sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21477: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (24): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
Estamos agora em plena sala de espelhos, é uma organização de romance com recurso a um expediente muito antigo, põe-se na boca de outro o que vai na nossa mente, o expediente utilizado é que aquele antigo combatente envia, numa certa sequência cronológica, acontecimentos que ele recorda da sua comissão na Guiné, envia-lhe textos, até cópias de documentos militares, fotografias da época e outras mais recentes, ela comprometeu-se a arquivar com método, mas o inesperado aconteceu, amam-se, ela passou a vibrar com esta recolha de memórias, memórias que ela averba à admiração que tem pelo seu amado.
É uma banalidade dizer-se que todo e qualquer romance fala de nós, é esse o fulgor da leitura, conseguir encenar a realidade no manto da ficção, pôr na carpintaria elementos do passado, coisas tremendamente incómodas para o presente, aquela guerra já caiu nas brumas da memória, é ressuscitada num ardor afetivo de dois cinquentões, o que ele guarda é que foi naquele teatro bélico que se fez homem, se moldou na pessoa que ainda é, o que ela capta são coisas que há um ano atrás eram impensáveis, amar um homem de um outro país numa historieta que começara exatamente por ele lhe pedir que ela fizesse parte de um romance. O estranho disto tudo é que Paulo Guilherme já disse a Annette Cantinaux que o título é definitivo, consagra o nome da rua onde ambos descobriram que queriam pugnar pelo seu futuro comum.
E se assim é, continuemos.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (24): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon amoureux, não te escondo a excitação da partida, só faltam três dias, mexo e remexo na mala, procuro no guarda-fato um casaco compatível com o vosso inverno, estão alinhadas em cima da mesa da sala de jantar as surpresas que levo para Lisboa, fizeste bem em referir-me os gostos e preferências dos teus filhos, encontrei os CDs do Jacques Brel, no frigorífico já pus os queijos malcheirosos de que gostas, sempre que não venho derreada das reuniões, arrumada a loiça e as panelas, faço uma tisana de maçã e canela e alinho toda a documentação que me envias durante a semana, ficarás seguramente bem impressionado com a quantidade de documentação organizada, desde que chegaste à Guiné, e estamos agora em finais de fevereiro de 1969. Não te posso esconder que li grande parte dos apontamentos que me enviaste em grande sofrimento.

Olho a imagem do Paulo Ribeiro Semedo e por muitas voltas que dê à imaginação não consigo supor o destroço em que ele ficou, depois daquele acidente de Chicri que tu contaste com tanto detalhe. Tenho esta fotografia e a anterior, a outra, é evidente, já ele teria feito muita cirurgia plástica, retirado todos aqueles estilhaços que em condições normais o teriam vitimado mortalmente. Gostei muito das fotografias desse tal fotógrafo José Henriques de Mello que acompanhou 60 anos antes de tu chegares à Guiné a operação do Cuor para sustar a rebelião de Infali Soncó. Li na carta que escreveste a propósito que ele foi deposto e mais tarde reintegrado, o tal herói de Teixeira Pinto, Abdulai Indjai, teria cometido tantas e tais torpezas que foi também deposto de régulo do Oio e do Cuor. E as imagens que tu mandas são de uma inefável beleza, não fosse o clima tão atroz e eu sugeriria que viajássemos os dois até lá, não só pelas belezas naturais que tu me mostras mas para sentir as amizades que tu ali deixaste e, estou segura, que acompanharão até ao resto dos teus dias.

Arrumei todo o dossier de janeiro e fevereiro. O que tu escreveste sobre a operação Anda Cá é uma imensa tragédia. Ser chamado em particular a um major do comando de Bambadinca e informado que irão 300 homens em duas colunas separadas, uma em direção a Madina, a outra em direção a Belel, com uma prevista mas sempre aleatória sincronização, tu concordaste, seguirias com os teus homens da coluna para Belel, um grupo escolhido por ti tendo Bacari Soncó e Fodé Dahaba à frente da coluna para Madina, com o reforço de soldados experimentados. Ficas a saber no decurso dessa conversa, que a 21 de fevereiro estarão reunidos os dois contingentes e que partirão separados. De repente, tudo se alterou. És de novo chamado ao major de Bambadinca que te dá a saber que afinal os dois destacamentos não têm condições para irem separados, nenhuma justificação te é dada. Atormentado com tal conversa, pedes no maior sigilo uma entrevista ao comandante e explicas-lhe todas as desvantagens por 300 homens uns atrás dos outros no pico da época seca, mesmo que se levassem carregadores a transportar água e munições, havia que contar com todos os imprevistos da floresta-galeria, além de que nunca se põem 300 homens a atacar um objetivo, seria importante fazerem fletir metade daquele contingente, a tempo e horas, para Madina, e outro para Belel, utilizando sempre os teus homens, conhecedores do interior do Cuor, que depois de alcançar os objetivos retirariam a corta-mato para evitar possíveis emboscadas. O comandante entendeu que não devia contrariar o major, os dados estavam lançados.

Enviaste-me o relatório da operação, comentando, e pressinto que com muita amargura, que ele não espelha a verdade dos factos. Uma das companhias, sabe-se lá porquê, chegou tarde e a más horas, atravessaram a bolanha de Finete aos tombos, já no lusco-fusco, isto na vazante do Geba, traziam as botas e as pernas carregadas de lama, chegaram a Missirá exaustos. A outra companhia veio um pouco melhor, puderam viajar naquele barco de fibra que tu chamas o Sintex, fizeram poucos quilómetros a pé desde Gã Gémeos a Missirá. Querias que partissem ainda sem a luz do dia, foi recusado, os militares precisavam de se retemperar. E os capitães nem aceitaram discutir a divisão de objetivos, ia tudo ao molhe e fé em Deus. Como supuseras, a marcha foi um verdadeiro inferno, no pino do calor, muita gente a rasgar as fardas na floresta-galeria. O resultado foi chegarem noite escura a escassos quilómetros de Madina. Tu não consegues dormir, apreensivo com aquele contingente onde vai tanta gente em mau estado. E de madrugada informam-te que fugiu o prisioneiro de Quebá Jilã, com os primeiros alvores vocês põem-se em marcha, e posso sentir, meu adorado Paulo, como tu viveste a catástrofe que se seguiu. Seguem ao lado de uma velha picada, Fodé Dahaba deteta um fornilho, tu dás-lhe instruções para ele ficar ali e ordenar que todos passem ao largo. Lanças-te em direção a Madina, já ouves a vozearia e os pilões a trabalhar, pões os teus homens em linha, chamas os dois homens que trabalham com bazucas e nisto ouve-se o fragor de uma explosão, um silêncio de trevas e sobe aos céus os gritos, sabe-se lá de quem. Com a morte na alma, aproximas-te do local da tragédia, irás apurar que um dos soldados se recusou a obedecer Fodé Dahaba, pisou o fornilho, grita desesperadamente pela parte do corpo que perdeu, dentro de um buracão vês pedaços de carne, um tronco chamuscado, a cara é a máscara do desespero; ali ao lado jaz Fodé Dahaba, parte de dedos de uma mão estão presos por um fio de pele, desapareceu-lhe um pedaço de perna, tu consegues ver uma bota ensanguentada.

Pedes instruções a quem manda, a ordem é recuar para evacuar os feridos, tu sugeres a retirada de um contingente e que o outro te acompanhe imediatamente até Madina, não, vamos retirar todos, e tu rapidamente sentes que aquela operação caiu na água, toda a retirada até Missirá será um martírio, não faltarão ataques de abelhas, o calor é implacável, não muito longe de Missirá desce um helicóptero com o comandante de Bambadinca, ele traz ordens categóricas de recomeçar a operação, mas não fica insensível ao estado deplorável em que estão aquelas centenas de homens. Na tua descrição, Missirá está em estado de sítio, aquelas centenas de homens espojam-se, gemem, pedem água, esgotam todos os mantimentos guardados no depósito, não ficará uma garrafa de água ou de cerveja, um enlatado de fruta ou chocolate, são bocas ávidas que tudo consomem.

Partem ao amanhecer, aos tombos, duas viaturas transportam os mais combalidos. Tu regressas às picadas da véspera para resgatar armamento que se largara nos ataques de abelhas, estás inconsolável, tens uma estima fraternal por Fodé Dahaba, trata-lo por irmão onde quer que seja, fora completamente desmotivadora a sequência de peripécias, tudo redundara em fracasso e sofrimento humano, não devia ter acontecido assim, mas tu não passavas de um mero operacional e estavas ali para obedecer.

Fiquemos por aqui, mon amoureux, estou a ceder ao sono, vou fechar esta carta, espero que ela chegue antes de mim, e por isso te beijo e te consolo, e te afago com a maior ternura, o que aqui contas sei que perfeitamente nunca mais vais esquecer, é também por isso que quero passar o resto da minha vida a teu lado, onde quer que seja que se venha a pôr a hipótese de vivermos, em Bruxelas ou Lisboa. Deste-me uma boa notícia a tempo, tens a tal reunião a 5 de janeiro, pedi mais um dia de férias, mais um dia junto de ti, a ver a cintilação dos teus olhos. Bien à toi, Annette.

(continua)
Nesta morança ao fundo, a minha casa entre agosto de 1968 e março de 1969, viveu algumas décadas antes o Eng. Armando Zuzarte Cortesão, um dos maiores cartógrafos mundiais, trabalhou num projeto de palmeirais para a Sociedade Agrícola do Gambiel. Quando vi os palmeirais de Gambiel senti-me ofuscado por tanta beleza, era o paraíso terreal
Paulo Ribeiro Semedo, o mártir de Chicri
Luís Casanova, meu braço direito em Missirá, fotografia de Luís Casanova
Fotografia de José Henriques de Mello tirada em 1908, durante a ofensiva das tropas portuguesas para sufocar a rebelião do régulo Infali Soncó, no Cuor
Arriba de Varela, extraída da Carta Geológica da Guiné-Bissau: de 1982 a 2011, de Paulo H. Alves e Vera Figueiredo, com a devida vénia
Rio Geba na maré baixa, perto do Enxalé, extraída da Carta Geológica da Guiné-Bissau: de 1982 a 2011, de Paulo H. Alves e Vera Figueiredo, com a devida vénia
Afloramentos de dolerito no rio Corubal, perto de Béli, extraída da Carta Geológica da Guiné-Bissau: de 1982 a 2011, de Paulo H. Alves e Vera Figueiredo, com a devida vénia
A majestade dos poilões guineenses
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21455: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (23): A funda que arremessa para o fundo da memória

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