1. Na mensagem de 1 de Setembro de 2022, onde vinha a estória do Senhor Augusto, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos também um cartaz com a publicidade ao seu livro "Palavras que o Vento (E)Leva", a lançar brevemente, e um poema dedicado a uma criança, quem sabe, um neto:
Meus amigos editores
(...)
Junto também um cartaz publicitário do livro que vou lançar e um poema para juntar.
Fraternal Abraço do
Zé Teixeira
____________
Nota do editor
Último poste da série de 4 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23585: Blogpoesia (784): "Meu amigo Dostoievsky", poema ilustrado por e da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 10 de setembro de 2022
Guiné 61/74 - P23605: Os nossos seres, saberes e lazeres (525): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (67): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 5 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Julho de 2022:
Queridos amigos,
Ainda há bastante para calcorrear, mas, por minha conta e risco, vou percorrer aqueles espaços que a memória nunca abandonou, são recordações encetadas em 1977, têm o condão de se cruzarem com muitíssimas outras. Foi com pesar que não encontrei uma exposição que me desse volta ao miolo, a idade ajuda-nos a ser sinceros naquilo que chamamos valores estéticos, não contribuo para bater palmas com os troncos caídos umas pedras bolorentas ou uns cabos de aço a que chamam instalações. Cirandei por Marolles, é a veia cava das minhas compras de pechisbeque, revolutiei pelo centro, foi o imenso adeus, até à próxima. Amanhã será um dia de estalo, visita à Villa Empain, uma joia do modernismo, estão aprazados passeios pela Cité du Logis, e pela primeira vez irei conhecer as entranhas do maior matacão de Bruxelas, o Palácio da Justiça, é o Vale dos Reis nesta capital, uma monumentalidade tão desmesurada que nem dá para ficarmos boquiabertos.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (67):
Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia – 5
Mário Beja Santos
É sempre com um profundo sentimento que visito a Igreja de Santa Maria Madalena, a escassas centenas de metros da Grand Place, e numa artéria cheia de movimento. Tem estado várias vezes ameaçada, conheceu uma profunda intervenção entre 1956 e 1958 e a sua origem remonta a meados do século XIII, como qualquer outro templo religioso conheceu adições desde o gótico ao barroco, mas impressiona-nos pela harmonia das dimensões, a natureza dos seus materiais e a cor dos vitrais. A ameaça mais recente foi no princípio do século XX, à sua volta houve imensos trabalhos, lá foi poupada e restaurada. Confesso que são os vitrais do coro (que ilustram a história da Redenção, da Ressurreição e da Contemplação de Deus) que mais me impressionam. Há também uma referência aos mártires de Gorcum (1572), o relicário está na Igreja de São Nicolau, também ali perto, lá para o fim da tarde dar-se-á uma saltada. Estes vitrais de meados do século XX, perfeitamente datados, opinião minha, gozam de uma espiritualidade inatacável.
É como se estivesse a despedir-me de Marolles e não me satisfaz a melancolia que me invade a alma. É uma das artérias mais antigas de Bruxelas, ainda há vestígios de comércio com quase um século, como esta montra de uma enorme elegância, e depois encontro um baixo relevo modernista, que não deixa de me fascinar, o bairro está a ser gentrificado, mas dá gosto ver o cruzamento de marroquinos e turcos, turistas de diferentes índoles, gente de África, parei a ver este trânsito humano e a pensar naquele festival de que anteriormente vos falei, esteve suspenso 2 anos, percebe-se neste tráfego de desvairadas gentes como na Bruxelas capital o discurso do ódio e o racismo vesgo não pegam.
Após uma paragem para me amesendar e, diga-se a verdade, dar um certo descanso às pernas, regresso à Igreja de São Nicolau, um templo religioso bem cuidado, gosto de ver os edifícios civis a ela adossados, em Bruxelas não conheço coisa igual, deve ser o último vestígio da Idade Média, o relicário dos mártires de Gorcum prende-se com os tumultos religiosos da Reforma, 19 crentes católicos foram enforcados pelos protestantes holandeses, o relicário é uma peça impressionante, um primor de artes decorativas.
Por ali deambulei a ver a Virgem e o Menino ao bom estilo de Rubens, uma bela capela, fiz as minhas despedidas, era inevitável, a caminho de apanhar o metropolitano, dar uma derradeira olhadela à câmara municipal na Grand Place, sempre gostei muito deste ângulo. Amanhã vai ser um dia agitado, mete passeio matinal à volta de Watermael-Boitsfort e há uma bela vila modernista à nossa espera, confidencio que foi um dos mais belos dias que passei em Bruxelas, estou pronto a repetir.
(continua)
____________
Notas do editor:
Vd. poste anterior de 3 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23582: Os nossos seres, saberes e lazeres (523): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (66): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 4 (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 7 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23595: Os nossos seres, saberes e lazeres (524): Viagem no Douro (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)
Queridos amigos,
Ainda há bastante para calcorrear, mas, por minha conta e risco, vou percorrer aqueles espaços que a memória nunca abandonou, são recordações encetadas em 1977, têm o condão de se cruzarem com muitíssimas outras. Foi com pesar que não encontrei uma exposição que me desse volta ao miolo, a idade ajuda-nos a ser sinceros naquilo que chamamos valores estéticos, não contribuo para bater palmas com os troncos caídos umas pedras bolorentas ou uns cabos de aço a que chamam instalações. Cirandei por Marolles, é a veia cava das minhas compras de pechisbeque, revolutiei pelo centro, foi o imenso adeus, até à próxima. Amanhã será um dia de estalo, visita à Villa Empain, uma joia do modernismo, estão aprazados passeios pela Cité du Logis, e pela primeira vez irei conhecer as entranhas do maior matacão de Bruxelas, o Palácio da Justiça, é o Vale dos Reis nesta capital, uma monumentalidade tão desmesurada que nem dá para ficarmos boquiabertos.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (67):
Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia – 5
Mário Beja Santos
É sempre com um profundo sentimento que visito a Igreja de Santa Maria Madalena, a escassas centenas de metros da Grand Place, e numa artéria cheia de movimento. Tem estado várias vezes ameaçada, conheceu uma profunda intervenção entre 1956 e 1958 e a sua origem remonta a meados do século XIII, como qualquer outro templo religioso conheceu adições desde o gótico ao barroco, mas impressiona-nos pela harmonia das dimensões, a natureza dos seus materiais e a cor dos vitrais. A ameaça mais recente foi no princípio do século XX, à sua volta houve imensos trabalhos, lá foi poupada e restaurada. Confesso que são os vitrais do coro (que ilustram a história da Redenção, da Ressurreição e da Contemplação de Deus) que mais me impressionam. Há também uma referência aos mártires de Gorcum (1572), o relicário está na Igreja de São Nicolau, também ali perto, lá para o fim da tarde dar-se-á uma saltada. Estes vitrais de meados do século XX, perfeitamente datados, opinião minha, gozam de uma espiritualidade inatacável.
Interior da Igreja de Santa Maria Madalena
Sai-se da Igreja de Santa Maria Madalena com vontade de subir o Monte das Artes, só para contemplar o Hotel Ravenstein, não conheço nada de tão impressivo em mansão aristocrática entre os fins do século XV e princípios do século XVI no belíssimo estilo gótico brabanção, não perco a oportunidade de entrar no Bozar (Palácio das Belas Artes, construção de Victor Horta), infelizmente o que oferece em exposições não me levanta o entusiasmo, prefiro calcorrear, é nisto, a descer o bairro de Marolles que deparo, primeiro com a icónica capa do livro de banda desenhada de Edgar Jacobs, “A Marca Amarela”, quem andou por ali a pincelar sabe da poda e não esconde admiração pelo genial artista, e depois confrontei-me com um espetáculo, mas não escondo que foi o mural que me reteve ali tempo suficiente na contemplação, a ver se na próxima visita aqui venho em peregrinação.É como se estivesse a despedir-me de Marolles e não me satisfaz a melancolia que me invade a alma. É uma das artérias mais antigas de Bruxelas, ainda há vestígios de comércio com quase um século, como esta montra de uma enorme elegância, e depois encontro um baixo relevo modernista, que não deixa de me fascinar, o bairro está a ser gentrificado, mas dá gosto ver o cruzamento de marroquinos e turcos, turistas de diferentes índoles, gente de África, parei a ver este trânsito humano e a pensar naquele festival de que anteriormente vos falei, esteve suspenso 2 anos, percebe-se neste tráfego de desvairadas gentes como na Bruxelas capital o discurso do ódio e o racismo vesgo não pegam.
Após uma paragem para me amesendar e, diga-se a verdade, dar um certo descanso às pernas, regresso à Igreja de São Nicolau, um templo religioso bem cuidado, gosto de ver os edifícios civis a ela adossados, em Bruxelas não conheço coisa igual, deve ser o último vestígio da Idade Média, o relicário dos mártires de Gorcum prende-se com os tumultos religiosos da Reforma, 19 crentes católicos foram enforcados pelos protestantes holandeses, o relicário é uma peça impressionante, um primor de artes decorativas.
Por ali deambulei a ver a Virgem e o Menino ao bom estilo de Rubens, uma bela capela, fiz as minhas despedidas, era inevitável, a caminho de apanhar o metropolitano, dar uma derradeira olhadela à câmara municipal na Grand Place, sempre gostei muito deste ângulo. Amanhã vai ser um dia agitado, mete passeio matinal à volta de Watermael-Boitsfort e há uma bela vila modernista à nossa espera, confidencio que foi um dos mais belos dias que passei em Bruxelas, estou pronto a repetir.
(continua)
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Notas do editor:
Vd. poste anterior de 3 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23582: Os nossos seres, saberes e lazeres (523): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (66): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 4 (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 7 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23595: Os nossos seres, saberes e lazeres (524): Viagem no Douro (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)
sexta-feira, 9 de setembro de 2022
Guiné 61/74 - P23604: Convívios (939): XIX Encontro do pessoal do HM 241 de Bissau, dia 8 de Outubro de 2022, em Espinho. Almoço/Convívio dos antigos Militares da CCAÇ 2797; Pel Canh S/R 2199; Pel Caç Nat 51 e Pel Caç Nat 67, dia 8 de Outubro em Leça da Palmeira
C O N V Í V I O S
1. Em mensagem do dia 8 de Setembro de 2022, o nosso camarada Manuel Freitas (ex-1.º Cabo Escriturário do HM 241, Bissau, 1968/70), dá notícia do 19.º Encontro do Pessoal daquela Unidade de Saúde, no dia 8 de Outubro, em Espinho.
Boa tarde
Pedia o favor de anunciar o 19.º Encontro do pessoal do HM 241 - Guiné.
Será no dia 8 de Outubro em Espinho.
Contacto 964 498 832 - Freitas
Obrigado
Cumprimentos,
manuel freitas | manuel.freitas@equicontas.com
********************
2. Mensagem do nosso camarada José Alberto Mota, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 2797 (Cufar, 1970/72), com data de 9 de Setembro de 2022:
Antigos militares da CCAÇ 2797 em conjunto com o Pelotão de Canhões 2199 e graduados dos Pelotões de Caçadores Nativos 51 e 67, que fizeram a sua comissão na Guiné, localidade de Cufar em 1970/72, vão ter um encontro de confraternização de almoço a realizar no dia 8 de outubro no Hotel Tryp Expo Porto em Leça da Palmeira.
Algum camarada interessado que serviu esta Companhia ou Pelotões, queira por favor contactar José Alberto Mota para 918 623 378.
Muito grato fico à Tabanca Grande, a eventual possibilidade de ser feita publicidade no vosso blogue à realização deste encontro.
Com os meus melhores cumprimentos
José Alberto Mota,
Ex-Furriel Miliciano de Transmissões
CCAÇ 2797 - Cufar
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Nota do editor
Último poste da série de 4 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23492: Convívios (938): Almoço de confraternização do pessoal da 2.ª CART/BART 6521 (Có, 1972/74), dia 24 de Setembro de 2022 em Cacia - Aveiro (José Morgado)
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Guiné 61/74 - P23603: Notas de leitura (1493): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte VIII: A visita de uma delegação do Movimento Nacional Feminino, em fevereiro de 1966: "O senhor capitão hoje está cheio de sorte, há meses que não via uma mulher branca, hoje vê duas"
Guiné > Região de Cacheu > CCAÇ 2367/BCAÇ 2845, "Os Vampiros" (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70) > 2 de maio de 1969 > O nosso camarada, membro da Tabanca Grande (e da Magnífica Tabanca da Linha), Miguel Rocha, ex-alf mil inf, na altura a fazer as funções de comandante da companhia, aqui a "tabaquear o caso", com a presidente do Movimento Nacional Feminino, Cecília Supico Pinto (1921-2011) (a menos de um mês do seu 48º aniversário natalício)... O nosso camarada "indaga da possibilidade de obter mais uns maços de tabaco para os rapazes da sua Companhia" (*)... Mas o caixote está quase vazio... e o que restava já tinha destino... Até o tabaquinho era rateado...
O caixote tem uma marca ou um logo, "INTAR", que hoje a maior parte dos nossos leitores já não é capaz de decifrar: INTAR - Empresa Industrial de Tabacos, SARL... Foi nacionalizada, juntamente com a Tabaqueira (grupo CUF): as duas empresas tabaqueiras detinham praticamente a totalidade do mercado nacional de cigarros. Em 30 de junho de 1976, foi criada a Tabaqueira - Empresa Industrial de Tabacos, EP (que já não existe, ou melhor é ums subsidriária de uma multinacional).
Esta cena (a da foto acima) foi recordada pelo Miguel Rocha, em poste ainda recente (*). E nele acrescentou:
(...) "no ano do I Centenário do nascimento (30/05/1921) de Cecília S. Pinto, em sua memória, e com profundo respeito e admiração pela sua pessoa e sua obra, não esquecendo todas as outras Senhoras do MNF, muitas delas Mães de jovens mobilizados para as frentes de combate, venho aqui deixar meu testemunho de eterna gratidão pelo apoio dado aos combatentes na sua inegável qualidade de 'portadora de afectos' " (!) (...).(*)
Foto (e legenda): © Miguel Rocha (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Guiné > Região de Tombali > Nhala > 10 de março de 1974 > Visita da líder do Movimento Nacional Feminino > A Cilinha, aqui já com 53 anos feitos, de óculos escuros, e sempre impecavelmente vestida e penteada, olha directamente para a objectiva do fotógrafo. Ela sabia que, ali no "cu de Judas", era o alvo de todas as atenções... Era uma mulher, branca, de personalidade forte, corajosa, elegante e vistosa sem ser bonita. Em 1974, já tinha o "respaldo político" que tinha no tempo de Salazar...
A seu lado o comandante de batalhão de Aldeia Formosa, ten cor inf Carlos Alberto Simões Ramalheira, e o cap mil inf Domingos Afonso Braga da Cruz (1946-1987), cmdt da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513/72, que estava em Nhala, tendo estado também em Aldeia Formosa e Cumbijã. (A 1ª Companhia passou por Buba e Mampatá; a 3ª estava em Aldeia Formosa.)
Foto (e legenda): © António Murta (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Estas duas fotos, com uma diferença de cinco anos, servem para ilustrar uma outra visita, do MNF, realizada en 1966, três anos e oito anos antes (respetivamente), ao capitão Cristo e aos seus bravos de Bedanda, e reconstituída no livro de memórias do cap inf Aurélio Manuel Trindade (n. 1933) ("Panteras à Solta", de Manuel Andrezo, ed. autor, 2010, pp. 340-342), de que temos publicado diversas notas de leitura (**)
A visita a Bedanda está descrita em três páginas deliciosas que servem para comprovar que a Cilinha e o seu Movimento Nacional Feminino (MNF) estavam longe de ser consensuais e até queridos, aos olhos de muitos militares, não só milicianos (que eram os mais críticos), como também de uma parte dos oficiais do quadro permanente, sobretudo os mais jovens.
Os militares de Bedanda (onde estava a 4ª CCAÇ, companhia de guarnição normal da província) é contemplada por uma rápida e inesperada visita de duas senhoras do MNE, que vêm de Bissau, de DO-27 (presume-se), acompanhadas de um alferes.
O autor não a identifica, mas a protagonista desta história da visita (que "acabou por não dignificar em nada o MNF", pág. 340), era seguramente a Cecília Supico Pinto (mais conhecida por "Cilinha" pelos "rapazes" que prestavam serviço no ultramar).
A visita deve ter ocorrido em fevereiro de 1966, na época seca (a primeira vez que ela foi à Guiné, à sua "Guinezinha") (***), e não em junho de 1966 (já na época das chuvas, como sugere o cap Cristo, traído certamente pela memória, ao dizer que já tinha 11 meses de comissão).
Na mesma altura, a CCAÇ 736, em Cufar (1965/66), comandanda pelo cap inf (Carlos Alberto Wahnon Mourão da) Costa Campos recebeu a visita da delelegação do MNF, constituída pela Cecília Supico Pinto e a Renata da Cunha e Costa, aqui documentada pelo nosso Mário Fitas, ex-fur mil op esp, no poste P8371 (****)
O cap Cristo terá sido pouco "oficial e cavalheiro" no trato com as senhoras, dirão alguns... No livro é irónico, para não dizer sarcástico e até truculento, na descrição e apreciação que faz da visita (é certo que muitos anos depois, talvez 30 anos depois):
Primeiro "hipotecaram um avião" (sic), um recurso sempre escasso e dispendioso naquela época e, para mais, no sul da Guiné, e depois "os resultados da visita foram menos que nulos porque foram negativos".
(...) Depois da visita ficaram convencidos de que as senhoras quiseram ver, com
os seus próprios olhos, uns macacos que levavam vida de cão, algures no sul da Guiné, sem as mínimas condições e péssima alimentação (...) [ Negritos nossos].
Num aquartelamento onde faltava tudo ou quase tudo, abastecido penosa e perigosamente uma vez por mês, por via fluvial, a visita das senhoras do MNE, de mãos vazias, podia parecer um insulto gratuito. E, para a tropa nativa, deveria ser algo de intrigante e exótico:
(...) Quanto a frescos, muito raramente os comiam. Combatiam os guerrilheiros, dia e noite, sendo mais os dias de contacto com a guerrilha do que o contrário. Não por acaso dizia-se que Bedanda era uma ilha cercada pela guerrilha. Na opinião dos oficiais da Companhia de Bedanda as senhoras queriam levar no seu palmarés, para contarem às amigas durante os chás-canastas, que tinham estado no sul da Guiné, numa Companhia onde o perigo era constante. Para elas isso era bom, para a tropa era um frete (...) (pág. 340).
"Frete": eis talvez o termo mais apropriado, para caracterizar a atitude dos homens de Bedanda face à visita meteórica das duas senhoras do MNF. Esta opinião seria compartilhada por alguns comandantes de subunidades no mato, comandantes operacionais como o cap Cristo que davam o "litro e meio" e pouco ou nada recebiam em troca, dos seus superiores hierárquicos (comando de setor, comando de agrupamento e senhores de Bissau).
O cap Cristo, pessoa civilizada e militar aprumado, mas frontal, beirão, cumpriu naturalmente os seus deveres de hospitalidade, "oferecendo-lhes o que tínham: cerveja, uísque e conservas", sem esquecer a água... que era ingerível. Em contrapartida, elas nada tinham para ofecerer, para além das palmadinhas nas costas, dos sorrisos postiços e da exibição... da cor da pele:
(...) A visita tinha sido mal planeada. Uma visita deste tipo deve ser acompanhada de algumas lembranças, bolas de futebol, por exemplo, ou rádios, jogos de damas, isqueiros, cartas, algo que possa servir para atenuar o isolamento destes homens. Nada disso foi oferecido à Companhia pela delegação do MNF.
(...) A visita tinha sido mal planeada. Uma visita deste tipo deve ser acompanhada de algumas lembranças, bolas de futebol, por exemplo, ou rádios, jogos de damas, isqueiros, cartas, algo que possa servir para atenuar o isolamento destes homens. Nada disso foi oferecido à Companhia pela delegação do MNF.
As ofertas foram exclusivamente bate-estradas [aerogramas, na gíria da tropa, LG] que divididos pelo efectivo, davam três exemplares a cada militar. Era muito pouco para uma visita que se supunha ter por finalidade dar alguma alegria e apoio aos militares. O capitão pediu outros materiais ao MNF que nunca foram recebidos (...) [Negritos nossos] .
No decurso da visita, o cap Cristo verificou que "uma das senhoras era mais extrovertida do que a outra. Falava muito com toda a gente, e na sala de oficiais sentou-se em cima duma mesa com as pernas a baloiçar e a saia um pouco subida, parte das coxas à mostra" (...) (pág. 340).
Este diálogo entre os dois (a senhora só pode ser a Cilinha que, nessa altura, em fevereiro de 1966, já tinha 45 anos), reconstituído muitos anos depois, merece ser transcrito (pág. 341). É um belo naco de prosa castrense:
(...) "- Senhor capitão, há quanto tempo está aqui?
─ Onze meses, minha senhora. [Ele queria dizer sete meses, desde julho de 1965, fez mal as contas. LG ]
─ Já foi à metrópole depois de ter chegado à Guiné?
─ Ainda não. Quando cheguei vim logo para Bedanda e daqui só tenho saído para o mato. Nem a Bissau fui.
─ Então hoje está cheio de sorte.
─Não sei porquê. Só se for por ter visitas. Para quem está isolado da civilização como nós estamos, as visitas são sempre bem-vindas e dão-nos muito prazer e alegria.
─ Era disso que eu estava a falar. E as de hoje são visitas especiais. Desde há onze meses que não via uma branca e hoje teve oportunidade de ver duas.
─ É verdade, minha senhora. Nesse ponto tem razão. Já não via uma mulher branca há onze meses e daqui a pouco nem sei como elas são. Hoje vejo duas brancas e duma delas vejo as pernas até às coxas. Mas como deve calcular, isso é muito pouco. Quem está aqui no mato, na situação em que nós estamos, precisa e merecia mais do que ver brancas. E a esse respeito, como sabe, estamos a zero.
─ O senhor capitão é muito exigente.
─ Não, minha senhora. Primeiro não exijo nada, nem sequer a vossa visita. Segundo, tenho trinta anos e sempre ouvi dizer que um homem é um homem e um bicho um bicho. Além disso não sou de pau. Tenho as minhas necessidades como todos os homens e o instinto mais apurado pelas dificuldades por que tenho passado no que a nossa conversa subentende.
─ Compreendo a sua situação mas mais nada posso fazer.
─ De qualquer maneira muito obrigado pela intenção e pela boa vontade.
─ Senhor capitão, está na hora de me ir embora e acredite que deixo Bedanda com pena, e também sofro com a vida de isolamento que vocês aqui levam. Tudo o que puder fazer por vocês, farei. Gostaria, se me permitisse, de me despedir dos seus soldados à moda do MNF. (...)
A despedida da líder do MNE, perante a companhia formada na parada, foi, para surpresa de todos, feita com um valente assobio à cabreiro da Serra da Estrela:
(...) ─ Pedi ao vosso capitão para me despedir de vocês. Gostei de estar aqui convosco, estas horas, tenho pena de não poder estar mais tempo. Daqui a pouco é noite e o avião não pode levantar voo. Tenho que estar hoje em Bissau. Sei que são uma boa tropa, valentes combatentes. Estou contente por isso e deixo-vos a minha solidariedade, amizade e respeito, bem como a de todas as mulheres portuguesas que se sentem felizes por saberem, que mesmo em más condições, os soldados portugueses cumprem com eficiência as suas missões. Se me permitirem vou-me despedir “à MNF”. (...)
E o autor não deixa o leitor com água no bico, descreve o modo da despedida com detalhe e sentido de humor:
(...) Ao dizer isto, a senhora leva dois dedos à boca e solta um assobio que faria inveja a muitos pastores. Toda a companhia ficou sem saber com reagir. Esperavam tudo menos os assobio. Conseguiu surpreender. O mais surpreendido parecia ser o capitão que olhou para a senhora com uma cara de basbaque que metia aflição (...) [ Negritos nossos].
A seguir, o capitão e os restantes oficiais acompanharam as senhoras até à pista, como mandavam as boas regras da etiqueta militar. Embasbacados, "ele e os alferes ficaram na pista até o avião desaparecer no horizonte". (...) (pág. 342).
Caros leitores, digam lá se não é um texto de antologia? Parabéns ao autor. Não estamos habituados a esta lhaneza e desassombro na escrita, por parte dos militares da sua geração, oriundos da Escola do Exército... Tiro-lhe o quico, meu general!...
Guiné > s/l > Fevereiro de 1966 > Cecília Supico Pinto, então com 44 anos, na sua primeira viagem à sua "Guinezinha", falando para um grupo de militares; em segundo plano, um dos seus "braços direitos", também elemento da comissão central do MNF, [Amélia] Renata [Henriques de Freitas] da Cunha e Costa.
Fotograma do vídeo (6' 43'') da RTP Arquivos > 1966-02-01 > Cecília Supico Pinto visita Guiné (Com a devida vénia...)
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Notas do editor:
Guiné 61/74 - P23602: Estórias do Zé Teixeira (60): O Senhor Augusto - Parte III (Conclusão) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)
1. Conclusão da estória do Senhor Augusto, enviada ao blogue pelo nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) em 1 de Setembro de 2022.
O Senhor Augusto
José Teixeira
Parte III (Conclusão)
Um dia, em pleno verão, passou pela aldeia um médico novo, sobrinho da patroa. Levava um casaco branco vestido e montava um lindo cavalo branco. Atrás dele, juntou-se logo um magote de rapazes que o seguiram até entrar na porta da quinta. Eu tive mais sorte. Estava no quinteiro quando ele chegou. Escondi-me com medo do cavalo, e vergonha, mas ele sorriu-me. Deu um beijo à tia e perguntou-lhe se podia ir dar uma volta pela quinta. Ela sabia que ele gostava muito de uvas e disse-lhe:
– Vai e leva o rapaz. Ele que te diga onde estão as melhores uvas.
Colocou-me em cima do cavalo, à sua frente, e lá fomos nós, todos lampeiros, para a vinha, onde estava o meu amigo. O senhor Augusto viu-nos ao longe e desceu ao carreiro de cabeça descoberta a saudar os visitantes. Claro que foi ele quem me indicou onde podia ir buscar as uvas para o senhor doutor, enquanto eles ficavam a conversar.
Foram uns dias maravilhosos para mim, os poucos em que o médico por lá ficou. Não havia tarde que não saltasse para a garupa do cavalo, com o senhor doutor atrás, para irmos visitar o guardador da vinha. Também ele se apaixonou pelas histórias. O senhor Augusto contou-lhe os seus padecimentos. O nosso amigo médico quando partiu, prometeu que ia ajudá-lo, e voltaria em breve.
E assim foi. Um domingo de manhã, o doutor chegou à aldeia. Vinha num automóvel, uma arrastadeira da Citröen, preta, como nunca se vira por aquelas bandas, e onde havia apenas um automóvel, o do embaixador da quinta de Padões, que aparecia na aldeia no tempo das colheitas.
Ao fim da tarde partiu de novo. Sentado ao seu lado, seguia o amigo Augusto que tivera o cuidado de tomar banho e vestir roupa lavada, antes de se apresentar, e partiram os dois para a cidade.
Voltou três meses depois, no comboio das cinco. Reconheci-o pelo andar quando ainda vinha longe. Era ele, o meu amigo, mas parecia outro. Abraçou-me ternamente e caminhámos monte acima. Agora, as histórias eram diferentes, eram histórias reais, e deixavam-me espantado. Recordo a da casa amarela com muitas janelas e um pau no telhado que corria pela rua fora cheia de gente…
Estava gordo, e vendia saúde. Afinal, não era assim tão velho com os seus sessenta e cinco anos. O nosso amigo médico internou-o às suas custas no hospital, onde foi tratado como um general. Foi operado à perna e recuperou bem, sobretudo deixou de ter dores ao movimentar-se. Fez outros tratamentos em que teve de tomar muitas mixórdias, e “picas” no rabo. A coluna já não doía. Era um homem novo. Sentia-se cheio de vigor, e com vontade de trabalhar.
No dia seguinte, apresentou-se na quinta e disse à patroa que se sentia como novo e queria voltar de novo para a labuta, no campo. E assim aconteceu, para alegria dos colegas que viam no Augusto um verdadeiro companheiro de trabalho.
Eu completei a escola primária, perdi-me na cidade à procura de um futuro melhor, e o meu amigo Augusto ficou pela aldeia. A luta pela vida afastou-nos. Sei que ainda viveu vários anos. Do que tenho a certeza é que, quando partiu para a sua última morada, teve muitos amigos a acompanhá-lo.
O senhor Augusto era um homem bom, e foi o meu melhor amigo quando eu ainda era uma criança.
Zé Teixeira
____________
Notas do editor:
Vd. postes de:
7 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23598: Estórias do Zé Teixeira (58): O Senhor Augusto - Parte I (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)
e
8 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23600: Estórias do Zé Teixeira (59): O Senhor Augusto - Parte II (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)
O Senhor Augusto
José Teixeira
Parte III (Conclusão)
Um dia, em pleno verão, passou pela aldeia um médico novo, sobrinho da patroa. Levava um casaco branco vestido e montava um lindo cavalo branco. Atrás dele, juntou-se logo um magote de rapazes que o seguiram até entrar na porta da quinta. Eu tive mais sorte. Estava no quinteiro quando ele chegou. Escondi-me com medo do cavalo, e vergonha, mas ele sorriu-me. Deu um beijo à tia e perguntou-lhe se podia ir dar uma volta pela quinta. Ela sabia que ele gostava muito de uvas e disse-lhe:
– Vai e leva o rapaz. Ele que te diga onde estão as melhores uvas.
Colocou-me em cima do cavalo, à sua frente, e lá fomos nós, todos lampeiros, para a vinha, onde estava o meu amigo. O senhor Augusto viu-nos ao longe e desceu ao carreiro de cabeça descoberta a saudar os visitantes. Claro que foi ele quem me indicou onde podia ir buscar as uvas para o senhor doutor, enquanto eles ficavam a conversar.
Foram uns dias maravilhosos para mim, os poucos em que o médico por lá ficou. Não havia tarde que não saltasse para a garupa do cavalo, com o senhor doutor atrás, para irmos visitar o guardador da vinha. Também ele se apaixonou pelas histórias. O senhor Augusto contou-lhe os seus padecimentos. O nosso amigo médico quando partiu, prometeu que ia ajudá-lo, e voltaria em breve.
E assim foi. Um domingo de manhã, o doutor chegou à aldeia. Vinha num automóvel, uma arrastadeira da Citröen, preta, como nunca se vira por aquelas bandas, e onde havia apenas um automóvel, o do embaixador da quinta de Padões, que aparecia na aldeia no tempo das colheitas.
Ao fim da tarde partiu de novo. Sentado ao seu lado, seguia o amigo Augusto que tivera o cuidado de tomar banho e vestir roupa lavada, antes de se apresentar, e partiram os dois para a cidade.
Voltou três meses depois, no comboio das cinco. Reconheci-o pelo andar quando ainda vinha longe. Era ele, o meu amigo, mas parecia outro. Abraçou-me ternamente e caminhámos monte acima. Agora, as histórias eram diferentes, eram histórias reais, e deixavam-me espantado. Recordo a da casa amarela com muitas janelas e um pau no telhado que corria pela rua fora cheia de gente…
Estava gordo, e vendia saúde. Afinal, não era assim tão velho com os seus sessenta e cinco anos. O nosso amigo médico internou-o às suas custas no hospital, onde foi tratado como um general. Foi operado à perna e recuperou bem, sobretudo deixou de ter dores ao movimentar-se. Fez outros tratamentos em que teve de tomar muitas mixórdias, e “picas” no rabo. A coluna já não doía. Era um homem novo. Sentia-se cheio de vigor, e com vontade de trabalhar.
No dia seguinte, apresentou-se na quinta e disse à patroa que se sentia como novo e queria voltar de novo para a labuta, no campo. E assim aconteceu, para alegria dos colegas que viam no Augusto um verdadeiro companheiro de trabalho.
Eu completei a escola primária, perdi-me na cidade à procura de um futuro melhor, e o meu amigo Augusto ficou pela aldeia. A luta pela vida afastou-nos. Sei que ainda viveu vários anos. Do que tenho a certeza é que, quando partiu para a sua última morada, teve muitos amigos a acompanhá-lo.
O senhor Augusto era um homem bom, e foi o meu melhor amigo quando eu ainda era uma criança.
Zé Teixeira
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Notas do editor:
Vd. postes de:
7 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23598: Estórias do Zé Teixeira (58): O Senhor Augusto - Parte I (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)
e
8 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23600: Estórias do Zé Teixeira (59): O Senhor Augusto - Parte II (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)
Guiné 61/74 - P23601: Notas de leitura (1492): "Diário Pueril de Guerra", por Sérgio de Sousa; Editoral Escritor, 1999 (1) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Fevereiro de 2020:
Queridos amigos,
O diário de Sérgio de Sousa centra-se em Sagal, Moçambique, há emboscadas, muitas minas anticarro e muito sofrimento com as minas antipessoal. É um diário que dura menos de um ano, irá culminar com um acidente brutal que deixará este alferes-miliciano com incapacidade. O autor chamou-lhe inicialmente Diário de Guerra. O semanário O Jornal publicará em 1981 dois excertos. Assume o documento como um diário íntimo, não encontrei, em tudo quanto li até hoje, ninguém a ler tanto, a comentar tanto, a desnudar-se, tinha medo, como ele escreverá, da desintegração da personalidade, falará sempre mais de si, descurando gentes e ambientes. Quando, décadas depois, publica o que escrevera meticulosamente, e numa caligrafia arredondada e bem legível, dirá que já não é a mesma pessoa, como se fosse possível fazermos cisões de tal modo brutais em que os tempos de juventude deixassem de fazer parte do que prossegue na maturidade e na velhice. Mas reconheça-se que Sérgio de Sousa não tem rival nos diários de guerra.
Um abraço do
Mário
Um caso ímpar na literatura diarística da guerra colonial (1)
Mário Beja Santos
Intitula-se "Diário Pueril de Guerra", seu autor é Sérgio de Sousa, Editoral Escritor, 1999. Sérgio de Sousa pertencia à CART 2718, que partiu para Moçambique em 20 de maio de 1970, seguiu para Sagal, a sua unidade militar dependerá do BART 2918. O que cativa neste documento de um jovem de 23 anos, assumidamente snob, ledor compulsivo, que viajou por Franças e Araganças, é o olhar que lança, em permanência, para o que deixou do seu círculo de afetos, como este mesmo círculo de afetos o ajuda a urdir o grau de resignação como ele vive a guerra. Irá penitenciar-se no posfácio, escrito décadas depois, que perpassa o seu documento um desesperado egocentrismo, sobretudo pelo que ali é omitido, pouco ou nada saberemos de Sagal, é parcimonioso nas referências às operações, no entanto não deixa de empolar os múltiplos incidentes e acidentes. “E não há nenhuma referência à paisagem do planalto onde vivi durante meses e que, como se presumirá, era avassaladora. Nem a um espetáculo único que então presenciei, quando atravessei uma parte da floresta que tinha ardido, enterrando os pés nas cinzas quentes, e a nossa movimentação fazia mexer o ar parado, provocando a queda das árvores que se mantinham eretas, carbonizadas, até que a nossa passagem as fez cair, desfeitas. Não me detive quase a falar das pessoas com quem convivi. Em contrapartida, anotei uma série de temas que na altura pensava interessarem-me, e que não me parece hoje que tivesse o valor que lhe atribuía”.
Temos o embarque no Niassa, observa o que os outros leem, nota que os soldados dormem em beliches apinhados nas cobertas. Doze dias depois, chegam a Luanda, para ele é uma cidade ocupada pela tropa, entra nas casas de espetáculos, a viagem prossegue, lê Roger Vailland; os Dez Dias Que Abalaram o Mundo, do John Reed, a 13 de junho saem à noite de Lourenço Marques, seguramente que o impressionou pois fala dela com alguma abundância:
“Nascida sobre uma prancheta de desenho, Lourenço Marques parte dos caraterísticos edifícios coloniais, de dois pisos, de madeira, sendo o inferior recuado, de modo ao passeio ficar coberto pelo outro piso, varanda ou telhado, assente em finas e espaçadas colunas de ferro, implantadas na borda do passeio. Assim nas três ou quatro ruas estreitas, junto ao porto.
Depois vêm, nas longas avenidas do centro, os bons edifícios não muito altos, onde se aloja o melhor comércio e os bancos. E já os prédios com mais de uma dezena de andares conquistam espaços na baixa e se difundem, ao longo das rasgadas avenidas que ganham uma periferia, de vivendas antiquadas para o interior, modernas e luxuosas ao longo da costa.
No caminho para o aeroporto, os bairros indígenas, imensos, no meio de um deles uma lixeira municipal. Situam-se à porta da cidade branca, para o interior, sendo as habitações mais próximas as mais decentes, segue-se a favela; algumas fábricas erguem-se por ali.
O urbanismo de Lourenço Marques vinca a sua realidade racista. Na cidade racionalizada, elegante, luxuosa, só penetram os negros dos serviços que se apresentam limpos e decentemente vestidos. Além dos serviços, nada mais há na vida da cidade branca que lhes seja acessível. Os brancos nada têm que fazer nos bairros indígenas, por isso não entram lá”.
Também não perdeu a oportunidade de entrar nos cabarés laurentinos. A viagem prossegue pela beira até chegar a Nacala, depois Porto Amélia, finalmente Mocímboa da Praia. Já ouviu várias vezes falar na Operação Nó Górdio, ele irá participar nela. A sua unidade parte de Mocímboa da Praia para Diaca, e chega-se a Sagal, considera que as instalações são bastante razoáveis, pertenciam a uma antiga exploração algodoeira. A casa senhorial é ocupada pela messe de oficiais.
Já se respira a Operação “Nó Górdio”, como ele escreve no seu diário:
“Consiste num cerco a uma região onde o inimigo se encontra, e intervenções de limpeza no interior desse cerco. A picada fica a constituir parte do limite da área cercada; ao longo dela as nossas tropas hão de emboscar-se e executar patrulhamentos (…) Levámos grande parte da manhã e toda a tarde para percorrer os seis quilómetros de picada nova aberta três dias antes; nela foram detetadas e rebentadas dez minas anticarro e removidos bastantes abatises. Numa das vezes em que, ao ser detetada uma mina fizemos reconhecimento pelo fogo para, prevendo a hipótese dela ser comandada, afugentar o acionador, o inimigo respondeu com fogo de presença”.
No início de julho, Sérgio de Sousa sai com o seu grupo de combate para montar uma emboscada em Chindorilho. A “Nó Górdio” já está a decorrer. A Berliet que seguia à frente estrondeia, segue-se uma emboscada, caíram na zona de morte o Unimog, uma Fox e um Granadeiro. Finda a emboscada retiram da Fox o condutor, tinha uma perna perdida, fora uma bazucada que lhe acertara. “Juntei os meus homens e fomos fazer uma batida ao local de onde partira a emboscada. Encontrei a uns trinta metros da picada, o capim pisado e um cadáver cuja cabeça terminava no maxilar inferior, daí para cima não restava nada. Devia tratar-se de um rapaz. Vestia calções curtos verdes e uma camisola às riscas brancas e azuis, calçava alpercatas e tinha ao lado uma Simonov e sob o corpo, presa à cinta, uma granada de bazuca”. A emboscada dura vários dias, regressam a Sagal. Deixa no diário a ideia de que o inimigo se está a escapar ao cerco, são largas as malhas por onde pode passar. Dias depois parte para nova operação, também relacionada com a “Nó Górdio”, nada de especial acontece. Durante os dias em que se manteve emboscado leu a Guerra Revolucionária, de Mao Tsé Tung. ´
A operação dura já quinze dias, começa-se a falar dela, há poucas ilusões do seu sucesso:
“Segundo as imprecisas notícias que chegam até aqui, comando do cerco norte, as bases foram tomadas, mas nelas apenas se capturou material, os ocupantes fugiram; quanto à pretendida desorganização, não foi atingida. Os guerrilheiros continuam a contornar a população. Perspetivas: a operação termina, os guerrilheiros reabastecem-se de armamento em pouco tempo e caem-nos em cima com toda a forma da organização que não lográmos destruir”. Lê, chegam-lhe jornais, cartas do pai e dos amigos, dá nota dos filmes estreados, da vida musical, de uma exposição de Vieira da Silva, da morte de Elsa Triolet. E confidencia: “O autor deste diário é um indivíduo tímido. Por isso faz gala em ser pedante, antipático, descortês. Ostenta um certo luxo e finge que não conhece alguns conhecidos, socialmente desfavorecidos. Para os colegas arvora um ar superior, polido, frio; para os mais íntimos e familiares mostra-se indelicado. Amigos, tem muito poucos e é-lhes extremamente sincero, deixa-os partilhar de toda a sua verdade; gosta de abrir-se. De si mesmo procura esconder o bluff que é; na realidade, opina sobre livros, teorias, ideologias, conceitos, acontecimentos de que apenas sabe o nome; tem muito medo de ser desmascarado”.
A Operação “Nó Górdio” chega ao fim, Sagal deixou de ser a pior zona, agora é Nangololo, escreve. E a 30 de julho regista uma nova perda, o Furriel Rocha pisa uma mina antipessoal. Deixa um comentário no seu diário: “Pertence a uma família remediada, é eletricista, os seus horizontes são uma vida pacata, no emprego, ao lado da moça de quem gosta e em contacto com a família. Para realizar este futuro foi-lhe imposto como condição realizar a presente guerra. Ele jogou a sua sorte e perdeu. Se a mim me acontecesse a desgraça que o vitimou, eu merecia-o. Porque sei o crime que cometo empenhando-me numa guerra colonial. Tal como as cadências aceleradas e os acidentes de trabalho são exemplos da violência da classe exploradora sobre a trabalhadora, também os estropiados e mortos desta guerra colonial são casos da violência da classe que a quer, sobre aquela que é obrigada a fazê-la”.
(continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 8 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23599: Notas de leitura (1491): Monumenta Missionaria Africana – coligida e anotada por António Brásio; Agência – Geral do Ultramar - Lisboa / MCMLXV (1) (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)
quinta-feira, 8 de setembro de 2022
Guiné 61/74 - P23600: Estórias do Zé Teixeira (59): O Senhor Augusto - Parte II (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)
1. Em mensagem do dia 1 de Setembro de 2022, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos a estória do Senhor Augusto, de que publicamos hoje a segunda de três partes.
O Senhor Augusto
José Teixeira
Parte II
Veio o tempo das uvas maduras. O senhor Augusto passava o dia sentado à sombra de um castanheiro, na borda da vinha, bem lá no alto, e a noite numa palhota construída com canas de milho seco, junto ao muro. Vigiava para impedir que as uvas da patroa fossem parar ao lagar de outrem, pois havia, na aldeia, quem gostasse de provar vinho doce em primeira mão, com as uvas alheias.
Eu deixava a minha mãe no campo e ia para a beira dele fazer-lhe companhia e ouvir as suas histórias. Eram as cobras que falavam; os ratos que caçavam gatos; o Gato das Botas de cano alto, ou a do “Pedro Pedrinho, Pedro Pedrão que, depois de burro, foi Sabichão”, contos a que ele aumentava sempre um ponto, para delícia minha, mas a de que gostei mais foi a das rãs que caíram dentro de um tacho cheio de claras de ovos. Uma sentiu-se perdida, desistiu de lutar e morreu afogada. A outra bateu tantas vezes com as patas, que as claras se transformaram em castelo e ela se salvou. História intricada, essa, que me punha a pensar como é que as claras de ovos, com que a minha mãe fazia o bolo quando havia festa na quinta, ou os filhos da patroa vinham almoçar, serviam para fazer castelos dentro de um tacho. Uma coisa me ensinava ele! Nunca se deve desistir dos nossos sonhos e de lutar pela vida.
E tantas outras histórias que ele tirava da sua memória, em que estavam guardadas e cheias de pó. Segundo ele, só eu tivera a ousadia de lhas ir buscar ao velho sótão, cujo telhado, os seus cabelos que nunca conheci, se perdera com os ventos do tempo.
Sabia onde havia as mais doces uvas naquela imensa vinha que enchia meia dúzia de pipas de saboroso mosto, um verde de categoria. Então, mal eu chegava, dizia-me:
– Ó meu rapaz, vai ao bardo da leira debaixo, lá bem no fundo há umas uvas brancas de estalo. Come até te fartares. Se a patroa vier, eu tenho um ataque de tosse, e tu foges, ouviste!
Situação que se foi repetindo durante o verão, ora na leira debaixo, ora na latada, ora… (O mestre é que sabia!). Voltava, então, para junto do simpático velhinho para ouvir mais uma história.
Até que cheguei à idade de ir para a escola.
Começou o princípio do fim da minha meninice, em que misturava o trabalho de guardar os ovelhas da patroa com as brincadeiras com os rapazes da vizinhança, com brinquedos e casinhas, construídos na nossa imaginação, ou pela nossa imaginação, como naquela tarde em que descobrimos uma forma de andar de carro por uma ribanceira, transformando um ramo de carvalho em moderno meio de transporte, com um garoto sentado e outro a fazer de burro, puxando, numa correria desenfreada, até chegar ao carreiro novo. Como consequência, foram-se os fundilhos das calças e choveram umas vergastadas no traseiro, com uma fina vara de mimosa.
E quantas vezes, abandonava os meus colegas de brincadeira e ia à procura do meu amigo velhote. Havia sempre fruta fresca e madura, e mais uma história por detrás de um sorriso maroto e profundamente cativante, ou, então, a repetição de uma já conhecida, mas com novos intervenientes, pois o senhor Augusto acrescentava sempre um novo pormenor para lhe dar outro sabor.
O meu velho amigo tinha uma arma de carregar pela boca. Era a sua companheira na barraca onde se acolhia durante a noite, num dos cantos da vinha à sua guarda. A patroa mandava-o carregar a arma com zagalotes. Ele garantia-lhe que sim, mas carregava a velha espingarda com muita pólvora seca, para que fizesse muito barulho e poucos estragos.
Uma noite de pouco luar, apareceram por lá os amigos do alheio. O vigia estava atento. Seguiu-os à distância. Apontou a arma para o alto e disparou. O estrondo foi tão grande que se ouviu em todo o lugar.
No dia seguinte, o meu amigo, logo que me viu, disse-me:
– Ó meu rapaz, tu nem sabes o que me aconteceu esta noite… Levei cá um coice!
Fiquei atarantado, e na minha inocência, comentei:
– Mas… o senhor Augusto não tem burro!
– Ó rapaz, foi o canhangulo que me deu um coice – e apontava para a arma encostada ao castanheiro, sorrindo.
De seguida, contou-me os acontecimentos da noite.
– Apareceram dali, daquele lado, estás a ver aquele tronco de carvalho? Eram dois homens com uma cesta. Foram por ali, rodearam aquela borda e saltaram para vinha, e eu a segui-los. Passaram para parte de dentro do bardo e começaram a colher uvas. Os malandros sabiam onde é que as uvas estavam maduras, mas eu também sabia. Aproximei-me de mansinho. Apontei a arma para o alto, e pum! O fumo foi tanto que quando passou, já não se via ninguém. Mas, assustados, foram-se, e não voltam, podes crer.
O que mais me intrigara foi saber que as armas davam coices.
(Continua)
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Nota do editor:
Último poste da série de 7 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23598: Estórias do Zé Teixeira (58): O Senhor Augusto - Parte I (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)
O Senhor Augusto
José Teixeira
Parte II
Veio o tempo das uvas maduras. O senhor Augusto passava o dia sentado à sombra de um castanheiro, na borda da vinha, bem lá no alto, e a noite numa palhota construída com canas de milho seco, junto ao muro. Vigiava para impedir que as uvas da patroa fossem parar ao lagar de outrem, pois havia, na aldeia, quem gostasse de provar vinho doce em primeira mão, com as uvas alheias.
Eu deixava a minha mãe no campo e ia para a beira dele fazer-lhe companhia e ouvir as suas histórias. Eram as cobras que falavam; os ratos que caçavam gatos; o Gato das Botas de cano alto, ou a do “Pedro Pedrinho, Pedro Pedrão que, depois de burro, foi Sabichão”, contos a que ele aumentava sempre um ponto, para delícia minha, mas a de que gostei mais foi a das rãs que caíram dentro de um tacho cheio de claras de ovos. Uma sentiu-se perdida, desistiu de lutar e morreu afogada. A outra bateu tantas vezes com as patas, que as claras se transformaram em castelo e ela se salvou. História intricada, essa, que me punha a pensar como é que as claras de ovos, com que a minha mãe fazia o bolo quando havia festa na quinta, ou os filhos da patroa vinham almoçar, serviam para fazer castelos dentro de um tacho. Uma coisa me ensinava ele! Nunca se deve desistir dos nossos sonhos e de lutar pela vida.
E tantas outras histórias que ele tirava da sua memória, em que estavam guardadas e cheias de pó. Segundo ele, só eu tivera a ousadia de lhas ir buscar ao velho sótão, cujo telhado, os seus cabelos que nunca conheci, se perdera com os ventos do tempo.
Sabia onde havia as mais doces uvas naquela imensa vinha que enchia meia dúzia de pipas de saboroso mosto, um verde de categoria. Então, mal eu chegava, dizia-me:
– Ó meu rapaz, vai ao bardo da leira debaixo, lá bem no fundo há umas uvas brancas de estalo. Come até te fartares. Se a patroa vier, eu tenho um ataque de tosse, e tu foges, ouviste!
Situação que se foi repetindo durante o verão, ora na leira debaixo, ora na latada, ora… (O mestre é que sabia!). Voltava, então, para junto do simpático velhinho para ouvir mais uma história.
Até que cheguei à idade de ir para a escola.
Começou o princípio do fim da minha meninice, em que misturava o trabalho de guardar os ovelhas da patroa com as brincadeiras com os rapazes da vizinhança, com brinquedos e casinhas, construídos na nossa imaginação, ou pela nossa imaginação, como naquela tarde em que descobrimos uma forma de andar de carro por uma ribanceira, transformando um ramo de carvalho em moderno meio de transporte, com um garoto sentado e outro a fazer de burro, puxando, numa correria desenfreada, até chegar ao carreiro novo. Como consequência, foram-se os fundilhos das calças e choveram umas vergastadas no traseiro, com uma fina vara de mimosa.
E quantas vezes, abandonava os meus colegas de brincadeira e ia à procura do meu amigo velhote. Havia sempre fruta fresca e madura, e mais uma história por detrás de um sorriso maroto e profundamente cativante, ou, então, a repetição de uma já conhecida, mas com novos intervenientes, pois o senhor Augusto acrescentava sempre um novo pormenor para lhe dar outro sabor.
O meu velho amigo tinha uma arma de carregar pela boca. Era a sua companheira na barraca onde se acolhia durante a noite, num dos cantos da vinha à sua guarda. A patroa mandava-o carregar a arma com zagalotes. Ele garantia-lhe que sim, mas carregava a velha espingarda com muita pólvora seca, para que fizesse muito barulho e poucos estragos.
Uma noite de pouco luar, apareceram por lá os amigos do alheio. O vigia estava atento. Seguiu-os à distância. Apontou a arma para o alto e disparou. O estrondo foi tão grande que se ouviu em todo o lugar.
No dia seguinte, o meu amigo, logo que me viu, disse-me:
– Ó meu rapaz, tu nem sabes o que me aconteceu esta noite… Levei cá um coice!
Fiquei atarantado, e na minha inocência, comentei:
– Mas… o senhor Augusto não tem burro!
– Ó rapaz, foi o canhangulo que me deu um coice – e apontava para a arma encostada ao castanheiro, sorrindo.
De seguida, contou-me os acontecimentos da noite.
– Apareceram dali, daquele lado, estás a ver aquele tronco de carvalho? Eram dois homens com uma cesta. Foram por ali, rodearam aquela borda e saltaram para vinha, e eu a segui-los. Passaram para parte de dentro do bardo e começaram a colher uvas. Os malandros sabiam onde é que as uvas estavam maduras, mas eu também sabia. Aproximei-me de mansinho. Apontei a arma para o alto, e pum! O fumo foi tanto que quando passou, já não se via ninguém. Mas, assustados, foram-se, e não voltam, podes crer.
O que mais me intrigara foi saber que as armas davam coices.
(Continua)
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Nota do editor:
Último poste da série de 7 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23598: Estórias do Zé Teixeira (58): O Senhor Augusto - Parte I (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)
Guiné 61/74 - P23599: Notas de leitura (1491): Algumas (breves) notas sobre missionação (I) - Missionaria Africana - coligida e anotada por António Brásio; Agência - Geral do Ultramar - Lisboa / MCMLXV (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)
1. Mensagem do nosso camarada Paulo Cordeiro Salgado (ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 3 de Setembro de 2022:
Caros Camaradas,
Atrevo-me a caminhar por matérias de que não faziam parte das minhas preocupações literárias - a Missionação. O que farei é, somente, trazer alguns breves apontamentos.
Uma saudação amiga, Camaradas.
Ver abaixo:
Paulo Salgado
Algumas (breves) notas sobre missionação – I
Paulo Salgado
Fui espicaçado, e bem, pelo Mário Beja Santos, um excelente crítico e historiador atento, ao observar-me, recentemente, ser incompreensível não abordar eu, nas minhas narrativas mais recentes1, aspectos da missionação. Estas minhas narrativas debruçam-se, no essencial, sobre aqueles que não fazem parte das elites e que não constam dos compêndios ou das obras laudatórias e encomiásticas, ou seja, do povo que demandou o Império, se Império houve.
E tendo eu conhecido pessoalmente alguns frades franciscanos que ainda residiam na Guiné-Bissau aquando da minha estada neste País, em 1990-92, em actividade de cooperação, vinte anos depois da minha ida à guerra, tive de meter mãos à obra e ir em busca do que fartamente se produziu sobre a presença dos missionários. É uma faceta humana incontornável.
Eis-me, pois, chegado, à Monumenta Missionaria Africana – coligida e anotada por António Brásio, (Agência – Geral do Ultramar. Lisboa – MCMLXV). O meu objectivo é focar aqui, neste espaço bloguista, aberto a tantas e variadas manifestações memorialistas, alguns breves esquiços sobre a presença de missionários nos territórios d’além-mar, no século XVII, pois é deste período de tempo que trata abundantemente esta compilação.
(No entanto, sei bem que o Beja Santos nos conforta com belas páginas sobre diversos temas, incluindo a referência a actividades missionárias de franciscanos - ver no blogue).
Ora, pretendi referir-me, obrigatoriamente, a um grande estudioso que dedicou uma vida de mais de quarenta anos a um trabalho notável – a abordagem a este tema tão importante da nossa História: o Padre António Brásio. Para minha leitura prévia, e, assim, trazer breves notas para conhecimento de eventuais interessados, é bom relembrar que não sou historiador, mas um curioso escritor/narrador, servi-me do texto do Padre David Sampaio Barbosa2. Aponta-nos este estudioso o caminho da imensa obra de António Brásio. Claro que António Brásio cultivava um enorme respeito pelas culturas tradicionais africanas, ainda que eivado pela corrente política que as décadas de quarenta, cinquenta e sessenta, força ideológica do estado Novo, fossem de feição ideológica marcante na defesa do Império. Admitiu sempre António Brásio que a nossa presença secular histórica houvera sido fundamental para os homens africanos e para a defesa da civilização. Segundo David Sampaio Barbosa, Brásio «acreditou, anos seguidos, na justeza da causa de Portugal e na linearidade duma presença que acreditava benéfica para as populações nativas».
Possivelmente, António Brásio, já nos meados da década de sessenta, sentiu que se aproximava o fim da posição universalista defendida pelo Estado Novo, e que o pulsar da História se converteria, a breve trecho, em mudanças que o processo histórico universal impunha e impõe.
A quantos competirá abalançarem-se a prosseguir o que se contém nesta obra, um manancial para os historiadores interessados na História da Missionação e, a fortiori, pela História de Portugal? A mim, que procuro bases para as minhas narrativas ficcionais, ainda que baseadas em factos e personagens históricas, tão-só me interessam algumas passagens que envolvem encontros e desencontros, problemas e sucessos, de alguns missionários, e como eles, alguns soldados e marinheiros. Delas trarei duas notas, proximamente3.
____________________
Notas:
1 - Que agora me escuso de referir por conveniência própria.
2 - Pe. António Brásio, A Paixão pela História Missionária David Sampaio Barbosa. Missão Espiritana, Vol. 13, n.º 13. Artigo 5.º 2008.
3 - Aliás, no meu livro Guiné – Crónicas de Guerra e Amor abordei as dificuldades que os frades capuchinhos enfrentaram ao logo da costa; no caso, ainda que ficcionalmente, mas atento às vicissitudes da missionação, uma crónica desse livro sobre um frade na região de Cacheu: “Frei Cipriano”.
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Nota do editor
Último poste da série de 6 de Setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23592: Notas de leitura (1490): Damião de Góis (Alenquer, 1502- Alenquer, 1574): um humanista europeu... Curiosamente, entre os seus ensaios, encontra-se um estudo sobre o povo Lapão (Samiska Folket) e o seu modo de vida.(José Belo, Suécia)
quarta-feira, 7 de setembro de 2022
Guiné 61/74 - P23598: Estórias do Zé Teixeira (58): O Senhor Augusto - Parte I (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)
1. Em mensagem do dia 1 de Setembro de 2022, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos a estória do Senhor Augusto, de que publicamos hoje a primeira de três partes.
O Senhor Augusto
José Teixeira
Parte I
Toda a gente tinha uma grande estima por aquele velhinho alegre. Depois de uns anos em França, onde participara na tristemente célebre batalha de La Lys, durante a Primeira Guerra Mundial, regressou à sua terra natal e por lá ficou, como moço de lavoura.
Os caminhos da vida e a doença óssea que o sacrificava, uma sequela da sua alimentação deficiente durante os anos em que estivera envolvido na guerra, foram-lhe roubando as forças para trabalhar, mas não a vontade. Vivia da compreensiva caridade das gentes do povoado. No verão, era contratado pelos proprietários das terras para guardar os pomares e as vinhas. Mas o seu maior prazer era a conversa, e toda a gente o ouvia respeitosamente, até as crianças gostavam das suas belas histórias, sempre acompanhadas de ruidosas gargalhadas.
Habitava um casebre no cimo do lugar Novo, construído com pedras mal talhadas, coberto a colmo. No inverno, o vento invadia o compartimento, assobiando pelos buracos. A chuva acossada pelo vento escorria pelas paredes, transformando o chão térreo num lamaçal. No verão, aquela porta era a janela do seu mundo que nem de noite se fechava. De lá, o seu olhar viajava pela encosta que se estendia até ao rio, atravessada por caminhos e carreiros, ora protegidos pelas sombras de frondosos castanheiros, bem lá no fundo, ora por eucaliptos que trepam rapidamente às alturas, sugando o húmus da terra, tão necessário para a manter produtiva. Casas aos magotes davam forma aos lugares em redor das quintas dos senhores da terra, com as suas vinhas e prados que matizavam o ambiente ao sabor das estações do ano. Estradões de terra batida partiam das casas senhoriais e, serpenteando pela encosta, perdiam-se lá longe, na estrada que nos transportava à vila. Os matos agrestes e as giestas abriam-se na primavera, dando um toque colorido de amarelo àquele ambiente carregado, com a esperança dos prados.
A minha relação com ele não começara da melhor maneira.
Estava eu, no campo, a guardar as ovelhas da Dona Aninhas, a patroa, quando vi a aproximar-se aquele velhinho curvado pelos anos, de pernas arqueadas, cobertas por umas calças rotas que de tão sujas não tinham cor, a arrastar-se nuns grossos tamancos, apoiado num arrocho. De nariz adunco e boca sem dentes, com uns restos de cabelo branco a roçar-lhe o pescoço, e duas lanternas verdes focadas em mim. Parecia-me um sorridente fantasma naquele cair da tarde fria de maio.
Parou no meio do íngreme caminho que o levava a casa para descansar um pouco, e esboçou um cândido sorriso, mas eu estava de tal modo assustado com a sua figura, que tremia como varas de junco verde, tocadas pelo vento de inverno.
Alargou o seu sorriso e perguntou-me:
– Ó rapaz, tu sabes porque é que as galinhas não têm dentes?
– Não senhor… – Respondi com voz trémula e abafada, com os olhos fixos no chão, encolhido dentro de mim.
– Eu também não sei, mas um dia vou saber. Quando elas falarem, vou perguntar-lhes e elas vão dizer-me, podes crer – e deu uma sonora gargalhada.
Continuou o seu rape-rape pela encosta acima e eu fiquei a matutar. Como é que as galinhas falam, se eu só ouço o có-có-ró-có-có do galo pela manhã, tão cedinho, que, às vezes, até me acorda? Bem, as galinhas cantam. A minha mãe a cada passo me diz: A galinha está a cantar é porque tem ovo no cu, ou então, a galinha já cantou, vai buscar o ovo, rapaz! Se cantam…
Certo é que, nesse dia, quando a minha mãe me foi chamar para a ceia, encontrou-me no poleiro a falar com as galinhas, sem, contudo, obter resposta, a não ser o seu cacarejar por sentirem um intruso por perto.
Com o tempo, fui-me habituando àqueles olhitos marotos, de um verde que, noutros tempos, ofuscaria qualquer cachopa casadeira, e a que o cansaço das agruras da vida tirara todo o brilho, mas não a alegria de viver sorrindo.
Veio mês de junho, com as frutas no pomar. Um convite aos amigos do alheio para encherem os bolsos e a abada. A patroa chamou o senhor Augusto e deu-lhe a tarefa de se sentar por lá, para afugentar os mais audaciosos, em troca de uma tijela de caldo e a ceia regada com um copito de verde tinto.
Ao fim de algum tempo, eu, que também tinha direito ao caldo da patroa por lhe guardar as ovelhas, já me sentava no colo dele para comer o “modinho” da sua tigela, e ouvir-lhe as histórias que só ele sabia contar com uma ênfase gestual que me fazia rir às gargalhadas.
Calvo e sem dentes, é verdade, com os anos a pesar-lhe duramente nas suas peles encarquilhadas, mas sempre alegre. Era um prazer ouvi-lo. Até os criados mastigavam mais lentamente o parco conduto para ouvirem o velhote, como era conhecido.
Da guerra, nem falar, pois o nosso velhinho, irritado, dizia: – Isso não são histórias para cachopos. – E não se ouvia nem mais uma palavra da sua boca.
Um dia, com um copito a mais, abriu-se um pouco. Começou por perguntar-me se eu sabia porque é que os dentes lhe fugiram da boca. Como já me tinha caído um dente de leite, foi fácil responder-lhe.
– Bem, comigo não foi bem assim, mas diz-me o que aconteceu ao teu dente – quis saber.
– Caiu-me ao chão, e o galo comeu-o.
– Antes o galo que o rato. Estás com sorte, rapaz, vais dar um bom cantador.
Não me deu tempo para lhe perguntar porquê, e continuou.
– Pois eu, quando fui para a tropa, tinha a boquinha cheia de dentes, não me faltava nem um. A maldita guerra rebentou e levou-mos. Não ficaram lá todos, mas quando regressei a casa, depois de passar uns meses no hospital a curar esta perna maldita que me mata de dores, começou a cair um atrás do outro e fiquei assim, nesta figura. Careca, perneta e desdentado.
– Conte, conte histórias da guerra, devem ser as mais lindas que tem para me contar.
– Enganas-te, meu rapaz. (Gostava muito de me chamar “meu rapaz”). As histórias que vivi na guerra são muitas, e bem dolorosas, podes crer, mas irão comigo para a cova. Vou falar-te dos meus dentes, e é se queres. – Conte, conte.
– Estava na tropa quando rebentou a guerra…
– O que é uma guerra?…
– Chiu! Não faças mais perguntas, senão… Como te dizia, a guerra rebentou lá longe. Fomos logo metidos aos milhares num comboio, e só parámos quando já se ouviam os canhões.
Fez um longo silêncio. Parecia que as palavras se recusavam a sair-lhe da boca, enquanto as lágrimas lhe caíam suavemente pelas faces. Respirou fundo e continuou, limpando os olhos com as costas da mão.
– Passámos muita fome. Os franceses e os ingleses, ali ao lado, tinham comida todos os dias, e da boa. Nós manjávamos rações de combate, quando as havia. Até os freds! A gente via-os ao longe a cozinhar.
– Quem eram os freds?
– Eram os alemões, rapaz. Vá, deixa-me continuar. Enquanto eles comiam fruta em conserva todos os dias, nós, os portuguesitos, nem vê-la pelo cano da espingarda. Ficávamos ali entrincheirados meses e meses ao frio, ao calor, com fome… a morrer…
– O que faziam na guerra?
– Eu não te disse já que as histórias da guerra iam comigo para a cova? Tem juizinho!
– Agora só tenho as gengivas para mastigar a côdea seca do pão que a patroa me manda a meio da manhã para o mata-bicho.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 30 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23474: Estórias do Zé Teixeira (57): Amores em tempo de guerra: III - Amores proibidos (3): Binta!... Binta!... (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)
O Senhor Augusto
José Teixeira
Parte I
Toda a gente tinha uma grande estima por aquele velhinho alegre. Depois de uns anos em França, onde participara na tristemente célebre batalha de La Lys, durante a Primeira Guerra Mundial, regressou à sua terra natal e por lá ficou, como moço de lavoura.
Os caminhos da vida e a doença óssea que o sacrificava, uma sequela da sua alimentação deficiente durante os anos em que estivera envolvido na guerra, foram-lhe roubando as forças para trabalhar, mas não a vontade. Vivia da compreensiva caridade das gentes do povoado. No verão, era contratado pelos proprietários das terras para guardar os pomares e as vinhas. Mas o seu maior prazer era a conversa, e toda a gente o ouvia respeitosamente, até as crianças gostavam das suas belas histórias, sempre acompanhadas de ruidosas gargalhadas.
Habitava um casebre no cimo do lugar Novo, construído com pedras mal talhadas, coberto a colmo. No inverno, o vento invadia o compartimento, assobiando pelos buracos. A chuva acossada pelo vento escorria pelas paredes, transformando o chão térreo num lamaçal. No verão, aquela porta era a janela do seu mundo que nem de noite se fechava. De lá, o seu olhar viajava pela encosta que se estendia até ao rio, atravessada por caminhos e carreiros, ora protegidos pelas sombras de frondosos castanheiros, bem lá no fundo, ora por eucaliptos que trepam rapidamente às alturas, sugando o húmus da terra, tão necessário para a manter produtiva. Casas aos magotes davam forma aos lugares em redor das quintas dos senhores da terra, com as suas vinhas e prados que matizavam o ambiente ao sabor das estações do ano. Estradões de terra batida partiam das casas senhoriais e, serpenteando pela encosta, perdiam-se lá longe, na estrada que nos transportava à vila. Os matos agrestes e as giestas abriam-se na primavera, dando um toque colorido de amarelo àquele ambiente carregado, com a esperança dos prados.
A minha relação com ele não começara da melhor maneira.
Estava eu, no campo, a guardar as ovelhas da Dona Aninhas, a patroa, quando vi a aproximar-se aquele velhinho curvado pelos anos, de pernas arqueadas, cobertas por umas calças rotas que de tão sujas não tinham cor, a arrastar-se nuns grossos tamancos, apoiado num arrocho. De nariz adunco e boca sem dentes, com uns restos de cabelo branco a roçar-lhe o pescoço, e duas lanternas verdes focadas em mim. Parecia-me um sorridente fantasma naquele cair da tarde fria de maio.
Parou no meio do íngreme caminho que o levava a casa para descansar um pouco, e esboçou um cândido sorriso, mas eu estava de tal modo assustado com a sua figura, que tremia como varas de junco verde, tocadas pelo vento de inverno.
Alargou o seu sorriso e perguntou-me:
– Ó rapaz, tu sabes porque é que as galinhas não têm dentes?
– Não senhor… – Respondi com voz trémula e abafada, com os olhos fixos no chão, encolhido dentro de mim.
– Eu também não sei, mas um dia vou saber. Quando elas falarem, vou perguntar-lhes e elas vão dizer-me, podes crer – e deu uma sonora gargalhada.
Continuou o seu rape-rape pela encosta acima e eu fiquei a matutar. Como é que as galinhas falam, se eu só ouço o có-có-ró-có-có do galo pela manhã, tão cedinho, que, às vezes, até me acorda? Bem, as galinhas cantam. A minha mãe a cada passo me diz: A galinha está a cantar é porque tem ovo no cu, ou então, a galinha já cantou, vai buscar o ovo, rapaz! Se cantam…
Certo é que, nesse dia, quando a minha mãe me foi chamar para a ceia, encontrou-me no poleiro a falar com as galinhas, sem, contudo, obter resposta, a não ser o seu cacarejar por sentirem um intruso por perto.
Com o tempo, fui-me habituando àqueles olhitos marotos, de um verde que, noutros tempos, ofuscaria qualquer cachopa casadeira, e a que o cansaço das agruras da vida tirara todo o brilho, mas não a alegria de viver sorrindo.
Veio mês de junho, com as frutas no pomar. Um convite aos amigos do alheio para encherem os bolsos e a abada. A patroa chamou o senhor Augusto e deu-lhe a tarefa de se sentar por lá, para afugentar os mais audaciosos, em troca de uma tijela de caldo e a ceia regada com um copito de verde tinto.
Ao fim de algum tempo, eu, que também tinha direito ao caldo da patroa por lhe guardar as ovelhas, já me sentava no colo dele para comer o “modinho” da sua tigela, e ouvir-lhe as histórias que só ele sabia contar com uma ênfase gestual que me fazia rir às gargalhadas.
Calvo e sem dentes, é verdade, com os anos a pesar-lhe duramente nas suas peles encarquilhadas, mas sempre alegre. Era um prazer ouvi-lo. Até os criados mastigavam mais lentamente o parco conduto para ouvirem o velhote, como era conhecido.
Da guerra, nem falar, pois o nosso velhinho, irritado, dizia: – Isso não são histórias para cachopos. – E não se ouvia nem mais uma palavra da sua boca.
Um dia, com um copito a mais, abriu-se um pouco. Começou por perguntar-me se eu sabia porque é que os dentes lhe fugiram da boca. Como já me tinha caído um dente de leite, foi fácil responder-lhe.
– Bem, comigo não foi bem assim, mas diz-me o que aconteceu ao teu dente – quis saber.
– Caiu-me ao chão, e o galo comeu-o.
– Antes o galo que o rato. Estás com sorte, rapaz, vais dar um bom cantador.
Não me deu tempo para lhe perguntar porquê, e continuou.
– Pois eu, quando fui para a tropa, tinha a boquinha cheia de dentes, não me faltava nem um. A maldita guerra rebentou e levou-mos. Não ficaram lá todos, mas quando regressei a casa, depois de passar uns meses no hospital a curar esta perna maldita que me mata de dores, começou a cair um atrás do outro e fiquei assim, nesta figura. Careca, perneta e desdentado.
– Conte, conte histórias da guerra, devem ser as mais lindas que tem para me contar.
– Enganas-te, meu rapaz. (Gostava muito de me chamar “meu rapaz”). As histórias que vivi na guerra são muitas, e bem dolorosas, podes crer, mas irão comigo para a cova. Vou falar-te dos meus dentes, e é se queres. – Conte, conte.
– Estava na tropa quando rebentou a guerra…
– O que é uma guerra?…
– Chiu! Não faças mais perguntas, senão… Como te dizia, a guerra rebentou lá longe. Fomos logo metidos aos milhares num comboio, e só parámos quando já se ouviam os canhões.
Fez um longo silêncio. Parecia que as palavras se recusavam a sair-lhe da boca, enquanto as lágrimas lhe caíam suavemente pelas faces. Respirou fundo e continuou, limpando os olhos com as costas da mão.
– Passámos muita fome. Os franceses e os ingleses, ali ao lado, tinham comida todos os dias, e da boa. Nós manjávamos rações de combate, quando as havia. Até os freds! A gente via-os ao longe a cozinhar.
– Quem eram os freds?
– Eram os alemões, rapaz. Vá, deixa-me continuar. Enquanto eles comiam fruta em conserva todos os dias, nós, os portuguesitos, nem vê-la pelo cano da espingarda. Ficávamos ali entrincheirados meses e meses ao frio, ao calor, com fome… a morrer…
– O que faziam na guerra?
– Eu não te disse já que as histórias da guerra iam comigo para a cova? Tem juizinho!
– Agora só tenho as gengivas para mastigar a côdea seca do pão que a patroa me manda a meio da manhã para o mata-bicho.
(Continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 30 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23474: Estórias do Zé Teixeira (57): Amores em tempo de guerra: III - Amores proibidos (3): Binta!... Binta!... (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)
Guiné 61/74 - P23597: Agenda Cultural (811): A Orquestra Médica Ibérica (de que faz parte o nosso grã-tabanqueiro João Graça) irá dar, no domingo, dia 11 de setembro, na Aula Magna da Universidade de Lisboa, um concerto solidário, a favor da Associação Portuguesa contra a Leucemia
CONCERTO SOLIDÁRIO - ORQUESTRA MÉDICA IBÉRICA
Classificação: M/06 anos
Duração: 90 min. c/ intervalo
Sessão Única: domingo, 11 de setembro de 2022, às 17h00
Local: Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, ao Campo Grande
Bilhete: 10 (dez) euros
Bilhetes à venda em ticketline.pt e mais informações em www.orquestramedicaiberica.com.
1. A Orquestra Médica Ibérica reúne médicos e estudantes de medicina de Portugal e Espanha, que, além da saúde, tem outra grande paixão: a música. E, entre os músicos, estará o João Graça, psiquiatra no IPO e violinista, membro da nossa Tabanca Grande.
No seu concerto de estreia, em Lisboa, irão estar em palco 70 profissionais de saúde, no próximo domingo, da 11 de Setembro pelas 17 horas na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa.
Juntam-se num concerto solidário cuja receita da bilheteira reverte inteiramente a favor da Associação Portuguesa Contra a Leucemia.
Vão interpretar obras icónicas da música clássica e ibérica, dirigidos pelo maestro Sebastião Castanheira Martins (ele próprio médico, interno de psiquiatria no Hospital Amadora-Sintra):
(i) Danza Ritual del Fuego, del “Amor Brujo”, do espanhol Manuel de Falla (1876-1946);
(iii) Sinfonia n.º 9, em mi menor, op 95, mundialmente conhecida como "Sinfonia do Novo Mundo", da autoria do compositor checo Antonin Dvorak (1841-1904) (foi escrita e estreada, em 1893, quando o popular compositor estava nos EUA a dirigir o Conservatório de Nova Iorque).
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Nota do editor:
Guiné 61/74 - P23596: Historiografia da presença portuguesa em África (333): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (5) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2021:
Queridos amigos,
Aqui findam as impressões do Padre António Joaquim Dias, desta feita elencam-se as suas referências à alimentação da população guineense e faz-se menção da comunicação por ele proferida nas Comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné, obviamente que aproveitou o material que já transcrevemos do Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira a partir de 1942, descobre-se agora que ele também assina Dias Dinis, convirá agora juntarmos as intervenções da mesma pessoa, mais adiante se fará recensão do trabalho que ele publicou na revista BIBLIOS, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. É a singularidade de um olhar de um missionário que comprovadamente se afeiçoou às duras tarefas de criar escolas, igrejas, residências, passando alguns anos sem auferir um rendimento, contando com o compadecimento de quem podia dar para eles poderem estar ao serviço de Deus.
Um abraço do
Mário
Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (5)
Mário Beja Santos
Que grande surpresa, estas Impressões da Guiné escritas por um missionário que ali viveu mais de oito anos, são documentos que ele vai publicando ao longo dos anos no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira, ainda não sei o que nos reserva este conjunto de cartapácios, a verdade é que há imagens magníficas sobretudo no noticiário guineense. O padre António Joaquim Dias regressou a Portugal depois de oito anos e meio de apostolado missionário em terras da Guiné e resolveu vazar no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira a partir do número de novembro de 1942 em diante impressões e dados históricos da presença missionária franciscana na antiga Senegâmbia Portuguesa.
Chegou a hora de nos despedirmos deste missionário tão observador, primeiro ele vai dizer-nos o que viu sobre a alimentação da população guineense e depois faz-se uma síntese do seu trabalho sobre as missões católicas da Guiné Portuguesa. Deixaremos para outro texto o seu trabalho publicado na revista BIBLIOS, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1943, intitulado As Missões Católicas na Evolução Político-Social da Guiné Portuguesa.
O arroz constitui a base da alimentação destes povos. Cultivam-no desde tempos imemoriais, provavelmente trata-se de uma importação do Oriente. Os pântanos são inundados pelas grossas e abundantes chuvas, que os fertilizam carreando para eles o húmus das terras enxutas. Os Balantas são os maiores agricultores, semeiam sempre o arroz em terras enxutas. Depois transplantam-no para os pântanos, onde mercê do intenso calor ele se desenvolve rapidamente. O arroz é descascado no pilão e crivam-no em cestos indígenas de folhas de palmeira. Os indígenas cultivam duas variedades de milho-painço a que chamam milhinho. E os Mandingas semeiam milho junto das próprias palhotas. Come-se o arroz acompanhado de algum peixe e por vezes carne de animais domésticos ou da vária caça. Ao peixe e à carne, por vezes temperado com ervas e legumes, dá-se o nome de mafé. Comem acocorados, levam a mão à cabaça e formam uma bola que dirigem diretamente para a boca. Lavam os dentes com o indicador da mão direita. Entra em função, depois desta lavagem, o volumoso palito, pequeno troço de pau branco e macio, que vai escovando a dentadura.
O Padre Dias refere igualmente outras fontes alimentares, como a criação de gado, o cultivo do Fundo, a mandioca, a batata-doce, os inhames e o amendoim, bem como algumas variedades de feijão. E recorda-nos o papel da cola e os frutos como a laranjeira, a tangerineira, a toranjeira, o abacaxi, a anona, o coco, o tamarindo e a papaia, bem como a malagueta. As fontes de pescado que destaca são o caranguejo (cáquere) e a ostra. Refere por último a aguardente de cana-sacarina e o vinho de palma, dizendo deste último que é o suco branco extraído do fruto da palmeira do coconote. E aqui acabam as impressões sobre a Guiné.
O Padre Dias foi convidado a apresentar uma comunicação no Congresso Comemorativo do V Centenário do Descobrimento da Guiné e não se fez rogado, cingiu-se à revivescência da vida missionária da Guiné a partir de 1931 com os missionários franciscanos que tinham sido desviados de Moçambique. Durante muitos anos, um único sacerdote foi todo o clero da colónia, o Padre José Pinheiro ainda estava vivo após mais de 30 anos ao serviço da Guiné. Reiterando nesta comunicação o que já escrevera em diferentes números do Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira recorda que os Franciscanos se estabeleceram na vila de Cacheu, lançaram as bases da Missão Central de Bula, em chão de Brames ou Mancanhas, viviam à mingua, em acomodações de barro, montou-se a Residência Missionária de Bula com a respetiva capela-escola. Em 1933 apareceram quatro Irmãs Hospitaleiras Portuguesas, nasceram as escolas de Có, do Churo e Cacanda, a assistência religiosa à vila de Farim, a abertura do asilo de infância desvalida de Bor, a escola do Pelundo. Em 1941 O Arauto, jornal mensal da missão de Bolama, e o único da colónia, é o meio de propagação no trabalho missionário. A situação tem vindo gradualmente a melhorar, há oito missionários, 29 professores indígenas assalariados, um seminário menor, uma creche, uma maternidade, 32 escolas diurnas e 3 noturnas, um colégio de ensino secundário, uma tipografia. Dá-nos conta do movimento religioso, da assistência em enfermagem, onde inclui o serviço das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras Portuguesas, o Hospital e Maternidade de Bissau, o asilo e a creche de Bor, na manhã de 25 de maio de 1946.
No termo da sua comunicação agradece ao ex-governador da colónia, major Ricardo Vaz Monteiro o seu estímulo para a construção de igrejas na sede de cada circunscrição administrativa.
Um ponto curioso é que no Boletim da Agência Geral das Colónias diz-se que esta comunicação foi apresentada pelo Padre Dias Dinis, cabe agora ir à procura dos trabalhos que este assinou e juntar-lhes aqueles que são meramente assinados pelo Padre António Joaquim Dias.
Notas do editor:
Vd. poste anterior de 31 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23574: Historiografia da presença portuguesa em África (331): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (4) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 7 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23594: Historiografia da presença portuguesa em África (332): Região de Tombali, "chão balanta"? [Cherno Baldé, n. circa 1960 / Carlos Schwarz da Silva, "Pepito" (1949-2014)]
Queridos amigos,
Aqui findam as impressões do Padre António Joaquim Dias, desta feita elencam-se as suas referências à alimentação da população guineense e faz-se menção da comunicação por ele proferida nas Comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné, obviamente que aproveitou o material que já transcrevemos do Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira a partir de 1942, descobre-se agora que ele também assina Dias Dinis, convirá agora juntarmos as intervenções da mesma pessoa, mais adiante se fará recensão do trabalho que ele publicou na revista BIBLIOS, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. É a singularidade de um olhar de um missionário que comprovadamente se afeiçoou às duras tarefas de criar escolas, igrejas, residências, passando alguns anos sem auferir um rendimento, contando com o compadecimento de quem podia dar para eles poderem estar ao serviço de Deus.
Um abraço do
Mário
Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (5)
Mário Beja Santos
Que grande surpresa, estas Impressões da Guiné escritas por um missionário que ali viveu mais de oito anos, são documentos que ele vai publicando ao longo dos anos no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira, ainda não sei o que nos reserva este conjunto de cartapácios, a verdade é que há imagens magníficas sobretudo no noticiário guineense. O padre António Joaquim Dias regressou a Portugal depois de oito anos e meio de apostolado missionário em terras da Guiné e resolveu vazar no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira a partir do número de novembro de 1942 em diante impressões e dados históricos da presença missionária franciscana na antiga Senegâmbia Portuguesa.
Chegou a hora de nos despedirmos deste missionário tão observador, primeiro ele vai dizer-nos o que viu sobre a alimentação da população guineense e depois faz-se uma síntese do seu trabalho sobre as missões católicas da Guiné Portuguesa. Deixaremos para outro texto o seu trabalho publicado na revista BIBLIOS, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1943, intitulado As Missões Católicas na Evolução Político-Social da Guiné Portuguesa.
O arroz constitui a base da alimentação destes povos. Cultivam-no desde tempos imemoriais, provavelmente trata-se de uma importação do Oriente. Os pântanos são inundados pelas grossas e abundantes chuvas, que os fertilizam carreando para eles o húmus das terras enxutas. Os Balantas são os maiores agricultores, semeiam sempre o arroz em terras enxutas. Depois transplantam-no para os pântanos, onde mercê do intenso calor ele se desenvolve rapidamente. O arroz é descascado no pilão e crivam-no em cestos indígenas de folhas de palmeira. Os indígenas cultivam duas variedades de milho-painço a que chamam milhinho. E os Mandingas semeiam milho junto das próprias palhotas. Come-se o arroz acompanhado de algum peixe e por vezes carne de animais domésticos ou da vária caça. Ao peixe e à carne, por vezes temperado com ervas e legumes, dá-se o nome de mafé. Comem acocorados, levam a mão à cabaça e formam uma bola que dirigem diretamente para a boca. Lavam os dentes com o indicador da mão direita. Entra em função, depois desta lavagem, o volumoso palito, pequeno troço de pau branco e macio, que vai escovando a dentadura.
O Padre Dias refere igualmente outras fontes alimentares, como a criação de gado, o cultivo do Fundo, a mandioca, a batata-doce, os inhames e o amendoim, bem como algumas variedades de feijão. E recorda-nos o papel da cola e os frutos como a laranjeira, a tangerineira, a toranjeira, o abacaxi, a anona, o coco, o tamarindo e a papaia, bem como a malagueta. As fontes de pescado que destaca são o caranguejo (cáquere) e a ostra. Refere por último a aguardente de cana-sacarina e o vinho de palma, dizendo deste último que é o suco branco extraído do fruto da palmeira do coconote. E aqui acabam as impressões sobre a Guiné.
O Padre Dias foi convidado a apresentar uma comunicação no Congresso Comemorativo do V Centenário do Descobrimento da Guiné e não se fez rogado, cingiu-se à revivescência da vida missionária da Guiné a partir de 1931 com os missionários franciscanos que tinham sido desviados de Moçambique. Durante muitos anos, um único sacerdote foi todo o clero da colónia, o Padre José Pinheiro ainda estava vivo após mais de 30 anos ao serviço da Guiné. Reiterando nesta comunicação o que já escrevera em diferentes números do Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira recorda que os Franciscanos se estabeleceram na vila de Cacheu, lançaram as bases da Missão Central de Bula, em chão de Brames ou Mancanhas, viviam à mingua, em acomodações de barro, montou-se a Residência Missionária de Bula com a respetiva capela-escola. Em 1933 apareceram quatro Irmãs Hospitaleiras Portuguesas, nasceram as escolas de Có, do Churo e Cacanda, a assistência religiosa à vila de Farim, a abertura do asilo de infância desvalida de Bor, a escola do Pelundo. Em 1941 O Arauto, jornal mensal da missão de Bolama, e o único da colónia, é o meio de propagação no trabalho missionário. A situação tem vindo gradualmente a melhorar, há oito missionários, 29 professores indígenas assalariados, um seminário menor, uma creche, uma maternidade, 32 escolas diurnas e 3 noturnas, um colégio de ensino secundário, uma tipografia. Dá-nos conta do movimento religioso, da assistência em enfermagem, onde inclui o serviço das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras Portuguesas, o Hospital e Maternidade de Bissau, o asilo e a creche de Bor, na manhã de 25 de maio de 1946.
No termo da sua comunicação agradece ao ex-governador da colónia, major Ricardo Vaz Monteiro o seu estímulo para a construção de igrejas na sede de cada circunscrição administrativa.
Um ponto curioso é que no Boletim da Agência Geral das Colónias diz-se que esta comunicação foi apresentada pelo Padre Dias Dinis, cabe agora ir à procura dos trabalhos que este assinou e juntar-lhes aqueles que são meramente assinados pelo Padre António Joaquim Dias.
Balantas, na construção de uma palhota
Guiné - Mulheres mandingas junto do poço. (Dentro já ficam prontas as tulhas para o arroz).
____________Notas do editor:
Vd. poste anterior de 31 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23574: Historiografia da presença portuguesa em África (331): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (4) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 7 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23594: Historiografia da presença portuguesa em África (332): Região de Tombali, "chão balanta"? [Cherno Baldé, n. circa 1960 / Carlos Schwarz da Silva, "Pepito" (1949-2014)]
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