terça-feira, 1 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P25996: O melhor de ... A. Marques Lopes (1944-2024) (11): Quando os meus camaradas (o António Moreira e o Domingos Maçarico...) desconfiaram de mim... ("Cagra Cega", 2015, pp. 471-473)


Dois antigos alferes da CART 1690: Alfredo Reis (à esquerda) e Domingos Maçariço (à direita). 24 de julho de 2010: recordando, 42 anos depois, o ataque ao destacamento de
Banjara. 

Foto (e legenda): © Alfredo Reis (2010). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Lisboa > Jantar de Natal 2007 > Os quatro magníficos da CART 1690, todos eles alferes milicianos... Ao fundo, estão o Domingos Maçarico, à esquerda, e o Alfredo Reis, à direita. Em primeiro plano, está o António Moreira , à esquerda, e o António Marques Lopes, à direita.  Todos eles feridos em combate, com exceção do Moreira. No livro "Cabra cega" são respetivamente Zé Pedro, Aprígio, Castro e Aiveca.

Com os  quatro agora juntos na Tabanca Grande, a CART 1690 fez o pleno em matéria de alferes milicianos... Profissionalmente,  o Moreira é advogado; o Maçarico engenheiro agrónomo; e o Reis, veterinário.  Presumo que estejam todos reformados. E, de boa saúde, espero eu. 

Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2007). Todos os direit
os reservados.[Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mais um excerto das melhores partes do livro de memórias A. Marques Lopes, "Cabra Cega" (*).

Seguimos o texto, respeitando a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook, na postagem de 16 de outubro de 2022.

Aqui a narrativa já feita na 1ª pessoa do singular, quando o autor passou a assumir que o "Aiveca" do livro (edição de 2015) era o seu "alter ego". No entanto, os colegas alferes ainda são identificados ppr nomes fictícios (pp. 471/473).


Quando os meus camaradas desconfiaram de mim...

por A. Marques Lopes (1944-2024) (*)



Nesse dia fiz antes o que fazia habitualmente quando ia ao tratamento 
[no Hospital Militar Principal, na Estrela, em Lisboa]. Procurei o enfermeiro-chefe para lhe perguntar se tinha vindo alguém evacuado da Guiné. Ia sempre ver os que tinham chegado. Ele disse-me que sim e onde estavam. Vi vários mas houve um que me fez saltar os olhos. Numa cama estava o Zé Pedro [Domingos Maçarico]

 
− Também tu!? Como é que foi isso?

 Fui ao ar com uma mina mas não tive a sorte que tu tiveste. Estou todo partido. É... Cheguei ontem e vão-me operar não sei se já hoje ou amanhã.

Disse isto com semblante carregado e apreensivo.  Depreendi que aquilo era mesmo mau.

− E o resto do pessoal? Como é que está?
 
Ele ficou pior.

− O Aprígio [Alfredo Reis] e o Castro [António Moreira] estão bem.

Fez uma pausa e acrescentou com voz entrecortada:

 
− Mas o gajo que te foi substituir morreu.

− Como é que foi?

Pela voz pareceu estar recomposto.

− Foi numa operação àquele sítio onde passaste a noite 
[, em Sinchã Jobel ] . Com ele morreram lá o Carmo e o Cosme. Antes tinha havido lá outras operações. Numa delas ficou o Fragata.

 − E não deram cabo da base deles?

− Não. Tentámos sempre por onde tu foste mas só levámos porrada. Eu também ia para lá quando fui ferido. Como vês nem consegui lá chegar. Quero contar-te mais. Vão-me mexer e eu sei lá o que vai acontecer  
−   parecia mesmo receoso.  Houve um ataque ao destacamento do Aprígio [Alfredo Reis] quando ele, por acaso, não estava lá. Tinha ido a uma consulta ao médico do batalhão. Entraram lá e levaram metade da malta. A outra metade conseguiu fugir para a mata. Mataram o Aguiar porque tentou resistir.

− O Lucas, o Carmo, o Cosme e o Gabriel eram do meu grupo de combate. Coitados  
− fiquei pesaroso.

 
− E a mina foi sorte para ti por outro motivo. Se lá tivesses continuado tinhas lerpado de certeza porque andarias metido naquilo, nas operações àquela base.

 
− Pelo que me contas estou a ver que sim. Não fui eu mas foi o meu substituto, coitado.

Acreditei, porque sabia que andaria sempre na berlinda, tal como andara.

 
− E sabes que mais? Os gajos que entraram no destacamento do Aprígio [Alfredo Reis] foram os gajos da base que tu e o Lindolfo [cap Maia, da CART 1689] destruíram.

Fez uma pausa e acrescentou:

 
− Eles revivem depois de mortos e estão por todo o lado.

Lembrei-me da conversa que tivera com o Mendonça [cap Manuel Guimarães] , aquela em que ele acabou por me chamar comunista.

− Acabaste por chegar a essa conclusão, estou a ver. Eu bem disse que eles a iam reconstruir mas não me acreditaram. Tu sabes da conversa que eu tive com o Mendonça [cap Manuel Guimarães] . E tu também tiveste dúvidas.

− É verdade, mas agora já não tenho. Já vi muito para não as ter.

Parou um bocado, parecendo cansado.

 Agora outra coisa – continuou. 
− Sabes que eu e o Castro [António Moreira] chegámos a pensar que tu estavas feito com os do PAIGC?

−  O quê?!
 espantei-me em voz alta.  − Donde é que vem essa ideia, pá?

−  Tu estiveste aquela noite sozinho na zona deles e apareceste calmamente no dia seguinte, primeiro. Depois, estiveste ao pé da mina e afastaste-te antes de ela rebentar. Situações que nos deixaram intrigados.

−  Ó pá, foram casos de sorte e mais nada.

− Mas, sabes?, aquela conversa que tiveste com o Mendonça [cap Manuel Guimarães] no destacamento do Castro [alf António Moreira] e que o Mendonça me contou, levou-nos também a pensar isso.

Fiquei zangado e mostrei-o na cara mas moderei-me em atenção ao estado do amigo.

−Não sei como é que lhes pôde passar pela cabeça que eu ia provocar a morte de camaradas e amigos meus. Eu, que podia ter morrido naquela mina ou nas operações em que participei.

Houve um enfermeiro que se chegou perto deles.

- O meu alferes, desculpe, mas não pode estar aqui mais tempo a falar. A situação do ferido é tão crítica que não permite isso. Tem de ir fazer uma operação complicada e isto pode estar a perturbá-lo para isso.

 
− Claro, percebo. Vou-me já embora.

 
− Espera só um momento  − disse o Zé Pedro [alf Domingos Maçarico].    − Estava-me a esquecer de te dizer que o Fragata, o do teu grupo de combate, afinal não morreu. Isto andou tudo encoberto, tu sabes, há coisas que são segredo e não são para divulgar. Os manda-chuvas é que não querem divulgar. Mas correu por lá. Ele foi ferido e os do PAIGC apanharam-no e levaram-no para um hospital deles no Senegal [em Ziguinchor] . E, segundo constou também, a Cruz Vermelha Internacional conseguiu repatriá-lo e ele está agora no Anexo de Campolide.

Pensei logo que tinha de ir ter com o Fragata para ouvir o que ele tinha para contar. Desejei que tudo corresse bem ao Zé Pedro [alf Domingos Maçarico] e despedi-me dele.

(Seleção, revisão/fixação de texto, parênteses retos, título: LG)

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