de acção, era o mais eficaz na guerra de guerrilha. A base, no momento, e como se esperava, não tinha actividade, foi destruída e não houve contacto com o inimigo.

Terminada a operação, já no regresso, antes de chegarem às viaturas auto, executaram o principal guia, neste caso o suposto amigo do Cifra. Ninguém sabe porque o mataram, talvez porque deixou de ter interesse militar ou pelas informações do interrogatório que andaram de boca em boca no aquartelamento. Foi muito simples, para quem anda na guerra, para quem perdeu quase todos os sentimentos de dignidade, derivado ao local e ambiente onde se encontra, que é de constante conflito, angústia e sobrevivência, ou seja estar vivo todo o momento, nem que para isso tenha que praticar as coisas mais horríveis, que um ser humano, alguma vez pensou em fazer, enfim, para quem foi instruído e treinado para matar.

Um certo grupo de militares deixou-se atrazar dos demais, onde se incluía o dito amigo do Cifra. Soltaram-no, e disseram:
- Estás livre, vai-te embora.

O desgraçado, vendo-se livre, correu em direção oposta ao grupo. Nesses momentos há sempre um militar, como no caso do Curvas, alto e refilão, que num acesso de fúria, derivado à sua pouca educação escolar, porque carrega uma enorme frustração de algo que ainda não conseguiu realizar na sua ainda curta vida, porque na sua ignorância quer mostrar que é mais valente que os colegas ou até às vezes um natural que colabora com os militares, e que também leva uma arma, servindo de guia e tradutor, que não simpatizando com o homem pois é de diferente etnia, que dispara um tiro, ou uma rajada de G3 nas costas do prisioneiro.

Não foi o militar que o matou, mas sim, o regime que o treinou para matar, que lhe dizia na altura da instrução básica qualquer coisa como: não importa, vai em frente, tens a razão do teu lado, em força, contra tudo, mata, tens uma arma na mão, estamos a ensinar-te a manuseá-la, usa-a, pois quando ganhares, serás um herói. Embora neste caso, a situação não seja a mesma, mas o sentido do treino e da formação, estava lá, e alguns militares absorveram, enfim, aprenderam a lição que os instrutores lhe explicavam e exemplificavam no seu próprio corpo, por centenas de vezes, a melhor maneira de matar um ser humano, com uma faca, uma metralhadora, com morte rápida, ou com prolongamento de dor.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10365: Do Ninho d'Águia até África (8): O "Arroz com pão"

Guiné 63/74 - P10387: Passatempos de verão (11): Foto(de)composição ou o fim de um (passa)tempo...ou simplesmente uma sequência fotográfica à procura de uma legenda (Luís Graça)










Candoz > Quinta de Candoz > 24 de setembro de 2011 > Fim de um (passa)tempo. Fim do verão.  Fim das férias... na Tabanca de Candoz... Foto(de)composição... O medo guarda a vinha, as árvores de fruto, os muros, a casa, as minas, o passado, o presente, o futuro,,, Fim de um (passa)tempo inocente. Ou talvez não. Talvez a foto ou sequência de fotos mereça uma outra legenda, com a cumplicidade, a conivência,o humor,  a imaginação e a paciência dos nossos leitores. 

Fotos: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados

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Nota do editor:

Último poste da séreie > 27 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10303: Passatempo de verão (10): As árvores também choram... (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P10386: Parabéns a você (472): Ribeiro Agostinho, ex-Soldado da CCS/QG/CTIGuiné (1968/70)

Para aceder aos postes do nosso camarada Ribeiro Agostinho, clicar aqui
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10357: Parabéns a você (471): Rui Batista, ex-Fur Mil da CCAÇ 3489 (Guiné, 1971/74) e TonY Grilo, ex-Soldado Art.ª da BAC 1 (Guiné, 1966/68)

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10385: Estórias dos Fidalgos de Jol (Augusto S. Santos) (11): Futebol, coraminas, e não só...

1. Mensagem do nosso camarada Augusto Silva Santos (ex-Fur Mil da CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73), com data de 14 de Agosto de 2012:

Olá Camarada e Amigo Luís Graça,
Sabendo que o "meu" habitual editor Carlos Vinhal se encontra em gozo de merecidas férias, tomo a liberdade de te enviar directamente mais uma estória relacionada com a minha passagem por terras da Guiné, deixando ao teu critério a sua possível publicação.
Junto ficheiro da mesma juntamente com mais algumas fotos do meu álbum.

Para ti, para o Carlos Vinhal, restantes editores, e camaradas em geral, um grande e forte abraço.
Um bem-haja para aqueles que têm a paciência de ir lendo estes meus relatos.
Augusto Silva Santos


ESTÓRIAS DOS FIDALGOS DE JOL (11)
 

Futebol, coraminas, e não só…

Na sequência do comentário a uma das minhas estórias sobre Os Fidalgos do Jol (P10286 - O Tarzan do Jol) por parte do nosso camarada e amigo Manuel Carvalho (que tal como eu também passou por Jolmete), mais propriamente sobre a “pica” que lhe deu depois de tomar uma das famosas pastilhas de coramina, veio-me à lembrança um episódio com estas de certa forma relacionado.

Estando a aproximar-se o final da comissão e, já com os índices de saturação a roçar os limites, o que era perfeitamente natural, alguém resolveu promover (não sei se em boa hora) um “campeonato” de futebol entre Grupos de Combate, na tentativa de suavizar a situação.

Pelo que tenho tido oportunidade de ler aqui no blog, esta era uma prática comum em praticamente todas as unidades, infelizmente nem sempre com os resultados finais mais desejáveis, que deveriam ser de descontracção, distracção e sã camaradagem. É que jogo é jogo, e ninguém gosta de perder nem a feijões.

O “campeonato” lá foi decorrendo de acordo com a disponibilidade dos Grupos, com uns jogos mais “quentinhos” com o aproximar da parte final e, nalguns casos, a acabar prematuramente, face ao número de expulsões.

Eram discussões muito acaloradas que, só por mero acaso, por vezes não davam mesmo em confrontação física. Se isto ainda acontece com profissionais nos dias de hoje, não era de admirar que, num cenário daqueles, com o pessoal psicologicamente bastante afectado, não tivesse também acontecido. Felizmente que, na maioria dos casos, se tratou apenas de jogos assim mais para o “durinho”.

É aqui que entram as famosas “pastilhas quadradas”, se não me falha a memória embrulhadas em prata, e que eram muito famosas entre grande parte dos “atletas seleccionados”. Nos dias dos jogos era vê-los à socapa dirigirem-se até à enfermaria, em diálogo mais ou menos disfarçado com os seus camaradas daquele sector. Depois de “emborcarem” umas coraminas, era vê-los correr, por vezes mais do que a própria bola. Quase parecia mais atletismo do que futebol.

Num desses jogos em que fui convidado a participar, tive a infelicidade de provocar um incidente, por sinal com aquele que considerava ser o meu melhor amigo em Jolmete. Ainda me lembro que, dos meus 1,82 de altura e mais ou menos 80 quilos de peso, e a jogar a defesa central, vejo uma figura franzina (por certo com menos uns 20 quilos que eu) vir direita a mim para disputar uma bola lá nas alturas mas, ao chocar comigo, foi projectada devido ao impacto, e eis que o Cabo “Bigodes” cai desamparado no “relvado” de terra batida, gritando de dor.

Não era para menos, pese embora de início julgarmos ser um pouco de teatro, do tipo que os jogadores profissionais nos habituaram, mas infelizmente não era o caso, pois rapidamente se chegou à conclusão que acabara de partir a clavícula ao meu amigo Borges.

Dali para a frente não quis participar em mais nenhum jogo, pois foi um acontecimento que marcou durante bastante tempo, mas obviamente muito mais a ele que teve de andar de braço ao peito durante algumas semanas. Mais tarde, já na “peluda”, viria mesmo a ter de ser operado, tal foi o estrago que lhe provoquei no ombro.

Felizmente que este “pequeno” incidente em nada alterou a amizade que iniciámos em terras da Guiné, bem antes pelo contrário, pois perdura até aos dias de hoje.

Brá, Dezembro de 1971 > Visita aos arredores

Jolmete, Fevereiro de 1972 > Visita à Tabanca

Pelundo, Abril de 1972 > A caminho do abrigo

Jolmete, Abril de 1972 > A treinar para a carta de condução

Jolmete, Abril de 1972 > Na messe com o Fur Mec Auto

Jolmete, Abril de 1972 > Convivio na messe

Jolmete, Junho de 1972 > Entrada da Capela

Jolmete, Outubro de 1972 > Quem ganhou não interessa... O meu amigo Borges é o da t-shirt vermelha 
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10286: Estórias dos Fidalgos de Jol (Augusto S. Santos) (10): O Tarzan do Jol

Guiné 63/74 - P10384: Convívios (474): 25.º Almoço do pessoal da CCAÇ 557, dia 27 de Outubro de 2012 em Benavente (José Colaço)

O Coronel Ares, Comandante da CCaç 557 no discurso de encerramento no almoço de 2011


25.º ALMOÇO/CONVÍVIO ANUAL DA CCAÇ 557

DIA 27 DE OUTUBRO DE 2012 EM BENAVENTE

Caro amigo Luís Graça e editores se for possível publiquem no blogue.
Numa eu tenho de agradecer ao blogue é que este ano vou ter participantes no almoço de camarigos do blogue, que fazem questão como ex-combatentes da guerra da Guiné, confraternizar com os velhinhos do Cachil, CCaç 557.


Programa 

O almoço será serviço no Restaurante o Miradouro

- Concentração às 11 horas no parque do restaurante para os cumprimentos da praxe e respectivos quebra-costas
- Por volta do meio-dia serão servidas as entradas, a que se seguirá uma pequena palestra para apresentar uns companheiros da CCaç 557, que nas minhas pesquisas consegui descobrir e nos honram com a sua presença pela primeira vez.
- Segue-se o almoço com sopinha da pedra para almofada, os pratos de peixe, carne, bebidas a gosto, vinho, cerveja, sumos ou agua, café e as espirituosas. 

- Terminado o almoço há a exibição dos dotes de alguns dançarinos com música ao vivo dos anos 60, mas também há o apita o comboio e Quim Barreiros que dá para os pés de chumbo.
- Segue-se o discurso oral e de improviso do Comandante Ares. 
- Cerca das 17 horas será servido o lanche com os parabéns e o bolo de aniversário
- Termina com as castanhas assadas, oferta do nosso prezado, companheiro, amigo e camarada ex-1.º Cabo João Casimiro Coelho que todos os anos faz questão de nos presentear.

Obrigado. 
O organizador José Botelho Colaço. 
Ao vosso dispor: 
O meu contacto ver na lista de contactos da tertúlia.
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Notas de CV:

José Colaço foi Soldado Trms da CCAÇ 557, CachilBissau e Bafatá nos anos de 1963/65

Vd. último poste da série de 12 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10367: Convívios (473): Almoço do pessoal da CCAÇ 2791 a realizar no dia 29 de Setembro de 2012 em Penafiel (Luís Faria)

Guiné 63/74 - P10383: Notas de leitura (403): Relatório do Conselho Superior de Luta ao III Congresso do PAIGC (1977) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 9 de Julho de 2012:

Queridos amigos,
Trata-se do III Congresso do PAIGC, ainda se vivia no mito da unidade Guiné-Cabo Verde.
O postulado ideológico aparece claramente definido, a ligação entre partido e movimento de libertação, o centralismo democrático consorciado com a dinâmica revolucionária. Aristides Pereira refere sucessos industriais que no ano seguinte, Luís Cabral, noutro documento já aqui apresentado, não ilude insucessos, desvios, inviabilidades. Tudo faltava à Guiné e confundiram-se desejos com a política praticável. As fábricas fecharam, os financiamentos volatizaram-se, a divida externa acumulou-se. Começava a espiral infernal de onde nunca mais se saiu.

Um abraço do
Mário


Relatório do Conselho Superior de Luta ao III Congresso do PAIGC (1977)

Beja Santos

Com o intuito de se juntar toda a documentação que permita seguir a evolução política do PAIGC no período de pós-independência, procede-se a um resumo das matérias abordadas no seu relatório por Aristides Pereira no decurso do III Congresso do PAIGC. Convém recordar que o II Congresso ocorrera em 1973, havia que eleger uma nova Direção após o assassinato de Amílcar Cabral e definir a linha de rumo que desembocasse na independência.

A Guiné-Bissau estava agora confrontada pelo modelo de desenvolvimento na era pós-colonial. Aristides Pereira lembra as dificuldades vividas durante o período da libertação total (que ele denomina por “política de abertura em relação aos nacionais que, enganados pela demagogia colonialista, tenham combatido nas fileiras do inimigo”), refere o novo Estado como confrontado pela ausência de infraestruturas básicas, pelo desequilibro e dependência do comércio externo e por uma grave falta de quatro técnicos qualificados. A seguir, debruçou-se sobre os fundamentos da orientação política e ideológica do PAIGC e recorda: “Desde a sua criação o PAIGC definiu-se como a vanguarda e o motor da luta. Cabral dizia que uma luta, para poder avançar a sério, tem que ser organizada e só pode ser organizada a sério por uma direção de vanguarda. Que o PAIGC adotara a designação de partido porque, para dirigir um povo para a libertação e para o progresso é fundamentalmente preciso uma vanguarda. O PAIGC nasceu, assim, como um verdadeiro partido político”. Seria esta a riqueza da dualidade Partido-Movimento, e voltou a citar Cabral: “Nós, que lutamos contra o colonialismo português somos todos um movimento de libertação nacional, toda a gente é partido. Mas só entra de facto no partido aquele que de verdade tem uma só ideia, um pensamento que só quer uma coisa e tem que ter um dado tipo de comportamento na sua vida privada e social”. Isto para justificar porque é que o PAIGC é a força política dirigente da sociedade no estádio de desenvolvimento que exige a direção de um processo revolucionário num contexto de democracia nacional.

Depois, a sua exposição dirigiu-se para o desenvolvimento económico e recordou que o PAIGC favorecia um modelo de planificação, de estatização, sem perder de vista a necessidade do desenvolvimento e modernização da agricultura, da reforma agrária (em Cabo Verde) e da nacionalização das terras e de outros bens pertencentes a inimigos provados da liberdade do povo; o controlo do comércio externo e a coordenação do comércio interno era o corolário lógico do modelo estatista. Procedeu a um balanço do que estava a ser feito quanto ao dinamismo industrial, elencando as realizações: fábricas de parquete-mosaico e de pranchas, fábrica de sumos e compotas, fábrica de espuma para colchões e almofadas, fábrica de cerâmica de Bandim, restruturação da CICER, criação da companhia de eletricidade e águas de Bissau. Para o período até 1980 encarava-se a hipótese de instalar mais indústria: complexo industrial de Cumeré, produção de mel e cera no Gabu; cerâmica em Bafatá; fábrica para a produção de oxigénio e acetileno de Bissau; fábrica de farinha e óleo de peixe de Cacheu; fábrica de curtumes; fábrica de artigos de plástico; fábrica de leite reconstituído; fundição e oficinas metalo-mecânicas; unidade de transformação da castanha de caju; unidade de fabrico e de coloração de tecido em bandas. Referiu-se igualmente ao desenvolvimento da rede de energia elétrica, a criação de uma empresa para estudar o aproveito das bauxites, a criação de três empresas mistas de pesca, mais adiante falou no défice do comércio externo, dos armazéns do povo e da necessidade de encontrar resposta para a rede de transportes, área em que já se criara a Silo Diata, que possuía 37 autocarros e a Guinémar.

Quanto à definição do Estado, Aristides Pereira é inequívoco: “O Estado nasceu como um instrumento ao serviço do Partido para a realização do seu programa. É ao Estado sob a direção do Partido que incumbe a execução do seu programa económico, social, cultural, de defesa e de segurança. A direção do Estado pelo Partido deverá fazer-se na base de uma relativa autonomia e aí intervêm a administração central e os escalões intermédios e de base". O capítulo referente à unidade Guiné-Cabo Verde revela-se nebuloso, uma vez mais fica-se com a ideia que se tratava de um preceito assente na areia: “Partindo da análise das nossas realidades históricas e tendo em conta que no mundo atual a unidade é uma exigência da luta dos povos pela sua liberdade e progresso, Amílcar Cabral teve a lúcida visão de inscrever a opção da unidade como um princípio de base da nossa organização partidária e da nossa luta pela realização da suprema aspiração do nosso povo à liberdade e ao progresso". As afirmações não passam de verbosidade: “Se é certo que a unidade pressupõe diferenças entre as partes componentes, não é menos evidente que, tratando de nações, para que a unidade seja uma força, a formação jurídico-política da unidade deve ser antecedida pela materialização gradual da unidade de existência dos povos traduzida por formas superiores de cooperação e comunhão, através das novas realizações de intercâmbio e complementaridade (...) para além de todos os fatores históricos, étnicos, culturais, que podem fundamentar a unificação de uma nação ou a associação de dois ou mais povos, será preciso possuir-se um conjunto de interesses comuns, conscientemente definidos, para que a unidade seja bem-sucedida”. E deixou um aviso: “Hoje, é cada vez mais premente a necessidade dos nossos Estados definirem uma estratégia comum de desenvolvimento, a qual permitirá evitar o estabelecimento de estruturas concorrenciais ou divergentes, que esvaziariam a unidade do seu conteúdo”.

Posto isto, analisou o funcionamento das organizações de massa e o funcionamento do PAIGC. Este é reafirmado no centralismo democrático, mediante crítica e autocrítica e com uma direção coletiva. Faz-se um apelo à formação permanente dos militantes e quadros. A política externa continua no não alinhamento, o PAIGC aparece imbrincado com o MPLA, a FRELIMO e o MLSTP, em sintonia com a organização da unidade africana, havendo que não descorar relações de excelente vizinhança com a Guiné-Conacri e o Senegal. Foram endereçados agradecimentos à URSS, a Cuba, à OLP e à FRETILIN. Decorrente desta alocução que abrangeu as principais áreas políticas, o congresso aprovou uma resolução geral onde importa destacar: - o PAIGC é um movimento de libertação no poder e pratica uma política de unidade nacional; haverá que consagrar nas leis fundamentais dos dois países o princípio de que o PAIGC é a força política dirigente da sociedade, o PAIGC deverá continuar a praticar a política de democracia nacional revolucionária, o que implica que todas as camadas sociais sejam mobilizadas para participarem ativamente nas tarefas do desenvolvimento nacional e o Estado deve organizar as suas estruturas e instituições e controlar as suas atividades em observância estrita do princípio da defesa intransigente dos interesses das massas trabalhadoras.

O III Congresso terminou em 20 de Novembro de 1977. Em Dezembro terão lugar uma série de execuções de antigos comandos guineenses. Nos bastidores do Congresso travou-se luta renhida para a constituição da nova lista da Direção, os guineenses protestaram com uma alegada desproporção de nomes cabo-verdianos. E em 1978 tornou-se indisfarçável o descalabro do aparelho económico e a rutura financeira agravou todos os problemas. As cúpulas passaram a contar as espingardas e a participação popular evaporou-se.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Setembro de 2012> Guiné 63/74 - P10380: Notas de leitura (402): "Les Héros de la Guinée-Bissau: La Fin D'Une Légende", de Lourenço da Silva (Francisco Henriques da Silva)

Guiné 63/74 - P10382: História de vida (36): Nha mininu Zé Manel - uma visita à escola do padrinho (Manuel Joaquim)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), enviada ao nosso Blogue no dia 7 de Setembro de 2012:

Meus caros editor e co-editores, meus queridos camaradas Luís, Carlos e Eduardo:
Aqui vai mais uma pequena "estória" sobre o meu Zé Manel*.
Encontrei uma carta dirigida à minha esposa onde faço referência a uma visita que ele fez à minha escola, uns seis meses depois de ter chegado a Portugal.
Foi na base desta referência que redigi este texto cuja publicação deixo inteiramente ao vosso critério.

Com um grande abraço do
Manuel Joaquim


Nha mininu Zé Manel – uma visita à escola do padrinho

Foto 1. Maio/1967: Nha mininu Zé Manel, acabado de chegar da Guiné, menino feliz no seu novo ambiente (casa de meus pais)

Quando regressei da Guiné (maio/1967) esperava voltar à docência numa outra escola que não aquela para onde voltei e onde era professor efectivo. Os resultados do concurso já tinham saído em março daquele ano e eu tinha ficado colocado numa escola da Amadora. Por qualquer razão ou “conveniência” do Ministério da Educação a publicação desses resultados no Diário do Governo foi sendo adiada, mês após mês (um ano!). Os transtornos causados aos professores vinculados aos resultados do concurso foram enormes. Não houve, nesse ano, mobilidade no quadro efetivo docente do ensino primário. Fui atingido em cheio.

Sabendo-me colocado na Amadora, aluguei casa perto, casei e … fiquei “em Aveiro sem sapatos”, tive de voltar ao meu antigo local de trabalho onde antes da tropa tinha trabalhado três meses, os imediatamente anteriores à minha incorporação militar: uma escola numa aldeia cheia de miúdos e à qual, no inverno, eu só tinha acesso aceitável se usasse os percursos pedestres pelo meio dos pinhais já que os outros eram lama e mais lama. Usava uma bicicleta e tornei-me prático em atravessar a floresta ziguezagueando, fazendo “slalom” por entre os pinheiros. Estava hospedado numa pensão (com alguma qualidade) na Guia, a cerca de 5km da escola e a meio caminho (25Km) entre Leiria e Figueira da Foz. E assim passei um ano: a esposa a trabalhar em Lisboa, o Zé Manel em casa de meus pais e eu na Guia, a pedalar 10 kms por dia para dar aulas. O que ganhava não chegava para pagar a pensão, a renda de casa no Rio de Mouro (Sintra) e as viagens. Não chegava mesmo!

Entretanto a esposa engravidou, aconteceu neste período toda a gestação da minha filha mais velha, nascida no início de junho de 1968, antes do fim do ano lectivo e assim, durante quase todo o ano, tirando as férias do Natal e da Páscoa, o ponto de encontro semanal foi, muitas vezes, a minha casa paterna, nos arredores de Pombal. Cabe aqui dizer que minha esposa não pagava as viagens de comboio, trabalhava na CP.

Situemo-nos no tempo (1967). Até me custa relembrar as miseráveis condições de vida que existiam em certos pontos do país. E não se diga que o povo não dava por isso, como já ouvi e vi escrito. Esta aldeia onde ensinei tinha, na altura, oito professores em duas escolas (tinha gente, muita!) mas nem sequer tinha uma estrada de acesso em macadame. Dos oito professores eu era o único do sexo masculino. As minhas colegas viviam na aldeia, em comunidade, nenhuma era da região, viviam longe das suas terras de origem, passavam a maior parte do tempo resignadas e enclausuradas naquele local.

Como disse atrás, trabalhei lá três meses antes de ir para a tropa. A construção de uma estrada era tema muito frequente nas conversas da população. Quando regressei, quatro anos depois, não estava tudo na mesma mas quase. Andavam máquinas desbravando o terreno e … com soldados dentro! Eram máquinas da Engenharia Mmilitar. Tinha eu saído há pouco tempo de Mansabá e agora entrava ali debaixo do mesmo ruído, na confusão dos mesmos trabalhos. Porquê os militares?- perguntei. Dizem-me que foi “cunha” de alguém “importante” já que, da Junta Autónoma das Estradas, nunca tinha havido resposta e que se não fossem eles a estrada nunca mais vinha.

Mas a construção da estrada ainda demorou. O sr. inverno transformou quase tudo outra vez em lama e a coisa tornou-se difícil. Concluindo: pouca coisa tinha mudado nos acessos e, assim, lá tive de continuar pedalando pelo meio dos pinhais tal como há quatro anos antes. Juro que fiquei um especialista de “pinheiral slalom”! Ora bem, certo dia, numa pontual conversa com os alunos sobre a terra e a guerra de onde tinha saído, falei-lhes de um menino da Guiné, menino como eles, que eu tinha trazido. A curiosidade foi muita, a guerra não lhes era estranha. Havia gente da aldeia na tropa e na guerra, alguns já regressados como eu, outros prestes a partir. Prometi-lhes que, qualquer dia, levaria o menino comigo para a escola para passar um tempo connosco. Entrou tudo em polvorosa, não sei se devido à curiosidade se ao receio da novidade.

Bem, a coisa aconteceu mesmo. Lá levei nha mininu, o meu Zé Manelito, para um dia de convívio com a malta da escola. Já não me recordo da maior parte do sucedido. Para dizer a verdade, tudo isto já se passou há tanto tempo e o assunto “Zé Manel” tornou-se tão normal na minha vida que estava praticamente esquecido. Lembrava-me da excitação da miudagem, de gente na rua na altura do recreio (está visto que para ver o pretito), da reacção de espanto de um ou outro na sala de aulas quando verificava que ele já “sabia” mais do que muitos deles, está claro que comparavam com os do 1º ano, da 1ª classe como então se dizia, (eu tinha uma turma com alunos dos 1º e 4º anos).

Foto 2. Agosto/1967: o menino à mesa, no dia do meu casamento, tendo à sua direita os meus irmãos e “respetivas”.

Foto 3. Agosto/1967: os mesmos referidos na foto anterior, agora com meu pai e minha mãe 

Porquê então, agora, esta lembrança? Obra do acaso. Tenho a sorte de ter em minha posse toda a correspondência dirigida à namorada que depois se tornou a minha “fairy queen” e minha esposa. Tive a sorte, e tenho, de continuar a viver com ela e a considerá-la, até hoje, a minha “fada madrinha”.

E assim, naquelas voltas que de vez em quando costumamos dar às nossas coisas, dei com uma carta a ela dirigida, com data de 24/10/1967, onde me refiro ao acontecimento. A sua leitura avivou-me as memórias e aqui transcrevo a parte da carta que ao assunto se refere:

Foto 4. Excerto do original da referida carta

O Zé Manelito cá passou umas horas. Sucesso! Preocupação! Os garotos do “fim do mundo”, mais incivilizados que os africanos do mato, sim, muito muito abaixo do nosso pretinho, iam-no comendo. Primeiro, miúdos e miúdas fugiram. Ai que ele mata-nos! Pois, pois ele é mau?, mais p’rá qui mais p’rá colá, foge que ele é preto, ele fala quemàgente? iih … aahh … olha o cabelo dele, o mêrmão diz que calquer preto capanhe mata-o logo; qué quel come? olha, ele chama pêssegàmaçã (é verdade, o diabo do miúdo começou a comer uma maçã e chamou-lhe pêssego, tal não devia ser a confusão que ele sentia).
Na sala a coisa foi serenando. Foi aluno como os outros, melhor que os outros. Ambientaram-se. Falei-lhes dele. Olhavam-no espantados. Mais tarde já jogou à bola. Já acamaradavam. Bem, tudo serenou. E hoje já me diziam que ele não era mau porque fazia tudo como eles, por que não o tinha levado outra vez ?, etc. etc. Na pensão foi bem recebido. Deram-lhe um quarto, muitos e muitos beijinhos, o miúdo é tão engraçadinho, que sorte que ele teve, Deus o abençoe … O costume. Foi na camioneta para Pombal. Um bocado aparvalhado com tudo o que lhe tinha acontecido. A madrinha esperava-o. Alegria estampada nos olhos. Dedicação ao máximo. Ah, grande Zé Manel, tens de ser alguém!

A madrinha que o esperava em Pombal era a minha mãe. Como já referi noutro “post” deste blogue o Zé Manel foi, costumava ela dizer, uma bela prenda que este seu filho lhe tinha trazido da Guiné. Viveram juntos, na minha aldeia natal (Casal Novo/Pombal), os três primeiros anos e meio de vida do menino em Portugal, vida que ela acompanhou com o carinho, não de uma madrinha mas de uma avó dedicada, com uma devoção e uma dedicação extremas. Separaram-se fisicamente durante uns anos com a sua ida para França mas o menino foi sempre para ela o “meu Zé Manel”, até à sua morte (em 2003).

Foto 5. Finais de fevereiro/1968 > meus pais e minha esposa (grávida de seis meses) ao sol de inverno, na minha casa paterna. Meus pais limpam um “Petromax”, a eletricidade só chegaria no final dos anos 70! O Zé Manel tinha então sete anos, feitos há pouco.

A propósito recordo que os padrinhos de baptismo do Zé Manel foram meu pai e minha esposa, eu e minha mãe somos assim “padrinho” e “madrinha”. Foi um menino muito querido naquela aldeia, hoje praticamente deserta. Escrevia ele, de Bissau, em 19/10/1981, quase quatro anos depois de ter regressado à Guiné: “ … Quando falam no nome de Casal Novo sinto uma coisa dentro do meu coração, recordar esta bela aldeia, as suas gentes, a amabilidade desta pequena povoação, enfim um paraíso para não esquecer nunca mais – ali nasceu e cresceu (sic) a infância de um pretinho chamado José Manuel Sarrico Cunté - obrigado Casal Novo, obrigado madrinha Piedade, padrinho Zé Bispo, ti Jquina e ti Manel, ti Santieira e ti Rainho, mas não perdi a esperança de um dia poder voltar a essa belíssima aldeia … não perdi a esperança.”

E, dois anos depois, em 29/09/1983: “ … Falando daquela terra, as saudades são imensas, lembro-me das belíssimas férias, a ajudar a madrinha no corte do milho, na apanha da azeitona indo por aqueles cerrados abaixo, encostas e ladeiras, aquele amor que os vizinhos tinham por mim, enfim lembro-me sempre do Casal Novo e da sua gente, daqui um grande abraço para eles todos, ( … ), digam-lhes que ainda estou vivo e não perdi a esperança de ir visitá-los, ( …).”

As pessoas referenciadas já todas faleceram mas as suas esperanças concretizaram-se. Voltou à aldeia a tempo de os ver, vivos, e de com eles partilhar as suas memórias de uma infância muito feliz, ali passada.

O menino é hoje um homem com 51 anos, um pouco da sua história está publicada neste blogue. É um “habitué” dos convívios da CCaç 1419 onde talvez seja mais comum chamarem-lhe Sarrico, afinal o nome por que ficou conhecido entre os militares da Companhia. Junto duas fotos referentes a dois desses convívios, já com alguns anos mas não muitos, não sei precisar a data.. Uma é de Alferrarede e outra de Sta. Marta de Portuzelo.


Fotos 6 e 7 > O Zé Manel nos convívios da CCaç.1419, em Alferrarede, Abrantes e em baixo em Sta. Marta de Portuzelo, Viana do Castelo
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Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

10 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7261: História de vida (32): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 1ª Parte (Manuel Joaquim)

12 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7267: História de vida (33): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 2ª parte (Manuel Joaquim)

20 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8305: Parabéns a você (262): José Manuel (...), ou Adilan, o meu menino da Guiné, fez 50 anos em Janeiro deste ano (Manuel Joaquim)

Vd. último poste da série de 7 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7395: História de vida (35): Viagem para o desconhecido (Agostinho Gaspar, ex-1º Cabo Mec Auto Rodas, 3ª CCAÇ / BCAÇ 4612, Mansoa, 1972/74)

Guiné 63/74 - P10381: Tabanca Grande (360): Manuel Serôdio, mais um camarada da diáspora, ex-fur mil at inf, CCAÇ 1787/BCAÇ 1932 (Bula, Bissau, Empada, Buba, Quinhamel, 1967/69)











Guiné > CCAÇ 1787/BCAÇ 1932 (1967/69) > o ex-fur mil at inf, com a especialidade de minas e armadilhas, Manuel Seródio... Fotos do seu álbum. Sem legendas.


A CCAÇ 1787/BCAÇ 1932 foi mobilizada pelo RI 15, partiu para o TO da Guiné em 18/10/1967 e regressou a 21/8/1969. Passou sucessivamente por Bula, Bissau, Empada, Buba, Bissau, Quinhamel. Comandante: Cap Inf Marcelo Heitor Moreira. O BCAÇ 1932 esteve sediado em Bissau, Farim e Bigene (Comandante: ten cor inf Narsélio Fernandes Matias)

Fotos: © Manuel Serôdio (2012). Todos os direitos reservados. 



1. Mensagem do Manuel Serôdio, com data de 30 de agosto, e pedido de apresentação na Tabanca Grande [, foto atual à direita]:

Eis a minha ficha militar:

(i) Manuel de Almeida Andrade Serodio, natural de Oliveira de Azeméis, ex-Furriel Miliciano, classe de 1966, n° 95998/65;

(ii) Recenseado com o n°53 em 1964, e incorporado em 16/05/1966, tendo passado à disponibilidade em 29/09/1969.

(iii) Em 16/05/1966 dei entrada no RI 5 em Caldas da Rainha para iniciar a recruta;

(iv) A 21/08/1966 entrei no CISMI em Tavira para começar o segundo ciclo do curso de Sargentos Milicianos na especialidade de Atirador de Infantaria;

(v) Promovido a primeiro Cabo Miliciano em 28/11/1967 e colocado de seguida no RI 6;

(vi) Nomeado para servir na Província da Guiné, fui destacado para Tancos afim de tirar a especialidade de minas e armadilhas;

(vii) Para de seguida ser colocado no RI 15 em Tomar, fazendo parte do Batalhão 1932, Companhia 1787;

(viii) Enviado a seguir para Santa Margarida no final do gozo da licença, fui para Lisboa no dia 28/10/1967, de onde embarquei no mesmo dia no Uíge com destino à Guiné;

(ix) Onde cheguei a 2/11/1967;

(x) Regressei à Metrópole a 23/08/1969 no final da comissão.

2. CCAÇ 1787 / BCAÇ 1932 > Louvor

À Companhia de Caçadores 1787, porque durante a sua comissão na Província da Guiné demonstrou excelente capacidade operacional, elevado espírito de sacrifício e profundo sentido de missão.

Designada logo após o seu desembarque como Unidade de reserva do Comando Chefe, começou logo a desenvolver intensa actividade de campanha, na qual se revelou uma Unidade coesa, agressiva e dinâmica, qualidades que ficaram bem patenteadas nas primeiras operações levadas a efeito.

A perseverança e eficiente actividade operacional continuou depois de ter assumido um Sector onde assegurou a defesa aos trabalhos de construção de estradas e proceder a numerosas escoltas. 

No aspecto psico-social, a acção da Companhia de Caçadores 1787 em nada desmereceu da sua conduta em combate, como demonstra a adesão quase total das populações da sua área às nossas tropas. Adesão esta motivada pelos numerosos melhoramentos sócio-económicos, como construção de casas, assistência sanitária, escolar e reparação das estradas.

Deste modo, a Companhia de Caçadores 1787 contribuiu em elevado grau para a luta contra o terrorismo, facto que leva a realçar os seus serviços e a conceder-lhe este público louvor.

21/08/1969
OS nº N° 35 do CTIG, despacho do EXm° Comandante Militar, em 18/08/1969

3. Há dias, a 7 do orrente, o nosso coeditor Carlos Vinhal mandou-lhe a seguinte mensagem (que ainda aguarda resposta)
:

Caro camarada Serôdio

Quando dizes que tens falado da história da tua Companhia, no Blogue, julgo que o terás feito através de comentários. Confirma se é verdade.

Não temos nenhum registo teu na tertúlia, e curiosamente, nem da tua Unidade. Para que fiques com o teu trabalho acessível, terás que nos enviar os teus textos e fotos, para nós publicarmos em poste. Serão criados marcadores, para facilitar a pesquisa, da tua Companhia e de ti próprio.

Sugiro que me mandes uma foto do teu tempo de Guiné e outra actual, de preferência tipo passe, em formato JPG, Docx ou PDf e nos indiques o teu posto, especialidade, data de ida e regresso, locais por onde andaste, e o que achares por bem dizer para que te possamos conhecer minimamente. Farei a tua apresentação formal à tertúlia, da qual ficarás a fazer parte.

Seguidamente poderás começar a mandar material para publicar. Acho conveniente que comeces tudo de novo, ou seja falar da tua companhia e de ti, eventualmente, desde o início da comissão. Se achares que tens muito material para publicar, poderemos inclusive criar uma série para ti ou para a CCAÇ 1787. Tu resolverás como achares melhor.

Para terminar sugiro que envies a tua correspondência sempre para dois dos três endereço possíveis, sempre para o luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com e para um dos editores, eu ou o Eduardo. Se tiveres alguma dúvida que queiras ver esclarecida, não te acanhes e pergunta. Estamos aqui para ajudar.

Sem mais por agora, deixo-te um abraço e votos de boa saúde.
O camarada e amigo
Carlos Vinhal

4. Na realidade, o Manuel Serôdio já é "nosso amigo" do Facebook... Segundo informação da sua página no Facebook, o nosso novo grâ-tabanqueiro nasceu em 21 de outubro de 1944, e estudou na escola industrial e comercial de Oliveira de Azeméis. Pelos diálogos que tem mantido (em português e em francês) e pelo seu endereço email, vive ou viveu em França. Disponibilizou algumas fotos suas, do tempo de Guiné, na nossa página do Facebook, Tabanca Grande, Luís Graça, Guiné.

Em meu nome e dos demais editores deste blogue, fica já formalmente apresentado o Manuel Serôdiio, grã-tabanqueiro nº 578. Aguardemos que nos mande informações adicionais (local onde vive, legendas das fotos, etc.), além de uma ou mais histórias do seu tempo de comissão de serviço no TO da Guiné. Mais fotos também serão bem vindas: com legenda (data, local, etc.).

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Nota do editor:

Último poste da série > 11 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10364: Tabanca Grande (359): José Fialho, alentejano de Portimão, ex-1º cabo radiotelegrafista (CCAÇ 4641, Mansoa e Ilondé, 1963/74)

Guiné 63/74 - P10380: Notas de leitura (402): "Les Héros de la Guinée-Bissau: La Fin D'Une Légende", de Lourenço da Silva (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 7 de Setembro de 2012:

Meus amigos,
Acabei de ler, o livro "Les Héros de la Guinée-Bissau: la fin d'une légende" de Lourenço da Silva, da qual fiz a recensão, em duas partes, de que anexo a primeira.

Nem sempre se tem acesso a obras publicadas em francês e sobre personagens conhecidos, como é o caso de "Nino" Vieira. Todavia, muitas vezes quando se tenta criar um mito pode-se gerar o efeito contrário.

Com os meus cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva


Nino Vieira – o mito (1/2)

Por Francisco Henriques da Silva

Pouco, muito pouco ou quase nada se tem publicado em França sobre a Guiné-Bissau. Recentemente veio a lume um livro intitulado “Les héros de la Guinée-Bissau: La fin d’une légende”, do bissau-guineense Lourenço da Silva, publicado na Collection Points de Vue, edições L’Harmattan, Paris, 2012.

Esta editora, cujo nome deriva dos ventos alíseos de Leste, o chamado harmatão, oriundo do Sahel, que sopra de Dezembro a Fevereiro e que afecta toda a África Ocidental, dedica-se à publicação de obras sobre o continente negro, em especial sobre a África de expressão francófona, com aberturas ocasionais, como é o caso, às áfricas lusófona e anglófona.

“Les héros de la Guinée-Bissau: La fin d’une légende” trata-se de uma obra que emerge num imenso deserto editorial e cuja relevância advém de um duplo circunstancialismo, por um lado, o centrar-se sobre aquele país africano, designadamente, sobre os acontecimentos históricos contemporâneos quase totalmente desconhecidos do público leitor a que se destina e, por outro, constituir uma referência isolada senão única – porque a bem dizer não existem outras - para o potencial auditório de expressão francesa.

Acresce que Lourenço da Silva era um dos assessores principais do falecido Presidente “Nino” Vieira, tendo sido designado como coordenador geral da Célula de Promoção Económica e de Inovação Tecnológica, colocando a ênfase nas Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação e na modernização dos serviços da Presidência da República. Presidia também à RENAJ, uma rede local de organizações juvenis. Apesar de jovem (trinta e poucos anos), era um insider e por conseguinte dispunha de acesso privilegiado ao “chefe”, ao círculo próximo dos seus colaboradores e apoiantes mais proeminentes e, mais do que isso, foi testemunha de acontecimentos importantes. Foi, pois, com natural curiosidade que se empreendeu a leitura do livro, à procura de factos, de relatos, de explicações, de pistas que nos permitam compreender a Guiné-Bissau actual. Todavia, ao folhearmos as suas 236 páginas a decepção é incomensurável. As naturais curiosidade e expectativa que a sua leitura desperta esvaem-se com as primeiras páginas e ao longo do texto raramente se reanimam, excepto, aqui e além, com algumas revelações quiçá menos familiares, mas de interesse limitado. Por outro lado, o autor, que se expressa num francês fluente e sem falhas, provavelmente fruto da sua educação em Dakar, confecciona toda uma história de ouvir-dizer, não enquadra bem os acontecimentos que ele próprio viveu, não analisa as respectivas causas, nem tão-pouco pondera as suas consequências. Além disso, expressa, amiúde, opiniões primárias e mal estruturadas.

O mais grave, porém, não está nesta abordagem pouco rigorosa e medíocre do autor, mas no desmedido e ridículo panegírico da primeira à última página consagrado à figura de “Nino” Vieira, donde o próprio sub-título da obra: La fin d’une légende - o fim de uma lenda. Aqui, Lourenço da Silva não poupa adjectivos, nem epítetos, Nino Vieira invariavelmente referenciado como o “Chefe” (assim mesmo na grafia portuguesa) ou o “general”, é simultaneamente uma reencarnação mista de Rambo, do Superhomem, do Batman, de Kim Il-sung, de Che” Guevara, com um toque de alguns mártires da igreja católica (inter alia, Joana de Arc ou S. Sebastião). Há de facto um pouco de tudo como na farmácia: o guerrilheiro mítico que tudo fez, mesmo o que humanamente não lhe era possível fazer; o super-herói das histórias em quadradinhos; o amantíssimo chefe e querido líder; o revolucionário romântico e o mártir que morreu na fé, sempre, por el bién de la causa. Enfim...

Para quase toda a história recente da Guiné-Bissau, desde os acontecimentos mais remotos do tempo da luta de libertação ao período actual, Lourenço da Silva assenta, no essencial, no testemunho do coronel João Monteiro, um dos apoiantes indefectíveis de “Nino” Vieira que foi seu chefe da Segurança e um dos mais conhecidos torcionários do regime ninista, muito embora sejam também referidos vários personagens do inner circle de Kabi na Fantchamna, como João Cardoso, Baciro Dabó e Cipriano Cassamá, entre outros. Esta “história” na terceira pessoa consiste num projecto arriscado, totalmente desprovido de rigor e que nos induz em erros grosseiros.

Quanto aos assassinatos do CEMGFA, Tagmé na Waye, e do Chefe de Estado, João Bernardo Vieira, em 1 e 2 de Março de 2009, respectivamente, Lourenço da Silva afasta a tese do ajuste de contas entre os dois homens e as respectivas facções, ou seja a tese mais difundida e comummente aceite como sendo a provida de maior credibilidade para a explicação dos eventos, para enveredar, por uma via sui generis: Tratar-se-ia, antes do mais, de um vago ajuste de contas generalizado contra Vieira e a Nação guineense, para, em seguida, elaborar uma alegação redonda, todavia claramente perceptível e demencial, atribuindo a Portugal um suposto envolvimento nos acontecimentos (!). Por outras palavras e em resumo, Lisboa seria a grande culpada. Questão arrumada! Qualquer das asserções carece, como é óbvio, da mais elementar fundamentação, mas isso parece não importar ao autor.

Atente-se no que escreve: ... rien ne nous empêchera de croire qu’il s’agissait bien d’une série de règlements de comptes avec Nino Vieira et la Nation Bissau-guinéenene (trad. - ...nada nos impedirá de crer que se tratava bem duma série de ajustes de contas com Nino Vieira e a nação bissau-guineense - p. 146).

Esta teoria do conluio, completa-se, pois, com a inclusão de Portugal. Depois de referenciar as reacções de Mário Soares ao assassinato do Chefe de Estado, menciona o “ajuste de uma conta muito antiga”, que teria que ver com os ressaibos do ex-colonizador. É preciso lermos com atenção o texto para nos consciencializarmos bem de todo este delírio. Assim, Nino Vieira avait peut-être trop péché devant le père colonisateur, en lui tenant tête pendant onze années. Puis son pouvoir dans les années 80 fut encore marqué par l’entrée de la francophonie en force. Sur une terre que les portugais avaient découverte au XVe. siècle, avant d’en obtenir le droit de possession en tant que colonisateurs à la Conférence de Berlin au XIXe. siècle. Le débat sera certainement très long pour évoquer tous les jeux obscurs des anciennes puissances coloniales pour maintenir leur puissance et influence en Afrique, même si cela devra leur coûter quelques attaques dans des presses locales sans visibilité (trad. – “Nino Vieira talvez tenha pecado demais diante do pai colonizador ao fazer-lhe frente durante onze anos. Depois o seu poder nos anos 80 foi ainda marcado pela entrada em força da francofonia. Numa terra que os portugueses descobriram no século XV antes de obterem o direito de posse efectiva na Conferência de Berlim no século XIX. O debate será seguramente muito longo para evocar os jogos obscuros das antigas potencias coloniais para manter o seu poder e influência em África, mesmo se isso lhes custar alguns ataques nas imprensas locais sem visibilidade” – p. 147)

De registar que esta tese é defendida, entre outros, pelo mentor de Lourenço da Silva, o famigerado coronel João Monteiro, já referido, atribuindo também responsabilidades ao Primeiro-ministro de então, Carlos Domingos Júnior (Cfr. http://ditaduradoconsenso.blogspot.com/2011/06/coronel-joao-monteirocapitulo-ii-guerra.html).

(continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10374: Notas de leitura (401): "A Viagem de Tangomau" de Mário Beja Santos - Entre o Relatório e a Ficção (2) (José Brás)