1. Em mensagem do dia 13 de Maio de 2012, o nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), enviou-nos mais uma memória da história da sua Unidade.
HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (50)
Uma motivação imprevista
Lá longe, depois de cruzado o Geba e o Gabu, na direcção do Senegal e das brisas do deserto, cirandava uma companhia que, desde Piche, praticava muita operacionalidade, e todos os dias mantinha, a par da actividade militar propriamente dita, com picagens, patrulhas, colunas e emboscadas, ainda a actividade interna, normal de cada aquartelamento.
O pessoal, por vezes, manifestava cansaço, até revolta. Sobretudo, quando as horas do rancho suscitavam algum género de contestação. De facto, por ali comia-se mal e porcamente. O "tacho" consistia quase exclusivamente em "bianda com estilhaços", num guisado que sugeria cimento, ou massa com estilhaços.
Quando alguém se lembrava de reclamar, logo degenerava um coro de protestos, no geral inconsequentes.
Mas quando, ainda revoltados e estimulados para reclamar, encontravam o capitão, um ou outro mais afoito, dirigia-se-lhe a apresentar protestos, enquanto os restantes paravam à escuta, ou largavam frases acusatórias de que havia quem enriquecesse à custa do pessoal, ou que na messe os senhores comiam bifinhos, enquanto no refeitório a alimentação era quase intragável. E havia quem, mais ou menos encoberto, como quem queria a coisa, referisse que o rebentamento de umas granadas poderia resolver o problema dos ilícitos.
Um dia a localidade foi sobrevoada por um NordAtlas, que do seu bojo soltou uma caixa de frescos. Vieram de pára-quedas, mas com tal força bateram no chão, que o caixote desconjuntou-se, o peixe espalhou-se no solo arenoso numa gemada de ovos, e nada se aproveitou.
Pata que os pôs, gritava-se entre impropérios. Parecia que estavam a gozar. Quem havia de comer aquilo? Porque é que não se fez uma coluna a buscar os géneros?
À porta da secretaria o capitão parecia ouvir os protestos. Por trás, cofiando o bigode, como quem avalia o evoluir da situação, o Primeiro mantinha-se calmo e encorajador do capitão.
Que um dia haveria ali uma festa com mais puns-puns que a passagem de ano no Funchal, que os "xicos" é que deviam ir para o mato, e outras, directas e indirectas, mobilizavam a rapaziada na curiosidade contestatária.
Alguns dias depois aterrou um DO que trazia o Comandante Operacional. Algum tempo depois mandava-se formar o pessoal da Companhia, um pelotão de operacionais, e uma parte dos especialistas.
Houve um arremedo de formação para o senhor Comandante. O pessoal olhava para os pés, compunha o quico para evitar o sol, diziam-se dixotes baixinho a provocar graças, que talvez não chegassem ao degrau onde estava o orador, outros davam-se empurrões de surpresa a provocar desequilíbrios, enfim, passava-se o tempo, enquanto Sua Excelência discorria sobre o moral, e a capacidade do exército.
A certa altura, a propósito das reclamações sobre a alimentação e o consequente cansaço, teve a seguinte tirada: Eu também ando pela Guiné toda, e não estou cansado.
Não foi preciso esperar reacção, porque um espontâneo logo replicou altissonante: de avião!... assim também eu.
Seguiu-se uma precipitação de risos, de início a conterem-se, mas logo em avalanche de bom humor. O pessoal inclinava-se, aproximavam-se alguns para comentar, de onde brotavam mais risos. A formação, deformava-se. Alargava-se. Descompactava-se. Sem ordem, que não se revelou necessária, destroçava-se.
O senhor Major considerou que já tinha falado, e também se retirou com o capitão a segui-lo.
Foi uma festa, e durante dias quase não se falou de outra coisa. Mal imaginaria aquele oficial, como um simples "lapsu-linguae" poderia transformar uma tropa apática e mal disposta, num grupo de militares orgulhosos e alegres, capazes de resistirem por mais algum tempo às provações que lhes eram impostas.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 6 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9756: História da CCAÇ 2679 (49): A maneira mais prática de fazer prova de aptidão para conduzir viaturas auto (José Manuel M. Dinis)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Não há nada como uma picadinha no orgulho da malta.
Quem havia de dizer que uma vizita destas, faria a malta ganhar o dia?
Um abraço
Caros camarigos
Quando comecei a ler este relato cheguei a pensar: "querem ver que o Dinis vai resolver isto com uns pontapés nos traseiros de uns quantos"?, com base no conhecimento de ele ter dado preferência a esse tipo de 'pedagogia' para resolução de conflitos, conforme ele próprio já aqui nos deu conta anteriormente.
Mas não foi assim: a 'solução veio do céu'...
Agora fica a questão: teria sido mesmo um 'lapsus linguae' ou foi 'preparado'?
Não se pode estar sempre a subestimar as capacidades dos oficiais superiores....
Abraço
Hélder S.
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