1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Janeiro de 2021:
Queridos amigos,
Ao folhear os cartapácios referentes à 2.ª Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais, achei curiosas estas notas de Luís Silveira a quem a cultura portuguesa deve a "ressurreição" de dois textos capitais da Literatura de Viagens dos séculos XVI e XVII. Se é facto que as crónicas acabavam por assumir a função de declaração de propriedade dadas pelas expedições náuticas, mostrando a evolução dos percursos, dos encontros e das potencialidades comerciais, as viagens por terra traziam um outro olhar onde se intercalavam o fervor missionário com as revelações do que era procurado por quem estava e por quem chegava. E com vertentes distintas, Almada é inultrapassável e André de Faro é um repórter ingénuo e deslumbrado, mas a ambos podemos dar a conotação de que se pautaram pelo chamado conhecimento pré-científico, podem continuar a ser estudados porque neles não há um manto diáfano da fantasia.
Um abraço do
Mário
Entre os primeiros contributos para o conhecimento da Guiné:
André Alvares de Almada e André de Faro
Mário Beja Santos
No volume referente à 2.ª Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais, que se realizou em Bissau em 1947, no 4.º volume encontrei um curioso texto assinado por Luís Silveira, a quem se deve a divulgação de dois documentos fundamentais da literatura de viagens, assinados por André Alvares de Almada e André Faro. Refere Silveira que as viagens marítimas dos portugueses foram empreendimentos oficiais ou integrados num plano oficial, o que obrigou os cronistas a dispensar-lhe especial cuidado, ao passo que as viagens por terra couberam em muitos casos à iniciativa particular ou devido a encargos oficiais tomados de forma personalizada, despojados do aparato e a grandeza que acompanhava as Armadas. Por isso demorou tanto a reconhecer a importância de algumas peças fundamentais da literatura de viagens, deambulações dos portugueses por terra, acontece que eles foram os primeiros portugueses conhecedores da região, animados pela observação, teimando em analisar o ambiente que iam conhecendo.
“É difícil determinar a cronologia e conhecer com exatidão a história do descobrimento pelos portugueses da África do Noroeste. Referências do Esmeraldo, de Duarte Pacheco Pereira, e de outras fontes, indicam ter havido expedições de que não possuímos notícia certa. Viagens como as de João Fernandes, Diogo Gomes, Diogo Cão, João Afonso d’Aveiro, Rodrigo Reinel e João Colaço não serão as que indicam o completo conhecimento do noroeste africano pelos portugueses, porquanto, além das razões citadas, os lançados cedo penetram arriscadamente pelos rios da Guiné sem que possamos seguir-lhes os passos. Os viajantes de que nos ficaram relatos vão encontrá-los em lugares muito distantes das feitorias e estabelecimentos, ocupados no comércio e chegando a tomar partido nas guerras dos negros, em existência tão aventurosa, irregular e agitada que não parece venha a ser, algum dia, possível traçar a carta que marque os caminhos e os extremos de suas peregrinações. André Alvares de Almada e André de Faro não são dois curiosos visitantes da Guiné, não representaram casos singulares, devem ser tomados como exemplos de uma acção conjunta de larga dimensão no tempo e no espaço”.
E traça-nos as respetivas biografias.
“André Alvares de Almada natural de Cabo-Verde, escreveu um Tratado Verde dos Rios da Guiné de Cabo Verde. António da Costa Vale, em 1733, deu à estampa uma edição infidelíssima do Tratado. Diogo Köpke editou no Porto o livrinho, em 1841, com base em cópia moderna de um manuscrito que estivera no Mosteiro de Tibães. Fiz eu próprio, em 1946, nova edição, com a vantagem de dispor do conhecimento de manuscritos que Köpke não pudera utilizar. Almada dá como redigido o seu livro em 1594. Declara explicitamente no prólogo: ‘Tratarei brevemente das armas, trajes e costumes dos negros, das suas guerras, dos seus risos e de tudo o mais que nas ditas partes há notável; e nos capítulos de cada Reino e Nação tratarei disto no melhor modo que ser possa, porque a minha tenção é tratar na verdade’. Como se vê pelo seu livro, o autor era bem mais homem do mato, todavia, do que perfeito escolar. André de Faro, capucho da Província da Piedade, viaja na Guiné em 1663-64, pregando e catequizando, e deixa de suas viagens uma Relação, manuscrita, que foi parar a um convento de Vila Viçosa e daí passou à Biblioteca de Évora, onde se encontra. Os cronistas franciscanos Manuel de Monforte, Francisco de Santiago e Manuel de Mealhada transcreveram passos dele; o mesmo fizeram modernamente Tomás Lino de Assunção e António Joaquim Dias. Editei o manuscrito integralmente, com comentário, em 1945. O objetivo de André de Faro é a catequese, como o de Alvares de Almada terá sido, porventura, o comércio mas ambos estão animados de espírito científico. Estes dois homens percorreram a Guiné com 60 a 70 anos de diferença no tempo”.
Animou estes viajantes um incontestável objetivo prático. Visitaram as regiões que descrevem, servem-se de informações de homens práticos com quem falaram nas regiões. “O Noroeste africano era, no tempo de Almada, já percorrido pelos franceses e ingleses e continua a sê-lo no tempo de Frei André. Não conheço, todavia, livro francês ou inglês, anterior ao da época, com descrições ou estudos, feitos diretamente sobre as fontes, da terra e da gente da Guiné. É certo que precedemos os outros povos europeus no conhecimento destas regiões. Mas da segunda metade do século XVI ao fim do século XVII o domínio político da região pelos Portugueses enfraquecera a tal ponto que os nossos dois caminhantes encontram franceses e ingleses viajando livremente, comerciando em perfeito à vontade em quase toda a parte e chegando a ter feitorias permanentes que recebem grossas mercadorias de lançados portugueses”.
Em termos de organização dos seus trabalhos, foram distintos. Almada dividiu o seu trabalho em capítulos distribuídos por etnias. O critério seguido para o estudo de cada um dos grupos étnicos pode tipificar-se do modo seguinte: localização geográfica, delimitação da região, acidentes geográficos, povos vizinhos, produções e comércio geral, costumes, dados históricos. É um plano descritivo que vingou corretamente até à contemporaneidade. Frei André tem outra abordagem, privilegia a descrição das gentes, crenças, hábitos, costumes e tradições, posição perante o Cristianismo, produções da terra e da água, vai pontuando curiosidades.
Procuraram ambos descrever o que viram, em retratos vigorosos e rigorosos. Almada comete alguns exageros, antepondo a Guiné ao Brasil, mas inequivocamente pretendia fazer a defesa da Guiné, chamando a atenção do Rei Habsburgo para a necessidade de atrair emigrantes para aquela costa; Frei André comete ingenuidades, veja-se o pitoresco como ele descreve o elefante: “… o coiro do corpo é grosso, áspero, cheio de verrugas, tem o cabelo mui espalhado, e ruim, que parece pelado, a cor de cinza-escura que o fez parecer muito feio; a cabeça é grandíssima e as orelhas são compridas três palmos; os olhos são vivos, mas pequenos, o olhar sorrateiro como de porco; a boca façanhosa, e nela não tem mais que dois dentes…”.
Luís Silveira enfatiza no final da sua comunicação os documentos deixados por Almada e André dizendo que muitos dos seus contemporâneos não desdenharam, em idênticas circunstâncias, fantasiar ou acolher sem espírito crítico informações que hoje nos espantam. “Lembro, a este propósito, as descrições do italiano Torriani acerca das Canárias, em 1590, onde há, ao lado de informes fidedignos e do maior interesse, indicações monstruosas acerca da longevidade e estatura dos habitantes do arquipélago. Este período do século XVI e XVII está cheio de sombras, de crendices e de ausência de espírito científico até nos melhores nomes da Ciência e da Filosofia. Pretendi com esta nota acentuar que os Portugueses foram descobridores do Litoral da Guiné e também foram os primeiros que percorreram a terra, estudando-a e descrevendo-a com interesse e curiosidade, terão pelo menos direitos ao título de ter tido o propósito de pré-científico”.
E não é por acaso que estes dois autores continuam a ser de leitura obrigatória a literatura de viagens da África Ocidental.
No Museu Nacional de Arte Contemporânea estão patentes doações de artistas portugueses. Manuel Botelho é inequivocamente o nome que sobressai nas Artes Plásticas que tem dedicado enorme atenção no seu trabalho às guerras que travámos em África, entre 1961 e 1974. Veja-se este óleo e mais abaixo uma espingarda-metralhadora Kalash, obras que já percorreram várias exposições antes de serem oferecidas como bem nacional.
Duas doações de Manuel Botelho ao Museu Nacional de Arte Contemporânea
Artista Manuel Botelho dá corpo à sua arte
____________Nota do editor
Último poste da seérie de 10 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22705: Historiografia da presença portuguesa em África (289): A história turbulenta da delimitação das fronteiras franco-portuguesas da Guiné (4): "As Colónias Portuguesas", por Ernesto Vasconcelos (Mário Beja Santos)