sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21475: Bombolom XXVII (Paulo Salgado): Drogas na Guerra Colonial - Um comentário e uma história

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor dos livros, "Milando ou Andanças por África", "Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier", com data de 18 de Outubro de 2020:


BOMBOLOM DO PAULO SALGADO

DROGAS NA GUERRA COLONIAL – UM COMENTÁRIO E UMA HISTÓRIA

Ainda a propósito do livro “Drogas em Combate. A Guerra Colonial”, de Vasco Gil Calado, Editora Lua Eléctrica, Junho de 2020, sobre o qual não tomo uma posição acabada e crítica, mas permito-me a liberdade de fazer um comentário e transcrever uma lenda.

1.º Comentário

Tem a ver com a minha experiência na Guiné.

Pertenci a uma companhia independente – a CCAV 2721 (1970-1972) – que esteve aquartelada no Olossato, bem perto do Morés, fazendo um triângulo com Mansabá e Farim. Segundo o modelo de combate de quadrícula, ali estávamos, no fim da picada que ia de Bissorã (a partir dali estava minada…), a mesma picada que outrora continuava até Farim, e que eu, acompanhado pela minha mulher e Moura Marques percorremos na totalidade, com uma sensação de alívio em 2006…).

Se é certo que outras zonas eram muito mais perigosas, não deixámos de sofrer nas emboscadas, nos patrulhamentos, nas flagelações – com feridos (vários) e mortos (2).

Ora, se o ambiente era de guerra, se dentro do arame farpado viviam cerca de cento e cinquenta homens, jovens éramos, tal poderia levar ao consumo de bebidas alcoólicas. E havia momentos de mais bebida, sim. No bar se bebiam à farta cervejas e whiskey, mas nunca antes de uma operação. Como evitar o cansaço, o isolamento, a pequena disputa na caserna, a ausência de notícias, em especial das mulheres dos militares já casados? No entanto, drogas, não havia. E eu estava particularmente atento, porque em Coimbra, quando estudante, passando alguns momentos na Clepsidra, sabia que estava na fase da experiência o consumo de drogas entre os estudantes, embora pouquíssimos – tanto quanto me apercebi.

Ah, mas havia a cola, um fruto, bonito fruto. As populações chupavam a cola – o fruto das plantas malvaceae, e que existem na África Ocidental e no Sudeste Asiático. Existem muitas espécies de cola. Possui um gosto amargo e detém grande quantidade de cafeína. Por terem propriedades estimulantes e até excitantes do sistema nervoso e muscular, podem ser “mascadas”, “chupadas”. Isto era utilizado pelas populações e pelas nossas milícias. Aliás, nas “banquinhas”, lá estão as diversas espécies de colas – o que apreciei melhor aquando das minhas sucessivas idas à Guiné-Bissau como cooperante.

Uma nota: os escravos mascavam colas para suportar trabalhos penosos.

Nos patrulhamentos, quando passávamos junto de uma árvore da cola houve oportunidade de a provar.

Noz de cola - Foto retirada da Wikipedia

2.º Lenda

Acerca deste fruto, a cola, transcrevo um belo texto acerca dos costumes dos povos da Guiné. É narrada pelo historiador e antropólogo que escreveu muito sobre os costumes de África, em particular da Guiné, Manuel Belchior. Se é certo que este antropólogo serviu os desígnios da nossa presença em África, também é correcto afirmar que deixou textos muito interessantes que a mim me seduzem pelo detalhe, pela descrição e pela profundidade, o que foi meritório.

Faço aqui um parêntesis para afirmar o seguinte: na Biblioteca Municipal de Torre de Moncorvo, a minha terra, e onde a minha mulher e eu agora estamos mais tempo, um fundo bibliográfico de notável importância do Prof. Santos Júnior (1901-1990), eminente médico, antropólogo, ornitologista que calcorreou Portugal, Angola e Moçambique. Tal fundo já foi visitado por investigadores angolanos e moçambicanos, o que vale por dizer, desapaixonadamente, que a História tem de ser contada no que tem de belo e medonho.

Pois bem, eis lenda. Escreveu Manuel Belchior:

«A um futa-fula ouvi há anos no Forreá, uma lenda a respeito da cola, o fruto cujo valor místico e simbólico não conhece par junto dos povos islamizados da Guiné. Conta essa lenda que no momento em que Ádama (Adão) e Aua (Eva) foram expulsos do Paraíso por culpa da nossa primeira mãe, ela, arrependida, chorou copiosamente. E onde essas lágrimas tombaram nasceu a primeira árvore de cola. É esse o motivo por que os frutos têm o sabor amargo e salgado das lágrimas.»

In Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Volume XXII, N.os 87-88. Julho-Outubro de 1967, p. 305.

Paulo Salgado
18.10.2020
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21270: Bombolom XXVI (Paulo Salgado): Jornal "O Tabanca" da CCAV 2721 no Olossato

1 comentário:

Valdemar Silva disse...

Caro Paulo Salgado.
Não é preciso ir a Bissau para ver banquinhas de cola, basta na sair do comboio, Lisboa-Sintra-Lisboa, na estação da Damaia e ver no passeio mais que uma banquinha a vender cola.

Abracelo
Valdemar Queiroz