sábado, 28 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21590: Em busca de... (309): Camaradas e amigos do ex-fur mil cav Paulo Victorino da Costa Gomes de Pinho, EREC 2641 (Bula, 1970/72) (Ana Pinho, filha)


Foto nº 1 > Guiné > Região de Cacheu > Bula > EREC 2641 > Natal de 1970 >  O  fur mil cav Paulo Victorino da Costa Gomes de Pinho é o segundo a contar da esquerda, assinalado com um rectângulo a amarelo.  Foto cedida pelo Leonel Olhero [, ex-Fur Mil Cav do Esq Rec 3432 (Panhard), Bula, 1971/73], também membro da nossa Tabanca Grande.



Foto nº 2 > Guiné > Região de Cacheu > Bula > EREC 2641 > O fur mil cav   Paulo Victorino da Costa Gomes de Pinho, chefe de carro de AML Panhard, e comandante de secção de atiradores exploradores



Foto nº 3 > Guiné > Região de Cacheu > Bula > EREC 2641 > O  Valdemar Cardoso camarada e amigo do fur cav  fur cav Paulo Victorino da Costa Gomes de Pinho. Alguém saberá do seu paradeiro ?







Fotocópia do louvor dado pelo comandante do EREC 2641 (B ula, 1970/72), cap  cav  Rúben de Almeida Mendes Domingues, ao  fur cav Paulo Victorino da Costa Gomes de Pinho. Bula, 24 de maio de 1972. No canto inferior esquerdo, o capitão escreveu o seguinte, à mão: "Com um abraço de muita estima e consideração votos de sinceras felicidades do que teve a honra de o comandar"


Fotos (e legendas): © Ana Pinho (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complememtar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem do José Ramos, editor do blogue Panhard Esquadrão de Bula, e membro da  nossa Tabanca Grande [, foto atual à direita]:

Data - 28 nov 2020 13:56 (há 3 horas)
 

Boa tarde, Luís,

respondendo ao teu apelo e da Ana (*), deixo-vos aqui algumas informações que, caso a Ana possa fornecer mais elementos do pai, como aliás sugeres, talvez possam ir mais longe, embora sempre condicionados pelo tempo que já passou.

Passando a responder. O ERec 2641-2ª Fase foi a que fomos render. Esta segunda fase esteve em sobreposição com o ERec 3432-1ª Fase, pelo que o pai da Ana pode, eventualmente, ser reconhecido por camaradas dessa fase do meu esquadrão. Eu ainda estive algumas semanas com eles, mas não tenho qualquer lembrança do nome.

Nas fotos que vejo no teu blogue identifico as seguintes, mas nenhuma corresponde à minha fase:

n.º 6  > vista da caserna dos praças

n.º 8 >  Fur Crayon Gonçalves (ERec 3432-1.ª Fase)

n.º 10  > Fur Gomes (ERec 3432-1.ª Fase)

No meu blogue tenho fotos de Encontros realizados ao longo dos anos onde estão muitos elementos dessa primeira fase e em função de novas informações poderemos tentar outras abordagens.

Pode também a Ana consultar o blogue https://bula-e-rec-aml-2454.webnode.pt/#! que menciona o ERec 2641. Eu já dei uma vista de olhos, mas não encontrei referência ao nome do pai. Outra hipótese para poder ter mais elementos será a consulta da história da unidade: Caixa n.º 85-2.ª Div/4.ª Sec do AHM (Arquivo Histórico Militar) .

Por último deixo igualmente uma palavra de apreço ao gesto da Ana. Pena que não seja seguido por outros descendentes de quem tem que viver com mágoa dos tempos em que deveria ter podido viver apenas os sonhos de juventude.

Dá notícias. Saúde. Abraço.

José Ramos

2. Mensagem da Ana Pinho, filha do nosso camarada Paulo Victorino da Costa Gomes de Pinho:

Data - 28 nov 2020 15:07 (há 2 horas)



 Luís Graça e José Ramos:


Boa tarde aos dois,

Primeiramente gostava de agradecer pela vossa ajuda (*) e desculpar-me se errar em algum termo técnico, pois sou leiga em matéria de  assuntos militares.

Não consegui encontrar a caderneta militar do meu pai. No entanto, envio em anexo este documento que prova que ele foi furriel.[Fotocópia de louvor, acima reproduzida].

O meu pai é de São João da Madeira e vive atualmente em Fornos, Santa Maria da Feira. Nunca foi a nenhum convívio, pelo que percebi.

O "operador de transmissões" a que se refere [no poste anterior desta série  é o meu pai dentro da Panhard [. Vd. Foto nº 2, acima]

O meu pai é o segundo a contar da esquerda.[Vd. Foto nº 1 ,acima]

Já falei com ele e ele lembra-se do meu pai e ajudou-me a identificar o senhor da foto em Anexo. Chama-se Valdemar Cardoso [, Foto nº 3, vd. acima] e o meu pai tem muitas fotografias dele. Durante anos tentei adivinhar o nome mas nunca consegui.

Vou tentar digitalizar o resto das fotografias. Estão todas em bom estado porque o meu pai sempre gostou muito de fotografia e estimou-as bem.

Obrigada mais uma vez,
Ana

3. Ficha de unidade >  Esquadrão de Reconhecimento nº 2641

Identificação ERec 2641

Unidade Mob: RC 7 - Lisboa

Crndt: Cap Cav António Manuel Pinto Ferreira Gomes | Cap Cav Rúben de Almeida Mendes Domingues

Partida: Embarque em 15Nov69 (l ª fase) e 08Ago70 (2ª fase); desembarque em 20Nov69 (1ª fase) e 17Ago70 (2ª fase)

Regresso: Embarque em 030ut71 (1ª fase) e 24Jun72 (2ª fase)


Síntese da Actividade Operacional


Em 21Nov69, a 1ª fase seguiu para Bula, a fim de se integrar no ERec 2454, em substituição do PelAML 2024, o qual havia sido considerado a 1ª fase do ERec 2454.

Em 19Ago70, substituíu o ERec 2454, enquadrando então a 1ª fase do antecedente integrada neste, como subunidade de reserva móvel de intervenção do sector, tendo sido colocado em Bula, ficando integrado nas forças do BCav 2868 e depois do BCaç 2928. 

Um pelotão foi destacado para Nhamate, na zona de acção do BCaç 2861 e depois do BCaç 2927 e que, após reformulação dos limites dos sectores, em 01Fev71, passou também à dependência do BCaç 2928.

Após ter destacado, em 300ut70, um pelotão para Mansabá em reforço do BCaç 2885 e depois do COP 6, foi colocado, em 22Nov70, em Mansabá, em reforço do COP 6, a fim de colaborar na segurança e protecção dos trabalhos da estrada Mansabá-Farim e das colunas de transporte de materiais, mantendo opelotão de Nhamate e ficando outro pelotão em Bula.

Em 25Abr71, regressou a Bula, voltando à dependência do BCaç 2928. 

A partir de 09Abr71, cedeu, entretanto, um pelotão ao CAOP 1, o qual se instalou em Bachile para execução de patrulhamentos e escoltas a colunas de reabastecimento e para colaborar na segurança e protecção dos trabalhos de asfaltagem da estrada Bachile-Cacheu, até 22Fev72.

A partir de 07Set71, integrou nos seus efectivos a 1ª fase do ERec 3432, então chegado para rendição da lª fase da subunidade. Em 16Mai72, destacou um pelotão para reforço do BCaç 3832, o qual se instalou em Mansoa e, temporariamente, em Jugudul.

 Em 18Jun72, foi substituído pelo ERec 3432, tendo recolhido seguidamente a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações: Tem História da Unidade (Caixa nº 87 - 2.a Div/d." Sec, do AHM).

Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas de unidade: Tomo II - Guiné - (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002), 558/559.

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Nota do editor: 

(*) Vd. poste anterior da série > 28 de novembro de  2020 > Guiné 61/74 - P21588: Em busca de... (308): Camaradas do meu pai, Paulo Vitorino da Costa Gomes de Pinho, do EREC 2641 (Bula, 1970/72), que infelizmente teve um AVC em 2008 e perdeu a fala (Ana Pinho, filha)

Guiné 61/74 - P21589: Os nossos seres, saberes e lazeres (425): Na RDA, em fevereiro de 1987 (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Agosto de 2020:

Queridos amigos,
A vida é assim, mexemos num dossiê que tem na capa Bruxelas e aparece-nos um caderno com largas dezenas de páginas referentes a uma viagem à República Democrática Alemã, no início de fevereiro de 1987, nem por sombras eu podia adivinhar que dentro em breve, no meu televisor doméstico, eu ia ver manifestações do muro, este escavacado, os berlinenses a passar de um lado para o outro, a queda de um regime sem sangue, seguir-se-á a reunificação, tudo ao contrário do que me era dito pelos anfitriões, aquele socialismo científico parecia fadado à eternidade.
Neste dia, o que me encheu as medidas, foi o Museu de Pérgamo, como é evidente não desgostei do trabalho aprimorado para erguer das cinzas o Bairro Nicolau e creio que um dia irei partir para as estrelinhas sem ter decifrado o que é que as autoridades alemãs orientais esperavam de mim, das suas mensagens políticas, de um acolhimento bem amável e de um programa cultural inexcedível. Foi assim, limito-me a transcrever dados essenciais de um caderno, continuo intrigado, na primeira página escrevi que no domingo vou ser recebido por um arquiteto em Potsdam, o Sr. Globisch, isto deve ser uma questão da idade, lembro-me de Potsdam, se acaso me encontrei com o Sr. Globisch, já está tudo na nuvem.

Um abraço do
Mário


Na RDA, em fevereiro de 1987 (5)

Mário Beja Santos

Saímos junto da Catedral de Berlim, tenho à minha direita a fachada da Galeria Nacional, atravessamos uma ponte com motivos escultóricos altamente militaristas, avançamos para a ilha dos museus. O prato-forte deste espaço museológico é o chamado Museu de Pérgamo, é o monumento mais valioso e procurado que ali se alberga. Para surpresa de Petra Petersen, depois de ver o desdobrável do museu e a localização dos espaços, e da manifesta ênfase dada às peças mais procuradas, peço para ir ao terceiro andar ver as fotografias de toda a aventura arqueológica alemã no Próximo Oriente, no território turco, inclusive nas ilhas da Ásia Menor. As expedições arqueológicas alemãs não eram inocentes. A política de Berlim era favorável a alianças sólidas com o império turco-otomano, pretendia-se acesso ao Mediterrâneo Oriental, às matérias-primas, sonhava-se com o caminho-de-ferro Berlim-Bagdade. Apostou-se forte na arqueologia, ali estava um acervo fotográfico a mostrar escavações e o fulgor dos seus resultados. Os turcos desprezavam os gregos, os seus monumentos estavam sempre prontos para vender. E não houve qualquer dificuldade na compra do Altar de Pérgamo nem nas fabulosas Portas de Istar, um dos monumentos mais impressionantes de uma civilização perdida.
Descemos ao museu e os deslumbramentos sucedem-se, a fachada do Mercado de Mileto impressiona pela dimensão, pela harmonia das proporções, por nos deixar supor a elevação desta cultura. Como tinha pedido antecipadamente em Lisboa para visitar o Altar de Pérgamo, por ali movimentei entre aquelas lutas mitológicas de gigantes, nada tinha visto nem nada verei ao longo da vida que provoque tão grande impressão, é uma organização única do aparato escultórico, tudo agenciado para que aquela obra-prima feita de pedra, mesmo com lacunas, nos deixe em estado de choque. E depois Babilónia, perguntei-me qual o grau de conservação e restauro para que aquele cromatismo quase faiscante parece ter sido feito ontem.
Foram muitas emoções no dia de hoje, irei esta noite à Ópera de Berlim, na Unter den Linden, ver o bailado clássico Ondina, interpretações inolvidáveis e a surpresa da música de Hans Werner Henze, numa boa interpretação orquestral. Está previsto um dia em cheio, logo de manhã de novo no Bairro Nicolau, o arquiteto Viktor Schlichte não me deixa regressar a Lisboa sem eu saber perfeitamente o que fez e como fez, a partir das cinzas. A última recordação que ainda conservo é que quando saí da Ópera fui até à porta de Bradenburgo, antes de entrar no espetáculo ainda contemplei a bela peça que é a escultura de Frederico da Prússia. Mas a Porta de Bradenburgo enche-me de lembranças, percorro a Praça de Paris, vi inúmeras fotografias desta Berlim reduzida a escombros, ali perto, espetral, está o edifício do Parlamento, percorrei a Unter den Linden que tem à sua esquerda edifícios mastodônticos, como a Embaixada da União Soviética, fico ali a contemplar a fronteira da Guerra Fria, aquela porta que escapou às bombas, e mostra triunfante a quadriga da Vitória.
Porta do Mercado de Mileto, 165 d.C.
Altar de Pérgamo
Porta de Istar, Babilónia

Vou pelo meu próprio pé até à igreja românica do Bairro Nicolau, o arquiteto não me dá tréguas, conta como fez uma ligação entre aquele bairro, a área da Câmara Municipal, como organizou toda aquela arquitetura que consegue ligar harmonicamente o passado ou o presente, com o Spree ali ao lado. Estudou a fundo a história da velha basílica românica que está em estreita ligação com a fundação de Berlim, é uma “igreja-salão”. Num trabalho de reedificação aproveitaram-se fotografias de um arquivo da Prússia. O discurso deste arquiteto entusiasta dirige-se agora para a construção do bairro, como aproveitou o que terá sido um tribunal medieval, como se reconstruiu um palácio rococó. Na zona do bairro havia o restaurante mais velho de Berlim, que foi destruído durante um bombardeamento de 1943. Já saímos da igreja do Bairro Nicolau e andamos à volta do casario, 850 apartamentos, restaurantes, lojas de todo o tipo, salas de exposições e galerias de arte. Para a sua contextualização urbanística o arquiteto pôde contar com estátuas que estavam depositadas em museus, ferros forjados, inúmeros indícios do passado ficaram cravados nesta nova urbanização. A brincar, tínhamos começado às oito e meia da manhã, aproximávamo-nos das onze horas, ia ser de novo recebido no Ministério dos Negócios Estrangeiros, e por alguém que eu já conhecia, o embaixador Vogel. Guardo no meu bloco de notas a conversa havida a meio da manhã de 6 de fevereiro de 1987. Eu não suspeitava mas ia receber informação sobre os apoios da RDA aos povos africanos, infelizmente não é o apoio que o Governo da RDA desejava, havia o condicionalismo da corrida aos armamentos. E fiquei a saber que os países do Tratado de Varsóvia apresentaram no início de 1986 um programa detalhado para a retoma da confiança e transferência de meios para os países subdesenvolvidos. E a lição continuou, a URSS não realiza há ano e meio um só teste nuclear, na expetativa de que os EUA aceitem a moratória nuclear, fico a saber que não aceitaram, fizeram entretanto vinte testes nucleares, querem forçar a URSS a gastar fortunas na corrida aos armamentos. E há a aposta na desestabilização, é o caso de Angola, de que as tropas cubanas são o obstáculo principal para a independência da Namíbia. Voltamos às questões africanas, limito-me a ouvir. A diplomacia portuguesa devia contribuir para que não houvesse ingerências nestes novos países independentes. Os fogos de guerra civil em Moçambique depauperam os recursos do país, os rebeldes matam os cooperantes. A RDA ajuda as organizações das mulheres comunistas, promove também a cooperação na saúde, no desporto e no comércio externo, formam os quadros africanos, a RDA construiu um complexo industrial têxtil em Moçambique, o seu custo foi suportado por um comité de solidariedade. Uma granja agrícola na região do Niassa foi destruída pela Renamo. A RDA foi forçada a retirar os seus especialistas do complexo têxtil de Mocuba. A RDA gostaria de colaborar conjuntamente com Portugal no desenvolvimento económico de Moçambique.
Findou a sessão, o embaixador despediu-se, é hora do almoço, Petra avisa-me que durante a tarde haverá nova sessão informativa, no mesmo local, e depois uma surpresa cultural. Suspiro, resignado mas Petra alegra-me, eu pedira-lhe para comer uma chucrute tradicional, com mostarda forte.
Igreja românica do Bairro Nicolau, Berlim
Estátua de Frederico, O Grande, da Prússia, Unter den Linden
Edifício da Ópera da Berlim RDA, tal como a conheci na viagem de 1987
Cartaz do bailado clássico Ondina, música de Hans Werner Henze
Porta de Brandeburgo, Berlim
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21565: Os nossos seres, saberes e lazeres (424): Na RDA, em fevereiro de 1987 (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21588: Em busca de... (308): Camaradas do meu pai, Paulo Vitorino da Costa Gomes de Pinho, do EREC 2641 (Bula, 1970/72), que infelizmente teve um AVC em 2008 e perdeu a fala (Ana Pinho, filha)



Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4



Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 8


Foto nº 9



Foto nº 10


Foto nº 11

Fotos, s/d, s/l, do álbum do camarada Paulo Vitorino da Costa Gomes de Pinho, EREC 2641 (Bula, 1970/72)

Foto (e legenda): © Ana Pinho(2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem de Ana Pinho, filha de Paulo Vitorino da Costa Gomes de Pinho, EREC 2641 (Bula, 1970/72)

Data - domingo, 22/11, 14:47 
Assunto - Bula, EREC 2641



 
Boa tarde,

O meu nome é Ana Pinho e o meu pai, Paulo Vitorino da Costa Gomes de Pinho, fez parte do Esquadrão de Reconhecimento [EREC] 2641. Trouxe com ele montes de fotografias que acho que deviam de ser partilhadas.

Neste momento o meu pai já não está nos seus melhores dias e deixou de falar desde 2008. (Teve um AVC que lhe provocou a perda da fala.) Portanto, é muito difícil identificar as pessoas nas fotografias. Mas sei que ele gostaria de saber o paradeiro dos seus colegas.

Deixo aqui algumas provas. Se achar que é de seu interesse, tenho todo o gosto em digitalizá-las a todas.
O meu pai é o que se encontra dentro da Panhard [Foto nº 1].

Obrigada e fico a aguardar resposta,
Ana Pinho

2. Comentário do editor Luís Graça:

Ana, obrigado pelo seu contacto. Deixe-me que lhe diga que acho bonito o seu gesto, e mais do que isso: é um acto de grande ternura, e de amor filial. E vamos tentar ajudá-la... "porque os filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são".

É uma situação dura, ter um pai, a sofrer as sequelas de um AVC, há 12 anos, e se calhar a pior das quais é não poder falar... Mas espero que ele possa comunicar consigo de outras maneiras, por exemplo, pelo gesto, pela escrita, ou não ? E espero também que ela possa manifestar alguma forma de regozijp por ver publicadas, no Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, estas fotos que a Ana nos mandou, na esperança de poder encontrar ainda, vivos, camaradas dele, do EREC 2641 (**).

Infelizmente só temos, até agora, 1 referência ao EREC 2641 (Bula, 1970/72). Mas temos mais (uma dezena)  sobre o EREC 3432 (Bula, 1972/74) que foi substituir (ou render) a subunidade a que pertencia o seu pai. 

Temos inclusive, como membro da nossa Tabanca Grande, um camarada, do EREC 3432, que tem um blogue justamente dedicado a Bula e ao Esquadrões de Reconhecimento Panhard (, além de uma página no Facebook). Pode ser que ele nos ajude a legendar as fotos que a Ana nos mandou, sem legendas, e que nós procurámos recuperar e reeditar. [Vd. fotos acima, numeradas de 1 a 11].

O camarada que eu refiro é o José Ramos, ex-1º cabo cav, condutor de Panhard, do EREC 3432, que esteve em Bula, de 1972 a 1974. É possível até que tenha conhecido e convivido, mesmo que por pouco tempo, com o seu pai. Mas já se passou meio século, é muito tempo...

A Ana não nos  disse qual era posto e a especialidade do seu pai. Esses elementos devem constar da sua caderneta militar... Também não nos disse o pai mora, se alguma vez foi a algum convívio anual do pessoal do EREC 2641, etc. 

Por outro lado, é importante que nos diga em que fotos aparece o seu pai, para além da foto nº 1 (em que é impossível reconhecê-lo). 

Na foto nº 7, aparece um operador de transmissões. Na foto nº 2, há um condutor, de óculos escuros, rodeado de miúdos (presume-se que sejam de Bula, a localidade onde o EREC 2461 estava aquartelado). 

As outras fotos são de grupo (nºs 3 e 4) ou individuais, podendo ser também de camaradas e amigos do seu pai (nºs 8, 9, 10, 11)... Todavia, as fotos nº 8, 9 e 11 parecem-me ser do seu pai  (na nº 9, talvez já depois do regresso, há uma cadeirinha de bebé, atrás dele,  sem bigode...).

A Foto nº 5 é de Mansabá, e já foi por nós publicada (*). Um dos nossos coeditores, o Carlos Vinhal, estava lá e conta-nos como foi esse ataque ao aquartelamento de Mansabá,em 12 de novembro de 1970. Não sabemos como essa foto foi parar ao álbum do seu pai, já que se trata de uma região (Oio) diferente daquela onde o seu pai prestou serviço (região do Cacheu: vd. aqui a carta de Bula].

Vamos fazer um apelo aos camaradas que passaram por Bula, dos diferentes EREC, e sobretudo aos camaradas do seu pai, do EREC 2461 (1970/72). Pode ser que nos leiam e nos ajudem a legendar as fotos.

Em relação à possibilidade de nos mandar mais fotos do álbum do seu pai, teremos que trocar mais mails (ou falarmos por telemóvel) para ver: (i) a quantidade; (ii)  a qualidade; (iii) o estado em que estão; (iv) se estão emolduradas ou coladas no álbum; (v) o seu interesse documental (, por exemplo, fotos de grupo, de viaturas, de instalações, de lugares, de colunas e operações, etc.) 

Para já publicamos estas, que são uma amostra, e que vieram sem legendas.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1091: Memórias de Mansabá (5): O terrível ataque ao aquartelamento em 12 de Novembro de 1970 (Carlos Vinhal)

(**) Último poste da série > 14 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21448: Em busca de... (307): Camaradas do Celestino Augusto Patrício Madeira, ex-fur mil, CCAÇ 2316 / BCAÇ 2835 (Bissau, Mejo, Gandembel, Guileje, Gadamael, Ganturé, 1968/69) (Rui Pedro Madeira e Silva, neto)

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21587: Bombolom XXVIII (Paulo Salgado): Saudação e participação

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor dos livros, "Milando ou Andanças por África", "Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier", com data de 25 de Novembro de 2020:

Meu Caro Luís Graça,
Meus Caros Coeditores,



O meu Bombolom

Era devida a lembrança do Padre Macedo. Ocorreu-me trazer esta memória ao nosso Blogue na sequência do que foi escrito acerca de clérigos que serviram na Guiné. E já após a independência. Devo trazer a terreiro que pude consultar várias obras que abordam a presença em Cabo Verde e Costa Africana até ao Golfo da Guiné de clérigos ao longo dos séculos. Aliás, ficcionei, numa das minhas "Crónicas de Guiné – Crónicas de Guerra e Amor" – a existência simultaneamente atribulada e feliz do Frei Cipriano, que, em Cacheu, se introduziu na população, e converteu, e penou… Agradeço a fotografia que encima o meu texto sobre o grande Padre Macedo.[1]

Em tempo de pandemia, procuro estar atento ao que se passa, e ler, ler, e escrever. Ajuda a combater este bitcho carêto que nos faz emburacar e isolar…
Escrevi "A Revolta dos Animais" – um livro que se dirige aos jovens e não apenas. Nele procurei colocar os animais (seus representantes por eles escolhidos) a dialogar entre si e com os deuses gregos, reunidos na Acrópole. Para, de seguida, de forma ordeira mas firme, se dirigirem à ONU para apresentar as suas reivindicações… Mais não digo.
A capa e contracapa do livro vai junto (ver anexo). O livro tem a apresentação de Tiago Rodrigues (Director do Teatro Nacional D. Maria II), meu Amigo e filho de um grande meu Amigo, o Rogério Rodrigues (ver abaixo). E tem a ilustração pro bono da grande pintora Josete Fernandes, natural de Cedães, Mirandela, onde vive e tem o seu ateliê, e onde é possível apreciar a sua riquíssima e vastíssima obra.
Ofereci o livro à Câmara Municipal de Torre de Moncorvo, minha Terra. O objectivo é distribuí-lo pelos jovens do Agrupamento de Escolas Dr. Ramiro Salgado.
Quero registar outra iniciativa: a minha mulher, a Maria da Conceição, atreveu-se a fazer a fotobiografia da presença do seu soldadinho na Guiné – anos de 70-72. Para os meus netos saberem o que foi a guerra colonial e como o avô a passou, e como tanta gente sofreu, lá e cá, durante treze anos. Não é tempo para esquecer, como não se esquecem as invasões francesas, as guerras mundiais, os descobrimentos…o bom e o mau…

Outras iniciativas estão na calha. Delas falarei mais tarde.

Aproveito para dar os parabéns aos magníficos textos dos camaradas escreventes neste Blogue. Recordo, sem esquecer outros, o Hélder, o Beja Santos, os poetas, o José Martins, o Abel Santos.

Aos bloguistas e seus Familiares, desejo saúde e resiliência (lá, na guerra colonial, utilizávamos a expressão resistência…).

Um abraço.
A partir de Torre de Moncorvo.
Paulo Salgado
25.11.2020

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Notas do editor:

[1] . Vd poste de 24 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21579: (In)citações (172): Frei Francisco Macedo (1924-2006), um madeirense, homem de Igreja e de Cultura, profundamente ligado à história contemporânea da Guiné-Bissau (Paulo Salgado, ex-alf mil op esp, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72)

Último poste da série de 23 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21475: Bombolom XXVII (Paulo Salgado): Drogas na Guerra Colonial - Um comentário e uma história

Guiné 61/74 - P21586: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (28): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Annette Cantinaux está enternecida com o seu primeiro Natal português, desabafa com um amigo de longa data, há perto de 30 anos que percorrem os países da Comunidade Europeia como intérpretes, sente-se radiante pelo acolhimento do seu adorado, a família acolheu-a de braços abertos, já passou o Natal e há reuniões já previstas com os filhos, voltarão todos a estar juntos no que eles chamam o Ano Bom. E nessa intimidade familiar entrou uma confissão de um Natal vivido em Missirá, o mais inesquecível dos Natais, a mais iluminada das festas, pela congregação das recordações de origem, pelos alimentos que traçam união entre os portugueses, e por se ter oferecido um tanto de alegria àquele povo que apreciou canja de galinha, que até meteu hortelã, imagine-se, cabrito assado bem passado pelo alho, houve que lamentar não se ter posto um pouco de vinho, não faltou louro e boa pimenta, arroz-doce preparado com leite enlatado, e algumas iguarias que sobraram da Consoada, onde houve devaneios com boa pinga.
Annette está feliz, sente-se em casa ao lado do seu adorado, mas regressa dentro de dias à rotina profissional, e tem os filhos à espera, precisam do seu afeto e da sua ajuda pecuniária. Sofre com a partida, mas tem que ser, há sempre que ganhar balanço para superar este novelo da ausência, e num horizonte que mete talvez dez anos. Serão os dois capaz de viver assim? E como ela agora sofre, já que abandonou o estatuto de mulher só... E vem agora um período dolorosissimo das agruras trazidas pela guerra.
Vamos contá-las.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (28): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Carta de Annette Cantinaux para Julien Beuys, de profissão intérprete, natural do Luxemburgo, seu amigo desde o início da carreira profissional de ambos, há perto de 30 anos, datada de Lisboa, 28 de dezembro:

Très cher Julien,
Espero que tenhas tido um Natal cheio de alegrias na companhia da Yvonne, filhos e noras. Aqui me tens a dar-te algumas notícias do meu primeiro Natal português. O Paulo dá uma enorme importância ao jantar e à Consoada, o jantar é típico, imagina que comem bacalhau cozido, batatas e couves, primeiro uma canja de galinha, e depois do prato principal aparecem os doces, alguns deles muito próximos da nossa confeitaria natalícia. Janta-se e o convívio prolonga-se até à meia-noite, recomeça a festa, sabes muito bem que celebramos de outra maneira. Vieram os filhos, foram adoráveis comigo, senti que todos estavam a fazer o possível para haver aproximação, o Paulo insistia que ninguém saía da mesa, era ele que servia, tinha a felicidade estampada no rosto.
Findo o jantar, houve arranjos na mesa, e viemos para a sala, aqui refastelados pude falar de mim, do meu trabalho, da minha itinerância. E foi numa amena troca de explicações sobre o Natal belga que o Paulo procurou justificar aqueles doces que são próprios das festividades natalícias portuguesas, eu já o tinha questionado sobre as broas de milho, confeito que desconhecia. Ele explicou que conhecera na infância dois tipos de broas, a de milho e a castelar, a primeira era muito procurada pelas pessoas de menores recursos, o milho era então abundante no campesinato, viver da agricultura e das coisas da terra era muito comum, na sua juventude metade da população vivia da agricultura, comia-se muito pão de milho, como igualmente o chamado pão de mistura, campeava a pobreza.

Broas de milho no Natal de Missirá, 1968
Coscorões no Natal de Missirá, 1968
Filhoses, também compareceram no Natal de Missirá, 1968

E já não me recordo como e porquê o Paulo começou a falar com viva emoção do Natal de 1968, ele estava na guerra, vivia a maior parte do tempo numa localidade chamada Missirá, parece que é um nome muito comum nos países muçulmanos, teria sido em Missirá, lá para as Arábias, que nasceu Fátima, a filha do Profeta. Aliás, não nessa noite, mas numa outra ocasião, o Paulo falou nos principais topónimos guineenses, falou de Madina e Medina, e de designações muito comuns onde vivem as etnias islamizadas.Sem nenhuma hesitação, falando desse Natal diante de todos nós, ele declarou que se tratara de um acontecimento intenso, era o seu Natal inesquecível. E contou-nos que em meados de novembro lhe ocorrera escrever para a família e amigos pedindo-lhes para enviar algumas vitualhas, coisas que não pesassem muito, o correio era dispendioso, e referiu as broas, os coscorões, as filhoses e outros doces cujo nome não me recordo, até camaradas que tinham ido passar férias e que obrigatoriamente regressavam à Guiné até 15 de dezembro receberam a incumbência de trazer esses doces.
Houve Consoada, houve bacalhau com batatas, o luxo de vinho tinto engarrafado, a festa decorreu numa instalação hermeticamente fechada, para evitar que, na eventualidade de haver um ataque da guerrilha, a luz os denunciasse. Mas tão importante como a Consoada foi a organização do almoço de Natal para toda a população de Missirá e para os militares, evidentemente. Juntou-se todo o dinheiro disponível, compraram-se cabritos que foram assados no forno de Missirá, com batatas, chamou-se o padeiro e os dois cozinheiros para se fazer uma sopa, uma canja de galinha, encontrou-se as massinhas, havia pão frito, um dos militares lembrou que a canja lá na sua terra tinha cubos de batata, e pediu-se para Lisboa uma porção de hortelã, chegou felizmente a tempo e deu cheirinho ao caldo, feito em dois grandes panelões, foi sopa muito apreciada, houve o cuidado de desfazer os ovos da galinha, a carne toda muito esfiapada, um caldo com gostosos olhos de azeite.

O cabrito acho que estava uma delícia, era indispensável uma grande tachada de arroz, alguém aventou que devia ir ao forno, foi mais trabalho para o padeiro, tudo se comeu, e até houve arroz-doce para a miudagem e para os homens e mulheres de cabelo branco, que o Paulo disse serem as mulheres e os homens grandes.

Outro momento muito importante nesse Natal, e eu senti que nessa narrativa se lhe embargava a voz, o Paulo pediu ao chefe religioso para irem à mesquita rezar a Deus para haver paz nos homens de boa vontade, sugestão que foi imediatamente aceite, a comunidade acolheu-o na mesquita, depois abraçaram-se, o régulo ter-lhe-ia dito então que o considerava membro da família. Aliás, quando em novembro do ano seguinte ele se despediu do povo de Missirá e foi para outro local combater, o régulo disse publicamente que ele era um Soncó e como Soncó competia-lhe nunca esquecer a família, vivesse ele onde vivesse Deus lhe daria a graça de o saber que também pertencia ao Cuor e àquela família.

Bacari Soncó, meu irmão, já régulo do Cuor
A nova Mesquita de Missirá

Ouvimos toda esta exposição em silêncio, havia algo de irreal, todos aqueles episódios pareciam arrancados a uma imaginação fértil, distantes da nossa cultura.
Alguém fez a sugestão de se ligar a televisão, e tempos depois voltámos para a mesa, o Paulo fez chocolate e chá para acompanhar aquelas iguarias, alguém trouxera bolos um tanto parecido com os nossos, com frutas cristalizadas e frutos secos, deram-lhe o nome de bolo-rei e a um outro sem as frutas cristalizadas chamaram-lhe bolo-rainha. A família partiu de madrugada, uma série de prendas ficaram depositadas à volta de um pinheirinho, havia para ali um presépio com toscas figuras de barro, o Paulo prometeu que o almoço estaria pronto aí pelas duas da tarde, como aconteceu.

Sinto-me tão feliz na companhia deste homem, aproveitei esta pausa para te escrever, como sabes iremos trabalhar em Bruxelas no dia 5 de janeiro, creio que a 6 tu partes para Dusseldórfia e eu para Lille, para mim é mais simples, posso sair de casa pelas 7 da manhã, cerca de hora e meia depois estarei no local onde irá decorrer uma conferência.
Feliz mas melancólica, tudo tem corrido da melhor maneira na nossa relação, o Paulo reitera constantemente que não sente obstáculos em vivermos como vivemos à distância, mas acontece que a vida que eu levo em Bruxelas, mesmo com a felicidade de me dar bem com os meus filhos, faz-me sentir muito só, eu já me resignara ao estatuto de mulher só. Tu conheces muito bem a nossa estimada colega, a Nelly Alter, que habita perto de Namur, e que se ocupa muito bem no seu estatuto de mulher só, faz parte de organizações de passeios pedestres, não perde uma exposição, vai aos concertos, viaja, e confessa que já lhe parece impossível admitir pôr alguém lá em casa, ela tem uma idade próxima da nossa, considera inaceitável ter que fazer concessões para viver a dois, sente-se bem assim. Talvez eu tivesse um sentimento parecido com o da Nelly, já me considerava estar pronta para ter umas amizades, saídas em grupo, visitar amigos, etc. E de repente apareceu-me um senhor numa conferência, pediu-me para conversar com ele, tinha a ideia de escrever um romance em que o tema central passaria pela experiência da guerra que ele viveu, encontrara no estrangeiro alguém com quem mantinha uma intensa relação e ele então ia descrevendo cronologicamente toda essa vivência da guerra, e enquanto tudo isto se passava surgiu, como um rasto de luz, a descoberta do amor. E imagina tu, Julien, que quando ele me visitou e descobrimos que havia qualquer coisa de especial na atração recíproca, ele me assegurou que já tinha um título para o livro, como tu sabes moro na Rua do Eclipse, acho que foi fulminante a escolha para o título da obra, porquê não sei, mas que a nossa vida entrou numa nova constelação, não tenho dúvida alguma, mesmo com esta dor que é estar semanas e semanas sem nos vermos, sem nos tocarmos, amar o Paulo foi descobrir que no acaso podemos encontrar, com absoluta naturalidade, o fim da escuridão ou da ilusão de que viver só depende da aceitação.

Peço desculpa pelo atabalhoado desta carta, mete comida de Natal, falei-te de Lisboa e da Guiné, tu és o meu porto seguro para desabafar, dentro de dias o Paulo leva-me ao aeroporto, sei que tudo vai continuar, tenho esperança que um dia será diferente, há que aprender a mitigar a distância e também por isso conto com a tua amizade.
Até breve, em Bruxelas, Annette, a tua amiga do coração.
Missirá flagelada em 22 de dezembro de 1966, imagem enviada por Henrique Matos para o nosso blogue. Vemos o alferes Marchand, então comandante do destacamento
A caminho de uma operação, com uma inalterável boa disposição
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21537: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (27): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P21585: A galeria dos meus heróis (40): O meu amigo Doc - II (e última) parte (Luís Graça)



Lourinhã > Praia da Areia Branca >  14 de agosto de 2020 >  Pôr do sol com uma traineira da pesca da sardinha a regressar ao porto de Peniche.

Foto (e legenda): ©  Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



A galeria dos meus heróis: o meu amigo Doc 
(II e última parte)

por Luís Graça


4. A mãe não conteve o espanto e as lágrimas quando ele, o Doc, 
de rompante, espavorido, lhe entrou pela casa dentro, 
à hora do chá, um hábito colonial 
que o casal mantinha desde Moçambique… 
Com duas malas na mão, uma com a roupa 
e os demais objetos pessoais, e outra com o resto 
dos seus livros, algumas garrafas de uísque, 
mais peças de artesanato africano. 


Eu só soube da sua chegada da Guiné, passados uns dias. A mãe, quando ia à praça do peixe, frutas e legumes, viu-me de relance, na redação do jornal, parou, espreitou, entrou e disse-me:

− Luisinho (também me tratava por Luisinho, como o filho), o teu amigo chegou!... Mas não está nada bem, coitado!... Está há dias ferrado a dormir, fechado no quarto, diz que não quer ver ninguém… Passa por lá, no fim de semana, pode ser que ele, por ti, se queira levantar e falar um pouco… Só lhe fazia bem...

A dona Domitília Meneses era uma santa senhora. Era professora primária, ainda no ativo. Tinha sido minha professora da 4ª classe e do exame de admissão ao liceu. Era moçambicana, de origem goesa, descendente de gente da pequena nobreza local, um dos seus antepassados teria sido vice-rei da Índia em meados do séc. XVIII.

Já o mesmo não se poderia dizer do marido, também ele professor do ensino primário, velho republicano, maçónico, dizia-se. Era mais velho do que ela uns bons vinte anos, e fora aposentado compulsivamente da função pública por ter apoiado a candidatura do general Humberto Delgado à Presidência da República em 1958.

Conhecia-o mal, era um homem amargurado, pouco sociável, para não dizer misantropo… Aliás, confesso que tinha medo dele, ou melhor, não gostava dele. Respeitava-o por ser o pai do meu amigo e o marido da minha querida professora. 

 Na realidade, ele tinha sido  marginalizado,  legalmente pelo poder político central e socialmente  pela elite local. Passando a ser declaradamente um “oposicionista, um indivíduo contra a situação” (sic), deixara de ser convidado para integrar os corpos sociais das diversas associações locais e confrarias de que era sócio ou membro  (a filarmónica, os bombeiros, o clube recreativo, desportivo e cultural, o núcleo local da liga dos combatentes, etc.). Em boa verdade, foi a sua "morte social". Amargurado, foi obrigado a deixar as suas funções de encenador das récitas e cegadas que na época carnavalesca animavam o palco do teatro local bem como as ruas da cidade.

Raramente saía à rua, a não ser em algumas efemérides patrióticas, como o 1º de dezembro de 1640 ou o 5 de outubro de 1910. Ou para ir a Lisboa, consultar vários arquivos públicos. Dedicava-se aos seus livros, era um apaixonado africanista, correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, interessando-se, muito em particular, sobre a história da colonização de Moçambique, no tempo da monarquia constitucional e da I República.

O único ponto em que estava de acordo com a política do Estado Novo era na questão da “defesa intransigente do Ultramar”. Tinha estado na sua juventude em Moçambique, primeiro como expedicionário e depois, mais tarde,  como professor. E alí viria a conhecer a mulher no final dos anos 30. O filho nasceria, na Beira, em 1942. E tivera como ama de leite uma jovem mãe negra. 

Parecidos em muitos aspetos de personalidade, pai e filho, separados por 4 dezenas de anos de diferença,  engalfinhavam-se com frequência em discussões, por vezes violentas, sobre o que se estava a passar nos territórios ultramarinos portugueses (mas também na África Austral do "apartheid").

Tinha ideias, o “Velho”, sobre o futuro desses territórios (“possessões ou colónias, como queiras chamar-lhe”, dizia ele ao filho), defendendo todavia o princípio da autodeterminação progressiva, a par da criação de uma  "Commonwealth" à portuguesa. Era um admirador da colonização britânica.

Apoiava o esforço militar do País, contra o “terrorismo internacional” (sic), mas era crítico em relação à vontade e à capacidade de Salazar de enveredar por uma “solução política” para o problema, nomeadamente em relação a Angola e Moçambique, que eram,  para ele,  as verdadeiras “joias da Coroa”, depois de perdida, “miseravelmente” (sic), a Índia Portuguesa.


5. O meu amigo Doc era, para mim, o irmão mais velho 
que eu nunca tivera, separavam-nos uma meia dúzia de anos.   
Tínhamos  alguns interesses intelectuais em comum, 
a começar pelo teatro, a literatura, a arte 
e, claro, a política. 

Nessa época, poucos jovens da minha idade tinham ainda “consciência política” (como então se dizia), porque só uma minoria tinha acesso a um educação de nível superior e a fontes de informação, independentes e credíveis.  Vivíamos num regime de partido único, não havia opinião pública, os jornais estavam sujeitos à censura, havia a polícia política, a PIDE, e a única televisão de que dispúnhamos, a RTP, era a voz do dono, tal como a Emissora Nacional… Era o tempo dos 3 FFF: Fátima, Futebol e Fado, três coisas que o meu amigo Doc solenemente detestava…

O que é que eu sabia do que se passava em África, no nosso glorioso Império Colonial ? Racismo, colonialismo, trabalho forçado, revoltas nacionalistas… ? Não, nunca ouvira falar...  Só me lembro, na igreja, de pedirem dinheiro ao meu avô, para ajudar as missões católicas, o mesmo era dizer, os “pretinhos da Guiné”...

Eu vivia numa pequena cidade da região centro, onde só os mais afortunados iam estudar para Coimbra (que ficava mais perto do que Lisboa)… A maioria dos jovens da minha geração sabia lá o que se passava em África… Mal sabiam do se passava à sua volta, nos campos e nas fábricas, no mar, nas escolas, nos quartéis, nos hospitais… 

Aliás, o que é que a gente sabia e podia saber ? Só o que "eles" queriam que a gente soubesse..."Saber ler, escrever e contar", acrescentava o meu amigo Doc, "o que não quer dizer... saberes pensar pela tua própria cabeça"...

Além disso, as nossas aldeias, vilas e pequenas cidades do interior começavam a ficar envelhecidas, com a saída dos mais jovens, para o ultramar e a emigração (interna e externa). Muitos dos meus colegas de escola nunca mais os vi. Alguns como eu fixaram-se em Lisboa ou no Porto, onde eram maiores e melhores as oportunidades de emprego. 


6. Enquanto ele, o Doc,  esteve na Guiné, correspondiamo-nos 
regularmente,  duas vezes por mês. Eu guardei 
religiosamente os aerogramas que ele me mandava.
Tinha intenção de os organizar por data e devolvê-los 
ao remetente, logo que ele chegasse, “são e salvo”, 
como eu esperava que ele chegasse.

Quando eu o fui visitar, não me deixou sequer falar dos aerogramas, que naturalmente lhe traziam recordações dolorosas da Guiné, que ele queria extirpar para sempre da memória. A sua resposta, brusca e mal humorada, foi:

− Queima-os, Luisinho, queima-os!
− É um pedido ?
− Não, é uma ordem!

Não lhe fiz a vontade. Devia tê-lo feito ? Continuaram guardados ao meu cuidado. Sempre pensei que ele poderia, com os anos, mudar de opinião. Mas, nunca mais quis falar da Guiné e desses "anos de chumbo" em que esteve na tropa e na guerra,,, (Acabei por entregar os aerogramas à irmã, no dia do seu funeral, e hoje tenho pena de não os ter fotocopiado, limitei-me a copiar alguns excertos. )

Curiosamente ele nunca me escrevia cartas, mas apenas aerogramas, que eram de borla. "Com o dinheiro que poupava nos selos, comprava livros, revistas, peças de artesanato e... uísque", dizia-me ele, a gozar. 

Eu tinha receio que a correspondência, trocada entre nós, pudesse ser intercetada pela PIDE. Ele tranquilizou-me a esse respeito. Tinha confiança no SPM (acrónimo de Serviço Postal Militar) que lidava todos os dias com várias toneladas de papel, a circular pelos diversos territórios ultramarinos. 

Por outro lado, e até pelo conhecimento pessoal que ele tinha da PIDE na Guiné, com quem tinha de lidar, a contragosto, na sua qualidade de oficial de informações e operações, ele conhecia relativamente bem os pontos fortes e fracos daquela polícia, a começar pela sua estrutura e a organização… 

Os recursos humanos, dizia-me,  deixavam muito a desejar: fracas habilitações literárias, baixo nível cultural, insuficiente conhecimento de línguas estrangeiras (a começar pelo francês e o inglês), iliteracia política… "Até o português escrevem mal e porcamente!"... 

Por outro lado, havia alguma rivalidade e até desconfiança em relação ao exército…(e vice-versa). “Os gajos eram uns cepos, eram capazes de desconfiar de uma inofensiva bíblia protestante mas passavam por cima de um livro do Franz Fanon, que era dinamite” – afiançava o meu amigo. 

Cepos ?... "Só não eram maus a torturar, a arrancar informações dos pobres diabos que a gente, o exército, lhes entregava, para eles fazerem o trabalho, sujo,  que lhes competia... Felizmente, que o meu pelotão de informações e operações não foi treinado para torturar e  eu, por mim, nunca tolerei essas práticas", garantiu-me o Doc (a quem um dia perguntei que raio de especialidade era aquela que lhe haviam dado).

Cepos ou não, eu é que não ia na conversa do Doc: com os meus verdes anos, e com os medos  que alguns amigos, no liceu, me haviam metido na cabeça, achava que a PIDE era como Deus, omnipotente, omnisciente e omnipresente. Pelo sim, pelo não, não fosse o diabo tecê-las, era melhor pôr a salvo a correspondência do Doc, para mais sabendo que ele tivera “chatices” na Universidade e, depois, na Guiné.

Sabia que o meu avô, materno,  era da “situação”… Era um bom homem, ia à missa, raramente discutia política, e muito menos comigo… Não gostava do Salazar, é verdade, mas tolerava-o. Encolhia os ombros e, às vezes, desabafava com os filhos e netos, quando jantávamos lá em casa:

− Meus filhos, hoje o Salazar, amanhã, quem sabe, talvez pior, o diabo em figura de gente…

O meu avô, coitado,  era dos que acreditavam que o Salazar é que nos tinha livrado da guerra, com a ajuda da Nossa Senhora de Fátima… Um seu irmão mais novo, que eu nunca cheguei a conhecer,  tinha sido  expedicionário nos Açores, durante a II Guerra Mundial, e tinha regressado a casa, “são e salvo"...,  para morrer,  afinal,  uns anos depois, de "doença do peito", de tísica, de tuberculose... Falava-me que tinha tido muito medo, por causa do irmão,  dos submarinos alemães que infestavam o Atântico Norte… e que chegavam a Cabo Verde.

De resto, tinha a sua tertúlia, os seus amigos, os seus petiscos. Mais importante: o meu avô tinha uma adega, a que chamavam a “adega do povo”, aberta a todos os amigos e vizinhos, embora já fora da cidade… Na adega também tinha o seu escritório e o seu arquivo.

O meu avô estava acima de todas as suspeitas. Era um homem respeitado e respeitável, guarda-livros de profissão, conhecia os “podres” das várias famílias importantes da terra… Razão por que todos o estimavam (e temiam), pondo as mãos no lume por ele. Em contrapartida, podiam contar com o seu “silêncio de ouro”.

Eu gostava muito dele, tinha bonomia e bom humor, nunca se chateava comigo. Dizia-me na brincadeira que era ele, o guarda-livros, quem tinha uma das três chaves do céu…

− Então?... E as outras duas, avô ?

− Tem-nas o padre e o médico!...

A pior desgraça que podia acontecer a um guarda-livros era ser despedido (e, nalguns casos, preso) por abuso de confiança:

− Tens a chave mas não podes abrir a porta… E houve casos, meu filho (tratava-me por filho) de gente, nesta profissão, que não soube qual era o seu lugar, na ordem natural das coisas… Olha, um matou-se, o outro foi parar à prisão…


6. O Doc nunca me deixou publicar nenhuma notícia, 
a seu respeito, no jornal, um quinzenário, 
onde eu trabalhava, como estagiário 
e, em boa verdade,  como  “pau para toda a obra”, 
desde paquete a repórter, embora ainda sem cartão 
de jornalista. Tínhamos uma secção, 
“Correio dos Heróis do Ultramar”, 
onde publicávamos notícias dos filhos da terra 
a cumprir “missões de soberania” além-mar. 


O jornal, regionalista, tinha uma orientação editorial que não se coadunava, de todo, com as ideias (políticas, estéticas, éticas e culturais) do meu amigo que, de resto, era conhecido na cidade como filho de um oposicionista, e já teria, ele próprio, ficha na PIDE (o que, em boa verdade, nunca foi confirmado pelo próprio, não sabendo eu se ele alguma vez tivera tempo e pachorra para confirmar essa suspeita na Torre do Tombo). 

O Doc estava a estudar em Coimbra, na faculdade de medicina, quando foi inesperadamente chamado para a tropa. Na secretaria, explicaram-lhe secamente que, tendo chumbado a uma cadeira, deixava automaticamente de beneficiar do privilégio do adiamento da incorporação militar… Nunca se chegou a apurar a verdade relativamente à suspeita de ter sido a PIDE a despoletar a questão na reitoria ou na direção da faculdade.

Preciso, entretanto, de acrescentar algo mais sobre o jornal onde eu trabalhava (e que foi, de resto, o meu primeiro emprego).

O “meu” jornal estava ligado a uma família local, política, social e economicamente influente. O proprietário era o presidente do Grémio do Comércio.

A filha mais velha, por sinal minha catequista, casara com um “jovem e promissor advogado” que viera de Coimbra, no princípio dos anos 50, e que aqui se fixara.

A minha terra sempre acolheu bem “os de fora”. De imediato, esse advogado foi admitido no “seleto clube local” e aí não levou tempo a perceber quem poderia ser a sua futura clientela e, mais do que isso, quem eram as meninas casadoiras… Era ali que estava a elite local, aquela que tinha património, estatuto, influência, charme, poder e... algum dinheiro.

Ora um dos seus primeiros clientes foi justamente a empresa do futuro sogro, grande (para a época) armazenista de vinhos que exportava para África, e proprietário urbano, “dono de uma rua inteira da cidade” (como se dizia, não sem exagero).

Numa altura em que ainda não havia agências bancárias na província, e com os negócios a prosperar durante a II Guerra Mundial e no pós-guerra, o “Tio Patinhas” (como a gente lhe chamava, nas costas…), era o “banqueiro do povo”, emprestando dinheiro a taxas de juro, usurárias, dizia a má língua do povo. E também se acrescentava que ele fizera fortuna na II Guerra Mundial com os refugiados que se instalaram na nossa costa (Lisboa, Cascais, Ericeira, Figueira da Foz, Espinho, etc.), aguardando um visto para as Américas.

Também dizia a “santa inquisição local” que ele tinha costela de... “cristão novo”.  O que toda a gente sabia, isso sim,  é que ele tinha duas filhas casadoiras, que estavam à espera dos seus príncipes encantados. E esses só poderiam vir de fora. Uma, a mais velha, a minha catequista, como disse, irá casar com o “jovem e promissor advogado de Coimbra”; a mais nova irá dar o nó com um médico, também coimbrão, que igualmente se fixara na nossa terra.

O meu futuro patrão, o advogado, teve, como uma das prendas de casamento 
a direção do jornal (a menos valiosa, materialmente falando, mas nem por isso despicienda para o seu projeto de promoção pessoal, profissional e até polílica). 

Na realidade, era um "jornaleco", um "pasquim" (como lhe chamava o Doc), que todavia se irá tornar, mais tarde, no consulado marcelista,  num influente semanário regionalista com algum prestígio, audiência e até qualidade. 

Dentro de todos os condicionalismos da época (censura, autocensura, ausência de formação profissional e de  regras de deontologia, não dissociação da propriedade e da direção, etc.) foi para mim a minha escola de jornalismo e de escrita, muito embora o Doc andasse sempre a gozar comigo por causa do meu “jornaleco”… Penso que ele não gostava sobretudo da pessoa do diretor…


Tínhamos uma diferença de quase trinta anos, eu e o meu diretor,  a quem, confesso, devo alguns favores.  Numa conversa franca, “cara a cara”, que tive com ele, diretor,  na redação, no dia em que o Marcelo Caetano substitui o Salazar no Governo, ele fez questão de desvendar alguma coisa sobre a sua algo obscura vida coimbrã…

Vivia numa república de estudantes, envolvendo-se na política, no MUD Juvenil, o movimento juvenil democrático, constituído em 1945, no rescaldo da guerra…

− Paixões da juventude, coisas de garotos,  que às vezes têm um preço alto – comentou ele, de um modo algo enigmático.

Como diretor do jornal, gostava de acarinhar os “jovens literatos” da terra, onde me incluía, gente que tinha saído do liceu, uns, poucos, que haviam entrado na universidade, outros, como eu, que esperavam a “sorte grande” da tropa…
Ele próprio me confessara que em Coimbra publicara um livro de poemas, de “qualidade sofrível” (sic), na linha estética da revista "Vértice" (ou seja, do neorrealismo, acrescentei eu, com alguma ousadia).

Admirava agora os jovens, da geração 60, que estavam a aparecer, e que tinham até mais talento do que a sua geração… Para esses havia um cantinho no jornal, uma página juvenil… onde poderiam escrever, “sempre era uma melhor alternativa do que andar por aí a dar cabo da vida e da saúde, e a comprometer o seu futuro, em antros imorais e quiçá subversivos" (sic)...


Percebi o seu "recado" (que, no meu caso, visava "más companhias" como o meu amigo Doc)... Mas só mais tarde é que eu vim a contextualizar toda esta conversa "de pai, mais do que de patrão": tinha como pano de fundo uma campanha que alguns “estado-novistas” estavam a fazer para refrescar as velhas e bolorentas fileiras da União Nacional, de que o proprietário do jornal era um histórico na região… 

Não admira por isso que o “meu patrão” se tornasse rapidamente um entusiástico defensor da “primavera política” do Marcelo Caetano e das suas "conversas em família"...

7. Voltando ao meu amigo Doc… 
que nessa altura  já estava em Coimbra  
e em risco de ser suspenso  pela segunda vez. 

Sempre o tratei por Doc, a partir do momento em que ele entrou na faculdade de medicina, ou até antes, quando ele começou a manifestar a sua intenção de abraçar a carreira médica, já no último ano do liceu… Eu, por meu turno, ainda estava longe de saber o queria fazer da minha vida... Mas começava a preocupar-me com a guerra que alastrava em Angola e com a mobilização dos meus vizinhos e conhecidos, mais velhos...

Em 1962 houve a crise académica, que só mais tarde vim a saber o que era... Em 1964 o Doc foi chamado para a tropa e, menos de um ano depois, estava na Guiné.

Parte da minha formação intelectual e até literária devo-lha a ele, ao meu amigo Doc. Emprestava-me livros, trazia-me livros e revistas quando vinha de Coimbra nas férias, incluindo alguns jornais e revistas, estrangeiros, franceses, que não chegavam à província, como “Le Monde” ou “Le Nouvel Observateur”…

Depois da sua prolongada “cura de sono” (que passou também por uma clínica de desintoxicação alcoolólica, devo acrescentar sem trair a sua memória…), acabou por voltar a Coimbra e à sua “doce boémia”… Com as economias que trouxe da Guiné, conseguiu assegurar a sua independência económica. Fez algumas cadeiras atrasadas no ano letivo de 1968/69. Mas o curso marcava passo. Houve mesmo quem apostasse comigo que ele nunca chegaria a ter o diploma de médico, "quanto mais a poder receitar uma aspirina a um morto"…

Mas foi também a época em que eu deixei de ver o Doc, com regularidade. Soube depois que se tinha incompatibilizado de vez com o pai, por causas eleições legistivas de 1969, rompendo de vez com a sua cidade natal. Há muito que  deixara definitivamente o teatro da cidade, que de resto passou a ter um novo diretor, quando ele foi mobilizado para a Guiné. Enfim, fixou-se de vez em Coimbra.

E eu nessa altura já estava na Guiné, onde votei em branco nas eleições para a Assembleia Nacional.  Ia tendo algumas notícias dele pela sua mãe, sempre extremosa, mas também pela irmã que estava em Lisboa, a tirar línguas germânicas, e que não escondia os seus cuidados pela saúde do irmão, mais velho. Depois perdemos o contacto... Deixámos mesmo de ser íntimos, se bem que a nossa amizade  estivesse para durar até ao fim da vida...

Soube, por outras vias,  que o Doc  se envolvera também na crise de 1969, fora suspenso por dois anos, e tivera  que ir trabalhar na Propaganda Médica (o que terá sido deveras penoso para ele).

Curiosamente, não tenho aerogramas dele do meu tempo de Guiné. E um ou dois que lhe escrevi, não tive coragem, confesso,  de os pôr no correio...

Depois do meu regresso à Guiné, e da minha própria "cura de sono", soube notícias, já a viver e a trabalhar em Lisboa,  da família do Doc:  a dona Domitília Meneses não sobrevivera a um cancro da mama, uns bons anos antes da morte do filho.

Por seu turno, o marido já tinha morrido antes dela, não sem ter tido, porém, duas alegrias: a de ver o seu filho finalmente formado em medicina, aos 30 e picos anos, e logo a seguir a de ter podido dar vivas à liberdade, no 25 de Abril de 1974. (À boa maneira republicana, lançando o chapéu ao ar, enquanto alguns dos seus tradicionais inimigos políticos se trancavam em casa para ver em que paravam as modas.)

A entrada do Spínola para a Junta de Salvação Nacional ainda lhe dera algum alento quanto à possibilidade de se organizarem "eleições livres", com vista à independência de Angola e Moçambique, mas os acontecimentos precipitaram-se e a descolonização que se seguiu foi um dor de alma para o “Velho”, como lhe chamava o filho; morreu em finais da década de 1970, sem ter realizado  o sonho de "um dia ainda poder voltar a Moçambique", terra que ele amava de alma e coração.


8. Por onde andou o Doc, agora médico de pleno direito, 
depois do 25 de Abril e até morrer, 
em 1990 ? 

Apaixonou-se pelo Baixo Alentejo, onde fez o Serviço Médico à Periferia, fez medicina do trabalho numa empresa mineira e numa empresa da pesca do alto, praticou clínica geral nas caixas de previdência da margem esquerda do Tejo, integrou-se na carreira de clínica geral, criada em 1983, pediu uma licença sem vencimemto para se poder alistar como voluntário numa ONG francesa que tinha uma missão médica na Amazónia...

Enfim, "ando por aí", como me garantiu, "a ver se ainda consigo gostar da humanidade" ... Mas nunca mais voltou à Guiné. De tempos a tempos íamos falando ao telefone, ele é que me ligava, eu nunca sabia ao certo por onde ele parava... Gostava de cultivar o mistério de uma certa clandestinidade.

Tinha-me manifestado o interesse em tirar o curso de medicina do trabalho, queria fazer algo de  "socialmente útil"... E eu ainda o ajudei a preparar a candidatura. Detestava a "medicina da caixa" que ainda se fazia nesse tempo, por todo o lado... 

Entretanto, deixara de fumar... Tarde demais.  A doença pulmonar começava a cortar-lhe as asas dos seus sonhos de liberdade, já de si frágeis e erráticos... Teve altos e baixos, euforias e depressões.  Tiraram-lhe um pulmão...

Finalmente, foi pela irmã que eu soube que ele estava a morrer.  
No hospital, num pequeno quarto escuro, ao fim de um corredor sombrio, a 300 metros  do meu gabinete de trabalho…Sozinho como um cão.

© Luís Graça (202o). Revisto: 1mai2022
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Nota do editor:

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