segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15520: Notas de leitura (790): “Bichos da Guiné, Caça, fauna, natureza”, por Júlio de Araújo Ferreira, Edição de Autor, 1973 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2015:

Queridos amigos,
Há soberbos relatos de caçadas na Guiné, basta recordar João Augusto Silva, irmão de Artur Augusto Silva, este marido da Sr.ª D.ª Clara Schwarz. Mas esta obra de Júlio de Araújo Ferreira surpreende-nos a todos: aquela Guiné de finais de 1940 já não existia, literalmente já não existia, quando ali chegámos.
O caçador fala deslumbrado de Guileje e Madina do Boé, e nós perguntamos se foi mesmo assim, mas todo este relato é apaixonado, está cinzelado pelo permanente arrebatamento do caçador.
Uma obra que merecia ser reeditada, uma memória única, alguém que, 25 anos depois, em 1973, desvela os seus amores pelas terras, pelas gentes e pelos bichos.
Comove e dá que pensar.

Um abraço do
Mário


Bichos da Guiné, por Júlio de Araújo Ferreira (1)

Beja Santos

“Bichos da Guiné, Caça, fauna, natureza”, por Júlio de Araújo Ferreira, Edição de Autor, 1973, permite uma leitura fascinante sobre o mundo cinegético guineense na segunda metade dos anos 1940, em localidades que nos deixarão estupefactos, este caçador calcorreou de Contabane a Madina do Boé, deliciou-se no Cantanhez e com Guileje, irá falar de elefantes, búfalos, antílopes, hipopótamos, de muitas aves, dissertará sobre a proteção das espécies e podemos ouvi-lo glorificar, extasiado, a Lagoa de Cufada.

Viveu na Guiné de 1945 a 1948 e diz abertamente que a matéria deste livro é apenas fruto da sua observação pessoal. O seu primeiro relato é a viagem que faz de Contabane ao Boé e Banjara. É um autor que não esconde o estilo caligráfico muito impressivo dos naturalistas, ei-lo a sair de Bolama a caminho do continente: “Nas águas estanhadas, apenas uma suave ondulação. Os remadores manobram com desenvoltura os remos toscos, talhados a catana. De tempos a tempos, para dar maior poder à remada, levantam-se por completo no banco que lhes fica em frente, onde apoiam os pés. Uma cantilena bárbara, anima-os e dá-lhes o ritmo. Verdadeiros bronzes; nos corpos nus, lustrosos de suor, os músculos desenham-se a cada movimento, com uma nitidez impressionante”. Durante a viagem regista a presença de melros, de rolas, perdizes, gazelas, porcos. O grande espetáculo são os macacos cães. Contabane, escreve, era uma simpática tabanca de Fulas. Descansa, pois tem duzentos quilómetros à frente até Pitche. Ficamos então a saber que é militar. Parte com o pisteiro, Bárcar Baldé, e o cozinheiro, um rapaz Balanta conhecido por “Um”. Fala das suas armas: um revólver "ponto" 357 Magnum, três carabinas e a inseparável caçadeira, uma velha Sarasqueta calibre 12. Pelo caminho, vai observando as manifestações da vida animal: Búfalos e búbalos, gazelas, vários antílopes. Demora-se a fotografar baga-baga. E chegam a Saala, precisam de comida e ele abate um “frintambá” (cabra de mato). E fala de uma operação curiosa: “A água da cacimba está bastante turva, leitosa. Findo o jantar experimento filtrá-la, fazendo-a passar através de umas ligeiras camadas de areia, que coloquei, alternadamente com outras de carvão da fogueira, dentro de uma lata de Ovomaltine, no fundo da qual abri alguns buracos. Consegui que a água saísse límpida, mas o nosso improvisado filtro deu pouco rendimento”. Mal amanhece, vão montear. Descobrem rastos frescos de um pequeno grupo de elefantes. Lá vão, pé ante pé, à procura de um búfalo. E temos o caçador a falar tecnicamente a sua caça, depois de o abater: “É um bonito bicho, um dos melhores exemplares que me foi dado ver na Guiné. Encontro 1,37 m de altura no garrote e 2,26 m de comprimento do focinho à raiz da cauda. Um olho perdido, em resultado de qualquer antiga refrega, que lhe produziu um extenso ferimento, já cicatrizado”.


Vai fazendo fotografias, enquanto o búfalo é retalhado, o “Um” prepara-lhe umas iscas estupendas. E partem para Madina Dongo, são 25 quilómetros mas parecem-lhe 100. Chegam ao Corubal, que ele acha um rio magnífico: “O Corubal começa a ser belo desde os rápidos de Cusselinta, a poucos quilómetros do Xitole. Daí para montante é um rio verdadeiramente encantador, de margens firmes, ornamentadas em grande parte por uma vegetação luxuriante, limpo, de águas claras, que se espraiam e demoram em tranquilos remansos”. Está extasiado com o rio, o pôr-do-sol parece-lhe um espetáculo feérico. As descrições sucedem-se umas às outras, o caçador vagabundo toma nota de todos os bichos que avista. Seguem de Gobige para Guileje e comenta: “A região continua a ser das mais bonitas que tenho percorrido na Guiné. Muito arborizada, com árvores de bom porte. De vez em quando, num ou noutro vale, um grupo de palmeiras. Lalas e campadas, estão semeadas, em profusão, de cogumelos de baga-baga”. E sente-se deslumbrado com as encostas do Boé. Fala de Guileje: “Impressionou-me, logo à chegada, muito favoravelmente. Uma pitoresca tabanca, melhor e mais cuidada que qualquer das anteriores, encaixilhada entre pequenas ondulações, muito verdejante e animada por passarada vária. A maior quantidade de aves aqui reunida, deve-se à existência de lavras e à própria tabanca”. Fica acordado que irão montear no dia seguinte para os lados do Corubal. Comida nunca falta, tiro aqui tiro acolá caem umas perdizes abatem-se porcos. E chegam a Madina de Boé: “O régulo, Mamadú Alfá Djaló, recebeu-nos principescamente. Na sala, um grande retrato do governador Sarmento Rodrigues com dedicatória, o governador dormira aqui em 17 de Junho de 1947”. Refere o comércio entre o Boé e Gabu Sara (Nova Lamego). Vivem muitos Fulas em Madina: Futa-Fulas Forros, Futa-Fulas Pretos, sobretudo. O caçador conversa com o régulo: “Falámos de um importante melhoramento já ordenado pelo governador: a construção de uma estrada ligando Madina do Boé a Contabane, cujo traçado deveria seguir, sem grandes alterações o itinerário que acabámos de percorrer. Escusado será enaltecer os benefícios de tal obra, permitindo prestar assistência, de vária ordem, a mais uma série de povos, encurtando consideravelmente as ligações de Madina com o mar, com Cacine, Catió, Xitole, Bolama”.


Vão visitar a Lagoa de Tchiamu, grande, com bastante água, mas inferior à de Cufada, há para ali pratos de várias famílias, gansos e frangos de água, e muitos mais, Tchiamu é um verdadeiro santuário de passarada. Nisto, rebenta uma chuvada africana: “A tempestade avançava a passos agigantados, e o céu, cada vez mais negro, revestira-se de um aspeto sinistro, medonho. E nós, míseros mortais, quase correndo, envolvidos por uma luz estranha, que parecia anunciar o fim do mundo”. Conseguem chegar à tabanca quando o céu despeja toda a água, os relâmpagos eram contínuos. E depois a chuva cessou por completo. Na manhã seguinte deixam o Boé a caminho de Gabu Saara, povoação que o autor não apreciou. A viagem segue até Bafatá, daqui passeia-se até Dando e Contuboel. Minuciosamente, regista rolas, pica-peixes, tudo quanto anda pelas árvores e pelos solos. E assim chegam a Banjara, vai à caça e abate dois hipopótamos. Chegou a hora do regresso, encaminham-se para o Xitole, depois Bambadinca, cambança do Corubal no Xitole, e depois de Buba até S. João, com uma curta paragem em Fulacunda. Faz referência a dois grandes passarões negros, os “calaos”, pássaros tristes e sombrios. Sente-se feliz e contente, traz um braçado de magníficas recordações para desbobinar nas horas chochas da velhice e dos reumatismos.


E para surpresa do leitor, naquele tempo havia mesmo elefantes na Guiné, como veremos mais adiante.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15503: Notas de leitura (789): “Esculturas e objetos decorados da Guiné Portuguesa no Museu de Etnologia do Ultramar”, Edição da Junta de Investigações do Ultramar, 1971 (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Mais uma descoberta de um livro interessante de BS para ajudar a este entretem nosso, que é compreender melhor a África que nos calhou na "rifa" em 1880 em Berlim.

Essa da caça, em 1945-1948, que era uma riqueza fabulosa e talvez única no mundo, era em toda a África, até à disseminação de armas de caça, de guerra, de exércitos modernos, uma maravilha.

Ainda conheci em Angola lugares onde a única arma eram zagaias com flechas.