domingo, 4 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23585: Blogpoesia (784): "Meu amigo Dostoievsky", poema ilustrado por e da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ


Meu amigo Dostoievsky

Meu amigo Dostoievsky, nada temos a ver aparentemente
um com o outro, a não ser o nosso encontro pelos meus
dezoito anos.
Apetece-me chorar, ao recordar as noites em que à luz de um
foco olho de boi, debaixo dos lençóis para que minha mãe
não visse, eu invadia os teus livros numa das maiores e mais
deliciosas aventuras da minha vida.
Ainda hoje me são familiares o rosto de Sonia e a figura
de Raskolnikov, luz mítica e mística dos que têm coisas em
comum, orientando-se na direcção do símbolos e do mundo
sem forma.
Da mesma forma que te marcaram Balzac, Schiller, Victor
Hugo e Goethe, tu imprimiste em mim a sensação que te
fez desmaiar perante a beleza de Seniavina, na casa dos
Wielgorsky, e eu não sou homossexual, meu caro Dostoievsky.
Perante a beleza, eu não sei ao certo onde pára o sexo, se no
esperma de Úrano derramado no mar, se na poesia da Morte
em Veneza.
Não é a realidade física que interessa ao simbólico, mas o
significado do sexo na imaginação.
A dualidade do ser funde-se na tensão interna de quem ama
e a união sexual não é mais do que o apaziguamento da
tensão interior.
Nunca te concebi humano, sobretudo depois dessa manhã de
rosto de pedra e gelo em que viveste o mais trágico minuto
da tua vida.
Um vento glacial varreu-me a fronte ao ouvir o teu nome
na chamada para a morte: Akcharumov, Shaposhnikov,
Dostoievsky.
Hoje, depois de ter amado tanto, aceito a tua epilepsia como
o estigma mais marcante da pureza da condição humana e
passei a considerar-te meu irmão para o resto da vida.
Por isso me senti prisioneiro quando entrei na fortaleza de
S. Pedro e S. Paulo, e por isso chorei na Praça Semenovsky,
onde viveste uma vida inteira em dois minutos de morte.
Era como se fosse eu o condenado.
Também chorei quando reencontraste Suslova, apenas pelo
que sofreste ao ver que o amor não se repete.
A noite e o vazio estão na origem cosmológica do mundo e o
amor é uma criança que cresce...
e deixa de ser criança.
Amor e morte quando descobertos acordam e fogem.
Para escrever bem é preciso sofrer, disseste um dia ao jovem
Merejkovsky, quando a vida confundia as chamas do teu
inferno com relâmpagos de visionário.
Sofrer pode ser apenas sorrir...
frente a toda a utopia palpável não paranóica nem delirante.
Foi a mim que o disseste meu caro amigo, foi a mim que
o disseste na tarde cinzenta da tua morte, na hora da
hemorragia que te vitimou.
Até hoje ainda não te agradeci.
Perdoa não ter acompanhado o teu féretro, mas nessa altura
eu não existia...
ou será que te acompanho ainda hoje neste
pesado caminho do fim?

adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23562: Blogpoesia (783): "Mãos de hoje que foram de sempre", poema ilustrado por e da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

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