sexta-feira, 18 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9921: Agenda cultural (203): "Confidencial / Desclassificado", uma exposição do artista Manuel Botelho, até 7 de Julho de 2012 no Espaço Fundação PLMJ, em Lisboa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 10 de Abril de 2012:

Queridos amigos,
Para quem vive na área de Lisboa ir a esta exposição é uma proposta irrecusável.
Botelho sabe manejar a comunicação para dosear o sofrimento ou os saltos da memória. Visitar estas fotografias prodigiosas é ficar de posse de uma dimensão fulcral do projeto que ele leva a cabo há cerca de 5 anos, ao que parece sem desfalecimento.
Temos aqui armas a que só falta falar, o militar e o seu duplo (será a sua consciência?), aquartelamentos transformados em pandemónio, há por ali muitas facas, sexo em segredo, militares incompreendidos do lado de cá, como aliás fomos.

Um abraço do
Mário


Confidencial / Desclassificado, por Manuel Botelho 

Beja Santos 

Esta exposição de Manuel Botelho está patente até 7 de Julho, de 4.ª feira a Sábado, das 15 às 19 horas, no espaço Fundação PLMJ, na Rua Rodrigues Sampaio, 29, em Lisboa. O curador da exposição, Miguel Amado, refere na introdução a que intitulou “Imagens de Guerra” que “A guerra constitui um dos principais assuntos da cultura visual moderna. Tanto no presente como no passado, a imagética bélica marca significativamente os modos de ver o mundo no plano cultural”. E refere o quadro de Goya, “O 3 de Maio de 1808 em Madrid”, as reportagens de Robert Capa, o Apocalypse Now, de Copolla, os diretos televisivos da Guerra do Golfo Pérsico da CNN. Anota que nas artes plásticas estas imagens acabam por emergir como uma das áreas de trabalho mais prementes, há uma atração e uma recusa no espetáculo do aparato militar, o artista tem outra lógica de tratamento, distancia-se do universo noticioso, a sua imaginação pode socorrer-se de um conflito particular que acabe por assegurar a sua problematização à guerra em geral.

E estamos chegados à guerra colonial, temática incómoda ou que deixou durante décadas o artista indiferente. Manuel Botelho está a investir muito num projeto singular que ele intitula “Confidencial/Desclassificado”, desde 2007, quase que abruptamente, o artista que aparecia dominado por uma linha expressionista, muito agarrado às figuras retocadas, dispostas quase numa sequência narrativa, lançou-se num projeto experimental sobre os conflitos da guerra, manejando o vídeo, a fotografia, a montagem e aguarela. Depois escolhe temas: as aguarelas têm legenda que ele vai buscar a aerogramas, temos quartéis, partidas de barcos, madrinhas de guerra, viaturas explodidas por minas; a sua série de fotografias tiradas a espingardas provoca agitação interior, o banal de uma arma dentro da fotografia ganha, graças ao recurso da iluminação, aspetos letais, proporções descomunais; autorretrata-se em fardamento de guerra, explora o grotesco na dicotomia civil/militar, numa aceção de que o civil permanece como uma intranquilidade no tempo militar; e esgota-se fisicamente na imagem, toda aquela exaustão de um certo militar ser fotografado num estado de abatimento e indiferença leva o espetador a afastar-se, tal o contágio da inquietação; o artista monta cenas de guerra com tabaco e cinza, garrafas empoeiradas, copos com bebidas, dinheiro espalhado, cartas de jogar, um garrafão, um gira-discos e ilumina de tal modo que a imagem se torna sufocante, incómoda. Um prato com sardinhas em tomate, em cima de um imaginário mapa é suficientemente nojento para ter que se admitir que aqueles alimentos, dignos de uma ração de combate, são expostos propositadamente com facas de mato para nos causar náusea; há códigos subtis como um Estado-Maior ser representado como um baralho de cartas montadas em castelo, também sob um mapa, apoiadas em copos e tendo por baixo pratos cheios de restos, seguramente que o código é que de tudo é periclitante nas decisões tomadas à porta fechada; há maços de cartas presos por atilhos como se clamassem por segredos a serem desvendados, gritos guardados, sofrimentos quase pessoais e intransmissíveis; e há o autêntico arrebol das montagens, fala-se do sexo interdito, imagem de derrisão; montagens barrocas, com copos, material de campanha, baldes, um militar à espreita debaixo de panos de tenda, como se estivesse a descobrir qual é a lógica da guerra; há a ilusão de um mundo caótico onde coabitam bombas de inseticida, troféus, chapa ondulada, catanas, serrotes, vestígios de material de construção civil; há os seus vídeos intermináveis, imagens do Natal do Soldado, tudo sem som como se competisse ao espetador impor uma forma de comunicação dentro de um cerimonial onde o espetador não cabe.

O que se acaba de referir é muito pouco para as linhas criativas de um artista que anda à procura de aerogramas, que reconstitui numa instalação as conversas do Nando, a militar no Bachile, com a sua namorada em Lisboa, gera o horror da incomunicação, ela expõe a sua vivência quotidiana, o soldado das transmissões descreve permanentemente que se encontra no deserto.

Questiono muitas vezes o que levou um artista consagrado, com carreira universitária, a entregar-se a um quase exorcismo que mete flagelações, olhares paranoicos, aproveitamentos de aerogramas, a tornar fotograficamente uma arma com elemento consagrado à morte, em estado expectante, criando simulações de ambientes em aquartelamentos de guerra, em possíveis fantasias eróticas, explorando novas dimensões do corpo como até então nunca praticara, misturando sonho com fantasmas, onde é permanente um diálogo silencioso entre ele e o seu duplo. Haveria um tempo, digo eu, em que as artes plásticas tivessem de pôr a nu a tal indiferença, a tal incomodidade que a guerra colonial causou em gente que só era sobressaltada quando o membro da família embarcava para aquelas regiões do Equador. Aos 60 anos, Botelho lançou-se impetuosamente na recriação de bastidores, na reificação de armas, no emudecimento do Natal do Soldado, numa certa paródia de códigos, numa viagem desassossegada a todos os meandros da guerra. Usando fantasmas, parece que os quer exorcizar. O que era confidencial, fingidamente atirado para trás das costas, ele desclassifica, brutaliza ou enternece.

Temos aqui Manuel Botelho para durar. Felizmente que alguém procura ir ao fundo dos diferentes poços fundos e das muitas linhas de água por onde se forjou a guerra colonial.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9920: Agenda Cultural (202): No Dia Internacional dos Museus, inauguração e animação do Museu da Guerra Colonial, V. N. Famalicão

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Parece interessante.
Pelo menos é uma 'abordagem' diferente.
Vou organizar-me para passar por lá.
Abraços
Hélder S.