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quarta-feira, 19 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26597: Manuscrito(s) (Luís Graça) (267): No dia do pai... Aos nossos pais, nossos velhos, nossos camaradas... a quem nunca tratámos por tu



Luís Graça, Quinta de Candoz (2011)



Gâmbia > Bathurst > 1953 > Comemorações da entronização da Rainha Isabel II, de Inglaterra (n. 1926) > Foto da seleção de futebol da Província Portuguesa da Guiné:

(i) De pé, da esquerda para a direita, Antero Bubu (Sport Bissau e Benfica; capitão), Douglas (Sport Bissau e Benfica), Armando Lopes (assinalado a vermelho,  pai do nosso amigo Nelson Herbert) (UDIB), Theca (Sport Bissau e Benfica), Epifânio (UDIB) e Nanduco (UDIB); 

(ii) de joelhos, também da esquerda para a direita: Mário Silva (Sport Bissau e Benfica), Miguel Pérola (Sporting Club de Bissau), Júlio Almeida (UDIB), Emílio Sinais (Sport Bissau e Benfica, Joãozinho Burgo ( Sport Bissau e Benfica) e João Coronel (Sport Bissau e Benfica).

No 1º jogo, a seleção da Guiné ganhou à seleção da Gâmbia por 2-0, com golos de Joãozinho Burgo (falecido há 6 anos em Portugal 22/1/2019); no 2º jogo, as duas seleções empataram 2-2 (com golos, pela Guiné, de Mário Silva e Joãozinho Burgo). Antiga colónia inglesa, a Gâmbia acederá à independência em 1965.

Legenda de João Burgo Correia Tavares: vd. livro Norberto Tavares de Carvalho - "De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita", Porto, edição de autor, 2011, p. 4

Armando Lopes (também conhecido como o "Búfalo Bill") fez o seu serviço militar no Mindelo, São Vicente, Cabo Verde, em 1943, na altura em que também lá estava, como expedicionário, o meu pai, meu velho e meu camarada, Luís Henriques; ambos nasceram em 1920 e,  naturalmenmte, já faleceram os dois, o meu, em 2012, o pai do Nelson Herbert,  em 2018. Ambos tinham igualmente uma paixão pelo futebol... 

Foto: © Armando Lopes / Nelson Herbert (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

Foto (e legenda): © Hélder Sousa (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Ângelo Ferreira de Sousa (1921-2001), pai do nosso camarada Hélder Sousa, natural de Vale da Pinta, Cartaxo, ex-1º Cabo n.º 816/42/5, da 4ª Companhia do 1º Batalhão de Infantaria do RI. 23... Tem a data de 18 de Outubro de 1943 e na legenda refere ser "recordação de S. Vicente"                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        Foto (e legenda): © Hélder Sousa (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Cabo Verde > Ilha do Sal > Pedra de Lume > 1º Batalhão Expedicionário do RI 11  (Setúbal) > 1ª
Companhia > 1942 > 
 pai do nosso camarada Augusto Silva Santos.


Foto (e legenda): © Augusto Silva Santos  (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas daGuiné]







Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 1942 > "No dia em que fiz 22 anos, em S. Vicente, C. Verde. 19/8/1942. Luís Henriques " [, 1º cabo inf, 3º Companhia, 1º Batalhão, RI 5, Mindelo, São Vicente, Cabo Verde, 1941/43, entretanto integrado no RI 23]. Nasceu (1920) e morreu (2012) na Lourinhã.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas daGuiné]



Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > RI 23 >  c. 1941/44 > RI 23 >  O sold aux enf, Porfírio Dias (1919-1988), 1º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria nº 5, que partiu para Cabo Verde no T/T Mouzinho em 18/7/1941, juntamente com o Luís Henriques (ambos eram do mesmo regimento e batalhão). Esteve lá dois anos anos e dez meses.



Foto (e legenda): © Luís Dias (2012). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Os nossos pais, nossos velhos, nossos camaradas... teriam mais de 100 anos, se fossem vivos... No Dia do Pai, dá-me uma saudade danada... 

Lembremo-nos deles... Tal como os nossos filhos se lembram de nós, agora tratando-nos por tu:

 "Obrigado, pai, por tudo o que me tens dado (...). Gosto muito de ti e quero-te cá por muitos mais anos. A tua inteligência, empatia e  jogo de cintura, quero levá-los sempre comigo" (...). 

Escreveu o meu filho no dia de hoje. Espero que vocês, camaradas,  também tenham recebido palavras bonitas como estas... Nêm têm que ser verdadeiras, apenas bonitas. E sobretudo reveladoras da gratidão filial. Para eles, seremos sempre os melhores pais do mundo... Eu gosto que eles me tratem por tu... Desde sempre.


Tuteio ou tratamento por tu

por Luís Graça

Aos nossos pais, nossos velhos, nossos camaradas...


Fiquei com pena da fräulein Tina Kramer, antropóloga,
entretanto entronizada como  nossa tabanqueira,
a quem, chegada da austera e luterana Germânia,
lhe impuseram o tratamento por tu,
como se fora uma praxe de gangue.

Depois desta receção da Tabanca Grande,
ela deve ter ficado confusa, quiçá perturbada e até intimidada,
ao pensar que os camaradas da Guiné,
antigos combatentes,
são todos uma cambada de velhos malucos
a quem saltou a caixa dos pirolitos...

"Portugueses, pocos, pero locos"
(diria ela se fosse uma altiva castelhana,
daquelas que vinham casar com príncipes portugueses,
futuros donos de Portugal, dos Algarves e de além-mar em África,
na mira de acertar em cheio no jackpot)...

Tu próprio detestavas a palavra fräulein,
nunca trataste nenhuma colega ou amiga alemã por fräulein...
Podes a estar a ser injusto, mas tem, para ti, 
uma conotação pejorativa, prussiana, militarista...
Como teria se tu a tratasses por menina Tina Kramer,
como nos bons velhos tempos do Portugal dos nossos pais e avós
Ao menos, tratemo-la, não por miss (cheira-te a babydoll)
mas por bajuda,
que é mais doce, mais crioulo, mais luso-tropical…


E tu Zé Belo, luso-lapão, agora "amaricano",
sujeito a ser deportado pelo Tio Sam,
tuga da diáspora outrora na terra 
onde o cidadão tratava o cidadão por tu....
bem sabes que não foi preciso fazermos uma revolução
à moda dos sovietes de Petrogrado,
nem do Grande Irmão Urso Sueco,
nem dos Camaradas (salvo seja!) do PAIGC, do MPLA ou da FRELIMO...
(Lembram-se das milhares de anedotas
que se contavam do camarada, salvo seja!, Machel,
e da sua mania de reeducar e recuperar o diabo branco colonialista
com o trabalho manual na machamba?!)...

Com o 25 de Abril,
a distância social e afetiva,
a começar na família, entre pais e filhos,
foi encurtada,
e o tratamento por tu impôs-se sem ser por decreto...

Com tanta naturalidade (ou só aparente ?)
que a gente nem sequer se questiona hoje
sobre o quando, o como e  o porquê...
(Alguns questionam-se, e têm toda a liberdade para o fazer,
viva a liberdade que só pode ser livre.)

Em contrapartida, foi retomado
(ou nem sequer foi interrompido)
o tratamento, tradicional,
aparentemente mais distante e formal, de você,
de pais para filhos,
de esposa para esposo,
em certas famílias,
em certos meios sociais
(que tu não vais adjectivar,
porque não gostas de adjetivar os outros,
e fazes um esforço por respeitar todas as diferenças,
mesmo as mais difíceis de engolir).

O tecido social é isso mesmo,
é um pano, de trapos, de linho, de algodão, de serapilheira, de seda,
que se puxa conforme o frio, as pernas e as mãos,
as chagas, as misérias e as grandezas de cada um…

Os nossos filhos, pelo menos os teus, tratam-nos por tu,
mas tu tratavas os teus pais à moda antiga...
quando eles ainda eram vivos.
Ainda eras do tempo do respeitinho-que-era-muito-bonito!

Há algum mal nisso,
nessa coisa dos filhos tratarem agora os pais por tu ?
São apenas mudanças de paradigma
na convivialidade sociofamiliar,
diria o sociólogo de serviço, que já não há,
descartado pela mãe de todas as crises...

Tu, o Hélder Sousa, o Nelson Herbert,
o Luís Días, o Augusto Silva Santos,
foram capazes de tratar os vossos velhos,
o Luís Henriques  (1920-2012),
o Ângelo Ferreira de Sousa (1921-2001),
o Armando Lopes (1920-2018),
Porfírio Dias (1919-1988),
o Feliciano Delfim Santos (1922-1989),
veteranos da II Guerra Mundial,
expedicionários em Cabo Verde,
com a ternura da expressão
“Meu pai, meu velho, meu camarada”

Liberdades ou libertinagens bloguísticas, 
dirão os sisudos dos  críticos…
Daqui a uns anos
(esperas bem que não, cruzes canhoto!...)
voltaremos a tratar-nos com distância e reverência,
quiçá por Vossa Senhoria,
meu fidalgo, meu amo,
como no tempo da(s) outra(s) senhora(s)…

Tu sabes que o tratamento por tu,
republicano, económico, frugal, com duas letrinhas apenas,
o tratamento à romana na Tabanca Grande,
nem sempre era fácil nem natural, em 2004/2005,
quando começámos a blogar
para mais num país, ainda bastante estratificado,
em que se continuava a usar e a abusar dos títulos,
nomeadamente no Estado, nas empresas e demais organizações,
onde o trabalho era pouco e a distância grande,
tão grande como a rede clientelar:
senhor presidente, senhor doutor, senhor engenheiro, senhor prior...

Nunca foi nem o é ainda hoje:
tiveste a prova disso, há uns anos atrás
,
numa das memoráveis quartas feiras
do almoço semanal da 
Tabanca de Matosinhos,
quando cumprimentaste um a um a meia centena de convivas...
Boa parte, já teus velhos conhecidos e amigos...
mas ainda havia gente que se retraía,
invocando a educação que tiveram,
o desconhecimento do outro,
a falta de intimidade e de convívio,
a distância física (sempre são 300 km entre Lisboa,
a capital do reino,
onde o Paço tem Terreiro,
e o Porto é a capital do trabalho,
onde o povo tem o São João e o alho porro)...

Quando impuseste  (passe o termo...)
o tratamento por tu no blogue,
entre camaradas da Guiné,
quiseste  deliberadamente fazer o curto-circuito
entre as distâncias militares, hierárquicas, do passado
e as eventuais distâncias sociais e profissionais, do presente...
Hoje consideras uma honra poder ser tratado por tu
por um camarada da Guiné,
independentemente do antigo posto,
da idade, da naturalidade, da nacionalidade, da cor da pele,
ou da atual posição na sociedade portuguesa...
E vice versa:
consideras um privilégio poder tratar por tu
um homem ou uma mulher
que aceitam os valores e as regras do jogo do nosso blogue...

Há sobretudo uma cumplicidade (saudável) entre nós,
que não seria possível se aqui, no blogue
e nos convívios da Tabanca Grande,
e das demais tabancas que entretanto foram aparecendo,
se a gente continuasse a tratar-se 
como em casa, na escola, na tropa, no parlamento:
"Sua benção, meu pai, meu amo...
"Dá-me licença, vossa senhoria, meu capitão ?...
"Como vai, senhor Doutor ?...
"Vossa Excelência, senhor engenheiro,
permite-me que eu discorde da sua douta opinião ?
"O meu furriel é que sabe,
mas o vagomestre é que dormia com a mulher… do Baldé
quando o Baldé ia para a Ponte do Rio Udunduma...
"E, você, nosso instruendo, ó sua besta quadrada,
não sabe que a Pátria é hermafrodita,
é pai e mãe ?
"Ó meu tenente,
é mais do que isso, é Pátria, é Mátria, é Frátia!"...

Para que o tu continue a escrever-se com duas letrinhas apenas,
o tu de pai, de tuga, portuga, 
irmão, cidadão…
o tu de companheiro, camarada, amigo, 
O tu do abraço, do alfabravo, do quebra-costelas,
o tu de Tango Uniform...
e não se torne o tu
de intumescência, da tumefacção, 
da turbulência, da estupidez, da intolerância…
nestes dias de Charlie Romeo India Sierra Echo,
da CRISE que continua dentro de momentos...

 ©  Luís Graça (2012). (**)

Revisto em 19/3/2025, dia do Pai...
___________

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24799: Notas de leitura (1628): "Dos Sonhos e das Imagens, A Guerra de Libertação na Guiné-Bissau", por Catarina Laranjeiro; Outro Modo Cooperativa Cultural, 2021 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2022:

Queridos amigos,
Há aspetos surpreendentes na investigação de Catarina Laranjeiro, logo a releitura a que procede de toda a filmografia durante a Luta e o que se tentou fazer no pós-independência, as mensagens produzidas para uso externo e interno, o que revelavam e o que ocultavam. Cabral contava com um novo sistema educativo que fosse gradualmente reduzido à insignificância o animismo (e estou levado a crer que essa nova cultura iria paralisar a influência do islamismo). As coisas não aconteceram assim como a autora mostra no seu trabalho de campo em Unal. Um olhar inovador que faz cruzar a etnografia com o conhecimento histórico, é uma obra que merece ser apreciada.

Um abraço do
Mário



A construção e a desconstrução das imagens sobre a Guerra de Libertação da Guiné-Bissau (2)

Mário Beja Santos

O livro Dos Sonhos e das Imagens, A Guerra de Libertação na Guiné-Bissau, por Catarina Laranjeiro, Outro Modo Cooperativa Cultural, 2021, baseia-se na tese de doutoramento da autora, é um misto de inventário historiográfico, análise sociocultural da imagem e trabalho etnográfico que a autora realizou em Unal, no Sul da Guiné, entre setembro de 2015 e abril de 2016, aqui voltou entre setembro de 2019 e fevereiro de 2020.

A investigadora esclarece:
“A montante do trabalho etnográfico, esta investigação propôs analisar os filmes realizados durante a guerra em tabancas das zonas libertadas, entre as quais o Unal foi escolhido como arquétipo (…) Este livro é sobre as imagens produzidas no decorrer da luta da Libertação da Guiné-Bissau e particularmente sobre os filmes documentais. Genericamente, estes filmes mostram como o PAIGC desenvolvia uma ação militar eficaz contra o exército colonial português enquanto construía uma nova sociedade, nas zonas libertadas, precursora da nação por vir. Enquanto instrumento de Luta, o cinema tinha por missão primeira construir uma memória documental e, em última instância, um arquivo; isto é, o que deveria ser dito no futuro sobre o presente quando este se tornasse passado (…) Esta investigação é movida pela vontade de compreender como uma imagem provoca outra, dispositivo fundamental da linguagem cinematográfica. Concretamente, como as sucessivas crises e a instabilidade política procederam uma Luta de Libertação particularmente promissora que assegurava estar a ser construída uma auspiciosa sociedade nas zonas libertadas. Para tal, importa considerar quem é que, antes e depois da independência, reclamou o poder de construir todas estas representações, quer as de sucesso, quer as de fracasso. Trata-se de debater a legitimidade e a autoridade que os processos históricos adquirem quando se tornam visualmente percetíveis”.


Já se discorreu sobre a síntese histórica da Luta da Libertação, apresentou-se uma análise pós-colonial das imagens, enfatizando o papel do cinema e dos documentários propagandísticos. Eram obras destinadas a mostrar como se combatia e se consolidava o novo Estado, tornava-se obrigatório que se vissem crianças nas escolas, hospitais a funcionar, estas imagens deviam ser tratadas com o expoente de uma nova cultura, assim se estavam a preparar profissionais de saúde graças aos países amigos, até se mostrava imagens de uma farmácia, seguramente para cativar gente do primeiro mundo. Era, para consumo interno, imagem de o “por vir”, estava em construção uma nova cidade nas zonas libertadas. Catarina Laranjeiro questiona a natureza de todas estas encenações e extrai exemplos de vários filmes. Recorda, por exemplo, que há imagens que sugerem que estava um sistema económico a ser implementado que permitia à população das zonas libertadas aceder a bens de primeira necessidade. “São ocultadas todas as formas de resistência ao sistema económico colonial vigente, sendo que, ao longo destes filmes, a ineficiência da colonização portuguesa surge sempre para descrever a ausência de estruturas como escolas ou hospitais, ou de quadros como professores, enfermeiras ou médicos. É, assim, implícito que o problema não era o colonialismo por si, mas uma penetração incompleta de um estado colonial ineficaz na sociedade tradicional, o que, ironicamente, corrobora que a missão europeia havia ficado incompleta. Subjacente, fica a ideia de que competia agora ao apoio internacional terminá-la”.

São, insista-se, imagens que pretendem propagar os sinais de uma nova cultura e a autora observa:
“Em contraponto, nunca são mostradas imagens de queimaduras a serem tratadas com óleo de palma e folhas de farroba piladas, terapêutica partilhada naquele contexto, que, segundo os dados empíricos recolhidos no decorrer do meu trabalho de campo, eram um recurso bastante comum. Acrescento que, reconhecendo o amplo contributo dos médicos cubanos, os antigos combatentes que entrevistei enfatizavam que houve um enorme envolvimento dos curandeiros locais no apoio às vítimas de guerra, nunca devidamente reconhecido. Estes especialistas foram remetidos para o fora-de-campo das imagens; ao serem exclusivamente documentados as formas e os saberes dos doadores internacionais, apenas estes foram considerados válidos”.

A autora vai mais longe e interroga as línguas em que se fala nestes filmes, a língua dominante é o português, o pai fundador do PAIGC nunca hesitou qual seria a futura língua oficial do novo Estado. É um extenso e inovador olhar sobre o discurso do poder, a representação das mulheres, a centralidade política de Amílcar Cabral, ele era o único dirigente a conceder entrevistas. Igualmente a autora observa que em todos os filmes estão presentes treinos e formações militares, era importante que se soubesse que havia disciplina militar, aulas de ginástica, gente uniformizada, jamais se concede imagem às religiões tradicionais, o próprio Cabral era cuidadoso nos seus discursos, com subtileza pedia aos professores para combater a ignorância e os medos, apelando mesmo: “A maior libertação que podem dar à nossa terra é libertar o povo do medo. Para libertar o nosso povo do medo temos de o libertar da ignorância. Por isso é que o trabalho de professores é o trabalho de vanguarda”.

Seria esse trabalho a forma mais eficaz de combater as crenças no Poilão sagrado, nas intempéries naturais, os curandeiros, os Irãs, os amuletos. Chegada a independência, criada uma nova elite, prometido até um Instituto Nacional de Cinema (que não dispunha de verbas) realizaram-se imagens em que Amílcar Cabral continuava a estar muito presente, aliás o único filme terminado intitula-se O Regresso de Cabral, é o documentário das cerimónias fúnebres durante a transladação do seu corpo de Conacri para Bissau. Esta filmografia irá ser proibida por Nino Vieira, argumentando que se tratava de um instrumento de propaganda de um regime anterior. E depois entrou-se numa era de conspirações (inventadas ou não), na Guiné-Bissau imergiram inimigos internos sob múltiplos disfarces, eram encenações para travar descontentamentos ou marcar a exemplaridade do poder do ditador.


A autora está agora em trabalho de campo em Unal, faz a apresentação do lugar, chegou a hora das entrevistas, houve recriminações de gente desapontada, eu estava a ler este trabalho da Catarina Laranjeiro e ocorreu-me a tese de doutoramento de Tina Kramer, na Universidade Humboldt de Berlim sobre a reconciliação (ou não) dos antigos combatentes guineenses, depoimentos pungentes de gente que até confessava a sua humilhação por agora trabalhar para guineenses que tinham combatido ao lado dos portugueses e que recebiam reformas, tese de doutoramento que deploravelmente não está traduzida para português. Aquele povo do Unal exigiu ter escola, construíram-na, cuidam do professor, a região, confrontada com a inércia do Estado dá as respostas que pode. E muito interessante é a sua abordagem que vai dos discursos fílmicos às memórias vernaculares, é então que fica claro que as forças animistas têm um papel preponderante não só no Sul do país como em todas as outras regiões da Guiné-Bissau.

E chegou a hora das considerações finais, àquelas imagens fílmicas eram inventadas e idealizadas para o exterior e presumiam-se ter valor catequético no interior.
“As imagens produzidas no decorrer da Luta revelam muito sobre o tempo presente. Mais precisamente permitem-nos compreender o paradigma político que hoje rotula de falhado o Estado guineense. Os homens e mulheres que viviam nas zonas libertadas não foram meras marionetas manobradas por ideologias ou legados históricos, isto é, não foram apenas personagens que integraram estes filmes. Todos e todas foram atores sociais conscientes que construíram as suas próprias ficções em torno da Luta (…) A população da Guiné-Bissau não pode ser lida como um todo homogéneo. Para a grande maioria dos combatentes desta guerra, o Estado-nação moderno era uma abstração. Nos últimos anos, tem havido uma tentativa notória de atribuir uma maior visibilidade à memória da Guerra Colonial. É hoje consensual que as guerras coloniais contribuíram para extenuar o regime ditatorial português e a ideologia imperial em que este se alicerçava. Os dados encontrados sugerem que, tal como as identidades, as memórias, e as modernidades, também a descolonização deve ser conjugada no plural”.

Esta descolonização não deixa nenhum ator de fora, nem os antigos combatentes portugueses nem o povo guineense em geral.

Pela sua abordagem original, uma obra que se recomenda pelo novo sentido da História que a acompanha.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 23 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24784: Notas de leitura (1627): "Dos Sonhos e das Imagens, A Guerra de Libertação na Guiné-Bissau", por Catarina Laranjeiro; Outro Modo Cooperativa Cultural, 2021 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23427: (Ex)citações (411): O calor e alguma ociosidade inerente levou-me a andar aqui pelo blogue a passear pela infinita quantidade de publicações que por cá há, com destaque para a região do Boé onde, em 1987, fui abrir uma missão com hospital de campanha, no âmbito dos Médicos Sem Fronteira (Ramiro Figueira, ex-Alf Mil Op Esp da 2.ª CART/BART 6520/72)

1. Mensagem do nosso camarada Ramiro Alves de Carvalho Figueira, médico na situação de reforma, ex-Alf Mil Op Especiais da 2.ª CART/BART 6520/72 (Nova Sintra, 1972/74), com data de 12 de Julho de 2022:

Boa tarde.

O calor e alguma ociosidade inerente levou-me a andar aqui pelo blog a passear pela infinita quantidade de publicações que por cá há. Chamou-me a atenção uma série de publicações sobre o local onde foi declarada a independência da Guiné, em 24 de Setembro de 1973. De entre estas publicações, a de uma antropóloga alemã de seu nome Tina Kramer que andou a percorrer a Guiné praticamente de lés-a-lés e que dedica uma referência a Lugadjole onde terá sido declarada a independência em 1973.

Ora acontece que nas minhas andanças pelas medicinas estive ligado aos Médicos Sem Fronteiras e, em 1987, coube-me ir abrir uma missão com hospital de campanha, na Guiné-Bissau, no sector do Boé. Confesso que senti algum entusiasmo, o Boé era para todos quantos estiveram na Guiné durante a guerra um local mítico e penso que não havia ninguém, pelo menos no meu tempo, que não soubesse da retirada de Madina do Boé e do desastre do Che Che.

Partimos de Lisboa num dia que não recordo em Setembro de 1987 com uma equipa de 4 médicos, um enfermeiro e um encarregado da logística. Não tinha regressado nunca mais à Guiné desde o fim da comissão em 1974, mas depressa me ambientei, desde logo à chegada com aquele calor intenso que nos subia pelas pernas acima a recordar o desembarque no mesmo local em 1972. 

Poucos dias depois a partida para Gabú (Nova Lamego) onde dormimos um dia e fomos recebidos pelo governador local, o Paulo (não me recordo do nome todo dele), homem que andou na luta e tinha uma recordação perene dela, uma prótese numa perna.

No dia seguinte partimos para Lugadjole, local destinado para a missão. A estrada era uma velha picada daquelas que todos nos recordamos com os seus buracos e saltos inopinados. Parámos em Canjadude, uma tabanca com ar arrumado e limpo, mas que logo a seguir tinha ainda as marcas da guerra, uma viatura blindada e uma camioneta, completamente calcinados jaziam à beira da estrada. 

Finalmente o Che Che e a jangada. Íamos num jipe cedido pelo governo,  seguidos por uma camioneta onde carregávamos todo o material para a montagem do hospital, a entrada na jangada foi uma habilidade de equilibrismo complicada, mas depois a saída, à chegada do Che Che, foi mesmo um prodígio de equilíbrio que o condutor do jipe, de seu nome Domingos, e o condutor da camioneta executaram quase que por milagre.

Reiniciámos a viagem a caminho de Béli onde chegámos ao fim de umas horas muito difíceis de trajecto. Em Béli estava uma missão de alemãs que nos acolheu muito bem e nos deram uma refeição deliciosa de cabrito (disseram-nos que era…) acompanhadas de vinho branco fresquíssimo delicioso, de tal forma delicioso que um dos colegas que me acompanhava apanhou uma enorme bebedeira e acabou por fazer o resto do caminho a dormir quase não se apercebendo dos tremendos saltos que o jipe dava. 

Chegámos a Lugadjole já ao anoitecer e ainda tivemos de descarregar a camioneta para termos camas onde dormir dado que a casa onde fomos alojados nada mais tinha do que paredes, eram casas construídas pelos soviéticos quando tentaram explorar bauxite naquele local, o que acabou por não se revelar rentável e o local foi abandonado.

Os dias foram-se passando entre as consultas e trabalhos para nos instalarmos e um belo dia conseguimos convencer o responsável local, um homem de poucas falas, chamado Kassifo N’Cabo, a levar-nos ao local onde fora declarada a independência. 

No jipe dele e ainda no jipe que nos tinha sido cedido pelo governo guineense, saímos a caminho da fronteira com a Guiné Conakri e, pouco antes da tabanca de Vendu Leidi subimos a um ponto um pouco mais alto, que na crónica da Tina Kramer fiquei a saber que se chamava Orre Fello, onde uma estrutura meio abandonada nos foi indicada como tendo sido o local da declaração da independência. 

Na verdade, não sei se realmente terá sido ali que se deu o acontecimento, mas dada a proximidade da fronteira (Vendu Leidi situa-se práticamente nela) e o local meio perdido nos confins do Boé, admito que terá sido esse o tal local.

Por agora é só, as descrições do trabalho em Lugadjole são longas e provavelmente fastidiosas. Resta dizer que montámos o hospital de campanha que tinha bloco operatório e que esteve a funcionar creio que cinco ou seis anos.

1 – Mapa da região, onde marcado com uma estrela se pode ver o local de Orre Fello
2 – Guiné-Bissau >Região de Gabu > Sector do  Boé > Médicos Sem Fronteira > 1987 > Fotografia minha acompanhado por um dos médicos, o Dr. João Luís Baptista, no Che Che
3 –Guiné-Bissau >Região de Gabu > Sector do  Boé > Médicos Sem Fronteira > 1987 > Baga Baga junto de Béli
4 - Guiné-Bissau >Região de Gabu > Sector do  Boé > Médicos Sem Fronteira > 1987 > Vendu Leidi > Orre Fello > Local da declaração de independência
5 –Guiné-Bissau >Região de Gabu > Sector do  Boé > Médicos Sem Fronteira > 1987 >  Vendu Leidi > Orre Fello >  Casa que se dizia ter sido de Amílcar Cabral
6 – Guiné-Bissau >Região de Gabu > Sector do  Boé > Médicos Sem Fronteira > 1987 >  Jangada do Che Che

Fotos (e legendas): © Ramiro Figueira (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Abraço
Ramiro Figueira

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Guiné 61/74 - P17709: Notas de leitura (991): “Memórias SOMânticas”, de Abdulai Sila, Ku Si Mon Editora, 2016 (Mário Beja Santos)

“Memórias SOMânticas”, de Abdulai Sila, Ku Si Mon Editora, 2016


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Março de 2016:

Queridos amigos,
Há as memórias românticas e as somânticas. A heroína desta poderosa narrativa de Abdulai Sila interpela-nos à partida: "O que devo dizer que fiz na vida se ninguém entende que o meu hoje ainda promete ser diferente do meu ontem?". No fim da vida, e quando toda a gente lhe diz que ela nada tem, contesta por escrito, não está louca, no entanto reconhece, que a loucura profética nunca suplantará a magia da narração. A literatura da Guiné-Bissau tem percorrido os caminhos mais ínvios do desentendimento e do desalento e estas "Memórias SOMânticas" falam de um sonho que não morre e que de alguém que não se resigna.
Continuo a não entender por que Abdulai Sila não é editado em Portugal, para benefício da nossa língua comum.

Um abraço do
Mário


Memórias SOMânticas: a pujança da literatura guineense

Beja Santos

“Memórias SOMânticas”, é o mais recente título de Abdulai Sila, Ku Si Mon Editora, 2016. Até agora, dava como dificilmente ultrapassável a obra de Filinto Barros “Kikia Matcho”, a dolorosa narrativa de um combatente que tudo dera para ter uma pátria e que depois o ignorou. Aqui há uns anos, fui procurado por uma antropóloga alemã, Tina Kramer, que me veio pedir ajuda para a sua digressão na Guiné-Bissau, pretendia recolher depoimentos sobre a reconciliação nacional e o sentir dos combatentes do PAIGC passadas estas décadas. Procurei ser útil, e a Tina partiu levando como intérprete e motorista Abudu Soncó, meu irmão no Cuor. Passaram-se os meses, e eu ansioso por conhecer os detalhes desta pesquisa em ciências sociais. A Tina veio um tanto atarantada, o Abudu vinha em estado lamentoso com o que vira e ouvira. Tinham percorrido as profundezas do país, pedido para contactar gente que habitara em locais duríssimos, como Morés, a mata de Fiofioli, Kubukaré, em Sara – Sarauol. Houve gente que se recusou a falar ou pedia dinheiro, alegando miséria extrema; houve quem fez depoimentos a soluçar, perdera pais e irmãos, ficara com incapacidade, cedo o PAIGC os esquecera, a humilhação era tal que tinham que trabalhar para compatriotas que auferiam pensões vindas de Portugal… Não é preciso acrescentar mais nada.

Esta portentosa narrativa de Abdulai Sila abre com um texto em crioulo, em português reza o seguinte: Os revezes da vida são como fogo do lixo a arder por baixo/Quem me vê de longe julga-me palmeira/Mas quem se aproxima sabe/Que eu sou um poilão grande/Nem os boabás se igualam a mim. É narrativa confessional, na primeira pessoa, uma mulher combatente, agora está presa a uma velha e esfarrapada cadeiras de rodas, guarda intactas gostosas e amargas recordações de infância, dirige-se-nos com forte convicção: “Nas noites de indecisão procurei a luz redentora, nos vestígios da luta pela afirmação procurei amparo. Cantei, louvei, celebrei a vida. Mas a vida insistia em querer iludir-me a qualquer momento, a todo o custo, não me reconhecendo o direito a interregno nessa batalha que se anunciava eterna”.

Adorava a mãe, dela guarda mensagens e sentenças, um exemplo: “O fim de uma coisa é sempre o início de uma outra”. Um outro exemplo: “Na vida há coisas que podes mudar, outras não. Concentra-te naquilo que podes influenciar com a tua ação e coloca o resto no seu respetivo lugar. Assim podes vislumbrar o fim de uma situação e o início de outra. É este o segredo da vida”.

A mãe morreu, escolheu uma nova mãe. Crescia e com interpelações dolorosas, inquietantes: será que uma mulher tem sempre que pertencer a um homem? Alguém lhe disse que a mulher foi feita para sofrer não para mandar. Depois apaixonou-se, o jovem falava-lhe de igualdade, justiça e liberdade e visionava que um dia iriam ser africanos de verdade. E partiu para a guerrilha, lá longe. Ela decidiu também partir, encaminhou-se para Conacri, foi uma habituação difícil. Voltaram-se a ver, houve desentendimento, fez-se enfermeira, mas aquele seu companheiro não lhe saía do espírito. Ela começara por trabalhar no Lar do PAIGC, sonhara ser professora, não enfermeira. Tornou-se uma enfermeira exemplar. Deslocou-se para a Frente Sul, o seu homem podia ser encontrado em Kubukaré, aí ardeu a paixão, fizeram um filho. Foi habitar em Boké, dali um dia partiram o seu homem e o seu filho, vieram anunciar que tinham morrido. “Lembro-me de ter visto o teto branco da enfermaria a fugir de mim e a mudar constantemente de cor. Era um movimento vagaroso, que se repetia sem parar. Separando-se do resto da enfermaria, o teto daquele quarto deslocava-se para cima, em direção às nuvens no céu e a meio do caminho mudava de cor. Depois voltava para o seu lugar inicial, trazendo e enchendo o quarto do ruído ensurdecedor do motor de um camião a alta velocidade. Às vezes era só o motor do camião, outras vezes vinha misturado com gritos”. A guerra chegou ao fim, ela viu a sua Guiné esplêndida e gloriosa: “Eu sou dos inúmeros concidadãos que definitivamente vão voltar para casa magoados, com alguma amputação, temporária ou vitalícia. Eu levo todo um sonho amputado”.

A realidade era outra, cedo descobriu que se tinha falado em reconciliação e agora se perseguia sistematicamente os inimigos de ontem, irmãos guineenses. Ela fora uma guerrilheira com credenciais, deslocou-se por todo o país à procura de desaparecidos, aparentemente ninguém sabia de nada. Apercebeu-se que tinha havido fuzilamentos. Trabalhou intensamente num internato, queria viver a paixão da sua causa, encontrou pela frente a burocracia, a indiferença, viu o desânimo no rosto da gente. E descobriu que o seu partido já não se interessava por internatos. “Perdido o internato, os meus filhos desapareceram um após outros, até não sobrar nenhum. Mas sinto que estão por aí, entregues à sua sorte, sem a bênção de quem devia revelar-lhes as virtudes regeneradoras da fé e as lições da vida tiradas da História”.

E agora ela está por ali agarrada à cadeira, à procura de respostas que tardam em chegar. Foi amputada de tudo, perdeu companheiro e filho, tiraram-lhe o internato e chegou aquela blasfémia de se insinuar que os guineenses não eram capazes de tomar conta da sua terra e de construir o sonho pelo qual tinham combatido. Não entende os jovens, com os gestos obscenos, descobriu que os pais são condescendentes porque os filhos não têm profissão. No entanto, ela continua a arder em esperança, espera nesse novo mundo em que a maldade e o sofrimento não podem existir. Tem orgulho na sua história, continua a pensar que nasceram, toda aquela gente nasceu, para uma missão, sabe que vai partir em breve deste mundo, e grita bem alto aquele seu sonho que nunca envelheceu:  
“Marginalizados? Nós é que domesticámos o invasor e abolimos o medo perante o desconhecido. Na calada da noite prenhe de incertezas reinventámos a vida e, bem alto no céu, fizemos soar a sinfonia da dignidade.
Deserdados? Construímos um mundo plural, onde todas as cores do arco-íris se fundem sem nunca se confundirem. Recuperámos a palavra, e abençoando-a, fizemos com que a magia da narração sustentasse os novos limites da razão. Muito além do verbo e da doutrina.
Não erguemos troféus, não exigimos medalhas, nem guardámos ressentimentos. Impusemos um novo paradigma da inteligência: sem ser mártir nem ambicionar ser herói, viver uma paixão até à exaustão e morrer sonhando”.

Uma narrativa que muito honra a literatura da Guiné-Bissau.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17688: Notas de leitura (990): “Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”, por Daniel Gouveia, Âncora Editora, 2015 (3) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Guiné 61/74 - P17699: (De) Caras (90): notícias da nossa "menina" Tina Kramer, hoje senhora e doutora, membro da nossa Tabanca Grande

A investigadora alemã Tina Kramer com a Dona Berta,
em Bissau, em 2011. Foto: cortesia de Tina Kramer (2011)

1. O nosso camarada, amigo e colaborador Beja Santos deu-nos conhecimento, em 21 do corrente,  da correspondência trocada com a doutora Tina Kramer, antropóloga, da Universidade de Leipzig, Alemanha, membro da nossa Tabanca Grande:


(i) Mensagem de Tina Kramer para Beja Santos, com data de 14 do corrente:

Caro Mário, fico muito contente por saber que estejas de boa saúde. Desejo-te muito alegria e sucesso para as novas investigações.

A minha família está bem e a pequena Edda Maimuna cresce bem. Já fala muito e muito bem.

Como tenho muito saudade de vocês e de Lisboa,  espero que pudermos vir no próximo ano.
Gosto de fazer um sumário da minha tèse em alemão, porque o meu português já está um bocado enferrujado. Só que a tèse ainda não foi publicada, então ainda não tem um rosto lindo.

Como tenho muito saudade de vocês e de Lisboa espero que pudermos vir no próximo ano. Já estou ansiosa pelo reencontro contigo e com o Abdu [Abudu Soncó, guia e intérprete, durante a expedição de Tina Kramer, na Guiné-Bissau, no 1º semestre de 2011, e que lhe foi sugerido na altura pelo Beja Santos].

Também estás sempre bemvenido aqui em Leipzig! É uma cidade linda.

Com votos de muita saúde para ti e para os teus e com muitos beijinhos,

Tina


(ii) Mensagem de Beja Santos para Tina Kramer,  de 9/8/2017:


Minha nunca esquecida Tina, em primeiro lugar, votos de muita saúde e prosperidade para ti e para os teus. 

Por aqui, continuo com as minhas investigações à volta da Guiné. Descobri um filão novo, os arquivos do velho Banco Nacional Ultramarino que se instalou em Bolama no início do século XX, havia relatórios anuais em que os gerentes exprimiam pontos de vista por vezes muitíssimos curiosos. Tenho largos meses pela frente neste estudo. Tem saído bastante bibliografia sobre a Guiné, dela dou notícia no blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné. 

O nosso comum amigo Abudu Soncó tem a saúde estável, em Portugal tem os medicamentos que o fazem viver uma vida com qualidade, faz trabalhos leves, eu bem gostaria que ele trouxesse a mulher para Portugal, mas não consigo perceber a embrulhada em que está o processo da naturalização dele. 

Tina, fico feliz pelo teu doutoramento, estou ansioso que se publique uma notícia grande e esclarecedora sobre o teu trabalho. Se não tens meios para produzir aí uma síntese de três a quatro páginas em língua portuguesa, peço-te o grande favor de as escreveres em alemão, eu pediria ao senhor Reinhard Naumann, da Fundação Friedich Herbert ajuda para pormos o texto em português. 

O teu doutoramento é uma peça científica que tem que ser conhecida em Portugal, creio que é a primeira vez que um investigador alemão relata o estado de espírito dos antigos combatentes do PAIGC. É um documento importante para Portugal e para a Guiné-Bissau, confio que acederás ao meu pedido e produzirás tal documento. 

Preciso também de imagens de ti, do teu doutoramento, do rosto do documento do mesmo doutoramento. 

Quando quiseres visitar Portugal com a tua família, terei muito gosto em receber-te em minha casa e de igual modo terei muito gosto em visitar-te na Alemanha, ando com uma vontade enorme de voltar a Berlim. 

Sem mais, fico a aguardar a tua resposta. Recebe muita amizade e um beijinho de ternura do Mário Beja Santos

(iii) Já em janeiro último, tínhamos recebidos (boas) notícias da TinaKramer, nossa amiga e grã-tabanqueira, que na altura não publicámos por ser mais pessoal:


23 de janeiro de 2017:

Querido Mário,
desculpa, tanto tempo, nao dei notícias. Por favor não fiques zangado.

Como estás?
Já tens um novo livro. Muitos parabens!

Estamos bem. A minha filha cresce muito rápido. Já comeca a ser uma pequena dama.

Há um ano que terminei a tese (finalmente!), más ainda não foi publicado. No momento trabalho numa pequena organização cultural em Leipzig que gosto muito.

Olha, estou preocupada do Abdu. Já não ouvi nada dele há alguns meses. Não responde aos e-mails, o número que tenho dele já não existe.

Tens notícias dele? Está de bom saúde?

Um abraço,

Tina

24 de janeiro de 2017


Minha querida Tina, Fico felicíssimo com as tuas notícias, por teres uma filha linda, por teres concluído a tese, por trabalhares em Leipzig, cidade que muito aprecio, que tem uma das estações ferroviárias do mundo, um esplêndido museu de farmácia, por estar cheia de lembranças de um génio da música chamado Bach.

Continuo a escrever sobre a Guiné, foram três livros sobre a história da Guiné Portuguesa e da Guiné-Bissau, preparo agora referências a textos incontornáveis, desde o cronista Zurara até aos grandes escritores guineense, Filinto Barros e Adulai Silá. 

Se for possível fazeres para o blogue uma síntese de duas ou três páginas da tua tese de doutoramento, prestarás um relevante serviço à nossa cultura. O número de telefone do Abudu é [...] e o mail é  [...].

Despeço-me cheio de alegria por te saber bem, qualquer dia vou visitar-te a Leipzig, a ver se descubro um voo low-cost, e depois vou a Dresden, também estou cheio de saudades dessa encantadora cidade, felicidades, Mário.

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Nota do editor:

quarta-feira, 21 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9632: Blogpoesia (184): O tuteio ou o tratamento por tu, entre os camaradas da Guiné... (No Dia Mundial da Poesia... e da Água) (Luís Graça)



Para os/as amigos/as, camaradas e camarigos/as da Guiné…

Com humor,
amor,
amizade,
camaradagem,
cumplicidade...
em mais um 
Dia Mundial da Poesia,
criado pela XXX Conferência Geral da UNESCO
em 16 de Novembro de 1999,
com o propósito de promover
a leitura, escrita, a publicação e ensino da poesia através do mundo.
Também Dia Mundial da Água.

Escrevam poesia,
leiam poesia,
soltem o vosso poeta envergonhado,ou até encarcerado!
Ah!, não é preciso dizer-vos para poupar a água! (... Nós, camaradas da Guiné, sabemos dar valor a ela!)

LG



Tuteio ou tratamento por tu


por Luís Graça


Fiquei com pena da fräulein Tina Kramer
antropóloga, 
hoje nossa tabanqueira,
a quem, chegada da austera e luterana Germânia,
lhe impuseram o tratamento por tu,
como se fora uma praxe de gangue:
depois desta receção da Tabanca Grande,
ela deve ter ficado confusa,
quiçá perturbada
e até intimidada,
ao pensar que os camaradas da Guiné
são todos uma cambada de velhos malucos
a quem saltou a caixa dos pirolitos...
"Portugueses, pocos, pero locos"
(diria ela se fosse uma altiva castelhana,
daquelas que vinham casar com príncípes portugueses,
na mira de acertar em cheio no jocker)...

Eu próprio detestava a palavra fräulein,
nunca tratei nenhuma colega ou amiga alemã por fräulein...
Posso a estar a ser injusto,
mas tem, para mim, uma conotação pejorativa,
prussiana,
militarista...
Como teria se eu tratasse por menina Tina Kramer,
como nos bons velhos tempos do Portugal dos nossos pais e avós
Ao menos, tratemo-la, não por miss,
(cheira-me a babydoll)
mas por bajuda,
que é mais doce, mais crioulo, mais tropical…


Zé Belo, lusolapão,
tuga da diáspora
na terra onde o cidadão trata o cidadão por tu,
não foi preciso fazermos uma revolução
à moda dos sovietes de Petrogrado,
nem do Grande Irmão Urso sueco,
nem dos Camaradas (salvo seja!) do PAIGC,
do MPLA
ou da FRELIMO...
(Lembram-se das milhares de anedotas
que se contavam do camarada, salvo seja!, Machel
e da sua mania de reeducar e recuperar o diabo branco colonialista
com o trabalho manual na machamba?!)...

Com o 25 de Abril,
a distância social e afetiva,
a começar na família, entre pais e filhos,
foi encurtada,
e o tratamento por tu impôs-se sem ser por decreto...
Com tanta naturalidade (ou só aparente ?)
que a gente nem sequer se questiona hoje
sobre o como e o porquê...
(Alguns questionam-se, e têm toda a liberdade para o fazer).
Em contrapartida, foi retomado
(ou nem sequer foi interrompido)
o tratamento, tradicional,
aparentemente mais distante e formal,
de você,
de pais para filhos,
de esposa para esposo,
em certas famílias,
em certos meios sociais
(que eu não vou adjectivar,
porque não gosto de adjetivar os outros,
e faço um esforço por respeitar todas as diferenças).
O tecido social é isso mesmo,
é um pano, de linho, de algodão, de serapilheira ou de seda,
que se puxa conforme o frio, as pernas e as mãos,
as chagas, as misérias e as grandezas…


Os nossos filhos, pelo menos os meus, tratam-nos por tu,
mas eu trato os meus pais à moda antiga...
Há algum mal nisso ?
São apenas mudanças de paradigma
na convivialidade sociofamiliar,
diria o sociólogo de serviço, que já não há,
descartado pela mãe de todas as crises... 
Eu, o Hélder, o Nelson,
fomos capazes de tratar os nossos velhos,
o Luís Henriques,
o Ângelo Ferreira de Sousa,
o Armando Lopes,
veteranos da II Guerra Mundial,
expedicionários em Cabo Verde,
com a ternura da expressão
“Meu pai, meu velho, meu camarada”

Liberdades ou libertinagens bloguísticas,
dirão os críticos…
Daqui a uns anos
(espero bem que não, cruzes canhoto!...)
voltaremos a tratar-nos
com distância e reverência,
quiçá por Vossa Senhoria.
meu fidalgo, meu amo,
como no tempo da(s) outra(s) senhora(s)…
Eu sei que o tratamento por tu,
republicano,
económico,
frugal, com duas letrinhas apenas,
o tratamento à romana na Tabanca Grande,
nem sempre é fácil nem natural,
para mais num país,
ainda muito estratificado,
em que se continua a usar e a abusar dos títulos,
nomeadamente no Estado, nas empresas e demais organizações
onde o trabalho é pouco e a distância grande,
tão grande como a rede clientelar:
senhor presidente, senhor doutor, senhor engenheiro...

Nunca foi nem o é ainda hoje:
tive a prova disso, há uns anos,
numa das memoráveis quartas feiras
do almoço semanal da Tabanca Pequena,
quando cumprimentei um a um a meia centena de convivas
da Tabanca de Matosinhos...
Boa parte, já meus velhos amigos...
mas ainda havia gente que se retraía,
invocando a educação que tiveram,
o desconhecimento do outro,
«a falta de intimidade e de convívio,
a distância física
(sempre são 300 km entre Lisboa,
a capital do reino,
onde o Paço tem Terreiro,
e o Porto, a capital do trabalho,
onde o povo tem o São João e o alho porro)...


Quando impus (passe o termo...)
o tratamento por tu no blogue,
entre camaradas da Guiné,
quis deliberadamente fazer o curto circuito
entre as distâncias militares, hierárquicas, do passado
e as eventuais distâncias sociais e profissionais, do presente...
Hoje considero uma honra poder ser tratado por tu
por um camarada da Guiné,
independentemente do antigo posto,
da idade,
da naturalidade,
da nacionalidade
e da atual posição na sociedade portuguesa...
E vice versa:
considero um privilégio poder tratar por tu
um homem ou uma mulher
que aceitam os valores e as regras do jogo do nosso blogue...

Há sobretudo uma cumplicidade (saudável) entre nós,
que não seria possível se
aqui, no blogue
e nos convívios da Tabanca Grande,
e das demais tabancas que entretanto foram crescendo
como cogumelos em floresta de carvalhos e de castanheiros,
se a gente continuasse a tratar-se como na tropa,
na escola,
no parlamento:
Dá-me licença, vossa senhoria, meu capitão ?
Como vai, senhor Doutor ?
Vossa Excelência, senhor engenheiro,
permite-me que eu discorde da sua douta opinião ?
O meu furriel é que sabe,
mas o vague-mestre é que dormia com a mulher… do Baldé
quando o Baldé ia para a Ponte do Rio Udunduma...
E, você, nosso instruendo, sua besta quadrada,
não sabe que a Pátria é hermafrodita,
é pai e mãe ?
Mais do que isso, é Pátria, é Mátria, é Frátia|

Para que o tu continue a escrever-se com duas letrinhas apenas,
o tu de tuga,
portuga,
camarada,
amigo,
irmão,
cidadão…
O tu do abraço, do alfa bravo, do quebra-costelas,
o tu de Tango Uniform,
e não se torne o tu
de intumescência,
da tumefacção,
da turbulência…
nestes dias de Charlie Romeo India Sierra Echo,
da CRISE que continua dentro de momentos...

Luís Graça

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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9627: Blogpoesia (183): Homenagem ao Homem, no Dia do Pai (Felismina Costa)

domingo, 23 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8939: Memória dos lugares (159): Lugajole, 2004 - Memorial à declaração unilateral da Independência da Guiné-Bissau, localizado em Orre Fello (Rui Fernandes)

1. Mensagem de 21 de Outubro de 2011 do nosso tertuliano Rui Fernandes, dirigida ao nosso camarada Virgínio Briote:

Caro Virgílio Briote
Na sequência do Post-8928* de Tina Kramer, envio fotos de Lugadjole tiradas em Abril de 2004, com maior detalhe do Monumento em Orre Fello.

Nunca ouvi que Amílcar Cabral tenha lá vivido, mas sim que foi o local da declaração da Independência. Por outro lado naquela estrutura não se nota qualquer identificação de que tenha tido um telhado.

Tapei a face das pessoas porque não pedi autorização às mesmas para publicação das fotos.

Quanto às fotos da vista para Lugadjole era impossível em melhor condições, devido ao declive acentuado do terreno e à vegetação existente

Não sei se terá interesse publicá-las no blogue, pelo que ficará ao critério dos Administradores/Editores.

Com os meus cumprimentos
Rui Fernandes


Localização de Lugajole - Imagem Google

Localização do Monumento em Orre Fello - Imagem Google


Escola Primária Comunitária de Lugajole

Vista posterior do Monumento

Frente do Monumento

Placa não legível

Vista do Monumento para Lugajole

Vista do Monumento para Lugajole

Vista do Monumento para Lugajole
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 19 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8928: A nossa expedição à Guiné (Tina Kramer) (1): Gabu - Lugadjole (de 28 de Março a 7 de Abril de 2011)

Vd. último poste da série de 21 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8933: Memória dos lugares (158): Cufar e o porto do rio Manterunga, extensão do inferno na terra : 2 de Março de 1974 (António Graça de Abreu)