1. Em mensagem do dia 3 de Agosto de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim,
1964/66), enviou-nos três das suas histórias e memórias. Segue-se a terceira:
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (27)
“O Engrácia”
António Engrácia dos Reis era (faleceu de doença prolongada em 20 de Janeiro de 2000 – quase não virava o século) um “alentejano puro” – assentar-lhe-ia muito bem o qualificativo “chaparro”; respondia sempre à chamada; na hora pré-determinada… ele estava no local certo! Comparecia sempre onde era necessário; ninguém o via fora do lugar onde deveria encontrar-se ou comparecer em cada momento. Era um cumpridor nato… sem nunca dar nas vistas; nunca conheci ninguém que, sendo cumpridor, desse menos nas vistas do que ele.
Natural da zona de Beja – Mombeja, era a sua aldeia natal – era o que poderia dizer-se analfabeto “de pai e mãe”; não conhecia uma letra do tamanho do convento de Mafra, porque não enxergaria uma letra tão pequena.
Nas aulas regimentais que fizemos funcionar em Binta, nos intervalos da Guerra, e/ou quando ela fechava para descanso dos intervenientes, aprendeu a ler qualquer “coisinha”, a escrever o seu nome… e pouco mais. Dadas as circunstâncias, não podemos dizer que fosse um mau aluno.
Estatura abaixo da média, suficientemente resistente, ultrapassou todos os obstáculos da instrução, bem como os que lhe foram surgindo durante os dois anos de Guiné. Mesmo no mato, ninguém se apercebia que ele estava lá, mas nunca faltou ao cumprimento do dever; não escolhia lugares mas estava sempre no sitio certo. Não deu azo a louvores… mas também não houve motivo para reprimendas.
Na maioria dos casos, eu escolhi os nomes pelos quais os soldados deveriam ser tratados. Neste caso decidi que ele seria “Engrácia”, porque já havia um Reis e raramente aconselhei o primeiro nome… a não ser que fosse significativo. Alguns pensaram que o “Engrácia” seria alcunha, mas a breve trecho, aperceberam-se da verdade.
Depois da tropa casou-se com uma mulher da sua aldeia… para não fugir à regra.
Embora proprietário de uns pedaços de terra - num deles havia uma nascente de óptima água, coisa rara na doirada planície alentejana – abandonou o seu Alentejo natal e rumou a Lisboa. A esposa arranjou emprego como porteira de um prédio da Rua de Entrecampos; o Engrácia conseguiu colocação na Central de Cervejas onde trabalhou… até à pré-reforma.
Quando o General Tomé Pinto comandava a GNR, deslocou-se a Valença para inaugurar um quartel daquela força para-militar. O Ex-furriel R. Figueiredo ofereceu um lauto almoço a toda a comitiva; entre as sobremesas havia um bolo imponente com o emblema da CCaç 675; ninguém estragou aquela obra “quase” de arte. O Figueiredo sugeriu, ao General, que trouxesse aquela guloseima para saborear com a rapaziada de Lisboa. O General telefonou-me “ordenando” – a sua vontade, é para nós mais que uma ordem – que convocasse uns tantos companheiros para um almoço no quartel do Carmo, no Domingo seguinte; o tal bolo seria saboreado à sobremesa.
Telefonei ao Engrácia solicitando que me acompanhasse até ao Cacém e seus limites a fim de convocar alguns companheiros que por ali moravam.
Serviço feito, almoçámos em minha casa. Enquanto bebíamos um copo, aguardando o almoço, o Engrácia perguntou-me, com um sorriso débil nos lábios:
- Oh meu alferes! Lembra-se daquele pontapé que me deu quando estávamos em Guidage?
Tentei recordar-me… e respondi:
- Sinceramente não me lembro de te ter dado um pontapé! Sei que dei pontapés e bofetadas a outros soldados… não me recordo do teu caso.
O Engrácia logo comentou, honestamente:
- Foi bem dado!... Mas foi bem merecido!
- Assim sendo, fico contente! Se me acusasses de ter sido injusto… aí sim! Eu ficaria aborrecido comigo; considero lamentável e recriminável o facto de um chefe ser deliberadamente injusto. Sabes que os castigos à ordem, além do castigo em si, tinham no futuro consequências graves para os visados, e podiam produzir efeitos durante toda a vida.
O Engrácia, enquanto viveu em Lisboa, era frequentador assíduo das nossas reuniões anuais. Logo que atingiu a “pré-reforma”, partiu para a sua Mombeja natal. Antes de partir, comunicou-me que queria ter uma conversa comigo. Transmitiu-me que ia tratar doutra “reforma” no Alentejo. Comprou uma certa quantidade de ovelhas que ele considerava a sua nova “pensão vitalícia”.
Dois ou três anos mais tarde, convidou-me a visitá-lo na sua santa terrinha, pois tinha lá uma lembrança para mim. Combinámos o dia e num belo domingo compareci em sua casa; ele andava no campo, apascentando o rebanho. Fui ao seu encontro. Fiquei surpreendido, boquiaberto! À sua volta eu só via ovelhas; tinha ali mais de 600 cabeças; para mim era um rebanho infindável.
Quando ele considerou oportuno, ordenou a um “rafeiro”, um pequeno vira-lata que por ali vagueava:
- Bandarra! (era o nome do cão) mete as ovelhas lá dentro!
O “canito” (era mesmo pequeno mas reguila) começou a correr e a ladrar à volta das ovelhas e, em poucos minutos, o gado estava todo dentro de um desmesurado redil – uma vedação em rede com cerca de 4 metros de altura. Surpreendeu-me a maneira como aquele animalejo começou logo a trabalhar e o modo e rapidez como as ovelhas obedeceram.
A caminho de casa, passámos noutra propriedade onde havia a tal enorme nascente de água; ali se formava um pequeno regato. Numa poça estava mergulhado um pesado enxadão. Eu perguntei:
- Que faz aquela enxada ali metida na água?
- De manhã, antes de o sol nascer, comecei a cavar aquele pedaço de terra; quando a ferramenta ficou “em brasa”, meti-a na água para arrefecer e, enquanto isso, fui tratar das ovelhas.
O Engrácia também tinha a sua graça.
Ali havia várias edificações, todas térreas, onde ele guardava as ovelhas na época da chuva. Havia também mais de uma dúzia de árvores de fruto variadas. O verde exuberante daquela zona contrastava fortemente com o pardacento da charneca ali à volta.
O Bandarra não largava o dono; era a sua sombra! Comia de tudo o que o Engrácia comesse: maçãs, laranjas ou nêsperas; bebia água, vinho e cerveja. Era engraçado aquele bichinho!
Lá em casa, a esposa tratava do almoço; não recordo o que comi, mas jamais esquecerei os maravilhosos queijos e os deliciosos enchidos e saboreei em grande, antes do almoço. Conversámos longamente! Pouco antes da despedida, o Engrácia entregou-me a prenda prometida: um borrego com cerca de 12 kg, de bela carne, já esfolado e pronto a confeccionar; só faltava cortar e temperar a gosto.
Meio ano mais tarde, a esposa informou-me que ele estava gravemente doente: tinha um tumor maligno na cabeça. Visitei-o três vezes, sempre com outros companheiros da CCaç 675. Da última vez já não almoçou connosco. A esposa disse que ele tinha dores horríveis!
Mais uns dias… e fomos ao seu funeral!
Voltei a Mombeja há cerca de um ano para colocar uma singela lápide da CCaç 675 sobre a laje da sua sepultura.
Que a terra lhe seja leve…
Ele merece!
Julho de 2012
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10359: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (26): A reserva de quarto
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Caro Belmiro.
Gostei da história, é uma homenagem ao "Engrácio".
Não sei se, ao mencionar: "dei algumas bofetadas e pontapés aos meu soldados...", está a fazer uma confissão, ou se é um desabafo, pois como deve de saber, havia outras maneiras de colocar o pessoal no devido lugar, a violência, gera violência, e no caso já chegava aquela que sofriamos dos guerrilheiros. Esteve em 64/66, foi no meu tempo, e vejo que afinal não era só em Mansoa, que se batia nos soldados.
Pobres soldados, levavam em tudo, era no comer, no corpo, nas matas, nas bolanhas, enterrados na lama e na água, nas emboscadas, era difícil ser soldado.
Não leve a mal este comentário, pois isto é conversa entre combatentes, e longe de mim, ofender.
Um abraço e escreva mais.
Tony Borie.
Será caso para dizer no melhor pano cai a nódoa, neste caso parece-me que dado teres dado pontapés e bofetadas a outro soldados,a nódoa caiu no melhor pano.
É difícil encaixar que um militar como afirmas, que ninguém se apercebia que ele estava lá, mas nunca faltou ao cumprimento do dever, Não escolhia lugares mas estava sempre no sitio certo.Não deu azo a louvores... "possivelmente alguns de galões foram louvados à sua pala"
Ser merecedor de uma agressão por parte do seu superior?!... Acho que tinha-mos aqui pano para mangas.
O que me parece é que o Engrácia era uma pedra preciosa por lapidar.
Passei 23 meses na Guiné nunca vi na minha C.caç.557 qualquer graduado levantar a mão para um praça, havia o respeito hierárquico, amizade q. b.isso nota-se ainda hoje nos almoços anuais de convívio embora a parte hierárquica tende a desaparecer e a amizade cada ano que passa fica mais solidificada não apresentando fissuras do passado.
Um abraço.
Colaço
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