Eu só soube da sua chegada da Guiné, passados uns dias. A mãe, quando ia à praça do peixe, frutas e legumes, viu-me de relance, na redação do jornal, parou, espreitou, entrou e disse-me:
− Luisinho (também me tratava por Luisinho, como o filho), o teu amigo chegou!... Mas não está nada bem, coitado!... Está há dias ferrado a dormir, fechado no quarto, diz que não quer ver ninguém… Passa por lá, no fim de semana, pode ser que ele, por ti, se queira levantar e falar um pouco… Só lhe fazia bem...
A dona Domitília Meneses era uma santa senhora. Era professora primária, ainda no ativo. Tinha sido minha professora da 4ª classe e do exame de admissão ao liceu. Era moçambicana, de origem goesa, descendente de gente da pequena nobreza local, um dos seus antepassados teria sido vice-rei da Índia em meados do séc. XVIII.
Já o mesmo não se poderia dizer do marido, também ele professor do ensino primário, velho republicano, maçónico, dizia-se. Era mais velho do que ela uns bons vinte anos, e fora aposentado compulsivamente da função pública por ter apoiado a candidatura do general Humberto Delgado à Presidência da República em 1958.
Conhecia-o mal, era um homem amargurado, pouco sociável, para não dizer misantropo… Aliás, confesso que tinha medo dele, ou melhor, não gostava dele. Respeitava-o por ser o pai do meu amigo e o marido da minha querida professora.
Na realidade, ele tinha sido marginalizado, legalmente pelo poder político central e socialmente pela elite local. Passando a ser declaradamente um “oposicionista, um indivíduo contra a situação” (sic), deixara de ser convidado para integrar os corpos sociais das diversas associações locais e confrarias de que era sócio ou membro (a filarmónica, os bombeiros, o clube recreativo, desportivo e cultural, o núcleo local da liga dos combatentes, etc.). Em boa verdade, foi a sua "morte social". Amargurado, foi obrigado a deixar as suas funções de encenador das récitas e cegadas que na época carnavalesca animavam o palco do teatro local bem como as ruas da cidade.
Raramente saía à rua, a não ser em algumas efemérides patrióticas, como o 1º de dezembro de 1640 ou o 5 de outubro de 1910. Ou para ir a Lisboa, consultar vários arquivos públicos. Dedicava-se aos seus livros, era um apaixonado africanista, correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, interessando-se, muito em particular, sobre a história da colonização de Moçambique, no tempo da monarquia constitucional e da I República.
O único ponto em que estava de acordo com a política do Estado Novo era na questão da “defesa intransigente do Ultramar”. Tinha estado na sua juventude em Moçambique, primeiro como expedicionário e depois, mais tarde, como professor. E alí viria a conhecer a mulher no final dos anos 30. O filho nasceria, na Beira, em 1942. E tivera como ama de leite uma jovem mãe negra.
Parecidos em muitos aspetos de personalidade, pai e filho, separados por 4 dezenas de anos de diferença, engalfinhavam-se com frequência em discussões, por vezes violentas, sobre o que se estava a passar nos territórios ultramarinos portugueses (mas também na África Austral do "apartheid").
Tinha ideias, o “Velho”, sobre o futuro desses territórios (“possessões ou colónias, como queiras chamar-lhe”, dizia ele ao filho), defendendo todavia o princípio da autodeterminação progressiva, a par da criação de uma "Commonwealth" à portuguesa. Era um admirador da colonização britânica.
Apoiava o esforço militar do País, contra o “terrorismo internacional” (sic), mas era crítico em relação à vontade e à capacidade de Salazar de enveredar por uma “solução política” para o problema, nomeadamente em relação a Angola e Moçambique, que eram, para ele, as verdadeiras “joias da Coroa”, depois de perdida, “miseravelmente” (sic), a Índia Portuguesa.
5. O meu amigo Doc era, para mim, o irmão mais velho
que eu nunca tivera, separavam-nos uma meia dúzia de anos.
Tínhamos alguns interesses intelectuais em comum,
a começar pelo teatro, a literatura, a arte
e, claro, a política.
Nessa época, poucos jovens da minha idade tinham ainda “consciência política” (como então se dizia), porque só uma minoria tinha acesso a um educação de nível superior e a fontes de informação, independentes e credíveis. Vivíamos num regime de partido único, não havia opinião pública, os jornais estavam sujeitos à censura, havia a polícia política, a PIDE, e a única televisão de que dispúnhamos, a RTP, era a voz do dono, tal como a Emissora Nacional… Era o tempo dos 3 FFF: Fátima, Futebol e Fado, três coisas que o meu amigo Doc solenemente detestava…
O que é que eu sabia do que se passava em África, no nosso glorioso Império Colonial ? Racismo, colonialismo, trabalho forçado, revoltas nacionalistas… ? Não, nunca ouvira falar... Só me lembro, na igreja, de pedirem dinheiro ao meu avô, para ajudar as missões católicas, o mesmo era dizer, os “pretinhos da Guiné”...
Eu vivia numa pequena cidade da região centro, onde só os mais afortunados iam estudar para Coimbra (que ficava mais perto do que Lisboa)… A maioria dos jovens da minha geração sabia lá o que se passava em África… Mal sabiam do se passava à sua volta, nos campos e nas fábricas, no mar, nas escolas, nos quartéis, nos hospitais…
Aliás, o que é que a gente sabia e podia saber ? Só o que "eles" queriam que a gente soubesse..."Saber ler, escrever e contar", acrescentava o meu amigo Doc, "o que não quer dizer... saberes pensar pela tua própria cabeça"...
Além disso, as nossas aldeias, vilas e pequenas cidades do interior começavam a ficar envelhecidas, com a saída dos mais jovens, para o ultramar e a emigração (interna e externa). Muitos dos meus colegas de escola nunca mais os vi. Alguns como eu fixaram-se em Lisboa ou no Porto, onde eram maiores e melhores as oportunidades de emprego.
6. Enquanto ele, o Doc, esteve na Guiné, correspondiamo-nos
regularmente, duas vezes por mês. Eu guardei
religiosamente os aerogramas que ele me mandava.
Tinha intenção de os organizar por data e devolvê-los
ao remetente, logo que ele chegasse, “são e salvo”,
como eu esperava que ele chegasse.
Quando eu o fui visitar, não me deixou sequer falar dos aerogramas, que naturalmente lhe traziam recordações dolorosas da Guiné, que ele queria extirpar para sempre da memória. A sua resposta, brusca e mal humorada, foi:
− Queima-os, Luisinho, queima-os!− É um pedido ?
− Não, é uma ordem!
Não lhe fiz a vontade. Devia tê-lo feito ? Continuaram guardados ao meu cuidado. Sempre pensei que ele poderia, com os anos, mudar de opinião. Mas, nunca mais quis falar da Guiné e desses "anos de chumbo" em que esteve na tropa e na guerra,,, (Acabei por entregar os aerogramas à irmã, no dia do seu funeral, e hoje tenho pena de não os ter fotocopiado, limitei-me a copiar alguns excertos. )
Curiosamente ele nunca me escrevia cartas, mas apenas aerogramas, que eram de borla. "Com o dinheiro que poupava nos selos, comprava livros, revistas, peças de artesanato e... uísque", dizia-me ele, a gozar.
Eu tinha receio que a correspondência, trocada entre nós, pudesse ser intercetada pela PIDE. Ele tranquilizou-me a esse respeito. Tinha confiança no SPM (acrónimo de Serviço Postal Militar) que lidava todos os dias com várias toneladas de papel, a circular pelos diversos territórios ultramarinos.
Por outro lado, e até pelo conhecimento pessoal que ele tinha da PIDE na Guiné, com quem tinha de lidar, a contragosto, na sua qualidade de oficial de informações e operações, ele conhecia relativamente bem os pontos fortes e fracos daquela polícia, a começar pela sua estrutura e a organização…
Os recursos humanos, dizia-me, deixavam muito a desejar: fracas habilitações literárias, baixo nível cultural, insuficiente conhecimento de línguas estrangeiras (a começar pelo francês e o inglês), iliteracia política… "Até o português escrevem mal e porcamente!"...
Por outro lado, havia alguma rivalidade e até desconfiança em relação ao exército…(e vice-versa). “Os gajos eram uns cepos, eram capazes de desconfiar de uma inofensiva bíblia protestante mas passavam por cima de um livro do Franz Fanon, que era dinamite” – afiançava o meu amigo.
Cepos ?... "Só não eram maus a torturar, a arrancar informações dos pobres diabos que a gente, o exército, lhes entregava, para eles fazerem o trabalho, sujo, que lhes competia... Felizmente, que o meu pelotão de informações e operações não foi treinado para torturar e eu, por mim, nunca tolerei essas práticas", garantiu-me o Doc (a quem um dia perguntei que raio de especialidade era aquela que lhe haviam dado).
Cepos ou não, eu é que não ia na conversa do Doc: com os meus verdes anos, e com os medos que alguns amigos, no liceu, me haviam metido na cabeça, achava que a PIDE era como Deus, omnipotente, omnisciente e omnipresente. Pelo sim, pelo não, não fosse o diabo tecê-las, era melhor pôr a salvo a correspondência do Doc, para mais sabendo que ele tivera “chatices” na Universidade e, depois, na Guiné.
Sabia que o meu avô, materno, era da “situação”… Era um bom homem, ia à missa, raramente discutia política, e muito menos comigo… Não gostava do Salazar, é verdade, mas tolerava-o. Encolhia os ombros e, às vezes, desabafava com os filhos e netos, quando jantávamos lá em casa:
− Meus filhos, hoje o Salazar, amanhã, quem sabe, talvez pior, o diabo em figura de gente…
O meu avô, coitado, era dos que acreditavam que o Salazar é que nos tinha livrado da guerra, com a ajuda da Nossa Senhora de Fátima… Um seu irmão mais novo, que eu nunca cheguei a conhecer, tinha sido expedicionário nos Açores, durante a II Guerra Mundial, e tinha regressado a casa, “são e salvo"..., para morrer, afinal, uns anos depois, de "doença do peito", de tísica, de tuberculose... Falava-me que tinha tido muito medo, por causa do irmão, dos submarinos alemães que infestavam o Atântico Norte… e que chegavam a Cabo Verde.
De resto, tinha a sua tertúlia, os seus amigos, os seus petiscos. Mais importante: o meu avô tinha uma adega, a que chamavam a “adega do povo”, aberta a todos os amigos e vizinhos, embora já fora da cidade… Na adega também tinha o seu escritório e o seu arquivo.
O meu avô estava acima de todas as suspeitas. Era um homem respeitado e respeitável, guarda-livros de profissão, conhecia os “podres” das várias famílias importantes da terra… Razão por que todos o estimavam (e temiam), pondo as mãos no lume por ele. Em contrapartida, podiam contar com o seu “silêncio de ouro”.
Eu gostava muito dele, tinha bonomia e bom humor, nunca se chateava comigo. Dizia-me na brincadeira que era ele, o guarda-livros, quem tinha uma das três chaves do céu…
− Então?... E as outras duas, avô ?
− Tem-nas o padre e o médico!...
A pior desgraça que podia acontecer a um guarda-livros era ser despedido (e, nalguns casos, preso) por abuso de confiança:
− Tens a chave mas não podes abrir a porta… E houve casos, meu filho (tratava-me por filho) de gente, nesta profissão, que não soube qual era o seu lugar, na ordem natural das coisas… Olha, um matou-se, o outro foi parar à prisão…
6. O Doc nunca me deixou publicar nenhuma notícia,
a seu respeito, no jornal, um quinzenário,
onde eu trabalhava, como estagiário
e, em boa verdade, como “pau para toda a obra”,
desde paquete a repórter, embora ainda sem cartão
de jornalista. Tínhamos uma secção,
“Correio dos Heróis do Ultramar”,
onde publicávamos notícias dos filhos da terra
a cumprir “missões de soberania” além-mar.
O jornal, regionalista, tinha uma orientação editorial que não se coadunava, de todo, com as ideias (políticas, estéticas, éticas e culturais) do meu amigo que, de resto, era conhecido na cidade como filho de um oposicionista, e já teria, ele próprio, ficha na PIDE (o que, em boa verdade, nunca foi confirmado pelo próprio, não sabendo eu se ele alguma vez tivera tempo e pachorra para confirmar essa suspeita na Torre do Tombo).
O Doc estava a estudar em Coimbra, na faculdade de medicina, quando foi inesperadamente chamado para a tropa. Na secretaria, explicaram-lhe secamente que, tendo chumbado a uma cadeira, deixava automaticamente de beneficiar do privilégio do adiamento da incorporação militar… Nunca se chegou a apurar a verdade relativamente à suspeita de ter sido a PIDE a despoletar a questão na reitoria ou na direção da faculdade.
Preciso, entretanto, de acrescentar algo mais sobre o jornal onde eu trabalhava (e que foi, de resto, o meu primeiro emprego).
O “meu” jornal estava ligado a uma família local, política, social e economicamente influente. O proprietário era o presidente do Grémio do Comércio.
A filha mais velha, por sinal minha catequista, casara com um “jovem e promissor advogado” que viera de Coimbra, no princípio dos anos 50, e que aqui se fixara.
A minha terra sempre acolheu bem “os de fora”. De imediato, esse advogado foi admitido no “seleto clube local” e aí não levou tempo a perceber quem poderia ser a sua futura clientela e, mais do que isso, quem eram as meninas casadoiras… Era ali que estava a elite local, aquela que tinha património, estatuto, influência, charme, poder e... algum dinheiro.
Ora um dos seus primeiros clientes foi justamente a empresa do futuro sogro, grande (para a época) armazenista de vinhos que exportava para África, e proprietário urbano, “dono de uma rua inteira da cidade” (como se dizia, não sem exagero).
Numa altura em que ainda não havia agências bancárias na província, e com os negócios a prosperar durante a II Guerra Mundial e no pós-guerra, o “Tio Patinhas” (como a gente lhe chamava, nas costas…), era o “banqueiro do povo”, emprestando dinheiro a taxas de juro, usurárias, dizia a má língua do povo. E também se acrescentava que ele fizera fortuna na II Guerra Mundial com os refugiados que se instalaram na nossa costa (Lisboa, Cascais, Ericeira, Figueira da Foz, Espinho, etc.), aguardando um visto para as Américas.
Também dizia a “santa inquisição local” que ele tinha costela de... “cristão novo”. O que toda a gente sabia, isso sim, é que ele tinha duas filhas casadoiras, que estavam à espera dos seus príncipes encantados. E esses só poderiam vir de fora. Uma, a mais velha, a minha catequista, como disse, irá casar com o “jovem e promissor advogado de Coimbra”; a mais nova irá dar o nó com um médico, também coimbrão, que igualmente se fixara na nossa terra.
O meu futuro patrão, o advogado, teve, como uma das prendas de casamento a direção do jornal (a menos valiosa, materialmente falando, mas nem por isso despicienda para o seu projeto de promoção pessoal, profissional e até polílica).
Na realidade, era um "jornaleco", um "pasquim" (como lhe chamava o Doc), que todavia se irá tornar, mais tarde, no consulado marcelista, num influente semanário regionalista com algum prestígio, audiência e até qualidade.
Dentro de todos os condicionalismos da época (censura, autocensura, ausência de formação profissional e de regras de deontologia, não dissociação da propriedade e da direção, etc.) foi para mim a minha escola de jornalismo e de escrita, muito embora o Doc andasse sempre a gozar comigo por causa do meu “jornaleco”… Penso que ele não gostava sobretudo da pessoa do diretor…
Tínhamos uma diferença de quase trinta anos, eu e o meu diretor, a quem, confesso, devo alguns favores. Numa conversa franca, “cara a cara”, que tive com ele, diretor, na redação, no dia em que o Marcelo Caetano substitui o Salazar no Governo, ele fez questão de desvendar alguma coisa sobre a sua algo obscura vida coimbrã…
Vivia numa república de estudantes, envolvendo-se na política, no MUD Juvenil, o movimento juvenil democrático, constituído em 1945, no rescaldo da guerra…
− Paixões da juventude, coisas de garotos, que às vezes têm um preço alto – comentou ele, de um modo algo enigmático.
Como diretor do jornal, gostava de acarinhar os “jovens literatos” da terra, onde me incluía, gente que tinha saído do liceu, uns, poucos, que haviam entrado na universidade, outros, como eu, que esperavam a “sorte grande” da tropa…
Ele próprio me confessara que em Coimbra publicara um livro de poemas, de “qualidade sofrível” (sic), na linha estética da revista "Vértice" (ou seja, do neorrealismo, acrescentei eu, com alguma ousadia).
Admirava agora os jovens, da geração 60, que estavam a aparecer, e que tinham até mais talento do que a sua geração… Para esses havia um cantinho no jornal, uma página juvenil… onde poderiam escrever, “sempre era uma melhor alternativa do que andar por aí a dar cabo da vida e da saúde, e a comprometer o seu futuro, em antros imorais e quiçá subversivos" (sic)...
Percebi o seu "recado" (que, no meu caso, visava "más companhias" como o meu amigo Doc)... Mas só mais tarde é que eu vim a contextualizar toda esta conversa "de pai, mais do que de patrão": tinha como pano de fundo uma campanha que alguns “estado-novistas” estavam a fazer para refrescar as velhas e bolorentas fileiras da União Nacional, de que o proprietário do jornal era um histórico na região…