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quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26004: O melhor de... A Marques Lopes (1944 - 2024) (12): Uma noite no "Comodoro" com o Herculano Carvalho , da 3ª CCmds("Cabra Cega", 2015, pp. 442/443 e 452/461)





Lisboa > Praça D. João da Câmara, nº 20> Restaurante-bar "Comodoro" > C. 1960 > Cortesia do blogue "Restos de Cokleção" > 16 de outubro de 2018



Notícia da inauguração do restaurante-bar "Comodor0" > Diário de Lisboa, 
5 de fevereiro de 1960, pág. 15.


1. Mais um excerto das melhores partes do livro de memórias do A. Marques Lopes, "Cabra Cega" (Lisboa, Chiado Editora, 2015, pp. 442/443 e 451/461 (com a devida vénia...) (*)


Sabendo do prognóstico reservado da doença de evolução prolongada que o iria vitimar,e  apesar do seu apego à vida, e do seu franco otimismo, o A. Marques Lopes quis partilhar, anmtes de morrer,  muitas das melhores páginas do seu livro de memórias, "Cabra Ceba", acabando por assumir que era a sua autobiografia... Terá sido uma espécie de último testamento. Replicar aqui alguns dssses excertos é homenagear a sua memória. Ele foi um dos primeiros camaradas da Guiné a dar cara no nosso blogue, logo em 2005. Tem mais de 280 referências

Seguimos o seu texto, respeitando a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook, nas postagem de 19 de maio de 2023, 19:20.
  

O Herculano de Carvalho, da 3ª CCmds, e o "Comodoro"...

por A. Marques Lopes (1944-2024) (*)

 

Já no hospital militar da Estrela encontrei lá o Herculano (**) logo no primeiro dia. Andava nos tratamentos.

  Vais ficar aqui? 
  perguntou-me.

 − Tem que ser, não é?

 − Pelo teu aspeto, pelo tipo de ferimentos que tens até te mexes bem, parece-me que não tem que ser. Tens cá família?

 − Tenho os meus pais, moram em Lisboa.

 −  Então faz como eu. Quando cá cheguei disse-lhes que tinha família na Amadora e eles deixaram-me ir para casa deles. Só venho cá aos tratamentos. E já me disseram que não vão durar muito porque isto não tem cura, qualquer dia vou a uma junta médica e mandam-me embora. E, olha, até te vão agradecer porque precisam de camas para casos mais graves e para gajos que são da província.

Fiquei encantado com a ideia e fui com o Herculano aos serviços administrativos. Ficou assente que podia ir para casa e que devia estar no hospital todas as segundas, quartas e sextas, às nove horas, para tratamentos.

O Herculano levou-me no seu Citroen 2 cavalos até à porta da casa dos meus pais.

 
 − Está aqui o meu telefone   − disse-me ao despedir-se.   − Dá-me um toque para combinarmos ir dar uma volta por aí.

 − Claro, podes ter a certeza. (...)

(...) No dia seguinte telefonei-lhe.

 
− Queres ir dar uma volta esta noite? Ou tens que ir ao hospital amanhã?

 − Não, não tenho. Olha, ainda bem que me ligaste porque precisava de falar contigo. Mas aonde é que estás a pensar ir?

  Não vou aos fados, pá, nem penses. Quero ir ao "Comodoro", é um sítio porreiro e já tenho saudades daquilo.

Era verdade. Não tinha lá ido ainda desde que traçara o plano de tratamento. Fora a outros mas àquele não.

 
 − Hui, isso é muito chique, de gente fina! Há outros sítios de gente mais como nós. Além disso, não podes antes encontrar-te comigo esta tarde?

Falava alto pra caraças. Não estava a perceber as reticências dele. Já tínhamos andado os dois por vários lados, por onde o ele queria. Fora num deles que o ligara à organização. Achou que desta vez era eu a decidir.

 
 − Não, não pode ser  − disse-lhe.   − Já tenho o meu esquema montado. Tenho uns filmes para ver e estou mesmo decidido a ir ao "Comodoro". E fala-me mais baixo, pá. Tirei os tampões para te ouvir. Os tímpanos par ecem estar melhor, não me dês cabo deles agora.

- Desculpa lá. Então está bem, vamos ao "Comodoro".

Encontraram-se à meia-noite junto ao  D. Maria . Foram até ao "Comodoro" e tocaram à campainha. O porteiro abriu a porta solicitamente. Foi o que nos pareceu, mas mal. Depois de os mirar de alto abaixo inquiridoramente, disse-lhes com ar de cepo:

 − Não podem entrar. É reservado.

O Herculano ficou calado mas eu perguntei-lhe em voz alta:

 − O que é isso de reservado?

− É só para clientes e seus acompanhantes.~

Fiquei fulo e levantei mais a voz:

 
− Eu sou cliente! Vim aqui várias vezes antes de ir para a guerra. Andei lá a defender isto! Agora que vim de lá ferido já não sou cliente, é?!

O Herculano só dizia "deixa lá, deixa lá, vamos a outro lado". Mas o porteiro estava roxo de enrascado e já falava como lírio do campo.

 
− O senhor desculpe, mas são as normas. Se conhece alguém…

− Claro que conheço! O Zeferino do bar e o gerente.

Não conhecia nada o gerente, só de vista e nunca tinha falado com ele. Mas o Zeferino, sim. Nas várias horas passadas no bar tinha tido conversas com ele. Era o típico barman confidente de uísques  e gins tónicos.

Pareceu-me que a minha voz alta já tinha chegado lá dentro pois apareceu à porta um tipo de fatinho azul e todo engravatado. Era o gerente, topei-o.

 
− O que se passa, Romeu?  − perguntou ao porteiro.

Está calado, Romeu, agora sou eu. Não o deixei falar:

 
− Eu e o meu amigo aqui viemos feridos da Guiné e queríamos entrar, mas o senhor Romeu diz que não pode ser. Eu sou alferes da companhia do capitão Guimarães. Vim aqui várias vezes com ele, lembra-se?

Vi logo que tinha dado um golpe certeiro. O homem ficou sério.

− Ah, o capitão Guimarães, claro que me lembro. Sei que morreu lá, coitado.(***)

Não se havia de lembrar, não. E a morte dele custou-lhe muito, claro. Grande sacana é o que ele era. O gerente virou-se para o porteiro:

 
− Romeu, deixa estes senhores entrar.

Conduziu-nos até ao bar.

 
− Zeferino, serve uma bebida a estes senhores. É por conta da casa. Estejam à vontade.

Afastou-se e eles sentaram-se. O Zeferino chegou-se e perguntou-lhes o que queriam. Ri-me para ele.

 
− Ó Zeferino, não me digas que te esqueceste das minhas preferências.

O barman olhou, interrogativamente primeiro, mas depois de uns momentos abriu-se num sorriso e estendeu-lhe a mão.

− Ah!...Como está? Então por cá?!

 
− É verdade. Não como eu queria, mas estou cá.

O Zeferino serviu-lhe um uísque com gelo e o Herculano também quis um. Contaram que tinham sido evacuados, falaram sobre a guerra, eu sobre a morte do Guimarães também, o Zeferino disse que já sabia. Como estava a mulher e os filhos dele, enfim, coisas do costume e normais. Quando os copos estavam a ficar vazios perguntei-lhe:

 Ouve lá, o capitão Guimarães não deixou aí nenhuma garrafa?

 
− Não há nenhuma. Se deixou já desapareceu. Sabe como estas coisas são...

Tinham-na gamado, claro. O gerente pensou que homem morto não bebe mais.

 Claro – compreendera. 
  Então traz uma de Dimple para aqui que eu pago.

 Para que é isso, pá? Não vamos beber uma garrafa inteira.

 
− Ó Herculano, claro que não. Vou fazer como o Guimarães. Ele tinha sempre uma garrafa reservada para se servir quando cá vinha. Esta vai ficar para quando voltarmos aqui. É o esquema, pá.

O Zeferino estava a servir dois clientes que se tinham também chegado ao balcão. Virámo-nos para observar a sala. Eu já sabia como era. Um ou dois gajos em cada mesa, e em todas elas uma ou mais mulheres, bem aconchegadas de vestimentas mas todas com ar de profissionais.

 Lá estava o filho da puta do banqueiro todo enleado com três. Uma delas olhou para eles, cochichou para as outras e para o banqueiro. Viraram-se todas e riram. Não reagi porque me palpitou da razão do riso delas. Era melhor sair dali.

– Há ali uma mesa vazia naquele canto  
− disse ao Herculano.  − Vamos para ali.

O Zeferino fez sinal a um empregado para lhes levar os copos, o balde do gelo e a garrafa. Quando já sentados dei um toque com o cotovelo no Herculano e apontei-lhe com a cabeça a mesa onde estavam as mulheres que se riram.

 
− Aquele engravatadinho com cara de fuinha é banqueiro.

 − Como é que ele se chama?

 − Não sei. O Guimarães disse-me o nome dele mas já não me lembro.

 Passa aqui as noites, e sabes qual é o divertimento dele?

 − Anda a comer as gajas, não?

 
− Qual quê, pá! Não vês que ele já está com os pés para a cova?! O que faz, não sei se já fez isso esta noite, se calhar não, é cedo, ainda estão poucas na mesa dele. Agarra uma nota de mil na mão e pergunta-lhes par ou ímpar? Aquela que primeiro adivinhar o último algarismo do número da nota ganha. Passa-lhe a nota para a mão e os olhos brilham-lhe de felicidade. É assim que ele se vem, acho eu.

− Filho da puta! − o Herculano estava escandalizado.

 − Dizes bem, também já lhe chamei isso. Mas há mais. Nas vésperas de embarcarmos para a Guiné viemos todos aqui, os alferes e o capitão. Ele é que o conhecia e esteve uma data de tempo a falar com ele. Olha, nessa altura mamámos quase uma garrafa inteira do Guimarães. Passado tempo veio ter connosco e disse-nos que o banqueiro, porque íamos para a guerra, tinha pago às cinco que estavam na mesa com ele para irem connosco.

O Herculano ia beberricando e olhava-o fixamente com os olhos de camaleão.

– E fomos mesmo  
− continuei  − para uma casa de uma delas, precisamente da que olhou há pouco para nós e que pôs as outras a rir, eu bem a topei. Começámos com um jogo a que elas chamaram “tira”. Quem perdia tinha de tirar uma peça de roupa. Íamos bebendo, jogando, despindo. Passada mais de uma hora, sei lá, já não havia noção de nada e foi a desbunda completa, cada um com a sua pelos quartos que havia e pelos cantos da casa.

Ele olhou-me reprovadoramente.

 
− É pá, porra, como é que vocês entraram numa coisa dessas?

Não gostei.

- O que é que querias que fizéssemos? Que fôssemos a Fátima rezar o terço? Tás maluco. Nós já sabíamos que íamos para o mato e que mulher era zero. Não íamos ter a sorte que os comandos tinham, uns saltos ao mato e depois era passar o tempo em Bissau para andar atrás das putas. Sim, foram meses no mato e zero, zero, assim  
− juntei o indicador e o polegar −,  tás a ver?

Para ele até não fora totalmente zero, mas fora para os dos destacamentos. Calou-se porque ele lhe fizera sinal para baixar a voz e viu que olhavam para eles das outras mesas. O gerente, ao pé de uma delas, estava com cara de poucos amigos. Teve tempo para pensar que tinha feito mal com aquela dos comandos. O Herculano tinha sido comando e também viera evacuado.

Desculpa lá, exaltei-me 
  disse-lhe.

− Eu não estou contra vocês terem ido com elas. É outra coisa. Nós andamos na guerra por causa do banqueiro e outros da laia dele. E dão um rebuçadinho, às vezes, que é para nós irmos e estarmos lá todos contentinhos. Foi o que ele vos fez.

Sabia que ele tinha razão. Ainda estive para lhe dizer que uma oportunidade daquelas não se podia perder, apesar disso. Mas não, pareceu-me que era melhor acabar ali aquela conversa.

 
− Ouve lá. Quando te liguei disseste-me que estavas a pensar falar comigo. O que era?

 Aqui não dá. Isto deve estar cheio de bufos e de pides. Eu levo-te a casa e no carro logo falamos.

Levei a garrafa, entreguei-a ao Zeferino e recomendei-lhe que a guardasse. À saída fiz um aceno de despedida ao gerente. Não é que o gramasse, mas era bom para o futuro.

Já íamos no carro e ele:

− O que eu te queria dizer é que temos que nos encontrar amanhã com outros camaradas e era preciso uma casa para isso. Na da minha tia não dá porque há lá sempre muita gente e estava a pensar na tua. Será que pode ser?

 E a que horas é?

 − Às dez da manhã.

 
− A essa hora tenho de estar no hospital. Só se forem vocês e depois falas comigo sobre o que decidiram. O meu pai e a minha irmã estão a trabalhar e a minha mãe vai a uma consulta ao hospital. Eu dou-te a chave de casa.

−  Está bem. Falamos os dois depois.


Chegámos, entretanto, ao largo da Calçada da Patriarcal. Parou o carro ao pé das árvores. Lembrei-me duma coisa.

− Mas espera aí, ó Herculano. Não sei se é o melhor ser em minha casa. É que, em tempos, apareceu lá na caixa do correio uma carta para um tal Aníbal de São José Lopes. A minha mãe foi perguntar à vizinha se não seria para ela. E a vizinha disse-lhe que era um gajo da PIDE que tinha antes lá morado mas que, agora, estava em Angola.

Ele ficou calado, parecia apreensivo.

 
− Mas há quanto tempo é que ele morou lá?  acabou por perguntar.

− Não sei. Mas, como os meus Pais já moram lá há mais de cinco anos, foi há mais tempo.

−Então deixa estar. Dá cá a chave. Até tem piada. Mas, olha, já agora outra coisa. A semana passada fui a uma junta médica e os gajos deram-me como inapto para a tropa. Isto da hemofilia não tem remédio.

− Porreiro, Herculano! Então estás livre da guerra ?!

 − Não é nada porreiro. Sabes muito bem que a orientação é não fugir à guerra. É lá com os outros que temos de estar, é lá que podemos influenciar, não é fugindo para França. Mas, paciência, comigo já não há hipóteses. Para compensar pus-me a delegado de propaganda médica, dá-me para andar por aí e desenvolver o trabalho clandestino.

 − Mas deves concordar que é melhor do que estar na guerra.

 − Claro. Mas lá também se pode trabalhar, e é muito importante.

Concordei com ele e despedi-me. Toquei à campainha e tive de dizer à minha mãe que me tinha esquecido da chave. (...)


(Seleção, revisão / fixação de texto: LG)

_______________


(**) Vd. biografia do Herculano de Carvalho (1943-1976)

O Herculano de Carvalho já era conhecido do A. Marques Lopes, da  EPI, Mafra... Voltaram a encontrar-ase no HMP, Estrela, Lisboa...

(...) Encontrei lá o meu amigo Herculano de Carvalho. Fora meu colega no 2º pelotão do COM de Mafra. Magro, louro, olhos azuis grandes, era um aventureiro, uma máquina em todos os exercícios. Mas foi sempre um bom companheiro, diferente de outros que lá andavam a armar-se em bons e achavam, por isso, ser superiores. Eu sabia que ele, depois da especialidade de atirador, tinha sido mandado para os comandos, e nunca mais soubera dele. Foi um grande abraço. Perguntei-lhe:

− O que é que andas aqui a fazer?

− Ando em tratamento.

− A quê?

−  Tenho hemofilia.

Fiquei banzado. Como era possível um tipo hemofílico ser enviado para os comandos!? Mesmo para a guerra. Mas para os comandos ainda por cima... Então não tinham visto isso antes?

− Parece que não te lembras como era aquilo em Mafra. Além da injecção cavalar, que diziam dar para todos os males, não se preocupavam em saber mais nada. Menos, é claro, em ver aqueles que tinham cunhas para ir para os serviços auxiliares.

− É verdade, eu sei bem. Deves lembrar-te que desde o início sabíamos que o nosso curso estava destinado para uma fornada de atiradores. Até pensei que ia gozar com os gajos dos psicotécnicos quando me puseram um papel à frente e me disseram par escolher a especialidade. Pus lá que queria ser atirador mas eles é que se riram de mim. Mas diz lá, então, como é que descobriram isso.

 
− Eu estava na 3ª Companhia de Comandos na Guiné e… (...)

 (Fonte: Excerto de: Página do Facebook do A,. Marques Lopes, 24 de agosto de 2023, 14;00)

(***) Vd. poste de 10 de maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1745: Eu e o meu capitão e amigo Guimarães, morto aos 29 anos, na estrada de Geba para Banjara (A. Marques Lopes, CART 1690)

(...) O capitão Manuel Carlos da Conceição Guimarães era do quadro de Artilharia. Nas circunstâncias do regime, tinha estado como tenente na esquadra da PSP do Calvário, em Lisboa, depois de ter feito parte da Companhia de Polícia Móvel que esteve em Bissau.

Nesses contextos da juventude formou a sua mentalidade. Rigidez ideológica, fidelidade cega aos desígnios dos mandantes da guerra, alheamento total dos problemas, sentimentos e ambições das populações no terreno. Completa incompreensão das razões da guerra, nem desejo algum de as tentar compreender. Muitos houve assim naquela fase (1967). Ao longo do tempo de guerra muitos foram mudando, e penso que ele também teria mudado.

Mas eu fui amigo dele e acompanhei-o desde o princípio, fui o seu braço direito. Tive a incompreensão dos outros alferes, meus amigos de coração actualmente e eu deles (há 38 anos que nos encontramos - os sobreviventes - três vezes por ano, pelo menos, no Restaurante Colina, em Lisboa). Eles compreendem, agora, as razões dessa minha actuação, pala formação que eu tinha, pelos objectivos que queria conseguir.

O Guimarães foi promovido a capitão e mobilizado para a Guiné. Conhecêmo-lo em 4 de Dezembro de 1966, no RAL1, aquando da formação da companhia (CART 1690) e durante a instrução da especialidae no GACA2, em Torres Novas (de 6 de Dezembro de 1966 a 23 de Fevereiro de 1967).

Lembro-me bem que partíamos os dois, aos fins-de-semana, no Alfa Romeo Sprint Special dele até Lisboa. Loucuras, sem auto-estrada! Grandes noites na Cave, D. Quixote, Comodoro... A experiência dele na polícia abria todas as portas (as raparigas abraçavam efusivamente o Carlinhos).

Nas vésperas de embarcarmos no Ana Mafalda (...), fomos todos ao Comodoro. Um homem, já velho, que conhecíamos por ser frequentador, administrador de um banco qualquer (não me lembro), e que costumava jogar ao par ou ímpar com as raparigas (mostrava uma nota de mil e perguntava qual era o número - par ou ímpar? -, se uma dela adivinhava entregava-lhe a nota... e muitos jogos fazia), disse-nos assim: - Vocês vão para a guerra, para se portarem bem peguem lá - deu-nos várias notas de mil - e vão com estas cinco. - E fomos (alferes e capitão) e foi uma noitada. Era assim, a guerra estava paga. 

Era bom homem, o Cap Guimarães. Filho de um Sargento-Ajudante, sobrinho da Beatriz Costa (estive com ele, depois, e chorou a sua morte), morreu aos 29 anos na estrada de Geba para Banjara, a 21 de Agosto de 1967 (...). Lamentou-se-me o pai, que me visitou, estava eu ferido no hospital, que o filho (solteiro) era o sustento de duas irmãs de 14 anos que andavam a estudar, e que a vida dele estava complicada. (...)

sábado, 14 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25941: Timor: passado e presente (21): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte XII: O regresso à Pátria e o fim do anátema de 'deportado' (pp. 102-107)




Restos do edifício da Cãmara Municipal de Timor (Setembro de 1945), bombardeado duarnte a guerra (pág.  103)


Fonte: José  dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial" (Lisboa: Livraria Portugal, 1972)





Recorte da 1ª primeira página do "Diário de Lisboa", de 15 de fevereiro de 1946,
 2ª edição. (Fot0 à direita: O governador de Timor e a sua fanmília a bordo do "Angola").

Portal Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares e Maria Barroso | Pasta: 05778.042.10619 | Título: Diário de Lisboa | Número: 8341 | Ano: 25 | Data: Sexta, 15 de Fevereiro de 1946 | Directores: Director: Joaquim Manso | Edição: 2ª edição | Fundo: DRR - Documentos Ruella Ramos | Tipo Documental: IMPRENSA


Citação:
(1946), "Diário de Lisboa", nº 8341, Ano 25, Sexta, 15 de Fevereiro de 1946, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_23303 (2024-9-13)




Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, 208 pp. Cortesia de Internet Archive. O livro é publicado trinta anos depois dos acontecimentos. O autor terá nascido na primeira década do séc. XX.




António Oliveira Liberato, capitão: capas de dois dos seus livros de memórias: "O caso de Timor" (Lisboa, Portugália  Editora, s/d, 242 pp.)  e "Os Japoneses estiveram em Timor" (Lisboa, 1951, 33 pp.). São dois livros, de mais difícil acesso, só disponíveis em alguns alfarrabistas e numa ou noutra biblioteca pública.



Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor". 
 Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.




Capa do livro de Carlos Vieira da Rocha,
" Timor: ocupação japonesa dirante a Segunda Guerra Mundial,
2ª ed rev e aum, Lisboa: Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 1996 309 pp.





Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a zona de detenção dos portugueses, imposta pelos japoneses (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido  invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.

Infografia : Wikipédia > Timor-Leste |  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 



1. Estamos a chegar ao fim das notas de leitura e excertos do livro do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive. Recorremos também a outras fontes, nomeadamennte, Rocha (1996).


Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Parte XII:     O regresso à Pátria e o fim do anátema de 'deportado' (pp. 102-107)
 

(i)  Portugal recuperou a soberania da Timor, ao fim de
três anos e meio de ocupação do território pelas tropas japonesas. 
Morreram perto de um centena de portugueses, europeus e "liurais" (régulos timorenses, fiéis a *Portugal), em combate, assassinados, vítimas de doença, ou desaparecidos no mato,   sem falar das muitas  dezenas e dezenas de milhares de timorenses anónimos.

 Isolados do mundo desde julho de 1943,  os habitantes de Timor só souberam em  1 de setembro de 1945 (!) da notícia 
do fim da II Grande Guerra e  do armistício. 
 
  O Governador, cap Ferreira Carvalho, 
 rapidamente decidiu a reocupação da ilha, 
 e o restabelecimento da autoridade portuguesa, 
o que foi feito em tempo tempo-recorde de 14 dias.

A 27, chegam a Díli os avisos "Bartolomeu Dias" e "Gonçalves Zarco", 
e,  dois dias depois, a  29, o aviso "Afonso de Albuquerque" e o T/T "Angola", 
vindos de Lourenço Marques,  
e ainda, a 9 de outubro, o vapor "Sofala", 
com tropas expedicionárias, novos funcionários e mantimentos.


 (...) Assim, na manhã de 27, estávamos na praia todos os não-timorenses  homens, mulheres e crianças, e muitas centenas de timorenses,  avistando-se os navios cerca das 8 horas, com emoção fácil de calcular. 

O brigadeiro Roque de Sequeira Varejão, comandante-em-chefe das forças expedicionárias, desembarcou cerca das 11: 30 sendo recebido na improvisada ponte-cais e acompanhado por todos os presentes até às ruínas da Câmara Municipal onde se realizaria a cerimónia da receção. 

Neste percurso estavam alinhados quase todos os chefes timorenses, com as suas bandeiras, mais de um cento, os seus tambores e as suas comitivas, totalizando alguns milhares de  pessoas, formadas em massas compactas de um e outro lado  da rua. 

«Alguns dos chefes transportavam apenas a haste da bandeira com um papel dependurado e bem visível. Eram os que tinham emprestado as suas bandeiras durante a guerra e para a reocupação e queriam assim mostrar que não as tinham perdido. Os papeis eram os recibos passados pelas autoridades portuguesas, que comprovavam os empréstimos e garantiam  direito de receberem bandeiras novas, quando as houvesse disponíveis» (1). 

«Tendo o governador, que entretanto se dirigira a bordo, pedido ao comandante-em-chefe das forças expedicionárias que não fizesse desembarcar qualquer força armada para a guarda de honra, foram encarregados dessa missão os bravos moradores de Manatuto e Baucau, que bem mereciam essa distinção.» (1). 

À frente do cortejo seguiu o brigadeiro Varejão acompanhado do Governador e dos oficiais do seu séquito, recebendo  calorosas aclamações e manifestações de alegria de todos os presentes, naturais ou não de Timor. 

Nas ruínas da Câmara, de que apenas restava de pé, ao cimo da escadaria, o frontão do pórtico de entrada apoiado em colunas, improvisou-se uma sala de receção, de que formavam  as restantes três paredes as bandeiras nacionais dos chefes  timorenses que, ordenadamente, se foram colocar nos seus lugares. 

Para dentro do recinto entraram todos os não-timorenses,  com as senhoras e crianças colocadas à frente. 

«E foi neste cenário, simples e ao mesmo tempo impressionante, que se realizou a cerimónia de receção, reduzida a meia  dúzia de palavras pronunciadas pelo governador, de boas-vindas aos que chegavam, de reconhecimento ao Governo da Nação por tudo o que fizera e estava fazendo, de agradecimento a todos os portugueses que tanto se tinham sacrificado no cumprimento do seu dever e aos chefes timorenses pelas provas inequívocas de lealdade e dedicação que tinham dado durante o longo período de provações a que se tinham sujeitado, resistindo a todas as pressões e promessas feitas pelo inimigo. E, tal como acontecera no dia 3 de setembro, no campo de concentração de Lebomeu, quando o governador foi anunciar a todos  que o seu martírio terminara, todos os presentes entoaram o Hino Nacional, vendo-se em todos os olhos lágrimas de alegria  e emoção patriótica» (1). 

 (...) Na tarde desse mesmo dia 27 acompanhei o Governador  e o brigadeiro Varejão numa visita ao acampamento que os  aponeses haviam instalado sob as árvores, no sítio de Túru-Liu,  perto da baía de Tíbar, na estrada de Díli a Liquiçá, a cerca de dez quilómetros da capital. 

A minha presença, ordenada pelo Governador, justificava-se pela necessidade de obterem o meu parecer acerca das condições sanitárias do acampamento, com vista à possível  instalação das tropas a desembarcar. 

Porém, além da casa do comandante, construída de pedra  e cal, nada mais se poderia aproveitar pois havia somente as arracas de madeira e zinco, sem paredes, onde os japoneses  se instalaram, protegidos dos mosquitos por enormes mosquiteiros coletivos feitos de pano e tule. 


(ii) Uma nova equipa santária (quatro médicos) desembarca na ilha: por eles soube, o autor, da descoberta da penicilina!

Faz-se também o pesado balanço da guerra e da ocupação nipónica,
com os seus milhares de mortos e danos patrimoniais


(...) Na manhã do dia 29 chegaram a Díli o aviso "Afonso de Albuquerque" e o navio armado em transporte "Angola", conduzindo, o primeiro contingente do destacamento expedicionário a Timor. 

Foi-me dada então a grande alegria de poder abraçar dois dos oficiais recém-chegados, meus conhecidos e amigos: o capitão-capelão, padre Aníbal Rebelo Bastos e o capitão-farmacêutico Artur de Oliveira, o qual havia conseguido alcançar Moçambique, ido da Austrália e agora voltava à terra onde estabelecera residência e profundamente amava (2) . 

No navio «Angola» chegou o destacamento sanitário comandado pelo capitão médico Dr. Costa Félix tendo como  subalternos os tenentes milicianos médicos, Drs. Meira e Cruz, Tamaguini [mais priovável, Tamagnini], Leitão Marques e Teixeira Dinis, os quais instalei no pavilhão principal do Hospital Dr. Carvalho que, felizmente, estava pronto a recebê-los embora, não restasse um único vidro nas suas janelas por todos haverem desaparecido, estilhaçados  pelo efeito dos bombardeamentos aéreos. 

Deles soube da recente descoberta de um maravilhoso medicamento — a penicilina. 

Desembarcados do «Angola» as tropas e material seguiu  o navio para a Austrália com o fim de se reabastecer de carvão  e mantimentos e transportar os portugueses que aí se encontravam foragidos. 

A 9 de outubro fundeou em Díli o vapor «Sofala» com militares e funcionários administrativos e trazendo os mais diversos artigos necessários à população, para serem postos à venda. 

Por estes dias, o aviso «Afonso de Albuquerque» deslocou-se ao território do Oecússi, transportando o novo administrador. A sua chegada foi completa surpresa para o chefe de posto Fernando Tinoco que esteve encarregado da circunscrição durante todo o período da guerra. Milagrosamente, tudo aí corria em ordem, graças ao encarregado administrativo e à lealdade e dedicação do liurai D. Hugo da Costa, tendo-se mantido a população sempre coesa e disciplinada. 

(…) Pouco a pouco, passámos a saber de factos passados durante a guerra, os quais, até aí, completamente desconhecíamos e pudemos recapitular algumas estatísticas. Contámos, então, os portugueses mortos por causa violenta  durante a guerra: 

  • timorenses, às centenas; 
  • e, dos não naturais de Timor, trinta e sete assassinados, dez mortos em combate e seis mortos por suicídio;
  • também vinte faleceram ao abandono no interior da ilha onde andavam foragidos;
  •  e oito acabaram miseravelmente os seus dias no cárcere nipónico. 

Durante todo o período da guerra Díli, incluindo Lahane e arredores, sofrera noventa e quatro ataques aéreos com bombardeamento. Desses bombardeamentos, atingiram Lahane  trinta, sendo vinte concentrados nos meses de outubro e novembro de 1944. 

Muitas centenas de timorenses haviam perecido assassinados e muitos milhares morreram, principalmente por estarem completamente abandonados os serviços públicos de assistência médica e de enfermagem e não disporem de qualquer possibilidade de obter medicamentos. 

Entre os primeiros, tinham sido passados pelas armas  velhos e leais amigos timorenses dentre os quais se destacava a figura gloriosa do liurai do Suro, D. Aleixo Corte Real 

Alguns refugiados portugueses na Austrália foram aí voluntariamente treinados na técnica dos comandos (3) para depois desembarcarem ou serem lançados em paraquedas sobre Timor para se dedicarem à observação dos movimentos das  tropas nipónicas e à respectiva comunicação pela via radiolegráfica (4). 

Seguira para Timor, em Fevereiro de 1944, um primeiro grupo constituído por dois autralianos, o chefe Paulo de Ussuroa, seu primo Cosme Soares e o criado Sancho. Mais tarde, em agosto, seguira um novo grupo chefiado por um  capitão australiano que levava consigo um telegrafista da mesma nacionalidade e os portugueses José Rebelo, Armindo Fernandes e José Carvalho, que apenas desejavam serem sempre considerados portugueses voluntários para coadjuvar nas operações que tivessem por fim repelir o dominador e espoliador da sua terra (4) . 

O primeiro grupo foi aprisionado pouco depois de ter desembarcado tendo os timorenses que dele faziam parte estado na cadeia de Díli e depois sido transferidos para Lautem, onde morreram, com exceção do criado Sancho (4) . 

Os portugueses do segundo grupo desembarcaram num ponto ermo da costa sul de Lautem e «foram recolhidos nas povoações indígenas, onde os japoneses os foram prender, logo aos primeiros rumores do armistício, em agosto, para os  fuzilar» (4). 



(iii) a vida parece voltar "à normalidade", os "deportados" (políticos e sociais) são amnistiados... E a 8 de dezembro, o navio "Angola", reabastecido na Austrália, faz a sua viagem de regresso a Lisboa, 
levando a bordo cerca de 160 portugueses 
que tinham ficado em Timor durante a guerra.

A chegada a Lisboa foi a 15 de fevereiro de 1946, 
tendo o navio feito escala na Beira, Lourenço Marques, 
Moçâmedes, Luanda e Funchal


(....) No dia 25 de outubro, por despacho do Governador dando execução um telegrama do Ministro das Colónias, foi levantada  a nota de «deportado» a todos os indivíduos que se encontravam em Timor nessa situação, restituindo-lhes o uso de todos os direitos civis e políticos que a lei confere aos cidadãos portugueses. 

A 18 de novembro realizou-se um ato eleitoral em toda  a colónia, que decorreu na mais absoluta ordem e legalidade, elegendo-se, quase por 100% dos votos o candidato a deputado por Timor e antigo governador da colónia, capitão Teófilo  Duarte. 

Por este tempo, foi dado conhecimento aos interessados de o Governador ter promulgado uma portaria, pela qual eram louvados os que mais se haviam distinguido durante a ocupação. 

Na tarde de 7 de dzembro, tendo chegado o vapor "Angola"  em regresso da Austrália, o capitão Ferreira de Carvalho fez entrega do governo da colónia ao inspector administrativo, capitão Óscar Freire de Vasconcelos Ruas, numa sessão pública em que ambos discursaram. 

Às 15 horas do dia 8 de dezembro, embarcaram no referido navio cerca de 160 portugueses — homens, mulheres e crianças — que tinham permanecido em Timor durante a guerra.  Alguns, poucos, não seguiram, por então preferirem ficar na ilha onde tinham a sua família e interesses. 

Chegados a bordo, tivemos a alegria de poder abraçar, de novo, conhecidos e amigos, entre os quais, D. Jaime Garcia, o engenheiro José de Azevedo Noura, o administrador António Policarpo de Sousa Santos, o capitão Silva, o administrador Lourenço Aguilar, o Dr. Cal Brandão, etc. 

(...) Pôde ser classificada de triunfal a viagem até Lisboa. Em todos os portos que tocámos, fomos acolhidos com festas e honrarias e, sobretudo, com manifestações de tão sincera alegria que nos demos por bem pagos das provações que  havíamos passado. 

Na Beira, Lourenço Marques, Moçâmedes, Luanda e Funchal recebemos inúmeras e inequívocas provas de consideração e estima que nunca poderíamos esquecer. 

Chegámos e Lisboa em 15 de Fevereiro de 1946, sendo esperados ansiosamente por muitos milhares de pessoas (5). 

«Em Alcântara viveu-se uma hora simultaneamente apoteótica e emotiva, dentro de um dos mais belos espetáculos  que alguma vez se têm verificado em Lisboa, Milhares de pessoas de todas as classes acorreram à Estação Marítima para receber triunfalmente os repatriados de Timor, vítima de uma  guerra que não provocaram. Bem singular foi essa manifestaçao, em que às palmas e aos vivas se juntaram palmas e  soluços. Quase todos os que vieram sofreram crueldades e  torturas sem nome, correram aventuras de jogar-se a vida, viram cair para sempre parentes e amigos — só por teimarem  em defender a soberania portuguesa. E a história de cada um foi o que se viveu ontem, em vibrante comunhão patriótica,  forte o amplexo em que se confundiam o orgulho dos que chegaram e a comoção dos que os recebiam." (5) 

(...) Aos repatriados necessitados foram distribuídos, ainda no navio, roupas e agasalhos por uma comissão do Fundo de Socorro Social que tinha ao seu serviço uma brigada de 40 empregados dos Armazéns do Chiado, sendo contemplados 100  homens, 68 mulheres, 78 rapazes, 71 meninas e 10 bebés (5) . (...)

  ____________________ 

Notas do autor (JSC):

(1) Vide artigo do Dr. Tarroso Gomes no jornal «Novidades» de 27 de setembro de 1970.

(2) O capitão-farmacêutico, ao avistar-me, não pôde reter estas palavras que irresistivelmente lhe escaparam: «Ai coitadinho, que está tão magrinho!». De facto eu, embora seja de baixa estatura pesava então, somente 42 quilos!

(3) O tenente Pires havia-se prontificado na Austrália a conservar-se em Timor, com um pequeno grupo, em serviço de observa ção. Comprometera-se ainda a recrutar quinze voluntários que, trei- nados nas escolas de «Comandos», fossem depois juntar-se-lhe naquele serviço e debaixo das suas ordens. (Vide Cal Brandão, "Funo", p. 148).

 (4) Vd. Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor".  Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.

(5) Vide jornal «Diário de Notícias», de 16 de fevereiro de 1946
 

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, itálicos, negritos, parênteses retos, comentários, reordenação das notas de rodapé: LG)

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Nota do editor:

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25778: Timor-Leste: passado e presente (14): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte VI: Díli, 20 de fevereiro de 1942: a invasão e a ocupação japonesas



Timor > s/l (Díli ?) > s/ d (c. 1936-1940) > Grupo de filhos de portugueses enquadrados na "Mocidade Portuguesa"


Timor > s/l (Díli ?) > s/ d (c. 1936-1940) > Sessão de ginástica com jovens (todos timorenses ?) enquadrados na "Mocidade Portuguesa"



Timor > s/l  > s/ d (c. 1936-1940) > Estação TSF de Díli (ou seria Taibéssi, de que os japoneses se apoderaram em 31 de maio de 1942 )


Timor > s/l  > s/ d (c. 1936-1940) > Alfândega de Díli



Timor > s/l > s/ d (c. 1936-1940) > Vista de Ermera



Timor > s/l > s/ d (c. 1936-1940) > Beiro do chefe de posto de Ataúro


Fotos do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagens do domínio público, de acordo com a Wikimedia Commons. Editadas por blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)



Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido  invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.   Na II Grande Guerra, conheceu por duas vezes a invasão e ocupação por tropas estrangeiras (os Aliados, em 17 de fevereiro de 1941; e depois os japoneses, em 20 de fevereiro de 1942). Na altura teria pouco mais de 400 mil habitantes. O território era administrado por Portugal desde o início do Séc. XVIII.

Infografia : Wikipédia > Timor-Leste |  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 





Fonte: Portal Casa Comum | Fundação Mário Soares e Maria Barroso | Pasta: 05768.032.08355 | Título: Diário de Lisboa | Número: 6913 | Ano: 21 | Data: Sábado, 21 de Fevereiro de 1942 | Directores: Director: Joaquim Manso | Fundo: DRR - Documentos Ruella Ramos | Tipo Documental: Imprensa.


Citação: (1942), "Diário de Lisboa", nº 6913, Ano 21, Sábado, 21 de Fevereiro de 1942, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_26735 (2024-7-26)


1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro de memórias do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive.

Ao povo de Timor Leste ligam-nos laços históricos, linguísticos e afetivos, razão por que temos a obrigação de conhecer melhor a sua história, passada e presente, incluindo os trágicos acontecimentos que ocorreram na II Guerra Mundial.

Da entrada sobre "Timor", no "Dicionário de História de Portugal. Suplementos" (ed. lit, António Barreto e Filomena Mónica, vols. VII a IX, Porto, Figueirinhas, 2000), pode ler-se, no Vol IX, Suplemento P/Z, a pp. 515-517, e bem como do livro de memórias de José dos Santos Carvalho que temos vindo a recensear, recolhemos a seguinte informação, sumária, de natureza socioeconómica e demográfica:

(i) de 1926 a 27 de fevereiro de 1942 (data do desembarque japonês), Timor conheceu "um período de abandono e estagnação" (sic), não obstante a "ação civilizadoa e colonizadora" do governador Álvaro Fontoura (1936-1940), propagandeada no célebre "Álbum Fontoura" (coleção com mais de meio milhar de fotografias sobre a "colónia portuguesa de Timor"; ficou com "o nome do governador que o mandou elaborar, em finais dos anos 30, e coincidindo, então, com a permanência em Timor de uma missão geográfica e geológica, chefiada pelo geógrafo Jorge Castilho").

(ii) 200  civis (cerca de metade eram deportados) e 300 militares (a maior parte indígenas) garantiam a soberania portuguesa;

(iii) mais de 90% dos menos de 500 mil timorenses de então viviam nas zonas rurais governados pelsos seus próprios régulos (os "liurais", da confiança política dos portugueses);

(iv) a economia, de base agrícola, era de subsistência (milho, introduzido pelos portugueses no séc. XVII, e arroz de sequeiro), tendo alguma importância o café (que era exportado), a criação de gado e o artesanato;

(v) em Díli, a atividade comercial era dominada por uma "elite de mestiços e chineses";

(vi) 80% das exportações eram representadas pelo café, de alta qualidade (700 toneladas exportadas em 1938);

(vii) na ausência de receitas próprias, Lisboa tinha que suportar as despesas de administração do território;

(viii) em Díli, em 1940, não havia energia elétrica, água corrente, ruas pavimentadas, telefones públicos, instalações portuárias (cais de carga);

(ix) apenas cerca de um milhar de crianças frequentavam a escola primária;

(x) havia 4 médicos (segundo o testemunho de José dos Santos Carvalho, médico de saúde pública) e uns tantos enfermeiros e auxiliares de enfermagem;

(xii) os direitos civis, reconhecidos em 1822, na sequência da revolução liberal, foram revogados pela nova política colonial do Estado Novo (Ato Colonial de 1930);

(xiii) os assimilados ou civilizados eram uma minoria de 2% de timorenses (os que tinham instrução e bens próprios);

(xiv) pelo Ato Colonial de 1930, praticava-se o "trabalho forçado", embora "pago" (obras públicas, etc.);

(xv) o território (a c. 20 mil km de distância da "metrópole") continuava a ser local de deportação e encarceramento (deportados "políticos" e "sociais", que em 1840 não chegaram a uma centena);

(xvi) a Igreja Católica era influente mas só 13% dos timorenses eram então católicos praticantes;

(xvii) a assinatura da Concordata e do Acordo Missionario entre o Vaticano e o Estado Novo tinha-se traduzido na criação de uma diocese em Díli (Timor até então dependia de Macau);

(xviii) não havia rádio nem jornais;

(xix) praticamente, os únicos professores eram os missionários (e um ou outro militar);

(xxx) o sistema de saúde resumia-se praticamente a um pequeno hospital, em Lahane, uma "farmácia de Estado", e três delegacias de saúde pública, para um território de 15 mil km quadrados;

(xxxi) a rede rodoviária era ainda rudimental: o trânsito automóvel (havia poucas viaturas) limitava-se à zona costeira; nas montanha-se recorria-se ao cavalo; e a navegação de cabotagem era feito pelos "beiros" (barcos à vela)...

São dados que estão longe de serem lisongeiros para a potência administrante do território (com governador nomeado desde o início do séc. XVIII)... Compare-se esta informação com as fotos do "Álbum Fontoura", nomeadamente sobre a "ação civilizadora e colonizadora"... Álvaro Fontoura (1895-1975) foi governador de Timor entre 1936 e 1940 e, como se costuma dizer, "deixou obra", leia-se, "obras públicas (escolas, igrejas, enfermarias, edifícios públicos, algumas pontes...).


Timor, Díli, 20 de fevereiro de 1942 - A invasão e a ocupação japonesas

por José dos Santos Carvalho



(i) Sabemos que nesta altura o autor estava em Baucau, onde exercia a função de autoridade de saúde. Bacau estava a mais de 120 km da capital, Díli. Não foi, pois, testemunha direta da invasão japonesa. Os japoneses desembarcaram a 5 km de Dili, expulsaram os Aliados e instalaram-se na capital.

Daí o José dos Santos Carvalho ter-se socorrido de outras fontes, como o livro do deportado dr. Cal Brandão (1906-1973), "Funo: guerra em Timor" (Porto, 1946). E de testemunhos posteriores de quem viveu os primeiros acontecimentos, em Díli e Lahane.

As forças militares portuguesas não ultrapassavm os 300 homens, mal armados e enquadrados: além da Polícia de Fronteira, havia a Companhia de Caçadores, comandada pelo cap Freitas da Costa, e coadjuvada por outros três oficiais, os tenentes Liberato, Ramalho e Garcia de Brito; inicialmente aquartelada em Taibéssi, próximo de Díli, foi obrigada pelos Aliados a ir para Maubisse (e, depois, com os japoneses, para Aileu).

(...) Cerca das nove horas do dia 8 de fevereiro, dois aviões japoneses metralharam as posições holandesas na praia de Díli, atingindo casas da cidade e só por milagre não feriram os portugueses que, a essa hora se dirigiam para o edifício da Câmara Municipal onde se realizaria a eleição do Senhor Presidente da República [ reeleição de Osar Carmona, pela única, da União Nacional] (1).

 Na madrugada do dia 20 de fevereiro, forças japonesas desembarcaram em Díli após uma fraquíssima resistência das tropas holandesas, logo abandonadas pelos soldados javaneses que constituíam a sua maior parte e, como gamos, fugiram para o interior deixando as armas.

Seguiu-se desenfreado saque à cidade pela indisciplinada tropa de choque que tinha feito o assalto e a encontrou quase vazia de habitantes.

Dos poucos europeus que ainda viviam em Díli, muitos foram pedir auxílio às casas de Lahane e, sobretudo, ao hospital e edifícios anexos e à Missão, onde se alojaram cerca de trinta pessoas. Outros, foram para muito mais longe, a Aileu, à Ermera, a Liquiçá e a Maubara, onde tinham as famílias desde dezembro do ano anterior  [ desde ainvasão das tropas autraliano-holandesas].

Tendo caído granadas junto ao quartel de Taibéssi, aquando do bombardeamento japonês que precedeu o desembarque, o tenente Ramalho seguiu com o destacamento da companhia de caçadores que comandava para Aileu onde se juntou à companhia de caçadores que, por ordem do Governador, se deslocou para ali, de Maubisse, ficando todos instalados no edifício do presídio.

Os japoneses ocuparam quase todos os edifícios de Díli e, em Lahane, o edifício da Assembleia dos Funcionários, e as casas do chefe do gabinete do governador, capitão Vieira, e do Dr. Francisco Rodrigues, que nessa altura estavam sem moradores. 

Libertaram imediatamente os seus concidadãos presos pelas tropas aliadas e internaram no hospital Dr. Carvalho, à responsabilidade assumida pelo seu director, Dr. Correia Teles, e sob palavra de honra, de que não fugiria, o cônsul da Holanda, engenheiro Brower e sua esposa.

Naquele mesmo hospital ficaram alojados, até ao fim da guerra, o alemão Max Sander e o autraliano Arthur Brian.

Somente através de atos do mais puro heroísmo e destemida dedicação foi possível a alguns portugueses voltar a Díli e salvar alguma coisa, destacando-se, nomeadamente, o gerente do Banco Nacional Ultramarino João Jorge Duarte, o Dr. Tarroso Gomes (que exercia as funções de diretor dos Serviços de Fazenda) e o aspirante administrativo José Duarte Santa.

Obrigados a cumprimentar os japoneses com repetidas vénias e maltratados e até esbofeteados, não deixaram de teimosamente voltar às suas antigas repartições, procurando manter um esboço de serviço e evitar a destruição ou deterioração de elementos preciosos para a administração.

Assim, o gerente evitou que as instalações do Banco fossem ocupadas pela tropa e o Dr. Tarroso salvou o essencial para o funcionamento dos Serviços de Fazenda que conseguiu manter em Díli, algum tempo, numa casa particular.

Do saque a Díli, conseguiram os fiéis timorenses, funcionários da administração do concelho, chefiados pelo aspirante Santa, salvar e transportar para Lahane, sendo armazenados no hospital e em várias casas, o arroz, feijão e parte do café que estavam nos armazéns da FOAGE (Fábricas, Oficinas e Armazéns Gerais do Estado), cujas instalações foram ocupadas pelos japoneses e que de lá se conseguiram tirar antes de desaparecer, tudo, e a gasolina e petróleo da reserva do Estado que estava num armazém junto ao farol, e que, também, foi possível salvar em grande parte.

Papel brilhantíssimo coube a todos os funcionários dos Serviços de Saúde, desde o director até ao mais humilde servente !

Apesar da fuga desordenada perante a fúria e desvastações do invasor, nem um só abandonou o seu posto pelo que o hospital Dr. Carvalho foi o único organismo do Estado que pôde continuar e exercer todas as suas funções com regularidade e a mais completa calma e eficiência, passando aí a funcionar a Farmácia do Estado.

 



(ii) a violação da soberania portuguesa, desta vez pelos japoneses, não teve a mesma denúncia veemente, por parte de Salazar, que tinha tido a invasão dos Aliados; 
o Estado Novo tratou o caso de Timor (e de Macau) com pinças e luvas de veludo;  
a censura não deixou que se publicassem notícias das atrocidades cometidas pelos japoneses e pelas "colunas negras" por eles armadas e alimentadas...
Os portugueses, na metrópole, só souberam dos "detalhes" sangrentos no final da guerra; a recuperação da soberania de Timor foi duramente negociada com os Aliados.


(...) Em princípios de março  [de 1942] os japoneses distribuíram prospetos, em inglês, pelos quais impuseram a sua moeda, o «yen» com paridade com a pataca. Logo surgiram as notas de «gulden», moeda de guerra dos japoneses, emitida especialmente para circular nas Índias Neerlandesas.

 Aviões japoneses que sobrevoaram vários pontos da colónia, entre os quais a vila de Baucau, lançaram a seguinte proclamação, impressa em inglês:

 PROCLAMATION

 Imperial Empire of Great Japan is now in war with Netherland and also with Australia wich is a component of the United Kingdom.

 Imperial Japanese Forces are obliged to take necessary measures and means in Timor so far as forces of Netherland and Austrália are stationing in that neutral territory.

 I. Commanding Officer of Imperial Japanese Forces, hereby demand and declare as follows:

(1) Imperial Japanese Forces will be stationed in Portuguese Timor, for self -defense in connection with their operations.

(2) Portuguese forces and non-combatents are requested strictly not to obstruct or disturb any operation of the Imperial Japanese Forces.

 Commanding Officer Imperial Japanese Forces. (...)


(iii) Tradução para português da proclamação de guerra, assinada peloComandante das Forças Imperiais Japonesas. (Google Translate / LG):

"O Império Imperial do Grande Japão está agora em guerra com a Holanda e também com a Austrália, que é parte do Reino Unido. 

 As Forças Imperiais Japonesas são obrigadas a tomar as medidas e os meios necessários em Timor, na medida em que forças neerlandesas e australianos  estão  estacionadas em território neutro como este. 

Eu,  Comandante das Forças Imperiais Japonesas, por este meio, aqui decalro e exijo  o seguinte: 

 (1) As Forças Imperiais Japonesas ficarão estacionadas no território de Timor Português, para autodefesa no âmbito das suas operações. 

 (2) Aos militares e aos civis portugueses  requer-se estritamente  que não obstruam ou perturbem qualquer operação das Forças Imperiais Japonesas. 

O  Comandante das Forças Imperiais Japonesas."

 

(iv) O autor dá-nos conta das primeiras escaramuças entre os japoneses e os autralianos, refugiados nas montanhas e organizados em grupos de guerrilha, a que se juntam timorenses e alguns portugueses (deportados); os primeiros portugueses abatidos selvaticamente são os deportados Ramos Graça e Fernando Martins.


(...) Pouco depois da sua chegada a Díli, os japoneses lançaram-se à conquista do acampamento dos australianos em Nai-Suta, tendo sofrido grandes desaires, caindo como tordos (1) sob os golpes dos soldados australianos que actuavam em guerrilhas.

 No mês de Março, uma secção australiana que operava no Remexio lançou vários raids ao centro de Díli (1) . Os japoneses, despediram, montanha acima, em perseguição dos importunos. O caminho tortuoso, áspero e apertado, ficou bem demarcado com cadáveres amarelos (1) .

 «Enraivecidos, quando chegaram ao alto, entram na primeira palhota que se lhes depara. Era a humilde moradia, a quase miserável residência de Ramos Graça, que deportado em Timor desde 1927, onde levara uma vida de trabalho honrado, ali vivia rodeado dum grupo de crianças que eram seus filhos. 

Surprendido, mas sem receio, respondeu serenamente, e com verdade, que desconhecia o paradeiro dos guerrilheiros australianos. Sairam; um pouco adiante porém, nova rajada de metralhadora leva mais uns tantos a morder o pó daquela terra ultrajada. Retrocedem cegos de despeito e ódio, entram de roldão na palhota, avançam as baionetas em golpes repetidos até saciarem seus selváticos e sanguinolentos instintos. 

Passam uma corda ao pescoço do cadáver esquartejado, arrastam-no para uma ravina distante, onde o despenham e é encontrado poucos dias depois. Assim morreu Ramos Graça, o primeiro português-europeu a cair indefesa e ingloriamente» (1).

Combatendo ao lado dos australianos, apesar de ser coxo, encontraram e aprisionaram os japoneses, no Remexio, o deportado sr. Fernando Martins. Levaram-no para Díli, onde foi morto a golpes de catana no campo de aviação, segundo mais tarde me informou o sargento António Joaquim Vicente que, no tempo de paz, era o chefe da polícia de Díli.

 Após as escaramuças na estrada de Nai-Suta, os aviões japoneses bombardearam as suas matas laterais (1).

 Dias depois os japoneses avançaram, em três colunas, para a Ermera. Uma grande coluna, cerca de oitocentos homens, abriu caminho, pela estrada; a segunda, foi por Liquiçá, atravessando em seguida Fatubéssi; e a terceira, que tinha tentado avançar, foi repelida em Bazar-Tete, onde morreram vinte ecinco japoneses (1).

 Furiosos com esta derrota, prenderam o chefe de posto de Bazar-Tete, sr. César Moreira Rato e levaram-no para Díli, no dia 12 de Março, acusando-o de ser o causador daquele desastre (1), por não os ter avisado, quando estavam em sua casa, de que havia australianos perto e, depois, serem atacados por eles (3) . Levaram-no para Díli, para o quartel-general, onde dois dias o tiveram preso por uma corda a uma das árvores do quintal; como alimento deram-lhe alguns grãos de arroz e águaquente (1). Foi libertado, devido a pronta e decidida reclamação do Governador Ferreira de Carvalho.

 Na Ermera, as tropas nipónicas estabeleceram-se na casa do Posto, prendendo num dos quartos o respectivo chefe, sargento Relvas,  o enfermeiro e o guarda-fios, e fazendo outras tropelias porém, no dia seguinte, levantaram quartéis e regressaram a Díli (1) .

 Foram-se inesperadamente, como inesperadamente tinham ido, mas dias depois, os seus aviões de ronda, até então inofensivos, bombardearam todas as vilas daquela região. A Ermera foi a mais castigada, registando-se onze mortos, entre os quais duas crianças de colo (1).

 Um mês depois, voltou a infantaria em formação cerrada, batendo o  caminho cuidadosamente,  carros de assalto à frente, metralhadoras a cantar, em serviço de varrer as bermas da estrada. Como guarda-avançada tinham enviado dois oficiais à paisana, disfarçados em chineses, que o Júlio Madeira (3) prendeu e entregou aos australianos (1).

 «Vinham para ficar, para castigar aqueles impertinentes australianos, que nesses dias negros, perdidos em Díli os aparelhos de TSF sem ligação com a Austrália, exaustos os seus recursos, se tinham recolhido à Fronteira, onde a assistência dada pelo administrador Sousa Santos, e os demais funeionários que ali prestavam serviço, os ia aguentando na esperança de melhores dias. Apenas duas ou três patrulhas, deixadas à retaguarda, iam tornando caro o avanço do Grande ExércitoImperial do Grande Império Nipon. Ao chegar à Hátu-Lia, onde se demoraram dois dias, tinham perdido quatrocentos homens.

"Estiveram pois em descanso na Ermera todo um mês, de 13 de abril a meados de maio, que aproveitaram para fazer intensa propaganda no seio dos indígenas» (1).

 Na Hátu-Lia prenderam os japoneses o respectivo chefe de posto, sargento Mortágua, juntamente com o missionário Padre Madeira e o feitor da Granja Eduardo Marques, sr. Carrascalão, que foram libertados somente quatro dias depois, mercê de enérgico protesto do Governador Ferreira de Carvalho.

 Por esses tempos, alguns deportados se foram juntar às guerrilhas onde encontraram já o Júlio Madeira, e de combinação com vários amigos, ainda fixados nos arredores da cidade de Díli, apoderaram-se dum aparelho de rádio, com o qual os australianos estabeleceram o primeiro contacto com Darwin.


(v) Díli e outras posições dos japoneses começam a ser bombardeadas com regularidade pelos Aliados (primeiro, os australianos, e depois os americanos); a resistência recrudesce e aguenta-se, pelo menos até meados de 1943; mas o número de baixas entre os japoneses, reportada por Cal-Brandão, tem de ser aceite com reservas, a ausência de outras fontes independentes.


(...) A Austrália, que considerava perdida toda aquela gente, fez um apertado reconhecimento e mandou os primeiros socorros bem necessários. Pela primeira vez, então, um avião aliado apareceu a fotografar as posições inimigas. Criaram-se novas esperanças com o reaparecimento das guerrilhas bem armadas e municiadas pelos reabastecimentos recebidos em paraquedas. Ouviu-se de novo o estrondear das granadas de mão e as sinistras gargalhadas das metralhadoras. Os japoneses atacados nas suas posições avançadas e na própria linha de comunicações, lançavam patrulhas que iam sendo dizimadas impiedosamente.

Numa luta sem quartel os guerrilheiros atacavam por toda a parte e a toda a hora, de noite e de dia. Batidos, quase escorraçados, os japoneses confinam-se em Díli, que começa a ser bombardeada regularmente (1).

Assim, apareceram pela primeira vez sobre a cidade, lançando bombas, quatro aviões australianos, no dia 20 de maio.


(vi) O administrador do concelho de Díli é substituído pelo engenheiro Artur do Canto, da Missão Geográfica, ao que parece por pressão dos japoneses; o autor, José dos Santos Carvalho,  irá elogiar a sua ação, na ligação com o ocupante; por sua vez, os portugueses perdem todas as ligações com o exterior,  quando em 31 de maio de 1942 os japoneses ocuparam a  estação radiotelegráfica de Taibéssi.

 

(...) Os japoneses organizaram então a sua defesa antiaérea, eriçando de canhões e metralhadoras os pontos estratégicos, entre os quais as muito próximas vizinhanças da residência do Governador e do hospital Dr. Carvalho, os quais, sempre que havia um ataque, desentranhavam um muito nutrido e ensurdecedor fogo de barragem.

«Impotentes para resistir aos violentos ataques dos aliados, fazem recair suas iras sobre os indefesos funcionários que, na capital, junto do Governador, procuram manter em funcionamento um arremedo de serviços públicos. Incompatibilizados com o administrador do concelho, fazem pressão para que seja castigado, conseguindo que seja suspenso do exercício das suas funções, afastado do seu posto e substituído pelo engenheiro-geógrafo Artur do Canto, da Missão Geográfica, que, naquele momento difícil e num gesto simpático, voluntariou para tão espinhoso como ingrato cargo» (1).

No dia 31 de maio os japoneses ocuparam a nossa estação radiotelegráfica de Taibéssi pelo que, daí em diante, ficámos sem qualquer possibilidade de comunicação com o exterior.

 A nomeação do engenheiro Canto para exercer as funções de administrador do concelho de Díli saiu em 4 de junho, seguindo o administrador Aguilar para Baucau (onde o encontrei no dia 6) e daí para Venilale, residência em que se fixou.

 Aconteceu no dia 6 de junho um facto absolutamente inesperado e inexplicável que a todos deixou confusos. Aviões australianos bombardearam e metralharam Aileu, onde somente se encontravam portugueses!

 Fortemente intimidadas pelo bombardeamento, as famílias que aí se achavam refugiadas procuraram novos poisos e seguiram para diversos pontos, especialmente para Manatuto, Baucau e Soibada onde encontraram o melhor acolhimento. 

O administrador de Manatuto, Dr. Mendes de Almeida e a sua esposa, D. Elzira, receberam na sua residência de Saututo, as famílias do Governador, do capitão Vieira e do tenente Alves. O capitão dos portos de Timor, comandante César Gomes Barbosa, seguiu para Baucau onde se instalou numa casa próxima domoinho que aí existia.

 No dia 10 de junho, Díli foi fortemente bombardeada por aviões australianos o que obrigou o Governador a ordenar que os serviços que ainda estavam em Díli fossem transferidos para Lahane. Assim, a administração do concelho passou a funcionar na Missão Geográfica e os serviços de fazenda numa das casas do Estado.

 A 28 do mesmo mês, registou-se um novo bombardeamento da cidade de Díli.

 Na noite de 1 de Julho deu-se a fuga do hospital Dr. Carvalho do cônsul da Holanda, Engenheiro Brower, e de sua esposa, o que causou sérios dissabores ao Dr. Correia Teles, diretor do hospital, que foi fortemente incomodado no inquérito a que a polícia japonesa (4) procedeu após o acontecimento.

 No dia 9 de julho, Lahane foi bombardeado por aviões, agora americanos, sendo atingida a casa do quartel da polícia portuguesa instalado no lugar de China Rate. Morreram quatro guardas e treze moradores auxiliares da polícia e foram feridos outros, todos timorenses.

 Os sucessivos e mortíferos bombardeamentos forçaram o Governador a transferir a sede do Governo e os Serviços Públicos para outros locais onde ainda não tinha chegado a guerra.


(vii) por razões de segurança, os escassos serviços e funcionário públicos (e respetivas famílias) são dispersos pelo território, por ordem do governador;  em 12 de agosto, o médico  desloca-se de Baucau para Lahane,  numa ação de voluntarismo e solidardade.


(...) Por uma portaria publicada em 11 de julho [de 1942], ordenou que a sede do Governo e os Serviços de Administração Civil e os de Fazenda passassem a funcionar em Baucau, os Serviços dos Correios em Laga e a Repartição de Saúde, o Hospital Dr. Carvalho e a Farmácia do Estado, em Quelicai.

A mudança dos serviços e o transporte dos funcionários e do mobiliário e dos arquivos que ainda nos restavam, foram feitos com febril mas perfeitamente ordenada organização que logo demonstrou as excecionais qualidades de dirigente e administrador do Engenheiro Canto.

Em poucos dias se conseguiu dar execução à portaria governamental, porém, quando o Governador, com o seu ajudante e secretário, saíam no seu automóvel do recinto da residência para seguirem para Baucau, no dia 22 de julho, uma simples sentinela japonesa barrou-lhes o caminho, sem dar quaisquer explicação do seu ato.

Não tiveram outro recurso senão regressar ao ponto de partida e resignar-se à situação, pois o cônsul japonês, sr. Sayta, assediado pelo engenheiro Canto,(atuando qual consumado diplomata) , afirmava que, como simples civil, nada podia fazer perante o omnipotente comando militar.

 Deste modo, o Governador com os seus dois diretos colaboradores ficou retido em Lahane ao passo que os Serviços estavam instalados, na zona leste. Prevendo o pior, combinou, pelo telefone, com o Dr. Taborda, director da administração civil, que assumisse as funções de governador, se se passassem 48 horas de interrupção de comunicações entre Baucau e a residência de Lahane.

 No edifício do Hospital Dr. Carvalho funcionava agora somente uma ambulância dirigida pelo Dr. Rodrigues que nele habitava com sua esposa D. Rufina, e aí estavam instalados o administrador do concelho de Díli e seus directos colaboradores, o gerente do Banco Nacional Ultramarino com dois seus funcionários, o sargento-artífice Alberto Pinto e os estrangeiros Max Sander e Arthur Brian.

Ao passar em Baucau, caminho de Kelikai, o chefe da Repartição de Saúde, Dr. Correia Teles, contou-me que a senhora D. Rufina Rodrigues andava seriamente assustada e preocupada com os bombardeamentos de Díli e Lahane que muito a emocionavam. Redigi e assinei, então, uma nota a ele dirigida, oferecendo-me para ir substituir aquele nosso colega em Lahane, durante um mês.

Instalaram-se os vários funcionários que agora prestavam serviço em Baueau, nas diferentes casas que ficaram superlotadas com várias famílias.

 Na minha residência tive o prazer de receber o sargento Ribeiro e sua família e o Dr. Tarroso Gomes que exercia as funções de director dos Serviços de Fazenda.

 O meu oferecimento para substituir o Dr. Francisco Rodrigues durante um mês foi aceite pelo Governador, pelo que eu segui no automóvel da circunscrição de Baucau para Lahane onde cheguei no dia 12 de agosto, tendo o Dr. Rodrigues e sua esposa ido para Baucau, imediatamente, no mesmo carro que me levara.

No pavilhão principal do edifício do Hospital Dr. Carvalho encontrei : o engenheiro Canto, o sargento Vicente, o secretário administrativo João Gamboa, o chefe de posto de Laulara, Francisco Torrezão, os aspirantes administrativos, José Santa e Domingos Ribeiro, o secretário da Câmara Municipal de Díli, Rosário Roque da Piedade Rodrigues, o sargento-artífice Alberto Pinto, o enfermeiro  Victor Madeira, o gerente do Banco Nacional Ultramarino, João Jorge Duarte, os funcionários do mesmo banco, Anselmo Bartolomeu de Almeida e Fausto Amaral, e os estrangeiros Max Sander e Arthur Brian.

 (Continua)



Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor". 
 Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.


Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, 208 pp. Cortesia de Internet Archive.

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Notas do autor:

(1) Vide Carlos Cal Brandão, Funo. Porto, 1946.

(2)  Informação a mim prestada, directamente, pelo senhor Moreira Rato.

(3)  O senhor Júlio Madeira, natural da Ermera, tinha sido soldado da Companhia de Caçadores e havia constituído com timorenses uma guerrilha que fez grandes estragos entre os japoneses devido ao conhecimento perfeito que o seu chefe tinha da região onde nascera e à sua perfeita mobilidade e perícia no manejo das armas.

(4) Os japoneses tinham uma polícia no género da Gestapo, por eles denominada Kempy [ou Kempeitai

Fonte: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pp. 34-43.
 
(Seleção, revisão / fixação de texto, título, notas introdutórias, parênteses retos, itálicos e negritos: LG)

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 22 de julho de  2024  > Guine 61/74 - P25769: Timor Leste: passado e presente (13): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte V: a invasão de tropas australiano-holandesas, em 17 de dezembro de 1941