sábado, 26 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15541: Efemérides (207): Ataque ao Cachil na Consoada de 1965 (João Sacôto, ex-Alf Mil da CCaç 617/BCAÇ 619)

Cachil - Natal de 1965 - Zona da cozinha atingida pelo ataque IN da Noite de Consoada



1. Mensagem do nosso camarada João Sacôto (ex-Alf Mil da CCAÇ 617/BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66), com data de 25 de Dezembro de 2015:

Faz hoje 50 anos, no Cachil, Guiné Portuguesa.
Dia de Natal de 1965, no rescaldo do ataque IN da véspera, todo o pessoal da C.Caç 617, se afadigava a pôr o quartel em ordem, e a cuidar dos feridos, alguns dos quais, feridos com gravidade, foram evacuados para o Hospital de Bissau.

Na véspera e durante a ceia de Natal, em que cada um de nós, à sua maneira recordava Natais anteriores em família, com os rituais e hábitos próprios de cada um, naquele momento tão especial e sagrado, fomos vítimas de um ataque impiedoso que nos obrigou a passar de um estado de espírito do qual, emanava paz e saudade, para rapidamente voltarmos à guerra, pegando em armas, tomando posições e disparando para nos defendermos.

João Sacôto

Cachil - Na foto, da esquerda para a direita: Capitão João Bakar Jaló, falecido em combate e um dos militares portugueses mais condecorados; Capitão Marques Alexandre, já falecido este ano e Alferes João Sacôto, eu, que ainda estou vivendo.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15518: Efemérides (206): Há 44 anos estávamos nos preparativos para embarcar, o que se veio a efectivar no dia 18 de Dezembro de 1971 (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas)

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15540: Feliz Natal / Filis Natal / Merry Christmas / Feliz Navidad / Bon Nadal / Joyeuz Noël / Buon Natale / Frohe Weihnachten / God Jul / Καλά Χριστούγεννα / חַג מוֹלָד שָׂמֵח / عيد ميلاد مجيد / 聖誕快樂 / С Рождеством (15): Ao colectivo tertuliano da Tabanca Grande - Bom Natal e um Ano de 2016 com muita saúde (Jorge Alves Araújo)

1. O nosso Camarada Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CART 3494, (Xime-Mansambo, 1972/1974), enviou-nos a seguinte mensagem no passado dia 18DEZ. 

BOAS FESTAS
AO COLECTIVO TERTULIANO DA «TABANCA GRANDE»
- BOM NATAL E UM ANO DE 2016 COM MUITA SAÚDE -


Foto 1 [postal BF] – Xime - DEC1972. Aquecendo as mãos e o coração em redor dos nossos «meninos do Xime» … enquanto o arroz coze. Será que estamos perante o nosso amigo e camarada José Carlos Mussá Biai?

1. – INTRODUÇÃO

- Memórias do passado que são presente – o NATAL

A primeira efeméride do contingente metropolitano da CART 3494, relacionada com a tradicional quadra natalícia, ocorreu há quarenta e quatro anos a bordo do N/M Niassa, durante a viagem iniciada em Lisboa, no Cais da Rocha, a 22 de Dezembro de 1971, rumo a Bissau, onde chegou seis dias depois.

Em função do tempo contabilizado na missão ultramarina – cerca de vinte e oito meses – outras duas efemérides semelhantes constam no seu historial, a segunda no Xime, em 1972, e a terceira em Mansambo, em 1973.

A propósito dessas reuniões de elevado simbolismo para todos nós, recordo com mais algumas imagens,recuperadas do baú de memórias, o último Natal da CART 3494 passado no mato. 

3.º NATAL –> 1973 = NO AQUARTELAMENTO DE MANSAMBO

Foto 2 – Mansambo, ceia de Natal 1973. Da esquerda para a direita: Serradas Pereira [Alferes]; António Costa, de pé [1.º Cabo - impd.M.Of.]; Luciano Costa [Cap Mil, 3.º CMDT da 3494]; Lobo da Costa [Alferes Estagiário do Curso de Capitães]; João Manuel Sousa Teles [Ten Cor, 2.º CMDT do BART 3873]; Carvalhido da Ponte [Furriel] e Cláudio Ferreira, de costas [Furriel]. 

Foto 3 – Mansambo, Natal1973. Mesa 1 [esq.]: Abílio Oliveira; mesa central [esq/dtª]: João Godinho; Mendes Pinto; Sousa Pinto [1950-2012] e Benjamim Dias; mesa 3 [dtª]: Carvalhido da Ponte e Jorge Araújo – todos furriéis.


Foto 4 – Mansambo, 1973. Ícone do Aquartelamento de Mansambo – local dos milagres gastronómicos.

Termino, enviando a todos os camaradas tertulianos da nossa TABANCA GRANDE, e aos leitores assíduos do nosso blogue, uma MENSAGEM DE BOAS FESTAS. 

Ao Luís Graça, ao Carlos Vinhal e ao Magalhães Ribeiro – os nossos editores permanentes – é devida uma palavra de gratidão pela sua entrega continuada a este trabalho diário de ordenar a prosa e as imagens enviadas pelos camaradas grã-tabanqueiros, sobre as nossas memórias do CTIGuiné. 


Foto 5 – Xime, 1972. Local onde aconteceram as primeiras grandes experiências, e por isso recordamos a “nossa” Tabanca do Xime”.

QUE TENHAM UM BOM NATAL E UM ANO DE 2016,

MELHOR QUE O ANTERIOR, COM MUITA SAÚDE.

Com um forte abraço de amizade
Jorge Araújo
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 

Guiné 63/74 - P15539: Parabéns a você (1008): Ismael Augusto, ex-Alf Mil Manut do BCaç 2852 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 24 de Dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15533: Parabéns a você (1007): Fernando Jesus Sousa, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 6 (Guiné, 1970/71) e João Rebola, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2444 (Guiné, 1968/70)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15538: Feliz Natal / Filis Natal / Merry Christmas / Feliz Navidad / Bon Nadal / Joyeuz Noël / Buon Natale / Frohe Weihnachten / God Jul / Καλά Χριστούγεννα / חַג מוֹלָד שָׂמֵח / عيد ميلاد مجيد / 聖誕快樂 / С Рождеством (14): Giselda e Miguel Pessoa; João Parreira; Ernestino Caniço; Santos Oliveira e Hugo Moura Ferreira

1. Mensagem natalícia dos nossos camaradas: Giselda Pessoa (ex-Sargento Enfermeira Paraquedista da BA 12) e Miguel Pessoa (Coronel Pilav Ref, ex-Tenente Pilav da BA 12:

Desejando um Feliz Natal e boas entradas em 2016! 

Com amizade
Giselda e Miguel Pessoa


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2. Mensagem natalícia do João Parreira (ex-Fur Mil Op Esp da CART 730/BART 733, Bissorã, 1964/65; ex-Fur Mil Comando, CTIG, Brá, 1965/66)

Caros Camaradas
Editor, Luís Graça e co-editores, Carlos Vinhal e Magalhães Ribeiro, bem assim como todos os outros Camaradas Tabanqueiros,
Que tenham um óptimo Natal, e que os dias do Ano Novo sejam uma sequência de proveitosas realizações e repletos de paz e felicidade, são os meus sinceros votos.

João Parreira


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3. Mensagem do nosso camarada Ernestino Caniço (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Rec Daimler 2208, MansabáMansoa e Bissau, 1970/71):

Amigo Carlos 
Para todo o pessoal da Tabanca aqui ficam os meus votos de Feliz Natal e um óptimo Ano 2016.

Um abraço 
Ernestino Caniço



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4. Postal de Boas Festas do nosso camarada Santos Oliveira (ex-2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf, Pel Mort 912, Como, Cufar e Tite, 1964/66):




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5. Postal de Natal do nosso camarada Hugo Moura Ferreira (ex-Alf Mil da CCAÇ 1621, Cufar e Cachil, e CCAÇ 6, Bedanda, 1966/68)


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Nota do editor

Poste anterior da série de 24 de Dezembro de 2014 Guiné 63/74 - P15537: Feliz Natal / Filis Natal / Merry Christmas / Feliz Navidad / Bon Nadal / Joyeuz Noël / Buon Natale / Frohe Weihnachten / God Jul / Καλά Χριστούγεννα / חַג מוֹלָד שָׂמֵח / عيد ميلاد مجيد / 聖誕快樂 / С Рождеством (13): Ao Menino Jesus (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546)

Guiné 63/74 - P15537: Feliz Natal / Filis Natal / Merry Christmas / Feliz Navidad / Bon Nadal / Joyeuz Noël / Buon Natale / Frohe Weihnachten / God Jul / Καλά Χριστούγεννα / חַג מוֹלָד שָׂמֵח / عيد ميلاد مجيد / 聖誕快樂 / С Рождеством (13): Ao Menino Jesus (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546)

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), com data de 23 de Dezembro de 2015:

Tomo a liberdade de enviar um pequeno poema, e um conto de Natal, que poderão ser disponibilizados aos visitantes da Tabanca Grande.

Domingos Gonçalves


Ao Menino Jesus

Outrora,
Em Belém,
Quando era tua morada
O bendito
Seio de tua mãe,
Quando vieste a este maldito
Planeta
Para nos salvar,
E vieste à luz
Do dia
Com o nome de Jesus,
Andaste de porta em porta,
Pedindo abrigo
Até ser noite morta,
Mas ninguém te quis aceitar.

Foste nascer
Fora da cidade,
Ao frio, numa gruta,
Aquecido com o respirar
Sereno,
Do burro e da vaca,
Criaturas
De alma impoluta,
Puras,
Deitadas sobre o feno.

Quem diria
Que no meio de tanta pobreza,
Nascia,
Só por amor,
A suprema realeza
O Senhor
Do meu Natal,
O Redentor?
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15529: Feliz Natal / Filis Natal / Merry Christmas / Feliz Navidad / Bon Nadal / Joyeuz Noël / Buon Natale / Frohe Weihnachten / God Jul / Καλά Χριστούγεννα / חַג מוֹלָד שָׂמֵח / عيد ميلاد مجيد / 聖誕快樂 / С Рождеством (12): No Natal Nasceu Jesus sempre Menino (Mário Vitorino Gaspar)

Guiné 63/74 - P15536: Conto de Natal (23): O antigo Natal (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546)

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), com data de 23 de Dezembro de 2015:

O Antigo Natal

Pelo entardecer, o lavrador recolheu a casa. Era dia de consoada. Na cozinha, a mulher e a filha trabalhavam com afã na preparação da ceia.

A ceia de Natal, da festa grande, merecia canseiras especiais. Era necessário fazer os mexidos, a aletria, as rabanadas, enfim, preparar tudo para que a festa da família fosse mesmo uma festa. E o lavrador, esse, chamou o filho, pegou numa grande infusa de barro vermelho, e os dois foram para a adega, que era um espaço escuro, no rés-do-chão da casa, onde os pipos do vinho se alinhavam, cobertos de pó e de algumas teias de aranha.

Aquele era um espaço onde apenas a luz ténue da candeia de petróleo permitia descobrir as pedras negras do lagar, e a grande trave de carvalho, que o atravessava, com um fuso em madeira na extremidade, que servia para espremer os restos das uvas, por altura das vindimas. Os cascos do vinho repousavam ali, desde a colheita que tivera lugar ainda havia escassos três meses. Voltando-se para o filho, o lavrador murmurou, apontando para um pipo, não muito grande, feito de madeira de castanho, já muito escuro:
- Vamos experimentar este. Daqui costuma sair uma boa pinga.

Menos conhecedor daqueles segredos, que só os muitos anos ajudam a desvendar, o filho respondeu-lhe:
- Está bem, pai. Pode ser mesmo desse. De certeza que deve estar uma categoria.

O velho homem poisou a candeia ali ao lado, sobre um pequeno banco, passou a infusa para as mãos do filho e, servindo-se de uma verruma, começou a retirar de um pequeno orifício que existia na cabeça do pipo, a bucha de estopa que impedia que o vinho saísse para o exterior do casco.
Depois de retirada a estopa, começou a jorrar pelo pequeno buraco, para dentro da infusa, um vinho tinto maravilhoso, que se desfazia em espuma avermelhada, de impressionante beleza.

Ao fim de alguns segundos, o lavrador colocou de novo a bucha no orifício e, voltando-se para o rapaz, disse-lhe:
- Vamos prová-lo. Se não estiver em condições, experimentamos outro.

Num gesto quase religioso, tomou nas suas mãos calejadas a infusa, olhou para aquele líquido sagrado feito com as uvas vindas da generosidade das videiras e do trabalho das suas mãos e bebeu alguns tragos do elixir maravilhoso. Depois, voltando-se para o filho, desabafou:
- Vinho melhor do que este não pode haver. É uma verdadeira preciosidade.
Passando-lhe a vasilha para as mãos, ordenou:
- Anda! Prova também tu esta delícia.

Repetindo o gesto do pai, o moço levou aos lábios o bico da infusa, e saboreou uns golos daquele líquido sagrado, dizendo depois para o velho:
- Sim! Este vinho é uma verdadeira delícia. Não pode haver melhor para uma ceia de Natal.

Em seguida, o lavrador encheu a caneca com aquele vinho tão especial e voltando-se para o filho recomendou-lhe:
- Este, vai levá-lo ao senhor Rodrigues.

O moço lá foi, apressado, entregar aquele presente.
O senhor Rodrigues era um pobre homem que morava ali perto, jornaleiro de profissão, que vivia miseravelmente, com a mulher, também um pobre diabo, para quem a vida tinha sido mais madrasta do que mãe. Mas na noite de Natal aquela gente tinha direito a ter à mesa pelo menos um vinho de excelente qualidade, acabado de jorrar de um pipo acabado de violar.

Enquanto o filho foi à casa do vizinho, o lavrador, deleitou-se a fumar um cigarro, na penumbra da adega, aguardando que ele regressasse. Depois, quando o filho chegou com a infusa, ele encheu-a de novo e ordenou-lhe:
- Este, vai levá-lo a casa de fulana.

O rapaz lá foi de novo levar aquela oferta, que se repetiu várias vezes, generosamente, pois não podia faltar vinho na mesa dos pobres durante a ceia de Natal.
Quando o filho regressou, depois de entregar a última oferta, o homem encheu de novo a infusa e, acompanhado pelo rapaz, subiu para a cozinha que ficava no primeiro andar da casa. Na lareira, o lume ardia a bom arder. Os potes muito negros, feitos de ferro fundido, dispostos à volta do lume, ferviam havia muito tempo e deixavam soltar-se um vapor quente e perfumado, sinal de que a ceia estava quase pronta. Era uma mistura de odores agradáveis que se desprendiam das couves galegas já quase cozidas, do bacalhau e das batatas, que na noite de Natal têm sempre um cheiro e um sabor inconfundíveis.

Quando tudo estava pronto, a mulher do lavrador retirou os potes do lume, escoou a água fervente e colocou toda aquela comida sobre as travessas de porcelana, previamente colocadas sobre a mesa. Depois sentaram-se todos à mesa, na cozinha iluminada apenas pelo brilho da lareira e pela mortiça luz da candeia de petróleo e comeram daquelas iguarias quase sagradas e beberam daquele vinho maravilhoso feito ali, naquela casa, pelas mãos experientes e sábias do homem do campo.

Terminada a refeição, o lavrador e o filho voltaram para a lareira, enquanto a mãe e filha arrumavam os pratos e outra loiça. Foi então que o filho reparou que a mãe não tinha retirado da mesa a toalha de linho muito branco, apenas ligeiramente manchada por algumas gotas do vinho tinto. E voltando-se para ela perguntou-lhe:
- Ó mãe! Por que não retiras a toalha da mesa?

E a mãe, ocupada ainda com o arrumo das loiças, respondeu-lhe:
- Na noite de Natal, a mesa fica posta até ao dia seguinte.
- Então, porquê?
- É que, durante a noite, quando a escuridão baixar sobre a cozinha, as alminhas dos nossos antepassados vêm sentar-se a esta mesa e saciar-se com o nosso pão e com o nosso vinho. É por isso que na noite de Natal a mesa deve ficar posta. Vai ficar tudo conforme estava quando nós terminámos de cear. Depois de saciadas, de terem comido do nosso pão e bebido do nosso vinho, as alminhas vão para a igreja e ficam junto do presépio a adorar o Menino Jesus.

Naquela santa noite, e na casa daquele lavrador, havia como que um ressuscitar de todos os antepassados mortos. Só Deus sabe quantas gerações vinham ali conviver na solidão daquela mesa, na santa noite de Natal! Era a família toda, - as gerações desaparecidas só Deus sabe há quanto tempo, e as pessoas ainda vivas, que ali moravam a celebrar religiosamente a Santa Noite.

Depois de arrumar a cozinha, a mãe e a filha também se sentaram à lareira, junto daquele calor sagrado e toda a família ficou ali durante longo tempo, à espera que chegasse a meia noite, para celebrar o nascimento do Senhor.
Quando a hora sagrada chegou, o lavrador abriu uma garrafa de vinho do Porto, enquanto a mulher trazia o prato com as rabanadas e todos celebraram o Feliz Nascimento. Em seguida, acossados pelo sono, foram descansar.

Antes de sair da lareira, o filho reparou que a mãe retirou do fogo uma grande canhota de carvalho, que apagou com muito cuidado, colocando-a fora do lume.
Curioso, perguntou-lhe:
- Ó mãe! Para que serve essa canhota?

Com muito respeito, a mãe voltou-se para o rapaz, dizendo-lhe:
- Esta canhota é para ser muito bem guardada e serve para se colocar no lume a arder quando houver trovoadas ou tempestades. Por onde o fumo que esta canhota libertar, quando estiver a arder, for passando, a trovoada e a tempestade desfazem-se. É um fumo milagroso o que se liberta desta canhota retirada da fogueira de Natal. Nunca te esqueças disto. Quando fores grande, guarda sempre uma canhota de carvalho, retirada do lume do Natal, para proteger a tua casa. E, se puderes, quando trovejar muito, põe também no lume um bocadinho do ramo de oliveira benzido no Domingo de Ramos.

O filho guardou a mensagem. Nunca mais esqueceu aquelas palavras da mãe. E aquela família, cumprido que foi todo aquele ritual, uma mistura de fé em Deus e na força telúrica bebida ali à sombra do céu da aldeia, e na tradição antiga, que tantos antepassados foram passando de boca em boca, foi descansar. É que, pela manhã, muito cedo, todos tinham de ir à missa, beijar o Menino Jesus e admirar a simplicidade do presépio.

Quantas saudades restarão, hoje, no seio de tantas famílias, - meu Deus -, desse Natal distante?
Já não existem, por certo, pais a contar estas histórias, e também não aquelas lareiras aconchegadas.
Já não há crianças a distribuir infusas de vinho pelos pobres, nem alminhas que vêm pela noite comer na mesa dos mortais!
E já ninguém retira da lareira a canhota de carvalho, o lenho sagrado, capaz de afastar as trovoadas e as tempestades!...

O próprio Menino Jesus no seu presépio, já não é o que era!...
A ele, hoje, dá-se menos importância do que ao Pai Natal, - esse barbudo esquisito, que nesta época aparece por todo o lado, e até entra pelas janelas -, que o suplantou na distribuição das prendas à criançada!
Quem se lembra dele, a descer durante a escura solidão da noite, para deixar no sapatinho, junto à lareira, as tão desejadas prendas?!...

O Natal de outrora, já tão distante, é a saudade.
E não regressa mais!...
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de dezembro de 2014 Guiné 63/74 - P14077: Conto de Natal (22): Uma bênção dos Céus (Domingos Gonçalves)

Guiné 63/74 - P15535: Memórias de Gabú (José Saúde) (58): Noite de consoada em Gabu

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

As minhas memórias de Gabu

Noite de consoada em Gabu

Recordando

Passaram 42 anos! Recordo, com uma lágrima ao canto do olho, aquela noite quente e de luar de 1973, 24 para 25 de dezembro, passada na messe de sargentos em Nova Lamego em plena região de Gabu. Era o tempo da guerra na Guiné e onde os clamores da peleja deixavam explícitos conteúdos que as circunstâncias impunham.

Lá longe, ou seja, na metrópole, num ambiente completamente antagónico, a família juntava-se à volta de uma lareira e cumpria a tradição. Era a noite do Menino. Em Nova Lamego a festa porém era outra.

A malta não se deliciava com as filhoses da avó, não comia o ensopado do galo à meia-noite, não sujava os lábios com os finos chocolates, tão-pouco contemplava as prendas deixados no sapatinho pelo Menino Jesus a um canto da chaminé, enfim, uma série de tradições que, na altura, se protelavam no tempo.

Fazendo jus ao calor que se fazia sentir por aquelas bandas de África, lembro, com ênfase, o momento vivido pela malta que minimamente procura procurava ultrapassar a solidão ingerindo gotas de whisky que paulatinamente, e com o evoluir do breu, toldavam jovens militares que se divertiam de acordo com as possibilidades então deparadas.


Era o tempo, também, para refrescar imaginações e introduzir na noite enlevos de esperança. Ninguém ousava imaginar deparar-se com um possível ataque noturno ao quartel nem tão-pouco uma visita inesperada ao arame por parte do IN.

Vivíamos a noite de consoada de acordo com os meios físicos entretanto encontrados. Com efeito, passados todos estes anos ainda me vem à mente as pequenas brincadeiras a que me propus, visando exclusivamente dar treta à malta, procurando, obviamente, trazer à estampa que aquela noite era literalmente de pura alegria.

Esquecia-se, melhor, procurávamos esquecer a imprevisibilidade que a incerta do mato impunha no dia seguinte, tendo em conta, naturalmente, mais um patrulhamento, ou uma proteção a colunas que a amiúde ocorriam.

Sem me alongar nesta pequena narrativa, apenas recordar os nossos tempos de antigos combatentes na Guiné, deixo os meus votos de Boas Festas e um Próspero Ano Novo de 2016 aos companheiros que comigo palmilhavam o território guineense em tempo de guerra.

Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 


Guiné 63/74 - P15534: Manuscrito(s) (Luís Graça) (72): Um dia de cada vez...

Um dia de cada vez

por Luís Graça

Coitado de quem está doente,
Seja na terra ou no mar,
Doente de soltar gemidos, suspiros e ais,
Doente de sangrar e purgar,
Esperando e desesperando
Nas salas de esperança e desesperança
Dos hospitais.

Coitado de quem está desempregado,
E se sente desamparado,
Ficando horas a fio,
Dias, meses e até anos,
Na bicha do centro de emprego,
Ao sol, à chuva, ao frio,
À espera de obter,
Por ali perto,
O primeiro contrato de trabalho
A termo certo.

Coitado de quem pegou na bússola,
Baralhou os pontos cardeais,
E perdeu o norte:
A cabeça é um catavento,
Vai no carrossel da morte,
Sem mão no freio,
Sem receio,
Os cabelos soltos ao vento.

Coitado de quem morre de fome de justiça
E de sede de liberdade;
Coitado de quem ama e não é amado;
Coitado de quem anda de lugar em lugar,
De cidade em cidade,
Fugido, deslocado, aterrado;
Coitado de quem estende a mão à caridade,
Os olhos postos no céu.

Coitado de quem foi à guerra,
Perdeu algo de seu,
A alma, a vista ou uma perna,
E é soldado desconhecido na sua terra;
Coitado de quem não tem Natal,
Mesmo quando quer;
Coitado de quem não acredita na vida eterna,
E que, depois do inferno terrestre,
Não tem lugar no paraíso celestial.

Coitado de quem é velho
E que vive no Portugal, 
Ainda mais velho e relho,
E conta os cêntimos da pensão de cada mês,
E que não espera mais nada da vida
Do que viver um  dia de cada vez.

Natal 2015, 
Lisboa, 24/12/2015

Guiné 63/74 - P15533: Parabéns a você (1007): Fernando Jesus Sousa, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 6 (Guiné, 1970/71) e João Rebola, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2444 (Guiné, 1968/70)


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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Dezembro de 2014 Guiné 63/74 - P15530: Parabéns a você (1006): Albano Costa, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 4150/73 (Guiné, 1973/74); Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS dos STM/QG/CTIG (Guiné, 1968/70); Felismina Costa, Amiga Grã-Tabanqueira (2010) e José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2679 (Guiné, 1970/71)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15532: Ser solidário (189): Notícias de Cumura: estamos muito gratos a todos os que têm apoiado este projecto, sabendo que não há verdadeiramente um projecto 'de alguém', somos todos a remar na mesma canoa da amizade entre os povos (João Martel e Ana Maria Gala)




Vídeo (1'34'') > You Tube > João Martel

Publicado a 30/07/2015. Vídeo de apoio ao projecto "Um pé na Guiné", de voluntariado na Guiné-Bissau. Música de José Braima Galissá, título desconhecido, retirada de vídeo do canal de Carlos Narciso.


1. Mensagem dos nossos grã-tabanqueiros, João Martel, médico, e Ana Maria Gala, professora, a partir da Guiné-Bissau, onde estão a  fazer voluntariado social, na Missão da Cumura:


Data: 23 de dezembro de 2015 às 18:54
Assunto: Notícias de Cumura!


Caros Camaradas da Guiné! Saudações da terra de Amílcar!

Já com alguns meses de presença na terra quente, fazemos então um pequeno relatório para a base de como tem sido a nossa presença aqui.

É difícil expressar em poucas palavras o impacto que causa em dois "novatos" a chegada a uma terra nova e tão diferente como a Guiné-Bissau. Mas por estarmos a falar para gente que  a conhece bem, sabemos que podem subentender por detrás do texto o nosso espanto. (*)

Foi já há 3 meses, na madrugada de 12 de Setembro, que pusemos os pés no Osvaldo Vieira, sentindo o impacto da humidade quente assim que se passa a porta do avião. Tralhas e bagagens (chegou tudo inteiro!) e a recepção calorosa dos frades aqui de Cumura, que nos foram buscar. Uma viagem nocturna, cerca das 4 da manhã, por uma Bissau desconhecida e depois pela estrada de Prábis, com o seu q.b. de buracos e quebra-molas, e a boca aberta de espanto. Apesar da hora avançada, ainda várias fogueiras acesas nas palhotas ao longo do caminho, uma ou outra discoteca com música "a bombar" e os nossos olhos esbugalhados, entrando num mundo diferente.

Os primeiros dois dias foram passados a conhecer a Missão. Quem conhece Cumura,  sabe com certeza que já tem infraestruturas significativas, erigidas ao longo dos 60 anos de presença dos frades aqui. Foi sem dúvida decisivo termos embarcado nesta aventura ao lado da drª Alice Ferreira, uma veterana desta guerra já, que colabora com Cumura desde 2001. Entrar aqui "pela sua mão" foi uma vantagem enorme e permitiu-nos muito mais rapidamente sentirmo-nos em casa. A ela, a nossa homenagem (que sabemos que se junta à de Cumura e de outras terras da Guiné, num justo agradecimento pelo incansável trabalho e entrega).

Eu, João, fiquei ligado à Pediatria aqui de Cumura, a trabalhar ao lado da drª Alice, para uma mais rápida adaptação ao terreno. A Ana Maria, professora do 1º e 2º ciclo, ficou a co-coordenar esses mesmos ciclos aqui na escola de Cumura, o que significa supervisionar cerca de 30 professores(as) e cerca de 450 alunos(as)!... Tudo isto implicou uma entrada gradual, claro, e foi decisivo, sob todos os aspectos, o apoio dos frades e irmãs, que são para nós, neste momento, como família.

Em 3 meses já dezenas de peripécias e surpresas tiveram lugar e tempo para acontecer e, agora que nos sentimos já bastante "guineenses", podemos olhar para trás e sentir grande gratidão – para com Deus e com todos os que possibilitaram a nossa presença aqui, entre os quais estão, inegavelmente, os Camaradas da Guiné – em cujo poilão, orgulhosamente, habitamos.

Já tivemos a oportunidade de visitar Cacheu (numa visita de estudo com a escola – momento historicamente muito simbólico!), Nhoma, Nhacra e Buba, numa viagem que fizemos para o Sul, onde ficámos a conhecer a congregação portuguesa das irmãs Hospitaleiras, que lá residem. Outros sítios aqui mais perto também: Prábis, Bôr, Quelele, e claro, Bissau, a velha e hoje tristonha Bissau – podemos calcular um pouco a diferença que sentirá quem lá esteve há 40 anos e olha para ela hoje – pelas fotos, pelos relatos e pelo descuido que se vê hoje nas ruas da cidade, assim como pela espessa cortina de fumo, da decrépita frota automóvel, toda ela mais antiga que nós e em muito pior estado de saúde.

Além dos lugares, muito para além, as gentes, o povo guineense, bom e gentil mas que precisa de tempo para nos deixar entrar no coração (quem não precisa?). Na ligação a toda a comunidade aqui de Cumura, nas várias actividades da paróquia e dos sítios onde trabalhamos, sentimos já que uma larga família aqui nos estima e acolhe e sabemos já de antemão, quando ainda faltam 6 meses para partir (se as coisas correrem bem), que vai ser difícil deixar esta terra, que caiu verdadeiramente "no goto".




Blogue "Um pé na Guiné", de João Martel e Ana Maria, dois jovens cooperantes portugueses que estão a trabalhar no Hospital da Cumura.  Têm igualmente página no Facebook. Só não sabemos onde é que os nossos amigos foram buscar esta imagem, que não é da Guiné, pode ser do Quénia ou outro país da África Oriental, de grandes savanas e acácias, rodeadas de montanhas...   A Guiné é completamente plana, com exceção da região do Boé que tem umas colinas que chegam aos 100/200/300 metros... (Dizem, que eu nunca cheguei a lá ir...) (LG)



Há muito mais para contar mas, à falta de mais tempo para já, lembramos mais uma vez o endereço do nosso blogue (www.umpenaguine.com), onde vamos tentando reunir algumas reflexões e partilhas, ao sabor do tempo disponível e da capacidade de processar as novidades.

Aproveitamos para fazer alguns apelos:

(i) A Ana Maria tem pensado, para este 2º período de aulas na escola, que seria interessante para os alunos do 2º ciclo (10-12 anos – alguns com 15, 16 anos), ouvirem o relato na 1ª pessoa do que foi a luta de libertação na Guiné-Bissau.

Será que os Camaradas nos conseguiam indicar alguém, português ou guineense, de ambos os lados "da trincheira", que esteja cá pela zona de Bissau/Cumura ou arredores e quisesse dar o seu testemunho? Seria uma verdadeira aula viva, ou um simples momento de conversa amena, num formato a combinar. 

Uma das coisas de que enferma o modelo de ensino aqui é o ser extremamente teórico, sem se apelar ao conhecimento prático e a novas formas, mais estimulantes, de passar os conteúdos do programa. As visitas de estudo, que não tinham sido feitas antes, já deram muito bons frutos e tiveram boa recepção. Qualquer contributo que nos dessem teria grande significado para estes alunos!

(ii) Outra questão: conhecemos também pelo blogue dos Camaradas a associação "AD Bissau", que se percebe ser um dos grandes actores do esforço para o desenvolvimento aqui na Guiné. 

Apesar de estarmos relativamente perto, ainda não tivemos a oportunidade de conhecer melhor o seu trabalho. Sabemos que após a morte do Pepito as coisas também se estão ainda a reorganizar… Será que nos podiam dar o contacto de alguém que nos mostrasse um pouco o trabalho da associação?

(iii) O centro cultural "José Carlos Schwarz" em Bôr está a funcionar?

Já agora, para informar todos os nossos benfeitores, o 1º contentor com muitas das vossas ajudas generosas (em género e as que foram compradas com os vossos contributos) já está em Bissau, e o Raúl, director da cooperativa escolar de São José em Bôr, está a pôr todos os contactos a mexer para o conseguir desalfandegar. O 2º contentor já zarpou de Lisboa, ainda está a navegar por estes dias…

Estamos muito gratos a todos os que têm apoiado este projecto, sabendo que não há verdadeiramente um projecto "de alguém", somos todos a remar na mesma canoa da amizade entre os povos.

Um abraço aqui de Cumura para todos, com os votos de um Feliz Natal e umas excelentes entradas em 2016!

Aguardamos notícias vossas ;)

Ana Maria e João (**)

2. Comentário do editor LG:

Queridos amigos e grã-tabanqueiros  João e Ana!... Que bom saber de vocês!.. Obrigado pelo vosso "relatório"... Tínhamos a certeza que se iriam adaptar bem!... E parabéns pelo vosso pequeno vídeo, feito com tanto engenho, arte e amor.   Bem como pelo blogue que passa a fazer parte da nossa blogosfera.

Vão passar, pela primeira vez, presuno, o natal nos trópicos, em África, nessa terra quente e calorosa que é a Guiné-Bissau, mas onde falta tudo ou quase tudo, em termos de satisfação das necessidades humanas básicas. Os problemas são tantos, da saúde à educação, do emprego à segurança, que é uma dor de alma...  Mas eu sei que vocês têm, sobre as coisas e as pessoas, um outro olhar, humano e cristão, de fé, esperança e caridade, enquadrando-se no espírito missionário da Cumura. É bom que tenham uma visão integrada da Guiné-Bissau, ligando o passado, o presente e o futuro. É bom que sinta que os guineenses têm futuro, quando daqui a seis meses regressarem a cas.

Sobre os vossos apelos, e embora o dia não seja o mais apropriado, já que estamos em vésperas de Natal, na azáfama dos"últimos preparativos" para a noite da Consoada, vamos dar-vos, para já,  o contacto de alguns grã-tabanqueiros que vivem aí em Bissau, com destaque para o  Cherno Baldé (para vos falar dos antes e depois da independência) e o Patrício Ribeiro, também conhecido com o "pai dos tugas" (para vos pôr em contacto com AD - Acção para o Desenvolvimento). São dois seres humanos de grande estatura, que muito nos honram com a sua presença (ativa) na Tabanca Grande. Espero que eles vos possam ajudar.

Um grande xicoração para vocês, João e Ana. Oxalá / inshallah / enxalé o ano de 2016 vos traga ainda mais alegrias com as cores, os sons e os sabores da Guiné-Bissau, mas também de Portugal e do resto do mundo.

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Notas do editor:

Guiné 63/74 - P15531: Notas de leitura (791): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José A. Paradela): reprodução do capítulo 7 com a descrição da viagem de seis meses, aos 17 anos, em 1955, aos bancos de pesca do bacalhau: Parte I


1. Por cortesia de autor, pela grande amizade que ele nutre pelo editor do nosso blogue (e vice-versa), e pela paixão que o nosso blogue tem demonstrado pela epopeia da pesca do bacalhau (que chegou a ser alternativa à guerra colonial), transcrevemos, em três postes,  o capítulo 7 (A viagem “O Mar por Tradição”), pp. 83-107, do livro A Rua Suspensa dos Olhos, de Ábio de Lápara (edição de autor, Aveiro, 2015) (*)

O autor, ilhavense, filho de marinheiro, evoca e descreve com enorme ternura e talento a rua onde nasceu e cresceu, e onde conheceu algumas das figuras humanas da sua terra, que marcaram a sua memória e o seu imaginário ...

Como já escrevemos em poste anterior, "um simples olhar de relance pelo índice do livro, de 164 pp., permite advinhar quanto humanidade, ternura, inocência, traquinice, generosidade e poesia havia na rua suspensa dos olhos"...

Já tínhamos prometido aqui publicar aqui, no todo ou em parte, com a devida autorização do autor, o relato da sua viagem de seis meses na safra do bacalhau, nas costas da Terra Nova e da Groenlândia, quando ainda adolescente, aos 17 anos, e como estágio final do curso da Escola Profissional de Pesca, em Pedrouços, Lisboa, é chamado para embarcar e fazer "A Viagem" (*)...

É uma experiência que o marcou para o resto da vida, não só pela dureza das condições de vida a bordo como pela descoberta e reforço da camaradagem, solidariedade e amizade entre a tripulação (marinheiros e pescadores)..

A vida deu, entretanto,  outras voltas e o autor não seguiu o destino dos seus antepassados... Aluno brilhante, acabou por ganhar uma bolsa de estudo, ficar em Lisboa e poder aceder à universidade, sendo hoje um nome de referência da arquitetura e urbanismo em Portugal. (Entraria para o curso de arquitetura na Escola Superior de Belas Artes, no ano letivo de 1960/1961; fundou e geriu a empresa PAL - Planeamento e Arquitectura, com sede em Lisboa, e ainda em atividade; tem obra por todo o país, e em especial na Região Autónoma da Madeira).

O livro está fora do mercado livreiro, tratando-se de edição de autor. Mas, contra reembolso, pode ser pedido autor, através do seu endereço pessoal. Ver igualmente a sua página pessoal no Facebook.


2. A Rua Suspensa dos Olhos > 7. A viagem “O Mar por Tradição”, de Ábio de Lápara (2015) > Parte I (pp. 83-91)


Naquele tempo, eu já sabia que nem tudo eram rosas neste mundo.  (**)

Os dois anos anteriores tinham-me imposto um crescimento veloz, na passagem do mundo do brincar para o do trabalho; na perda dos amigos, porque ao abandonar o liceu perdi a maioria deles; no novo convívio com os mais velhos, companheiros de trabalho, e na enorme mudança dos conversares, agora afastado do ambiente estudantil. 

Dois anos depois, completados os dezasseis, eu iria partir novamente. Atingida a idade da diáspora entre os cúmplices companheiros de então, foi um tempo de despedidas! Por um lado, entre os que, chamados pelos pais, seguiam para outros continentes, impondo-me segunda perda de companheiros, por outro, eu, que ia partir também, consciente de que ninguém me chamara e portanto no outro extremo, à chegada, ninguém me esperaria. 

Quando isso aconteceu, na minha mala pouca coisa levava. Entre duas mudas de roupa, um sabonete perfumado que a mãe lá pusera seria o cheiro mais próximo de casa e a única réstia de carinho materno durante longos tempos. 

Levava comigo também uma paixão adolescente, subjacente na permanência do pensar, que dava suporte ao sofrido dia a dia, como um bálsamo! 

Era um amor feito de lembranças e palavras suspensas no desejo de as dizer sem conseguir. Conversas prontas, feitas de perguntas e respostas, ocupando todo o espaço livre entre os afazeres, correndo como um filme de imagens nítidas do objecto ausente, de impossível contacto, como só acontece nos sonhos. Imagens feitas de fugazes momentos junto dela, de olhares comprometidos, pedaços de gestos e sussurros vindos do Jardim e de outros cantos da minha vila. 

Lisboa para mim não era novidade. Por ali vivera entre os doze e os catorze anos. Os “eléctricos” e as anacrónicas carroças desse tempo, puxadas por mulas e machos, calçados no ferrador do Altinho, eram-me familiares, bem como os escuros guindastes dos cais e os navios que na infância frequentara com os meus pais. 

Esses conhecimentos minoraram algumas difculdades práticas mas não o desatino interior de alguém que, habituado a dispor de um nome e da liberdade de gerir o seu dia a dia no trabalho, passou num ápice, a ser designado por um número. Nunca tinha sido aluno interno e embora no liceu tivesse um número na turma, continuava a ser conhecido pelo meu nome. Era uma sensação esquisita, a que levei algum tempo a adaptar-me. 

 Como o castigo era algo que não almejava, tratei de compreender o funcionamento daquela realidade: a Escola ProfIssional de Pesca. Prudente, resolvi vestir a alma de cinzento e clareá-la só nos momentos de folga, evitando demasiada visibilidade. Tentei recuperar dois ou três antigos companheiros de liceu residentes em Lisboa para sair ao fim de semana, mas,  fardado de pescador, verifiquei que estavam pouco interessados na companhia. Paciência… aprendi que o preconceito molda com frequência a alma humana. 


Costa Nova > Ria de Aveiro > 25 de Agosto 
de 2008 > Um amigo comum,  do nosso 
editor e do nosso camarada Jorge Picado, 
o arquitecto José António Boia Paradela 
(pseudónimo literário, Ábio de Lápara). 
Foto de LG..
Botas de cabedal atanado, umas calças e um boné de burel castanho sombrio, áspero como palha, e uma camisa de xadrez em tons avermelhados, eram o ferrete com que o regime (#) marcava os filhos dos pescadores que quisessem seguir as pegadas dos pais. Porém, nem os nossos pais se vestiam assim! Talvez algum nazareno mais antigo, durante o trabalho, mas em terra usavam fato, camisa e gravata ou colarinho desabotoado como era hábito no tempo. 

Assim, resolvi passar a ser o Sessenta, de modo muito assumido, e fazer novos amigos. Mas não me perguntem os nomes deles. Eram o Trinta e Três, da Ericeira, o Cem, da  Gafanha, o Onze,  da Nazaré, o Vinte Cinco, de Ílhavo…e por aí fora! E o Sessenta passou a ser um dos meus números mágicos!

Éramos cem alunos procedentes de várias localidades costeiras, ente os quais dois cabo-verdianos que não aguentaram as saudades da ilha. Entristeceram de tal  
modo durante as duas ou três semanas iniciais que tiveram de regressar à procedência. Claro que não foram só as saudades, mas também as notórias diferenças culturais, na capital de um império à qual a negritude colonial, naquele tempo, quase não tinha acesso. Porém, mais do que isso, foi sobretudo a incapacidade de um bafiento paternalismo institucional para verter a dose de ternura necessária em tal situação. Dois entre cem, crioulos em caldo de portugas, liberdade da praia posta em prisão guardada por quatro cabos da marinha! Ao fim de alguns dias, foram-se.

A verdade é que nos restantes noventa e oito, as condições adversas da nova situação geraram cumplicidades e solidariedades inesquecíveis, que ficaram para a vida como faróis colocados ao longo da costa, para esconjurar o mal no meio da procela. Se essa lição não fosse aprendida tornava-se difícil, mais tarde, o entendimento mútuo e até a comunicação com a linguagem exclusiva do olhar em momentos cruciais de necessária entreajuda a bordo. Ali fiz, pois, aprendizagens várias: As do convívio institucional, da solidariedade, do jogo do desenrasca e também, da perda da inocência!

Inesquecíveis foram as travessias do rio metafórico da minha aldeia, em grupo, aos fins de semana, na visita às esconsas escadas das ruas da Bela Vista e do Ferragial, na área portuária, onde para muitos de nós, recém chegados da província, a iniciação sexual tinha uma aura de magia negra: Subir a escada escura com a respiração suspensa… e não só pelo cheiro da urina na escuridão dos degraus (urinar após o acto, evitava as maleitas blenorrágicas, dizia-se), pulsação aumentada, bater à porta, esperar a sua abertura, com parcimónia, por uma senhora de prazo esgotado…

Depois, o jogo do olhar escolhendo a parceira de entre as que se sentavam em volta na prática de alguns aperitivos, aceitando moedas de pequeno valor colocadas por mãos, ora hesitantes ora atrevidas, na comissura dos seios generosamente expostos pelos decotes… Para os de educação católica, onde se instilara o medo do fogo eterno, restava ainda um sentimento de pecado…

Duros tempos! Ainda hoje me lembro do hálito bafiento do prior da igreja de S. Paulo a quem, ajoelhado, algumas vezes confessei esses “pecados”! E saía perdoado, cheio de alívio até à próxima oportunidade, que a carne é fraca… Poderia desenvolver mais o tema desta instituição corporativa da panóplia instrumental de um tal [Henrique] Tenreiro de má fama, mas confesso que ela faz parte do meu universo privado que não me apraz recordar, embora este sentimento se tenha desenvolvido mais tarde, quando a consciência social e política despertou.

Na verdade eu não pagava nada. Tinha comida, cama e roupa lavada. E formação profissional… Era uma benesse do Estado Novo, que devíamos aceitar agradecidos. Num país com nove milhões de pessoas, noventa podiam anualmente ascender a aprendizes de pescador de bacalhau! Uma honra portanto!…

Mas não descurei a teoria e aprendi que o bacalhau era um teleósteo, na sua classificação científica. Fiz um saco para o pão e um cinto para as calças em arte de marinheiro. Aprendi a escamar e amanhar peixe, a remar e navegar à vela no Tejo até ao Ponto Final, um tasco da outra margem, onde por vezes se descansava um pouco antes do regresso. Ali se bebia um copo quando para isso havia dinheiro, para empurrar o quarto de “pão de segunda” da merenda que a instituição fornecia.

Porém o balanço final resultou muito positivo em termos humanos. Foi uma experiência longa, num microcosmos com personagens interessantes, cada uma a seu modo, das quais algumas ainda moram comigo: Duas Eugénias, uma digna do céu, outra, talvez do purgatório; um director ausente, apenas presente na missa dominical rezada pelo Capelão do Gil Eanes, que, dizia-se, escondia whisky sob o altar para traficar em St. Jonh’s; um senhor contabilista, todo vestido de um luto negro pela morte de uma jovem filha, que se movimentava por ali indiferente à rapaziada, como se fôssemos galinhas de um qualquer aviário; um mestre de redes, excelente pessoa, que de noite, contava-se, para assustar os alunos, teria encarnado na lendária Princesa que habitara aquela mansão e dera o nome ao Largo fronteiro. Envergando um lençol sobre a cabeça, percorria o corredor junto das camaratas, até que um dia apareceu com uma equimose no sobrolho provocada por um aluno mais afoito que,
definitivamente, desmascarou o farsante.

As disciplinas teóricas eram ministradas por alguns professores, normalmente dos quadros da Marinha de Guerra, que faziam daquilo um complemento pecuniário. E, finalmente, quatro monitores, qual deles o mais bizarro, cabos de marinha, que se revezavam na condução dos alunos com métodos de manutenção da ordem por vezes achibantados, embora a esta distância me pareçam criaturas simpáticas e complacentes, com direito ao minha admiração.

De um deles se dizia ter sido gaseado na Grande Guerra, pela saliência esbugalhada do olhar. Outro, tomava da pinga, que lhe abrilhantava os olhos… Outro ainda, mulherengo de saltar o muro, impunha-se pela corpulência e vozeirão militar; e o de menor estatura, fazia-se respeitar pelo cacete escondido sob a farda, onde o alcache e o boné de marinheiro justo à minúscula cabeça lhe conferiam um ar de miniatura. Quando alguma quezília surgia, usava aquele argumento sobre nós sem curar de ouvir o preço da restumenga!

As tardes passadas no rio, remando ou velejando, eram normalmente divertidas, escapando um pouco ao rigor da disciplina na Escola. Os monitores abrandavam a exigência disciplinar e aproveitavam para prevaricar um pouco também, saltando na outra margem para beber uns copos,  ou para confraternizar com os colegas da velha fragata das Índias, “D. Fernando II e Glória”.

A fragata Dom Fernando II e Glória, ancorada em Ponta
Delgada, Açores, em 1878, na sua última viagem da carreira
da Índia. Encomendada em 1821, foi lançada à água
em 1841. Veleiro, em madeira, tinha 50 bocas de fogo.
Na sua vida útil, faz cem mil mil marítimas, o equivalente
a cinco voltas ao mundo. Está hoje fundeada em Almada, e
funciona como museu.
Fonte: Museu da Marinha, Lisboa.
Imagem do domínio público.
Cortesia de Wikimedia Cmmons.
Fundeada no meio do Tejo, nesse tempo, era albergue de crianças desprotegidas. Ali atracávamos estabelecendo convívio fraterno, uma vez que alguns dos colegas da nossa instituição eram de lá oriundos. Por isso os designávamos por “fragatas”.

Mas se o nosso comportamento, durante o périplo ribeirinho se tornasse menos contido, logo surgia o devido castigo:
Safa lanches!– ordenava o cabo monitor em frente da saída de esgotos do Caneiro de Alcântara. Fundeados no local, obrigava-nos a comer o magro quarto de pão com torresmo, cercados pelo fétido líquido.

Cumprida que fosse a via sacra ao longo de cerca de ano e meio, havia que pagar o vinagre e o fel, e ainda a coroa de espinhos: embarcar na frota da pesca do 
bacalhau, em navio de pesca à linha, 
onde seriam descontadas as despesas 
que a Escola tinha efectuado connosco, algumas delas impostas pela própria instituição, tais como a aquisição de roupa, normalmente de fraca qualidade, para “A Viagem”.

Assim a aparente benesse do Estado Novo era agora descontada ao longo dos dois ou três primeiros anos de faina obrigatória na pesca do Bacalhau. Como naquele tempo, tudo era decidido na ausência dos interessados, fui colocado numa vetusta glória da frota, o “Gazela Primeiro”, um pequeno navio de três mastros armado em lugre-patacho, isto é, com velas redondas no mastro de vante e velas latinas nos dois restantes [vd. fotop aqui].

Fui ver o barco. Fiquei desolado. O aspecto era miserável, talvez porque ainda não tivesse sido arrumado e limpo para a nova campanha, mas o beliche que me estaria destinado era atravessado por um dos mastros! Por ter sido bom aluno, (nesse aspecto tinha nítida vantagem sobre os colegas por ter um nível de estudos um pouco mais avançado) foi-me prometido um regresso aos estudos por uma instituição ecuménica cuja direcção promovia algumas bolsas de estudo para filhos de pescadores que, naquela Escola, tivessem revelado capacidades para poderem vir a ser oficiais da marinha mercante.

Nessa medida, pareceu-me que embarcar no “Gazela”, era embarcar no passado, e eu tinha só dezassete anos e toda uma promessa de vida à minha frente. Alegando essas razões, pedi para ser “matriculado” num navio de pesca à linha que tinha sido construído recentemente. Aceite o pedido, fui colocado na tripulação do Lousado”, assim se chamava o navio [vd. foto aqui].

Acabado o curso, cumpria-se mais uma vez, o caminho inquestionável do mar por tradição, que atirava para o Atlântico Norte um naco de juventude, amputando-lhe definitivamente as hipóteses de desenvolvimento humano a que deviam ter direito. E isso apenas a troco de um vencimento regular, embora reduzido, mas que não tinha paralelo nos outros moldes de pesca do país, sujeitos às vicissitudes do clima e de um sistema corporativo claustrofóbico onde a miséria era maior.

Corria o ano de 1955 [e não 1954, como escreve o autor, (LG)], longe ainda dos tempos da emigração maciça e da guerra colonial.

(Continua)

[Fixação de texto, ilustrações, links e notas, exclusivamente para efeitos deste poste: LG]
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Nota do autor:

(#) O regime do Estado Novo alimentava-se de populismos, inventava tipicismos, louvava a pobreza franciscana, transpunha a glória da pátria para fora do presente: a glória passada, para o século XVI, a glória futura, para o Além, nas asas da concordata. Exactamente ao contrário do seu inspirador nazismo, que destinava o povo a incarnar uma raça superior e mandava costurar as fardas mais elegantes do planeta! Uma ligeira diferença entre Braunau e Santa Comba Dão!… Ambos os resultados foram repugnantes, mas os métodos mais macios, como sabemos, perduraram mais tempo…)
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Notas do editor

Guiné 63/74 - P15530: Parabéns a você (1006): Albano Costa, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 4150/73 (Guiné, 1973/74); Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS dos STM/QG/CTIG (Guiné, 1968/70); Felismina Costa, Amiga Grã-Tabanqueira (2010) e José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2679 (Guiné, 1970/71)




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Nota do editor

Último poste da série de 22 de Dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15524: Parabéns a você (1005): Miguel Vareta, ex-Fur Mil Com da 38.ª CCOM (Guiné, 1972/74)